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AOS ESPANHÓIS FALTAVA A PERÍCIA NECESSÁRIA PARA NAVEGAR AS ÁGUAS PERIGOSAS DA COSTA IRLANDESA

 

 

 

Acordei pouco depois das cinco. Ainda estava escuro lá fora. Vesti um casaco de malha sobre o pijama e fui à sala de estar. Menshiki dormia no sofá. Não adormecera há tanto tempo assim – apagara o lume, mas a divisão estava quente. A pilha de lenha tinha diminuído bastante. Ele dormia pacificamente de lado, respirando sem fazer barulho com o edredão sobre o corpo. Não ressonava nem um pouco. Os seus bons modos governavam até a sua maneira de dormir. A sala parecia suster a respiração para não o perturbar.

Deixando-o ali, fui à cozinha preparar café; também fiz torradas. Depois levei o pão e o café para a sala de jantar e sentei-me ali, a mastigar e a beber, enquanto lia o meu livro sobre a Armada Espanhola. Falava do desenrolar do conflito brutal em que a rainha Isabel I e Filipe II de Espanha tinham apostado as fortunas das respetivas nações. Porque me sentia compelido a ler um relato daquela batalha marítima de finais do século XVI junto à costa da Grã-Bretanha naquele momento específico? Posso apenas dizer que, assim que comecei a lê-lo, não consegui parar. Era um livro antigo que eu encontrara na estante de Tomohiko Amada.

Embora os relatos correntes afirmem que a dizimação da Armada Invencível pela frota inglesa – uma derrota que mudou o curso da história – foi consequência de uma má estratégia, aquele livro argumentava que o dano substancial deveu-se não ao fogo direto dos canhões ingleses (consta que muitos dos disparos, de um lado e do outro, falharam o alvo e caíram no mar, inofensivos), mas aos naufrágios. Habituados às águas calmas do Mediterrâneo, aos espanhóis faltava a perícia necessária para navegar as águas perigosas da costa irlandesa e, assim, acabaram por avançar com as suas embarcações contra os recifes escuros.

Enquanto seguia o triste destino daqueles marinheiros espanhóis e bebia a minha segunda caneca de café simples, o céu iluminou-se gradualmente a leste. Era sábado de manhã.

No sábado de manhã, antes do meio-dia, recebereis um telefonema. Um convite para ir algures. Sejam quais forem as circunstâncias, não deveis recusar esse convite.

Repeti para os meus botões o que o Comendador me dissera. Olhei depois para o telefone. Mantinha-se em silêncio, mas soaria a qualquer momento, tinha a certeza. O Comendador nunca mentia. Só me restava ser paciente e esperar.

Pensei em Marie. Queria ligar à tia para saber se ela estava em segurança, mas ainda era cedo. Devia aguardar pelo menos até às sete horas. A tia de certeza que entraria em contacto comigo se Marie fosse encontrada; tinha plena consciência da minha preocupação. Não ter notícias significava que não houvera progressos. Por isso deixei-me estar sentado à mesa de jantar, avancei mais umas páginas no livro sobre a Armada Invencível e depois, já farto de ler, fiquei a olhar para o telefone, mas este permanecia em silêncio.

Liguei a Shoko Akikawa pouco depois das sete. Ela atendeu logo, como se estivesse sentada ao lado do telefone, à espera que tocasse.

– Não tivemos notícias dela; continua desaparecida – disse imediatamente. Ao ouvir a sua voz exausta, concluí que tivesse dormido pouco (ou talvez nada).

– As buscas prosseguem? – perguntei.

– Sim, estiveram cá dois agentes ontem à noite. Demos-lhes fotografias da Marie, descrevemos o que ela tinha vestido... Explicámos que não é o tipo de rapariga de fugir de casa ou ficar até tarde numa festa. Eles transmitiram a informação a todas as esquadras. Como é óbvio, pedi-lhes que, para já, não ventilassem para o público qualquer informação sobre as diligências.

– Mas não têm nenhum indício, certo?

