49

 

 

REPLETO DE IGUAL NÚMERO DE MORTES

 

 

 

 

A caminho do lar, parámos num restaurante à beira da estrada para Masahiko se ir aliviar. Fomos conduzidos a uma mesa perto da janela e pedimos café. Como já era meio-dia, pedi também uma sanduíche de rosbife. Masahiko imitou-me, e depois dirigiu-se aos lavabos. Fiquei distraído a olhar lá para fora enquanto ele não regressava. O parque de estacionamento estava cheio de carros. Na maioria, transportavam famílias; o número de monovolumes destacava-se. Aqueles carros pareciam-me todos iguais, como latas de bolachas insípidas. Havia um miradouro numa ponta do parque onde as pessoas tiravam fotografias ao monte Fuji, que se elevava mesmo em frente, com pequenas máquinas digitais e telemóveis. É idiota, eu sei, mas nunca me habituei ao facto de os telemóveis também tirarem fotografias. Gosto ainda menos de máquinas fotográficas que dão para fazer telefonemas.

Estava eu ali sentado a olhar para o boneco e, saído da estrada, entra um Subaru Forester branco no parque de estacionamento. Não percebo muito de carros (e um Subaru Forester é bastante banal), mas logo percebi que era o modelo que o homem do meu quadro conduzia. Andou para cima e para baixo entre as filas, até que encontrou um lugar. Como é óbvio, o logótipo na tampa do pneu sobressalente dizia Subaru Forester. Parecia ser o mesmo modelo do carro que eu encontrara na pequena cidade à beira-mar na província de Miyagi. Não consegui tirar-lhe a matrícula, mas quanto mais olhava, mais tinha a certeza de que se tratava do mesmo carro que vira naquela primavera. Não apenas o mesmo modelo. Quero dizer exatamente o mesmo carro.

A minha memória visual é mais apurada do que a da maioria das pessoas e mais duradoura. Resultado: percebi que as manchas e os riscos que apresentava eram muito semelhantes aos do carro que me tinha ficado na memória. Senti dificuldade em respirar. Tentei identificar o condutor quando ele saía, mas um grande autocarro turístico entrou no parque e tapou-me a vista; incapaz de avançar, ficou ali mesmo parado. Levantei-me e corri para fora do restaurante. Contornei o autocarro e aproximei-me do local onde o Subaru Forester branco estava estacionado. Mas o carro encontrava-se vazio. O condutor fora a algum lado. Podia estar no restaurante, ou talvez estivesse a tirar fotografias no miradouro. Olhei em volta, mas não vislumbrei o homem do Subaru Forester branco. O condutor, para todos os efeitos, também podia ser outra pessoa.

Analisei a matrícula. Dizia «Prefeitura de Miyagi», certo e sabido. No para-choques traseiro havia um autocolante com um espadarte. Era o mesmo carro, sem sombra de dúvida. O homem fora até ali. Senti um arrepio na espinha. Decidi então procurá-lo. Queria ver o seu rosto mais uma vez, perceber porque não conseguira terminar o retrato dele. Talvez me tivesse esquecido de alguma coisa elementar a seu respeito. Primeiro que tudo, decorei a matrícula. Podia vir a ser útil. Por outro lado, talvez não servisse para nada.

Percorri o parque de estacionamento à procura de alguém parecido com ele. Fui até ao miradouro, mas o homem do Subaru Forester branco não se encontrava em lado nenhum. Um tipo de meia-idade, bastante bronzeado, cabelo grisalho muito curto, para o alto. Quando o vira pela última vez, vestia um blusão de cabedal preto coçado e um boné de golfe Yonex. Fiz nessa altura um esboço rápido no meu caderno e mostrei-o à jovem sentada à minha frente. «Desenha muito bem», comentara ela, impressionada.

Quando tive a certeza de que não encontraria ninguém ali fora parecido com o homem, olhei para dentro do restaurante. Dei a volta ao estaminé, mas não o vi. As mesas estavam quase todas ocupadas. Masahiko regressara e bebia o seu café. As sanduíches ainda não tinham aparecido.

