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HOJE É SEXTA-FEIRA, NÃO É?

 

 

 

 

Assim que entrámos em casa, despi o blusão de cabedal e telefonei a Shoko Akikawa. Ela atendeu ao terceiro toque.

– Há novidades? – perguntei.

– A Marie ainda não ligou. – Era percetível o esforço que fazia para respirar normalmente.

– Já contactou a polícia?

– Não. É cedo para isso, talvez. Tenho esperança de que ela entre pela porta a qualquer momento...

Descrevi o pinguim de plástico que tínhamos encontrado no fundo do poço. Sem entrar em pormenores, perguntei-lhe se Marie possuía um objeto daqueles.

– Sim, a Marie tem um pinguim pendurado no telemóvel. É um pinguim, tenho a certeza... sim. Um pinguim. Sem dúvida. Um boneco de plástico. Deram-lho numa loja de donuts, um pequeno brinde que veio junto com o pedido, mas ela adora-o. Funciona como uma espécie de amuleto protetor.

– E a Marie anda sempre com o telemóvel, correto?

– Sim. A maior parte do tempo, está desligado, mas leva-o sempre com ela. Não atende as chamadas, embora ligue de vez em quando a avisar-me quando surge alguma coisa. – Shoko parou por um momento. – Encontrou-o?

Tentei pensar numa resposta. Se dissesse a verdade, teria de lhe falar do poço na floresta. Se a polícia entrasse na história, também teria de lhes explicar de uma maneira que conseguissem engolir. Uma vez que ela andava sempre com o pinguim, os agentes passariam o poço a pente fino, talvez até a floresta, em busca de provas. Eu seria interrogado e o passado de Menshiki viria à baila. Não via de que forma isso iria ajudar. Como Menshiki dissera, apenas complicaria as coisas.

– Encontrei-o no estúdio – respondi. Detestava mentir, mas não tinha outro remédio. – Quando estava a varrer o chão. Pensei que podia ser da Marie.

– Sim, é dela. Tenho a certeza – disse a tia. – Mas, e agora, o que devo fazer? Chamar a polícia?

– Já teve notícias do seu irmão... quer dizer, do pai da Marie?

– Não, ainda não consegui falar com ele – respondeu, hesitante. – Não faço ideia de onde ele está. Não segue um horário rígido, nunca sei se vem para casa ou não.

O caso estava malparado, mas não podia perder tempo a preocupar-me com isso. Limitei-me a dizer-lhe de que o melhor seria informar a polícia do desaparecimento de Marie. Já passava da meia-noite e a data mudara. Era possível que Marie tivesse sofrido um acidente. Ela disse que ligaria de imediato.

– A Marie continua sem atender o telemóvel?

– Sim. Já lhe liguei várias vezes. Deve estar desligado. Ou ficou sem bateria. Das duas, uma.

– Ela saiu esta manhã para ir à escola e está desaparecida desde então. Certo?

– Sim.

– O que significa que está vestida com o uniforme da escola. Confirma?

– Sim. Um blazer e um colete azul-escuros, camisa branca, uma saia xadrez pelo joelho, meias brancas e mocassins pretos. Ah, e uma sacola de plástico com o nome e o emblema da escola. Não levou sobretudo.

– Ela não tem uma pasta só para o material de desenho?

– Guarda-a no cacifo da escola. Só lhe pega para a disciplina de artes visuais e quando tem aulas consigo às sextas-feiras. Não a traz para casa.

Marie aparecia sempre assim vestida na minha aula: casaco azul, camisa branca, saia xadrez, uma sacola de plástico de trazer ao ombro e um saco de lona branca com tintas e pincéis. Estou a vê-la perfeitamente.

– Ela levava mais alguma coisa?

– Não, hoje não. Por isso duvido que ela planeasse ir muito longe.

– Por favor, ligue-me se houver novidades – pedi. – A qualquer hora do dia ou da noite.

Ela aquiesceu.

Desliguei o telefone.

 

 

Menshiki estava junto a mim a ouvir a conversa. Só depois de eu largar o telefone é que ele despiu o casaco. Por baixo tinha uma camisola preta com decote em V.

– O pinguim sempre era da Marie – comentou.

– Pelos vistos.

– Nesse caso, é quase certo que ela tenha entrado no poço em determinada altura... não sabemos quando... e plantado lá o adorado pinguim. É o que temos até agora.

– A sua ideia é que o pôs lá de propósito, como talismã de proteção.

– Provavelmente.

– Para proteger quem ou o quê?

Menshiki abanou a cabeça.

– Não sei, mas trata-se claramente de um amuleto da sorte. Deve tê-lo deixado para trás por um motivo. As pessoas não se separam de coisas que estimam assim do pé para a mão.