– Pois, não surgiram pistas, mas de certeza que estão a procurá-la com afinco.

Tentei consolá-la e pedi-lhe que me avisasse logo que houvesse novidades. Ela prometeu que assim o faria.

 

 

Quando o nosso telefonema terminou, Menshiki já se levantara e fazia a sua higiene na casa de banho. Depois de lavar os dentes com a escova que lhe tinha disponibilizado, sentou-se à minha frente na mesa da sala de jantar e bebeu um café simples. Ofereci-lhe torradas, mas ele recusou. Dormir no sofá teve o condão de lhe despentear um tudo-nada o abundante cabelo, mas para quem o habitual era estar «penteadinho», um fio ou outro fora do sítio fazia imensa diferença. O homem diante de mim continuava a ser aquele tipo de cabeça fria e impecavelmente vestido, como sempre o conheci.

Relatei a minha conversa com Shoko.

– É apenas um pressentimento – disse ele quando terminei –, mas duvido que a polícia sirva de muito.

– Porquê?

– A Marie não é uma adolescente típica e o seu desaparecimento não é um desaparecimento típico. Também não acho que ela tenha sido raptada. O mais certo é que os métodos policiais comuns levem a um beco sem saída.

Não comentei, mas, às tantas, teria razão. Estávamos perante uma equação com múltiplas funções, mas quase sem números sólidos. Se quiséssemos fazer progressos, era preciso descobrir a maioria dos números incógnitos.

– Vamos dar outra olhadela ao poço? – sugeri. – Quem sabe se não houve alguma mudança?

– Vamos – disse Menshiki.

Partíamos da ideia implícita de que nada mais devia ser feito. Eu sabia que o telefone podia tocar, e que Shoko Akikawa ou a pessoa por trás do «convite» que o Comendador mencionara talvez estivesse do outro lado, mas quase apostava que não ligaria tão cedo. Era apenas uma vaga premonição da minha parte, se quiserem.

Vestimos os casacos e saímos. Estava um dia de sol. Um vento sudoeste fizera desaparecer o manto de nuvens da noite anterior, deixando para trás uma abóbada celeste quase anormalmente limpa e transparente. De facto, quando levantei os olhos para o céu, tive a sensação de que o cima e o baixo haviam sido trocados, e que estava a olhar para uma nascente de água límpida. Ouvia o zumbido fraco de um comboio comprido numa linha férrea distante. Quando o ar estava assim, conseguíamos captar sons distantes no vento com grande clareza. Era esse tipo de manhã.

Sem trocar uma palavra, atravessámos a floresta e contornámos o pequeno santuário. A tampa de tábuas do poço estava exatamente como a havíamos deixado na noite anterior. Nem as pedras que a seguravam tinham sido deslocadas. Quando tirámos as tábuas, a escada continuava encostada à parede, a sua posição inalterada. Não havia ninguém no poço. Desta vez, Menshiki não se ofereceu para descer. A luz solar intensa tornava essa ação desnecessária; percebia-se que nada mudara. O poço, à luz do dia, parecia diferente de quando olhávamos para ele de noite. Não havia nada de inquietante nisso.

Colocámos as tábuas no sítio e cobrimo-las com as pedras. Depois voltámos pelo caminho inverso na floresta. Diante da minha casa, o impecável Jaguar prateado de Menshiki denotava como que alguma reticência por estar ao lado do meu empoeirado e despretensioso Toyota Corolla.

Menshiki aproximou-se do seu carro e parou.

– Acho que vou para casa – disse. – Irei estorvá-lo se abusar da sua hospitalidade por mais tempo, e não há nada que possa fazer de momento, de qualquer maneira. Importa-se?

– Claro que não. Por favor, vá para casa e descanse. Aviso-o se houver alguma mudança.

– Hoje é sábado, não é?

– Sim, é sábado.

Menshiki enfiou a mão no bolso do casaco e tirou a chave. Ficou ali a olhar para ela, pensativo, tentando tomar uma decisão, quem sabe? Esperei pelo veredicto.