– Onde te enfiaste? – perguntou ele.

– Pensei ter visto uma pessoa conhecida e saí para confirmar.

– Encontraste-a?

– Não, devo ter-me enganado.

Depois disso, fiquei de olho no Subaru Forester branco. Se o homem em questão voltasse, o que devia eu fazer? Sair e falar com ele? Dizer-lhe que tinha a certeza de o ter encontrado duas vezes na primavera anterior numa pequena cidade do litoral em Miyagi? «A sério? Não me lembro de si», responderia ele.

«Então porque me anda a seguir?», perguntaria eu. «Do que está a falar?», indagaria ele. «Por que raio haveria eu de seguir alguém que nem conheço?» Fim da conversa.

De qualquer forma, o condutor do Subaru Forester branco não voltou para o carro; este continuou ali estacionado, baixo e atarracado, a aguardar silenciosamente o regresso do dono. Ainda não tinha aparecido quando terminámos as nossas sanduíches e o café.

– É melhor irmos andando – disse Masahiko, olhando para o relógio. – Não temos muito tempo. – Pegou nos seus Ray-Ban pousados na mesa.

Levantámo-nos, pagámos e saímos. Depois entrámos no Volvo e deixámos o parque de estacionamento. Preferia ter esperado que o homem do Subaru Forester branco voltasse, mas conhecer o pai de Masahiko era prioritário. O Comendador transmitira-me esse recado de forma bastante clara: «Recebereis um telefonema. Um convite para ir algures. Não deveis recusar.»

Restava-me o facto de o homem do Subaru Forester branco ter voltado a aparecer. Soubera onde me encontrar e quisera passar-me a mensagem de que estava ali. A sua intenção era óbvia. O seu aparecimento não podia ser obra do acaso. Tão-pouco o autocarro me tinha tapado a visão só por capricho dos deuses – punha as mãos no fogo por isso.

 

 

Para chegar ao lar onde Tomohiko Amada estava tivemos de sair da Izu Skyline e seguir por uma estrada longa e sinuosa. A zona fora recentemente transformada num retiro de verão para os citadinos: passámos por cafés elegantes, pousadas sofisticadas construídas como chalés de madeira, bancas a vender produtos locais e pequenos museus destinados a turistas. De cada vez que descrevíamos uma curva, eu agarrava-me à porta do carro e pensava no homem do Subaru Forester branco. Alguma coisa me impedia de terminar o seu retrato. Escapava-me um elemento-chave, algo que fazia dele quem era. Uma peça que faltava ao quebra-cabeças, por assim dizer. Uma novidade para mim. Reunia sempre tudo o que sabia ser necessário antes de começar um retrato. Porém, no caso do homem do Subaru Forester branco, não consegui fazê-lo. Provavelmente, era o próprio homem que me travava o avanço. Por qualquer motivo, não gostava que lhe pintassem o retrato. Diria até que se opunha a isso.

A certa altura, o Volvo tomou um desvio e passou por um grande portão de aço, aberto, onde havia uma pequena placa. Passaria despercebida se não estivéssemos atentos. Dava ares de ser uma instituição que não se sentia obrigada a anunciar a sua presença ao mundo. Masahiko parou junto à guarita ao lado do portão e deu o seu nome e o do pai ao guarda fardado. Este fez um telefonema para confirmar a identidade do residente. Entrámos e logo nos vimos dentro de um bosque de árvores altas que lançavam uma sombra fria. Subimos a estrada recém-alcatroada até uma rotunda no cimo da colina, onde iríamos estacionar. No centro da rotunda havia um canteiro com couves ornamentais em volta de flores vermelhas. As flores estavam bem cuidadas.