– A menos que queiram proteger algo que estimam mais do que elas próprias.

– Por exemplo? – perguntou Menshiki.

Nenhum de nós apresentou um exemplo válido.

Ficámos sentados em silêncio. Devagar, mas num compasso inexorável, os ponteiros do relógio avançaram. O mundo era empurrado para a frente a cada tiquetaque. Do lado de fora da janela havia apenas escuridão. Nada bulia ali; seria porventura impossível.

De repente, lembrei-me do que o Comendador dissera sobre o sino desaparecido.

«O sino nunca foi só meu. Pertencia ao local, para ser partilhado por todos. Se desapareceu, deve ter havido uma razão.»

Pertencia ao local?

– Talvez a Marie não tenha deixado o pinguim no poço. E se o poço estiver ligado a outro sítio? Talvez não seja um espaço estanque, mas uma espécie de canal. Nesse caso, seria capaz de invocar uma data de coisas.

Era justamente o que eu estava a pensar, mas dizê-lo em voz alta parecia ridículo. O Comendador seria capaz de entender, mas não um ser deste mundo.

Um profundo silêncio instalou-se na sala.

– A que poderia estar ligado o fundo do poço? – perguntou finalmente Menshiki, como se falasse sozinho. – Lembre-se, não há muito tempo passei uma hora sozinho lá em baixo. No escuro, sem uma lanterna nem uma escada. Tentei aproveitar o silêncio para me concentrar, extinguir a minha existência física e tornar-me consciência pura. Imaginei que, se pudesse fazer isso, conseguiria transcender as paredes de pedra e ir até onde quisesse. Costumava tentar algo do género quando estava na solitária. Mas não encontrei uma saída no poço. No final, aquelas paredes não me permitiram escapar.

Talvez o poço tivesse voto na matéria, pensei. O Comendador viera ter comigo ao sair do poço, escolhera-me para o albergar, por assim dizer. Marie também podia ter sido escolhida. Mas, por algum motivo, o buraco não escolhera Menshiki.

– De qualquer forma, estamos de acordo: não dizemos uma palavra à polícia sobre o poço – confirmei. – Nesta fase, pelo menos. Ainda assim, estamos a ocultar provas se não dissermos que encontrámos lá o pinguim. Se o descobrirem, ficamos em maus lençóis.

Menshiki pensou por um momento.

– Mantemos o bico calado. «Nada temos a acrescentar!» – sentenciou. – Encontrou-o no chão do seu estúdio. Vamos manter essa versão.

– Talvez um de nós deva ir para junto da Shoko – sugeri. – Ela está sozinha em casa sem saber o que fazer. Perdida e confusa. Desconhece o paradeiro do pai da Marie. Não lhe parece que precisa de alguém junto dela?

Menshiki franziu a testa.

– Não me compete fazer isso – respondeu ele por fim, abanando a cabeça. – Não conheço o irmão. Se ele voltasse para casa...

Calou-se.

Também não me ocorria nada.

Ficou ali sentado, a tamborilar ao de leve com os dedos no braço do sofá; os seus pensamentos, quaisquer que eles fossem, provocaram-lhe um ligeiro rubor no rosto.

– Importa-se que eu fique mais tempo? – perguntou, passados uns minutos. – A Shoko pode tentar entrar em contacto connosco.

– Ora essa, sinta-se em casa – respondi. – Acho que não me vou deitar tão cedo. Fique o tempo que quiser. Também pode cá dormir. Vou trazer-lhe roupa de cama.

Menshiki respondeu que talvez aceitasse a minha oferta.

– Quer um café? – perguntei.

– Boa ideia.

Fui até à cozinha, moí os grãos e liguei a cafeteira. Já pronto, levei-o para a sala de estar, e ali o bebemos.

– Acho que vou acender a lareira – anunciei.

A sala arrefecera significativamente depois da meia-noite. Já estávamos em dezembro; era a altura apropriada para fazer o primeiro lume.

Enchi a grade de ferro fundido na lareira com a pequena pilha de lenha que guardara no canto da sala de estar; inseri papel sob a grade e acendi um fósforo. A madeira estava seca, pois ateou imediatamente. Receei que o fumo pudesse não subir – Masahiko dissera que a lareira funcionava, mas só depois de experimentar é que sabíamos. Um pássaro podia ter feito ninho na chaminé. Felizmente, estava operacional. Pusemos as nossas cadeiras em frente à lareira e ficámos a apreciar o calor.

– Nada melhor que o fogo de lenha – disse Menshiki.

