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AS PESSOAS SENTEM-SE IMPOTENTES
PERANTE UM MURO ALTO E ROBUSTO

 

 

 

Menshiki chegou às onze e vinte. Assim que ouvi o Jaguar, vesti o blusão de cabedal e fui ao seu encontro. Ele saiu do carro com um corta-vento azul-escuro acolchoado, calças de ganga pretas justas e sapatos desportivos de pele. Tinha um lenço leve em volta do pescoço. A sua cabeleira branca brilhava no escuro.

– Se não se importa, gostaria que viesse comigo verificar o poço na floresta – disse-lhe.

– Com certeza – respondeu Menshiki. – Acha que está relacionado com o desaparecimento da Marie?

– Não posso assegurar, mas tive a premonição de que ia acontecer alguma coisa desagradável com aquele poço.

Menshiki não fez mais perguntas.

– Certo – disse ele. – Vamos dar uma olhadela.

Abriu o porta-bagagens do Jaguar, tirou o que parecia ser uma lanterna, fechou-o e partiu comigo floresta dentro. Não se vislumbrava o luar nem estrelas, estava escuro como breu. Nem uma aragem soprava.

– Desculpe ter-lhe pedido para se aventurar fora de casa tão tarde, mas sentir-me-ia mais seguro se tivesse a sua companhia. Correndo mal, por qualquer razão, quem sabe se conseguiria lidar com a situação sozinho?!

Ele deu-me uma palmadinha no braço, como que a encorajar-me.

– Não é maçada nenhuma, tenho muito gosto em fazer o que puder.

Avançámos por entre as árvores, fazendo incidir o feixe de luz diante dos nossos pés para evitarmos tropeçar nas raízes. O único som era o restolhar das folhas secas; não se ouvia mais nada. Pressenti que os animais da floresta nos observavam em silêncio dos seus esconderijos. As profundezas sombrias da meia-noite dão origem a ilusões como essa. Se alguém nos visse, podia confundir-nos com dois ladrões de túmulos dirigindo-se a um trabalhinho.

– Queria perguntar uma coisa – disse Menshiki.

– Sim?

– Porque é que diz que o desaparecimento da Marie e o poço estarão relacionados?

Expliquei-lhe que tínhamos visitado o poço pouco tempo antes, que ela já sabia da sua existência, que aquela zona era como o seu pátio de recreio. Que nada acontecia ali sem o seu conhecimento. Então contei-lhe o que ela me dissera: «Acho mal terem andado a remexer naquele sítio. Não lhe deviam ter tocado.»

– Quando ela se colocou diante do poço, pareceu sentir alguma coisa – continuei. – Um sentimento especial... diria até espiritual.

– E foi atraída por isso?

– Sim. Estava desconfiada, mas ao mesmo tempo algo no poço a atraía. Por isso é que receio que as coisas estejam relacionadas, que ela se encontre lá em baixo, incapaz de sair.

Menshiki pensou um pouco.

– Contou isso à tia dela? – perguntou. – A Shoko sabe?

– Não, ainda não lhe disse nada. Se lhe falasse no poço, teria de começar pelo início: que nós o abrimos e por que motivo o senhor esteve envolvido. Seria uma história muito comprida e duvido que a pudesse explicar de maneira que ela percebesse.

– Sim, isso só iria apoquentá-la ainda mais, desnecessariamente.

– Seria ainda mais estranho se metêssemos a polícia ao barulho. Isto é, se o poço suscitasse interesse.

Menshiki olhou para mim.

– Já estão a investigar?

– Quando falámos ao telefone, ela ainda não os tinha contactado, mas entretanto deve tê-la dado como desaparecida. Quer dizer, já são altas horas da noite.

Menshiki assentiu com a cabeça várias vezes.

– Sim, é natural. É quase meia-noite e uma menina de treze anos não voltou para casa. Ninguém sabe dela. Que mais resta à família fazer senão chamar a polícia?

Percebi pelo seu tom que Menshiki não estava muito entusiasmado com o envolvimento da polícia.

– Vamos guardar a existência do poço para nós, se possível – disse ele. – Quanto menos pessoas souberem, melhor. Caso contrário, teremos problemas.

Concordei.

Para mim, o Comendador constituía o maior problema. Era quase impossível explicar o significado do poço sem trazê-lo à baila, e sendo ele uma Ideia... Sim, como Menshiki dissera, mencionar o poço só ia piorar as coisas. (E mesmo que eu revelasse a existência do Comendador, quem acreditaria em mim? Iriam apenas pôr a minha sanidade em causa.)