Masahiko contornou a rotunda e estacionou nos lugares para visitantes. Já lá estavam dois carros. Um monovolume Honda branco e um Audi azul-escuro. Ambos novos e reluzentes; no meio deles, o Volvo parecia um velho cavalo de carga. Masahiko, no entanto, não se importou nada (a sua cassete das Bananarama tinha clara precedência). Lá em baixo, o oceano Pacífico refletia o brilho do sol de início de inverno; um punhado de navios pesqueiros de tamanho médio sulcava aquelas águas. Havia uma pequena ilha ao largo e, mais adiante, a península de Manazuru. Os ponteiros do meu relógio marcavam 13h45.

Saímos do carro e dirigimo-nos à entrada. O edifício parecia novo. Era uma estrutura de betão elegante, mas sem nada de especial. Talvez faltasse imaginação ao arquiteto. Ou o cliente, considerando a função das instalações, exigira que o edifício fosse o mais simples e conservador possível. Tinha três andares e era quadrado – uma estrutura feita de linhas retas. Bastaria uma régua para desenhar o projeto. O rés do chão era quase todo em vidro, para criar uma sensação de luminosidade. Projetando-se da frente do edifício havia uma grande varanda de madeira com uma dúzia de espreguiçadeiras; mas era inverno, ninguém estaria a apanhar sol, por mais soalheiro e agradável que fosse o dia. O refeitório tinha paredes de vidro; vi cinco ou seis pessoas lá dentro, com todo o aspeto de serem bastante entradotas. Duas estavam em cadeiras de rodas. Não percebi o que faziam; talvez vissem televisão no ecrã grande na parede. Não estavam a jogar ao eixo, isso é certo.

Masahiko atravessou a entrada e aproximou-se de uma jovem na receção. Tinha um rosto redondo e era simpática, de belo cabelo preto comprido. No blazer azul-escuro exibia um crachá com o seu nome. Parecia conhecer Masahiko, pois os dois entabularam conversa. Fiquei a uma curta distância e esperei que terminassem. Havia uma grande jarra na entrada com um enorme arranjo de flores frescas elaborado, presumi, por um especialista em ikebana. A certa altura, Masahiko pegou na caneta para assinar o livro de registo e, consultando o relógio, acrescentou a hora exata. Afastou-se do balcão e dirigiu-se a mim com as mãos nos bolsos.

– O estado de saúde do meu pai parece ter estabilizado – disse ele. – Teve tosse toda a manhã e falta de ar. Receavam que tivesse apanhado uma pneumonia. Mas conseguiram controlar-lhe a tosse há pouco tempo, e agora ele está a dormir.

– Não há problema se eu entrar contigo?

– Claro que não. Vieste cá vê-lo, não foi?

Apanhámos o elevador até ao segundo andar. O corredor também era simples e conservador, com uma decoração minimalista; a única exceção era uma fila de pinturas a óleo penduradas na longa parede branca, todas de paisagens costeiras. Pareciam formar uma série feita por um único artista, que pintara locais ao longo do mesmo trecho de costa de vários ângulos. Não eram um primor, mas pelo menos o artista fora generoso no uso da tinta, e gostei da forma como as suas pinturas perturbavam o minimalismo estrito da arquitetura. As solas de borracha dos meus sapatos chiaram no chão liso de linóleo. Uma idosa de cabelo branco numa cadeira de rodas, empurrada por um auxiliar, passou por nós no corredor. Olhava em frente, um olhar tão fixo e rígido que nem sequer pestanejou quando passámos, como se estivesse determinada a não perder de vista um sinal crucial suspenso diante dela.

Tomohiko Amada ocupava um quarto grande ao fundo do corredor. O cartão na porta para o nome ficara em branco, provavelmente para proteger a sua privacidade. Falamos de um homem famoso, no fim de contas. O quarto era do tamanho de uma pequena suíte de hotel, com alguns móveis de sala além do leito. Vi uma cadeira de rodas dobrada aos pés da cama. A grande janela virada a sudeste tinha vista para o Pacífico. Era uma paisagem magnífica. Um quarto de hotel com uma vista daquelas custaria uma pipa de massa. Não havia quadros pendurados nas paredes, apenas um espelho e um relógio redondo. Na mesa, uma jarra de tamanho médio com flores roxas. Não havia odor algum. Não a idoso doente, nem a medicamentos, nem a flores, nem a cortinas banhadas pelo sol. Nada. Foi o que mais me surpreendeu: a total falta de cheiro do quarto. Era tão impressionante que pensei que tivesse acontecido alguma coisa ao meu nariz. Como é que o odor podia ser apagado por completo?