Lembrei-me de lhe propor um uísque, mas mudei de ideias. Impunha-se que nos mantivéssemos sóbrios. Na eventualidade de termos de conduzir, quem sabe? Então ouvimos discos e vimos as chamas dançarem. Menshiki selecionou uma sonata de violino de Beethoven e pô-la no gira-discos. Georg Kulenkampff no violino, com Wilhelm Kempff no piano. Música perfeita para uma noite de inverno diante da lareira. No entanto, era difícil desfrutá-la, sabendo que Marie estaria por aí ao relento a tiritar.

Shoko telefonou meia hora depois. O irmão acabara de chegar a casa e contactara de imediato a polícia, que apareceria a qualquer momento para investigar. (Os Akikawa eram uma família antiga e rica daquela região, pelo que a possibilidade de se tratar de um rapto os levava a agir rapidamente.) Não havia notícias de Marie, e ela continuava sem atender o telemóvel. Entraram em contacto com todas as pessoas de que se lembraram (não eram muitas), mas em vão. Ninguém sabia do seu paradeiro.

– Vamos acreditar que está tudo bem com ela – comentei. Pedi-lhe que me avisasse se houvesse progressos e desliguei o telefone.

Ouvimos outro disco sentados diante do lume. Concerto de oboé de Richard Strauss. Foi Menshiki, também, quem o tirou da prateleira. Era a primeira vez que eu escutava o álbum. Ficámos sentados lado a lado a ouvi-lo, a olhar para o lume às voltas com os nossos pensamentos solitários.

De repente, à uma e meia, senti-me tremendamente sonolento; mal conseguia manter os olhos abertos. Sempre fui de deitar cedo e cedo erguer, e vem daí a minha dificuldade em fazer noitadas.

– Pode ir deitar-se – disse Menshiki, olhando para mim. – Eu fico mais um bocado a pé, não vá a Shoko ligar de novo. Não preciso de dormir muitas horas. Estou mais de que capaz de aguentar uma direta, sem problema. Foi sempre assim. Por favor, não se preocupe comigo. Vou manter o lume aceso. Estarei atento às chamas enquanto ouço música. Importa-se?

Claro que não me importava, respondi. Trouxe outra braçada de lenha do barracão do lado de fora da cozinha e pousei-a ao lado da lareira. Era mais do que suficiente, pensei, para durar até de manhã.

– Bem, então vou-me deitar – disse a Menshiki.

– Durma bem – retorquiu ele. – Vamos revezar-nos. Lá pela manhãzinha sou capaz de passar pelas brasas. Arranja-me um cobertor ou coisa parecida?

Fui buscar o cobertor que Masahiko usara, um edredão de penas e uma almofada, e preparei a cama no sofá. Menshiki agradeceu-me.

– Tenho uísque se lhe apetecer – acrescentei.

Menshiki abanou bruscamente a cabeça.

– Não, nem uma gota de álcool esta noite. Não sabemos o que pode acontecer.

– Se tiver fome, sirva-se da comida no frigorífico. Não é muita, mas pelo menos há bolachas de água e sal e queijo.

– Obrigado.

 

 

Deixando-o ali, retirei-me para o meu quarto. Enfiei-me debaixo dos cobertores, apaguei a luz da mesa de cabeceira e tentei dormir. No entanto, o sono não veio. Sentia-me exausto, mas um pequeno inseto zumbia no meu cérebro. Acontece-me. Desisti, acendi a luz e saltei da cama.

– Tendes um problema, amigo? – perguntou o Comendador. – Não conseguis dormir?

Olhei em volta. Ali estava ele, sentado no peitoril da janela, com a mesma roupa branca, sapatos bicudos estranhos, uma espada em miniatura rente ao flanco. Usava o cabelo muito bem apanhado. Como sempre, uma réplica perfeita do comendador passado a fio de espada no quadro de Tomohiko Amada.

– Exato, não consigo dormir – respondi.

– Muita coisa tem acontecido por estes dias, de facto – observou o Comendador. – Não admira que as pessoas sintam dificuldade em adormecer.

– Há muito tempo que não nos víamos, não é verdade?

– Não consigo avaliar isso. Acho que vos disse antes, mas não temos a noção do que é «muito tempo». Não conseguimos imaginar «há muito tempo» ou «desculpe não escrever há tanto tempo».

– Ainda assim, o seu timing é perfeito. Preciso de lhe perguntar uma coisa.

– Qual é a pergunta?

– A Marie Akikawa desapareceu esta manhã e andam todos à procura dela. Para onde poderá ter ido?

O Comendador inclinou a cabeça para o lado e pensou um pouco.

– Como sabeis – disse ele, escolhendo cuidadosamente as palavras –, o reino humano é governado por três elementos: tempo, espaço e probabilidade. As Ideias, pelo contrário, devem permanecer independentes dos três. Posto isto, escuso de me preocupar com assuntos como o que haveis acabado de descrever.