 

 

Saímos de entre o arvoredo em frente ao pequeno santuário e fomos até à parte de trás. Atravessando o tufo de erva-das-pampas, cujas plumas continuavam cruelmente achatadas pelas lagartas da retroescavadora, chegámos ao poço. A primeira coisa que fizemos foi virar os feixes das nossas lanternas para as tábuas que cobriam o buraco e para as pedras que as fixavam no lugar. Verifiquei a disposição delas. A mudança era subtil, mas percebi que tinham sido mexidas. Alguém fora ali depois de mim e de Marie, afastara as pedras e várias tábuas e, antes de se ir embora, tentara compor tudo segundo a posição original. Os meus olhos conseguiram detetar essa pequena diferença.

– Mexeram nas pedras – comentei. – Há sinais de que o poço foi exposto.

Menshiki olhou para mim.

– Acha que foi a Marie?

– Quem sabe? Ninguém daria com isto por acaso e, além de nós, só ela sabe da sua existência. Por isso, é provável que tenha sido a Marie.

O Comendador também sabia do poço, óbvio. Afinal, fora de lá que viera. No entanto, ele era apenas uma Ideia. Não assumia uma forma sólida. Não precisaria de deslocar as pedras pesadas se quisesse voltar a entrar.

Afastámos as pedras e levantámos as tábuas, revelando o poço. Era perfeitamente redondo e não tinha mais de um metro e oitenta de diâmetro, mas parecia maior naquele momento, e mais negro também. Calculei que era esse negrume que criava a ilusão.

Menshiki e eu inclinámo-nos sobre o buraco e apontámos as lanternas lá para dentro. Não estava ali ninguém. Nada. Apenas aquele espaço cilíndrico vazio rodeado pela mesma parede de pedra. Havia uma diferença, no entanto. A escada desaparecera, a escada de metal extensível que o paisagista nos deixara depois de deslocar a pilha de pedras. Vira-a pela última vez encostada à parede do poço.

– Para onde foi a escada? – perguntei em voz alta.

Não demorámos muito a encontrá-la no chão, a certa distância, numa área coberta de ervas-das-pampas que a retroescavadora não tinha achatado. Alguém a tirara do buraco e largara-a ali. Não sendo pesada por aí além, bastara aplicar o mínimo de força para a retirar. Voltámos a pô-la dentro do poço, encostada à parede.

– Vou lá abaixo dar uma olhadela – disse Menshiki. – Talvez encontre alguma coisa.

– De certeza que não lhe acontece nada?

– Não se preocupe, já lá estive antes.

Menshiki desceu facilmente pela escada, de lanterna na mão.

– A propósito, sabe qual é a altura do Muro de Berlim? – perguntou enquanto descia.

– Não.

– Três metros – respondeu, olhando para mim. – Variava consoante a localização, mas, por norma, tinha essa altura. Pouco mais alto que este buraco. Também media em extensão cerca de duzentos e cinquenta e sete quilómetros. Vi-o com os meus olhos, quando Berlim ainda estava dividida em Oriental e Ocidental. Um cenário deplorável.

Quando Menshiki chegou ao fundo, inspecionou o local à luz da lanterna. Mesmo assim, continuou a falar comigo.

– Os muros foram originalmente erguidos para proteger as pessoas. De inimigos externos, tempestades e inundações. Às vezes, porém, eram usados para manter as pessoas no seu interior. As pessoas sentem-se impotentes perante um muro alto e robusto. Visual e psicologicamente. Alguns muros foram construídos com esse propósito específico.

Menshiki calou-se. Examinou cada centímetro da parede e do chão de forma atenta e cuidadosa, como um arqueólogo diante da câmara interior de uma pirâmide egípcia. A sua lanterna era mais potente do que a minha, iluminando uma área mais ampla. Pareceu ter encontrado algo no chão do poço, pois ajoelhou-se e examinou o objeto demoradamente. Cá de cima, não consegui perceber o que era. Menshiki não disse nada. Fosse o que fosse, devia ser muito pequeno. Pôs-se de pé, embrulhou o objeto no lenço que levava ao pescoço e enfiou-o no bolso do casaco. Olhou para mim.

– Vou subir – disse, erguendo a lanterna no ar.

– Encontrou alguma coisa? – perguntei.

Não respondeu. Com cuidado, subiu a escada. Os degraus rangiam sob o seu peso. Mantive-me atento, apontando-lhe a lanterna a cada passo. Do meu posto de observação deu para perceber como a rotina diária lhe permitira ter um corpo bem treinado. Nenhum movimento era desperdiçado. Os músculos, um por um, desempenhavam na perfeição o seu papel. Quando voltou para junto de mim, espreguiçou-se e limpou a terra das calças com cuidado; não que houvesse muito para limpar.