– Provavelmente, devia dizer-lhe uma coisa – declarou por fim. Encostei-me à porta do meu Corolla enquanto ele escolhia as palavras. – É bastante pessoal, e não tinha a certeza se seria apropriado, mas cheguei à conclusão de que talvez fosse melhor contar-lhe, por uma questão de cortesia. Não quero causar nenhum mal-entendido desnecessário... De qualquer forma, a questão é que a Shoko e eu nos tornámos... qual é a palavra correta?... bastante próximos.

– Quer dizer que são amantes? – perguntei, indo direto ao assunto.

– Exato – respondeu Menshiki depois de uma pausa. Pensei ter visto um leve rubor no seu rosto. – Deve achar que aconteceu tudo muito rápido.

– Não, a velocidade não é o problema.

– Isso – reconheceu Menshiki. – A velocidade não é o problema.

– O problema é... – comecei.

– O meu motivo, era o que ia dizer. Estou certo?

Não respondi. No entanto, ficou claro que o meu silêncio significava que sim, estava certo.

– Garanto-lhe que nada foi planeado; as coisas avançaram de forma natural. De facto, aconteceu sem que eu tivesse consciência disso. Talvez tenha dificuldade em acreditar no que lhe estou a dizer.

Suspirei. Depois deitei cá para fora o que me ia na alma.

– Só sei que, se de início tivesse esse plano em mente, teria sido muito fácil executá-lo. E não estou a ser sarcástico.

– É capaz de ter razão – respondeu Menshiki. – Admito-o. Fácil, ou pelo menos não muito difícil. Talvez. Mas não foi assim.

– Quer fazer-me crer que no momento em que conheceu a Shoko Akikawa foi tiro e queda, ficou logo apaixonado?

Menshiki franziu os lábios como se estivesse envergonhado.

– Apaixonado? Não iria tão longe. Para ser sincero, a última vez que me apaixonei... acho que provavelmente lhe posso chamar isso... foi há uma eternidade. Nem consigo lembrar-me de como aconteceu, mas sinto-me bastante atraído pela Shoko, como um homem se sente atraído por uma mulher.

– Sem meter a Marie ao barulho?

– Isso é difícil de saber. Afinal, a Marie foi o motivo do nosso primeiro encontro. Mas se a Marie nunca tivesse existido, acho que me sentiria na mesma atraído pela tia dela.

Será? Um homem com uma mente tão complicada como Menshiki sentir-se-ia «bastante atraído» por uma mulher tão simples e descontraída como Shoko Akikawa? Desse por onde desse, eu não estava em posição de julgar. Era impossível prever o funcionamento do coração humano, sobretudo quando havia sexo envolvido.

– Compreendo – disse. – De qualquer forma, obrigado por falar com tanta franqueza. A franqueza é sempre o melhor método, creio eu.

– Espero que tenha razão.

– Para dizer a verdade, a Marie já sabia que o senhor e a Shoko estavam envolvidos nesse tipo de relação. Ela veio falar comigo há uns dias e trouxe o assunto à baila.

A notícia pareceu surpreender Menshiki.

– É uma jovem perspicaz – disse ele. – Fizemos tudo para que não descobrisse.

– Sim, uma jovem muito perspicaz, mas não descobriu por si. Foram as coisas que a tia disse e fez que a alertaram.

Shoko era uma mulher inteligente e bem-educada, mas, embora fosse capaz de esconder os sentimentos até certo ponto, a sua máscara estava fadada a deslizar mais cedo ou mais tarde. Menshiki tinha consciência disso, sem dúvida.

– Se esse é o caso... acha que o desaparecimento da Marie tem que ver com o facto de ter descoberto a nossa relação?

Abanei a cabeça.

– Não posso afirmar tal coisa, mas digo-lhe, isso sim, que o senhor e a Shoko deviam conversar. Ela está muito preocupada e confusa. Deve precisar do seu encorajamento e apoio. Urgentemente.