– Deixe cá ver se entendi: o problema reside no facto de não conseguir prever o resultado?

O Comendador não respondeu.

– Ou sabe mas não pode dizer-me?

O Comendador semicerrou os olhos, pensativo.

– Não estou a fugir à responsabilidade. As Ideias têm as suas próprias limitações.

Endireitei as costas e olhei para o rosto dele.

– Vamos esclarecer as coisas: tenho de salvar a Marie Akikawa. Ela pode estar em perigo e a precisar da minha ajuda; provavelmente entrou num sítio do qual não tem meio de sair. É a sensação que tenho, em todo o caso. Mas não sei como encontrá-la. E acho que o desaparecimento dela está de alguma forma ligado ao poço na floresta. Não consigo dar-lhe uma explicação racional, mas tenho a certeza de que há uma ligação. Ora, o senhor passou muito tempo confinado naquele mesmo buraco. Não faço ideia do que o levou a ficar lá fechado. No entanto, em qualquer caso, o Menshiki e eu mandámos vir equipamento pesado, deslocámos a pilha de pedras e abrimos o poço. Libertámo-lo. Isso é verdade, não é? Graças a nós, agora é capaz de se mover ao longo do tempo e do espaço, sem restrições. Aparece e desaparece como quer. Pode até ver-me fazer amor com a minha namorada. É exatamente como estou a dizer, certo?

– Confere, amigo. Confere!

– Não exijo que me diga precisamente de que forma a Marie pode ser salva. Não lhe peço o impossível. Já percebi que o mundo das Ideias tem as suas próprias restrições. Mas não pode dar-me uma pista? Depois de tudo o que fiz por si, não acha que me deve pelo menos isso?

O Comendador soltou um suspiro profundo.

– Uma dica apenas, é o suficiente. Não me estou a propor realizar nenhuma proeza fundamental, como acabar com os crimes de limpeza étnica ou o aquecimento global, ou salvar o elefante africano. Quero apenas encontrar uma rapariga de treze anos que provavelmente está retida em algum lugar, num sítio pequeno e escuro, e devolvê-la a este mundo.

O Comendador quedou-se muito tempo sentado, perdido em pensamentos, de braços cruzados. Parecia reconsiderar o assunto.

– Confere, meu amigo – disse ele, resignado. – Quando falais dessa maneira, não há muito que me reste fazer. Vou dar-vos uma indicação. No entanto, cuidado: serão necessários vários sacrifícios. Estais à mesma disposto a isso?

– Que tipo de sacrifícios?

– Não me posso alongar. Mas serão inevitáveis. Metaforicamente falando, haverá sangue. Isso é inevitável. Quanto aos sacrifícios requeridos, tudo se tornará mais claro com o passar do tempo. Haverá quem tenha de arriscar a vida.

– Não me importo. Dê-me uma pista.

– Afirmativo! – disse o Comendador. – Hoje é sexta-feira, não é?

Olhei para o relógio de cabeceira.

– Sim, ainda é sexta-feira. Não, espere aí, já é sábado.

– No sábado de manhã, antes do meio-dia, recebereis um telefonema – disse o Comendador. – Um convite para ir algures. Sejam quais forem as circunstâncias, não deveis recusar esse convite. Compreendido?

Repeti mecanicamente o que ele acabara de dizer.

– Alguém vai ligar-me esta manhã e convidar-me para ir a um sítio qualquer. Não devo recusar.

– Não deveis esquecer essas palavras, pois são a única indicação que posso partilhar. Atravessam a linha estreita que divide o discurso «público» do «privado».

Com aquela tirada final, o Comendador começou a desvanecer-se. Quando dei por isso, a sua forma tinha desaparecido do parapeito da janela.

Apaguei o candeeiro da mesa de cabeceira e adormeci com relativa facilidade. O zumbido de asas de insetos na minha cabeça diluíra-se. Um momento antes de adormecer, imaginei Menshiki sentado em frente à lareira, absorto nos seus pensamentos. Calculei que ele manteria o lume aceso a noite toda. Não tinha a mínima ideia de quais os pensamentos que o assaltavam. Ele era um sujeito estranho. Mas, certo e sabido, a sua vida estava limitada pelo tempo, o espaço e a probabilidade, como a de toda a gente neste mundo. Ninguém podia escapar a essas restrições enquanto fosse vivo. Cada um de nós estava cercado por paredes robustas que se elevavam no ar, rodeando-nos por todos os lados. Provavelmente.

Vão ligar-me esta manhã a convidar-me para ir a algum lado. Não devo recusar.

Papagueei as palavras do Comendador uma última vez na minha cabeça. E adormeci.