– Lá em baixo percebemos como a altura daquela parede é intimidante. Sentimo-nos mesmo impotentes. Vi uma coisa semelhante na Palestina há algum tempo; Israel ergueu lá um muro de betão com sete metros e meio de altura, cabos de alta voltagem em cima, a todo o comprimento. Aquele muro tem quase quinhentos quilómetros de extensão. Acho que os israelitas pensaram que três metros era pouco, mas é o suficiente para ser eficaz.

Pousou a lanterna. O chão em volta dos nossos pés ficou iluminado.

– Agora que penso nisso, as paredes das celas solitárias na prisão de Tóquio também medem cerca de três metros – continuou Menshiki. – Não sei porque as fizeram tão altas. Era a única coisa para onde podíamos olhar, aquelas paredes vazias, dia após dia. Não havia mais nada onde descansar a vista. Nenhuma fotografia nem nada do género, como é óbvio. Apenas aquelas malditas paredes. Temos a sensação de que nos atiram para um poço.

Ouvi em silêncio.

– Cumpri pena naquele sítio há algum tempo. Não lhe falei disso, pois não?

– Não, não falou. – A minha namorada dissera-me que ele passara uma temporada na prisão, mas, como é evidente, não me descosi.

– Vou contar-lhe, então. Os mexeriqueiros adoram distorcer os factos para apimentar as historietas deles. O melhor é ouvi-lo da minha boca. Não é bonita, mas parece-me a ocasião perfeita para a revelar. Importa-se?

– Ora essa, faça favor.

– Não estou a desculpar-me – disse ele após uma breve pausa –, mas nada fiz para me sentir culpado. Experimentei muitas coisas ao longo da vida, corri muitos riscos. Agora, tomarem-me por idiota, isso não. Sou cauteloso por natureza e sempre tive o cuidado de evitar práticas ilegais. Sei que não devo passar a linha. Dessa vez, porém, meti-me em sociedade com um homem bastante descuidado. Por causa dele sofri bastante. Essa experiência ensinou-me a nunca mais unir forças com quem quer que seja, a responsabilizar-me por mim e mais ninguém.

– De que é que foi acusado?

– Abuso de informação privilegiada e evasão fiscal. Aquilo a que chamam «crimes de colarinho branco». Fui acusado e julgado, mas acabaram por não me considerar culpado. Mesmo assim, a investigação foi cansativa e passei bastante tempo na prisão. Inventavam razões para me manter preso. Estive lá tanto tempo que, desde então, ver-me cercado por paredes deixa-me um pouco nostálgico. Como lhe disse, não fiz nada que justificasse a punição que sofri. As minhas mãos estavam limpas, mas os procuradores tinham montado um cenário e, de acordo com o guião, eu era culpado. Não lhes apetecia voltar atrás e reescrevê-lo. É assim que funcionam os meandros da burocracia. Torna-se praticamente impossível alterar algo depois de decidido. Ir contra a corrente significa que alguém, algures, tem de assumir a responsabilidade. Resultado: passei uma porrada de tempo na solitária.

– Quanto?

– Quatrocentos e trinta e cinco dias – respondeu Menshiki, como se fosse coisa pouca. – Um número que nunca hei de esquecer, por muitos anos que viva.

Não era difícil imaginar o que significava passar uma tão larga temporada na solitária.

– Alguma vez esteve um longo período assim confinado? – perguntou Menshiki.

– Não – respondi. A minha experiência de ficar trancado na parte de trás daquela carrinha em movimento convocara em mim uma grave claustrofobia. Agora não conseguia sequer andar de elevador. Acho que me iria abaixo se me visse enclausurado como ele.

– Aprendi a suportar isso – continuou Menshiki. – Treinei-me todos os dias. No processo, aprendi várias línguas estrangeiras. Espanhol, turco e chinês. Limitavam o número de livros que podíamos ter na solitária, mas essas restrições não se aplicavam aos dicionários. Nesse sentido, é o lugar ideal para estudar idiomas. Fui abençoado com bons poderes de concentração, e quando estava concentrado no estudo das línguas, conseguia abstrair-me das paredes. Há um lado bom em tudo.

Até a nuvem mais escura e espessa tem um brilho prateado quando vista de cima.

– O que me aterrorizava era a possibilidade de haver um terramoto ou um incêndio. Cercado daquela maneira, nunca poderia ter fugido. Imaginar-me esmagado ou calcinado naquele pequeno espaço assustava-me tanto que às vezes não conseguia respirar. Foi o único medo que não pude superar. Havia noites em que acordava a pensar nisso.

– Mas ultrapassou-o.

– Pois claro. Havia eu de deixar que aqueles estupores me vencessem ou permitir que o sistema deles me fizesse vergar?! Se tivesse assinado os papéis que me puseram à frente, davam-me livre-trânsito da prisão e eu regressava ao mundo exterior. Mas assiná-los significaria a minha derrota. Teria admitido crimes que não cometera. Decidi então encarar a experiência como uma provação vinda do alto, uma oportunidade para testar a minha determinação.