Tomohiko Amada dormia a sono solto perto da janela, alheio à paisagem lá fora. Estava de barriga para cima, com os olhos bem fechados. Tinha sobrancelhas brancas e hirsutas sobre as pálpebras envelhecidas, fazendo lembrar um dossel natural. Rugas profundas sulcavam a sua testa. A colcha cobria-o até ao pescoço; não percebi se estava ou não a respirar. Se sim, era uma respiração extremamente superficial.

Soube de imediato que era ele o velho misterioso que tinha visitado o meu estúdio. Vira-o por breves momentos ao luar, mas a forma da sua cabeça e o cabelo branco e selvagem não deixavam dúvidas: só podia ter sido Tomohiko Amada. O facto não me surpreendeu nada; sempre fora bastante evidente.

– Ele está ferrado – disse-me Masahiko. – Temos de esperar que acorde. Se acordar, claro.

– Mesmo assim, é uma bênção ele estar a dormir tão tranquilo – comentei. Olhei para o relógio na parede. Faltavam cinco para as duas. De repente, pensei em Menshiki. Teria telefonado a Shoko Akikawa? Houvera algum desenvolvimento no caso de Marie? Naquele momento, porém, tinha de me concentrar em Tomohiko Amada.

Eu e Masahiko sentámo-nos frente a frente em cadeiras iguais, a beber o café que tínhamos comprado na máquina de venda automática no corredor, à espera de que Tomohiko Amada acordasse. Enquanto isso, Masahiko contou-me novidades sobre Yuzu: que a gravidez corria bem, que a criança devia nascer na primeira quinzena de janeiro; que o belo namorado estava todo contente por ser pai.

– O único problema... da perspetiva do meu amigo, de qualquer forma... é que ela parece não ter intenção de casar com ele – comentou Masahiko.

– Hã? – Não conseguia acreditar no que acabara de ouvir. – Queres dizer que ela tenciona ser mãe solteira?

– A Yuzu pretende ter o bebé, mas não quer casar com o pai, nem viver com ele, nem partilhar a guarda da criança. Resumidamente, é isto. O tipo não é capaz de perceber o que se passa. Partiu do princípio de que casariam assim que o divórcio fosse definitivo, mas ela rejeitou o pedido.

Pensei um pouco, mas quanto mais pensava, mais confuso ficava.

– Não percebo nada – admiti. – A Yuzu sempre afirmou que não queria filhos. Quando eu dizia que seria a altura certa, ela respondia que era demasiado cedo. Então por que motivo quer tanto uma criança agora?

– Talvez não planeasse ter o bebé, mas mudou de ideias depois de engravidar. Às vezes acontece, sabes?

– Ainda assim, vai ser complicado cuidar da criança sozinha. E difícil manter o emprego. Porque é que não quer casar? Ele é o pai da criança, certo?

– Sim, ele também não percebe. Pensava que se davam lindamente e ficou contente com a ideia de ser pai. Por isso está tão confuso. Perguntou a minha opinião, mas eu também estou estupefacto.

– Falaste com a Yuzu? – perguntei.

Masahiko franziu a testa.

– Para ser sincero, estou a tentar não me meter no assunto. Gosto da Yuzu, mas ele é meu colega de trabalho. E claro que tu e eu somos amigos há séculos. Estou numa situação difícil. Quanto mais me envolvo, menos sei o que fazer.

Não me pronunciei.

– Sempre gostei de vos ver juntos, pareciam um casal tão feliz – comentou Masahiko com uma expressão perplexa.

– Já disseste isso antes.

– Sim, talvez tenha dito, mas é a pura verdade.