– Tem razão. Vou ligar-lhe assim que chegar a casa.

Menshiki não terminara. Parecia estar a pensar em mais qualquer coisa.

Suspirou.

– Para dizer a verdade, não acho que me tenha apaixonado; não fui talhado para isso. Nunca fui. Não sei porque me sinto assim. Ter-me-ia sentido tão atraído pela Shoko se não fosse pela Marie? A ligação entre elas não é totalmente transparente.

Fiquei calado.

– Mas juro que não planeei nada disto. Acredita em mim?

– Senhor Menshiki, não sei explicar porquê, mas creio que, no fundo, é um homem sincero.

– Obrigado – disse ele. Os cantos da sua boca arquearam-se. Era um sorriso um pouco constrangido, mas não infeliz. – Por falar em sinceridade, posso abrir-lhe o coração?

– Com certeza.

– Às vezes dou por mim a pensar que estou vazio – confessou ele. O sorriso permanecia nos seus lábios.

– Vazio?

– Oco por dentro. Isto pode soar arrogante, mas sempre parti do pressuposto de que era muito mais inteligente e mais capaz do que as outras pessoas. Mais perspicaz, com maiores poderes de avaliação. Fisicamente mais forte também. Achei que poderia ter êxito em qualquer coisa a que me dedicasse. E assim foi. Deitava a mão àquilo que queria possuir. Estar detido na prisão de Tóquio foi um revés, como é evidente, mas considerei isso uma exceção à regra. Enquanto jovem, não reconhecia limites para as minhas capacidades. Pensei que conseguiria atingir um estado próximo da perfeição. Subir e subir até chegar a uma altura onde poderia olhar para todos os outros lá em baixo. Mas quando passei dos cinquenta, olhei-me ao espelho e descobri apenas o vazio. Um zero. Aquilo a que T. S. Eliot chamou «homem-espantalho».

Não consegui pensar numa resposta.

– Toda a minha vida pode ter sido um erro até agora – continuou Menshiki. – Às vezes sinto que, a certa altura, tomei as decisões erradas, que nada do que fiz teve algum significado real. Por isso lhe disse que muitas vezes dou por mim a sentir inveja de si.

– Inveja-me o quê, por exemplo?

– Tem a força de desejar o que não pode ter, ao passo que eu só desejei aquilo que podia possuir.

Calculei que estivesse a falar de Marie; só ela lhe escapara. No entanto, não havia muito que eu pudesse dizer sobre o assunto.

Menshiki entrou lentamente no carro. Desceu o vidro, disse adeus e partiu. Quando o carro dele desapareceu, voltei para casa. Já passava das oito.

 

 

O telefone tocou pouco depois das dez. Era Masahiko.

– É em cima da hora, eu sei – disse ele –, mas vou a caminho de Izu ver o meu pai. Queres vir comigo? Comentaste no outro dia que gostavas de o conhecer.

Recebereis um telefonema. Um convite para ir algures. Não deveis recusar.

– Excelente. Adorava ir.

– Acabei de entrar na via rápida Tóquio-Nagoia. Estou a passar o parque de estacionamento da estação de Kōhoku. Levo uma hora a chegar aí, aproximadamente. Apanho-te e vamos de carro até Izu-Kōgen.

– Aconteceu alguma coisa ao teu pai?

– Sim, ligaram do lar. Parece que piorou. Pus-me logo a caminho para o visitar. De qualquer maneira, ia estar mais ou menos livre hoje.

– Tens a certeza de que não faz mal eu acompanhar-te? Estas ocasiões não estão reservadas à família?

– Não te preocupes, sem problema. Serei o único familiar presente, por isso, quanto mais gente, melhor. – Desligou.