– Pensou no tempo que passou na prisão quando esteve uma hora sozinho no poço?

– Sim. Preciso de voltar a essa experiência de vez em quando. É o meu ponto de partida, por assim dizer. Onde a pessoa que sou hoje se formou. Quando a vida é confortável, amansamos em menos que nada.

Que sujeito peculiar, disse de volta com os meus botões. Como reagiria outra pessoa a um tratamento tão duro? Não tentaria esquecê-lo o mais rápido possível?

Fazendo-se luz na cabeça dele, Menshiki enfiou a mão no bolso do casaco e sacou qualquer coisa embrulhada num lenço.

– Encontrei isto no fundo do poço – disse ele.

Abriu o lenço, tirou um pequeno objeto de plástico e entregou-mo.

Examinei-o à luz da lanterna. Era um pinguim preto e branco, com cerca de um centímetro de comprimento e uma minúscula faixa preta agarrada, uma daquelas bugigangas que as raparigas da escola gostam de prender nos telemóveis ou nas mochilas. Imaculadamente limpo, parecia novo.

– Não estava lá da primeira vez que entrei no poço – declarou Menshiki. – Tenho a certeza.

– Nesse caso, alguém deve tê-lo deixado ali em baixo depois disso.

– Sim. Parece o enfeite de um telemóvel. E a correia não está partida. Tiveram de a soltar. O que sugere que foi largado.Talvez, que quem o deixou fez isso propositadamente. Será?

– Quer dizer que entraram no poço para pôr lá isso?

– Ou caiu aqui de cima.

– Porque faria alguém uma coisa dessas? – perguntei.

Menshiki abanou a cabeça, como se também não conseguisse perceber.

– É possível que o tenham posto ali para servir de amuleto ou talismã. Mas não passa de um palpite meu.

– Refere-se à Marie?

– Provavelmente. No fim de contas, quem mais esteve perto do poço?

– Ela deixou-o ali como uma espécie de amuleto, é isso?

Menshiki tornou a abanar a cabeça.

– Não sei. É difícil compreender uma rapariga de treze anos de idade. Elas têm ideias mirabolantes, não é?

Olhei novamente para o pequeno pinguim na minha mão. Agora já me parecia uma espécie de amuleto; tinha uma aura de inocência.

– E quem é que puxou a escada e a arrastou para além? Por que carga de água alguém o faria? – perguntei.

Menshiki também não fazia ideia.

– De qualquer forma, vamos ligar à Shoko quando voltarmos e perguntar-lhe se a Marie usa um amuleto em forma de pinguim no telemóvel – sugeri. – Ela há de saber.

– Guarde o pinguim por enquanto – disse Menshiki.

Assenti e enfiei-o no bolso das calças.

Colocámos as tábuas no sítio, deixando a escada encostada à parede do poço. Quando pusemos as pedras por cima, decorei as suas posições exatas. Dirigimo-nos para casa através da floresta pelo mesmo caminho por que tínhamos vindo. Olhei para o relógio: já passava da meia-noite. Não dissemos palavra, apenas apontámos as lanternas para os nossos pés. Estávamos perdidos em pensamentos.

Chegados à propriedade, Menshiki foi ao Jaguar, abriu o grande porta-bagagens e guardou a lanterna lá dentro. Depois fechou-o e, como se finalmente se permitisse descontrair, encostou-se ao carro e voltou os olhos para o céu. O céu negro em que nada era visível.

– Importa-se que eu entre por alguns minutos? – perguntou. – Vou ter dificuldade de relaxar em casa.

– Faça favor! Também não creio que consiga adormecer já.

Os olhos de Menshiki ainda estavam fixos no céu; os pensamentos deviam correr em tropel pela sua mente.

– Não sei porquê, mas não consigo libertar-me do pressentimento de que alguma coisa má está a acontecer à Marie – confessei. – E que ela se encontra por perto.

– Mas não no poço.

– Acho que não.

– Que tipo de coisa má? – perguntou Menshiki.

– Isso não sei, mas sinto que ela corre algum tipo de perigo físico.

– E que o perigo está à espreita algures perto daqui, certo?

– Certo – respondi. – Perto daqui. E incomoda-me que a escada tenha sido retirada do fundo do buraco. Quem a tirou e porque a escondeu na erva? O que significa tudo isso?

Menshiki levantou-se e deu-me outra palmadinha no ombro.

– Tem razão, eu também não sei. Mas preocuparmo-nos com isso não nos leva a lado nenhum. Vamos para dentro.