Depois disso, ficámos sentados em silêncio a olhar para o relógio na parede ou para o mar do lado de fora da janela. Tomohiko Amada continuava a dormir profundamente de barriga para cima, sem mover um músculo. Mantinha-se tão imóvel que me perguntei se estaria vivo, mas como mais ninguém parecia preocupado, calculei que a sua imobilidade era normal.

Ao vê-lo ali deitado, tentei imaginar qual teria sido o aspeto dele enquanto jovem estudante em Viena, mas não consegui. Tinha diante de mim um idoso com a pele engelhada e cabelo branco, experimentando a lenta mas constante aniquilação da sua existência física. Todos, sem exceção, nascemos para morrer, e ele enfrentava agora essa fase final.

– Não tencionas contactar a Yuzu? – perguntou Masahiko.

– De momento, não – respondi, abanando a cabeça.

– Acho que pode ser boa ideia vocês juntarem-se e falarem, terem uma conversa franca.

– O nosso divórcio foi tratado pelos advogados. Assim o quis a Yuzu. Agora está prestes a dar à luz o filho de outro homem. Se quer ou não casar com o fulano, é problema dela. Não me cabe dizer nada sobre isso. O que teríamos nós para falar, exatamente?

– Não queres saber o que se passa?

Abanei a cabeça.

– Não quero saber mais do que preciso. O que aconteceu magoou-me, confesso.

– Tens razão – disse Masahiko.

Mesmo assim, para ser franco, havia momentos em que eu não sabia se tinha ou não ficado magoado. Teria realmente esse direito? Não estava suficiente esclarecido para concluir isso. Naturalmente, as pessoas não podem evitar sentirem-se magoadas em certas situações, assistindo-lhes ou não esse direito.

– O gajo é meu colega – disse Masahiko. – É um tipo sério, trabalhador, tem boa personalidade.

– Sim, e também é bonito.

– É verdade. As mulheres adoram-no. Nada mais natural, creio. Claro que gostava que elas se sentissem atraídas por mim dessa maneira. Mas ele tem aquela tendência que sempre nos deixou espantados.

Esperei que ele prosseguisse.

– Sabes, nunca percebemos porque escolheu as mulheres que escolheu. Quero dizer, tem muitas de volta dele, e opta sempre pelas fracassadas. Não estou a referir-me à Yuzu, claro. Ela é provavelmente a primeira boa escolha que ele fez. Mas as mulheres antes dela eram do piorio. Continuo sem perceber.

Abanou a cabeça, recordando essas mulheres.

– Quase se casou há uns anos. Imprimiram os convites, reservaram o local para a cerimónia e iam para as Fiji ou para um sítio parecido na lua de mel. Ele meteu férias, comprou os bilhetes de avião. A noiva nem era assim tão atraente. Quando a apresentou, lembro-me de ter ficado chocado com o seu ar banal. Não se pode julgar um livro pela capa, mas pelo que me foi dado a ver, a personalidade dela também não era nada de especial. Por algum motivo, ele estava pelo beicinho. Em todo o caso, não pareciam feitos um para o outro. Toda a gente que os conhecia pensava o mesmo, embora ninguém o tivesse dito. Pouco antes do casamento, ela baldou-se. Por outras palavras, foi a mulher que fugiu com o rabo à seringa. Não percebi se isso foi bom ou mau para ele, mas mesmo assim surpreendeu-me.

– Houve alguma razão?

– Que eu saiba, não. Tive pena dele, e não perguntei. Mas acho que ele nunca percebeu por que motivo ela fez o que fez. Quer dizer, fugiu. Não aguentou a ideia de casar com ele. Alguma coisa deve tê-la incomodado.

– Onde queres chegar com essa história?

– Que ainda é possível que tu e a Yuzu voltem a estar juntos. Supondo que é isso que queres, claro.

– Mas ela está prestes a ter o filho de outro homem.

– Sim, percebo que isso possa ser um problema.

Ficámos novamente em silêncio.