Pousei o telefone e examinei a divisão. O Comendador estaria ali? Não o vi em lado nenhum. Anunciada a profecia, ele desaparecera. Provavelmente para um reino onde os ditames do tempo, do espaço e da probabilidade não se aplicam. No entanto, confirmou-se o telefonema matinal e eu fora convidado para ir a um sítio. Até agora, pelo menos, a profecia batia certo. Incomodava-me sair de casa estando Marie ainda desaparecida, mas não podia fazer muito acerca disso. O Comendador dissera: «Sejam quais forem as circunstâncias, não deveis recusar esse convite.» Shoko, pela parte que me tocava, estaria entregue a Menshiki. Afinal, até certo ponto, ela era responsabilidade sua.

Sentei-me na poltrona da sala e retomei a história da Armada Invencível enquanto esperava por Masahiko. Quase todos os soldados e marinheiros espanhóis que tinham conseguido escapar dos navios naufragados e rastejar para a orla costeira da Irlanda, mais mortos que vivos, foram assassinados por aqueles que viviam ao longo da costa. Os irlandeses pobres chacinaram-nos para lhes sacarem os pertences. Os espanhóis esperavam que, enquanto irmãos católicos, os irlandeses pudessem mostrar misericórdia, mas não tiveram essa sorte. A solidariedade religiosa não se comparava ao medo da fome. Infelizmente, o navio espanhol que transportava a arca com o ouro e a prata destinados a subornar a poderosa nobreza da Inglaterra afundou-se também. Ninguém sabia para onde fora toda aquela riqueza.

Faltava pouco para as onze da manhã quando o velho Volvo preto de Masahiko parou em frente à minha casa. Ainda pensava em todas aquelas moedas de ouro no fundo do mar quando vesti o blusão de cabedal e saí porta fora.

 

 

O caminho que Masahiko escolheu levou-nos da autoestrada de Hakone até à de Izu Skyline, e depois descemos das terras altas de Amagi para Izu. Explicou que assim seria mais rápido – que ao fim de semana quase não se podia andar junto à costa por causa dos engarrafamentos –, mas, mesmo assim, apanhámos imenso trânsito. A temporada de queda das folhas de outono ainda não terminara, e estando as estradas pejadas de condutores de fim de semana que não sabiam conduzir na montanha, a viagem demorou mais do que o previsto.

– O teu pai está mesmo nas últimas? – perguntei.

– Não deve durar muito mais entre nós, aposto – respondeu Masahiko com ligeireza. – É uma questão de dias, para ser mais preciso. A idade reduziu-o a quase nada. Tem dificuldade em comer e está sob ameaça constante de apanhar uma pneumonia. Mas ficou bem assente, por sua ordem expressa, que em nenhuma circunstância devem entubá-lo ou alimentá-lo por via intravenosa. Por outras palavras, exige partir discretamente quando já não conseguir comer. Tratou com o advogado numa altura em que ainda estava lúcido, papéis assinados e tudo o mais. Não haverá intervenção médica. Isso significa que pode morrer a qualquer momento.

– Tens de te preparar para o pior, então.

– É verdade.

– Deve ser difícil.

– Nunca é fácil quando alguém morre, mas não me posso queixar.

O velho Volvo tinha um leitor de cassetes e o porta-luvas estava cheio delas. Masahiko enfiou lá a mão, tirou uma e inseriu-a sem verificar o que era. Acabou por se revelar uma coleção de êxitos dos anos oitenta. Duran Duran, Huey Lewis e assim por diante. Quando «Look of Love» dos ABC começou a tocar virei-me para ele.

– Parece mesmo que o tempo parou neste carro – comentei.

– Não gosto de CD. São demasiado brilhantes. Quando muito, serviriam para assustar os corvos se eu os pendurasse no exterior da minha casa, mas não são um meio para ouvir música. O som é metálico e a mistura não é natural. Não ter lados A e B também é uma chatice. É por isso que ainda tenho este carro: para poder ouvir as minhas cassetes. Os modelos mais recentes não vêm com leitores de cassetes, certo? Toda a gente acha que sou maluco, mas paciência. Tenho uma enorme coleção de músicas que gravei da rádio e não quero vê-las desperdiçadas.

– Caramba, nunca pensei um dia voltar a ouvir o «Look of Love» dos ABC.

– Não é incrível? – perguntou Masahiko, lançando-me um olhar interrogativo.

Continuámos a falar sobre música dos anos oitenta, canções que ouvíramos na rádio, enquanto atravessávamos as montanhas de Hakone. As encostas azuis do monte Fuji surgiam imponentes na paisagem a cada curva.

– Tu e o teu pai formam um belo par – comentei. – Ele só ouve discos e o filho cassetes.

– Olha quem fala. Também paraste no tempo. Talvez mais do que nós. Quer dizer, nem sequer tens telemóvel. E quase nunca vais à Internet, certo? Eu tenho sempre o meu telemóvel comigo, e quando preciso de saber qualquer coisa vou ao Google. Desenho coisas no meu Mac no trabalho. Socialmente, estou anos-luz à tua frente.

A versão de Bertie Higgins de «Key Largo» deu os primeiros acordes. Uma seleção interessante, de facto, para um tipo que afirmava ser socialmente evoluído.

– Andas com alguém? – perguntei, mudando de assunto.

– Referes-te a uma mulher?

– Sim.

Masahiko encolheu os ombros.

– Não posso dizer que esse particular esteja a correr bem. Como sempre. E as coisas ficaram ainda piores desde que fiz uma descoberta estranha.

– Que tipo de descoberta?

– Que o lado direito do rosto de uma mulher não é igual ao esquerdo. Sabias disso?

– As pessoas não são perfeitamente simétricas – respondi. – Quer se trate de seios ou testículos, o tamanho e a forma dos dois lados são diferentes. Qualquer artista o sabe. Essa falta de simetria é uma das coisas que torna a forma humana tão interessante.

Masahiko abanou a cabeça várias vezes sem tirar os olhos da estrada.

– Claro que sei isso. Mas o que estou a dizer é um pouco diferente. Refiro-me à personalidade, não à forma.

Esperei que ele continuasse.

– Há cerca de dois meses, peguei na máquina digital e tirei uma foto a uma mulher com quem andava. Um grande plano frontal do seu rosto. Pu-lo no computador do escritório. Consegui dividir o ecrã ao meio e olhar para as duas metades do rosto dela separadamente. Removi a metade direita para olhar para a esquerda e vice-versa... Estás a ver a ideia?

– Sim, estou.

– Foi quando percebi que o lado esquerdo e o lado direito do rosto dela pareciam pertencer a duas pessoas diferentes. Como o Duas-Caras, o mau da fita em O Cavaleiro das Trevas.

– Não vi esse.

– Tens de ver. É muito bom. De qualquer forma, a coisa assustou-me um pouco. Mais valia parar com aquilo na altura, mas insisti e tentei inverter os dois lados para fazer uma cara composta. Assim, poderia duplicar o lado direito para criar um rosto completo, fazendo o mesmo com o lado esquerdo. Os computadores facilitam esse tipo de coisa. Fiquei com imagens do que parecem ser duas mulheres com duas personalidades totalmente distintas. Isso chocou-me. Quero dizer, havia mesmo duas mulheres dentro de cada mulher que conheci. Alguma vez olhaste para as mulheres dessa maneira?

– Não.

– Testei a minha ideia com várias mulheres. Tirei fotos à cabeça e criei composições do lado esquerdo e do direito no computador. Isso tornou tudo ainda mais evidente: as mulheres têm literalmente duas caras. Depois de constatar isso, descobri que não conseguia percebê-las. Por exemplo, se estivesse na cama com uma mulher, não saberia se era o lado direito ou o esquerdo que estava a abraçar. Se fosse o lado direito, então para onde fora o esquerdo? O que estava a fazer e a pensar?... E se fosse o esquerdo, então o que estaria o lado direito a pensar? Quando cheguei a esse ponto, as coisas tornaram-se muito confusas. Percebes o que estou a dizer?

– Mais ou menos, mas imagino que deva ser confuso.

– Podes crer, bastante confuso.

– Tentaste em rostos de homens?

– Sim, mas não resultou da mesma maneira. As únicas mudanças drásticas foram com os rostos das mulheres.

– Talvez devesses ir a um psicólogo ou a um terapeuta – sugeri.

Masahiko suspirou.

– Sabes, sempre acreditei que era um gajo normalíssimo.

– Isso pode ser uma crença perigosa.

– Acreditar que sou normal?

– Julgo que foi F. Scott Fitzgerald quem escreveu que nunca se deve confiar em pessoas que afirmam ser normais. Está num dos seus romances.

Masahiko andou às voltas com aquilo na cabeça.

– Então até um homem comum é insubstituível?

– Creio que é outra maneira de ver a coisa.

Pensou um pouco com as mãos no volante.

– De qualquer forma, será que podias experimentar uma vez e comprovar?

– Sabes que pinto retratos há muito tempo, pelo que julgo ser mais competente do que a maioria quando se trata de examinar rostos. Poder-se-ia até dizer que sou um especialista na matéria. No entanto, nunca pensei que a diferença entre os lados direito e esquerdo refletisse uma disparidade ao nível da personalidade. Nem uma vez.

– Mas quase todos os modelos que pintaste eram homens, correto?

Masahiko tinha uma certa razão. Nunca fora contratado para pintar uma mulher. Por qualquer motivo, os meus retratos eram todos de homens. A única exceção acabara por ser Marie Akikawa, e ela era mais criança que mulher. Além disso, ainda não terminara o seu retrato.

– Os homens e as mulheres são diferentes – insistiu Masahiko. – Completamente.

– Deixa-me então perguntar-te o seguinte: estás a afirmar que essa diferença de personalidade nos lados direito e esquerdo se aplica a quase todas as mulheres?

– Sim, essa é a minha conclusão.

– E sentes-te atraído por um lado ou pelo outro? Ou achas que gostas menos dos dois lados juntos?

Masahiko ponderou a questão por um momento.

– Não – disse por fim. – Não é assim que funciona. Eu não prefiro um lado ao outro, não considero um lado alegre e o outro sombrio, ou que aquele lado é mais bonito. O problema vai muito além: os dois lados são diferentes, ponto final. É isso que me abala, que às vezes me assusta.

– Parece-me uma espécie de transtorno obsessivo-compulsivo – disse eu.

– Também é o que me parece – concordou Masahiko. – Basta-me ouvir o que digo. Mas é a verdade. Peço só que verifiques.

Prometi-lhe que sim, mas não tencionava fazer nada; só iria arranjar mais chatices. A minha vida já era suficientemente confusa.

 

 

Conversámos depois sobre Tomohiko Amada, sobre a sua estada em Viena.

– O meu pai disse que viu Richard Strauss dirigir a Orquestra Filarmónica de Viena numa das sinfonias de Beethoven – afirmou Masahiko. – Deve ter sido uma coisa do outro mundo. Foi uma das poucas histórias que me contou sobre os seus dias em Viena.

– Que mais te contou ele sobre esse período?

– Nada de especial. Mencionou a comida, a bebida, a música, coisas assim. Ele adorava música, sabes? Só falava disso. Nunca referiu pintura ou política ou nada desse género. Nem mulheres.

Masahiko fez uma pausa antes de continuar.

– Talvez devessem escrever a biografia do meu pai. Podia ser um livro realmente interessante. Mas a verdade é que ninguém irá lançar-se nessa empreitada. Porquê? Porque quase não há informações pessoais disponíveis. O meu pai não tinha amigos, os familiares eram-lhe praticamente desconhecidos. Ele passava o tempo sozinho numa montanha, a pintar. Os seus únicos conhecidos, se é que lhes podemos chamar isso, eram uns quantos negociantes de arte. Ele quase não falava com ninguém, não escrevia cartas. Se alguém tentasse escrever a sua biografia, não teria quase nada com que trabalhar. Não há apenas alguns buracos na história da sua vida, há muitos. Pensa num queijo suíço com mais buracos do que queijo.

– Ele deixa para trás apenas o seu trabalho.

– Tens razão, os quadros e pouco mais. Provavelmente, foi a intenção dele

– E a ti. Também fazes parte do legado.

– Eu? – Masahiko olhou para mim surpreendido, depois voltou a concentrar-se na estrada. – Olha que tens razão. Pensando bem, também faço parte do legado dele. Não é uma parte particularmente brilhante, apesar de tudo.

– Mas insubstituível.

– Lá isso é verdade. Banal mas, mesmo assim, insubstituível – disse Masahiko. – Sabes o que me ocorre às vezes? Que devias ter sido tu o filho do Tomohiko Amada. Se assim fosse, as coisas teriam corrido de forma muito mais tranquila.

– Por favor! – exclamei com uma gargalhada. – Ninguém foi talhado para esse papel!

– Talvez não, mas podias ter sido o seu sucessor espiritual, se é que lhe podemos chamar isso. És muito mais qualificado nessa área do que eu. Pelo menos é o que me diz o instinto.

A Morte do Comendador surgiu na minha mente. Aquele quadro era algo que eu «herdara» de Tomohiko Amada? Será que ele me conduzira até ao sótão para o descobrir? Estaria a usá-lo para exigir algo de mim?

Debbie Harry cantava «French Kissin in the USA» nas colunas do carro. Era difícil pensar numa música de fundo menos apropriada para a nossa conversa.

– Deve ter sido duro ter um pai como Tomohiko Amada – declarei, sem rodeios.

– Aqui há uns anos cheguei a um ponto em que tive de me afastar completamente e prosseguir com a minha vida – revelou Masahiko. – Depois disso não foi tão difícil para mim como todos pensavam. Também vivo da arte, mas a escala do talento do meu pai e a minha são radicalmente diferentes. Quando a lacuna é tão grande, deixa de ser um problema. A fama do meu pai como artista já não me magoa; o que magoa é o tipo de ser humano que ele era, o facto de, até ao fim, nunca se ter aberto para mim, o seu próprio filho. Nunca me contou nada sobre si.

– Estás a dizer que nunca te mostrou nada do seu mundo interior?

– Nadinha. A sua atitude era: «Dei-te metade do meu ADN, que mais queres? O resto é contigo.» Mas um relacionamento baseia-se em mais do que ADN, certo? Nunca lhe pedi que me guiasse ao longo da vida, nunca lho exigi. Mas mesmo assim devia ter havido lugar para uma conversa entre pai e filho de vez em quando. Ele podia ter-me contado um bocadinho do que tinha experimentado, do que pensava. Nem que fosse de tempos a tempos.

Ouvi em silêncio o que ele tinha a dizer.

Quando parámos num semáforo, Masahiko tirou os óculos escuros Ray-Ban e limpou-os com o lenço.

– Palpita-me que o meu pai esconde segredos importantes, coisas pessoais que carregou inteiramente sozinho e que tenciona levar com ele quando partir deste mundo – disse, virando-se na minha direção. – É como se no coração tivesse um cofre para os guardar. Enfiou-os todos lá, e depois, ou deitou fora a chave, ou escondeu-a algures. Agora não se lembra de onde a enfiou.

Nesse caso, o enigma do que ocorrera em Viena em 1938 ficaria sempre por resolver. Por outro lado, talvez o próprio quadro A Morte do Comendador fosse a chave oculta. A ideia ocorreu-me de repente. A ser verdade, explicaria por que motivo, no final da sua vida, o espírito vivo de Tomohiko regressara ao cimo daquela montanha para confirmar a existência do quadro.

Virei-me e olhei para o banco de trás. Talvez o Comendador estivesse ali sentado. Mas o banco encontrava-se vazio.

– Algum problema? – perguntou Masahiko, olhando para trás.

– Não, nada – respondi.

Quando o semáforo ficou verde, o meu amigo pisou o acelerador.