 

* * *

 

Tomohiko Amada acordou pouco antes das três. O seu corpo começou por se contrair. A seguir, respirou fundo; vi a colcha sobre o peito subir e descer. Masahiko levantou-se e aproximou-se da cama. Olhou para o rosto do pai. Os olhos do velho abriram-se lentamente. As suas sobrancelhas espessas brancas tremeram.

Masahiko pegou num copo estreito que estava na mesa de cabeceira e humedeceu os lábios do pai. Limpou-lhe os cantos da boca com uma espécie de gaze. O pai queria mais, e ele repetiu o processo várias vezes. Mostrava à-vontade com a tarefa, como se o tivesse feito muitas vezes. A maçã de Adão do velho subia e descia a cada gole. Só quando vi aquele movimento tive a certeza de que ele ainda estava vivo.

– Pai, este é o rapaz que se mudou para a casa de Odawara – disse Masahiko, apontando para mim. – É pintor e está a trabalhar no teu estúdio. Somos amigos desde os tempos da faculdade. Não é dotado de uma grande inteligência e a sua linda esposa abandonou-o, mas nunca deixou de ser um grande artista.

Não posso garantir que o pai de Masahiko tivesse compreendido tudo, mas virou lentamente a cabeça na minha direção como se seguisse o dedo do filho. Um rosto inexpressivo. Parecia estar a olhar para alguma coisa, mas essa coisa não tinha qualquer significado para ele. No entanto, julguei detetar uma luz surpreendentemente límpida e lúcida no fundo daqueles olhos turvos. Essa luz aparentava estar à espera de algo que pudesse ter uma importância real. Pelo menos foi essa a impressão com que fiquei.

– Duvido que entenda uma palavra do que digo – explicou Masahiko –, mas o médico aconselhou-nos a falar da forma mais natural possível, como se ele fosse capaz de compreender. Ninguém sabe se está a apanhar bonés, estás a ver? Por isso, falo com ele normalmente. Também é mais fácil para mim. Agora diz tu alguma coisa.

– É um prazer conhecê-lo, senhor Amada – comecei. Disse-lhe o meu nome. – O seu filho teve a amabilidade de me deixar morar na sua casa em Odawara.

Tomohiko Amada olhava para mim, mas a sua expressão não mudara. Masahiko fez um gesto: Continua a falar… qualquer coisa serve.

– Pinto quadros a óleo – continuei. – Especializei-me em retratos durante bastante tempo, mas desisti disso e agora pinto as minhas cenas. Aceito encomendas de retratos, mas só ocasionalmente. O rosto humano fascina-me, creio. O Masahiko e eu somos amigos desde os tempos da faculdade.

Os olhos de Tomohiko Amada continuavam voltados para mim. Estavam cobertos por uma membrana fina, uma espécie de cortina de renda com várias camadas pendurada entre a vida e a morte. O que se encontrava atrás da cortina desapareceria de vista à medida que as camadas aumentassem, até finalmente a última cortina pesada cair.

– Adoro a sua casa – declarei. – O meu trabalho está a progredir bem. Tenho ouvido os seus discos... espero que não se importe. O Masahiko disse-me que não havia problema. Tem uma excelente coleção; gosto em particular das óperas. Ah, sim, e subi ao sótão, faz tempo.

Pensei ter visto um brilho nos seus olhos quando disse a palavra «sótão». Foi apenas um lampejo rápido – ninguém teria notado a não ser que estivesse a prestar atenção; mas eu estava atento e não me escapou. Pelos vistos, «sótão» possuía uma carga que fez surgir qualquer coisa na sua memória.

– Uma coruja mudou-se para o sótão – prossegui. – Estava sempre a ouvir uns barulhos durante a noite. Pensei que era uma ratazana, e um dia fui verificar. E lá estava a coruja, instalada debaixo das vigas. É uma bela ave. A rede do respiradouro tem um buraco, podendo entrar e sair à vontade. O sótão é um esconderijo diurno perfeito para uma coruja, não acha?

Os olhos continuavam fixos em mim, como se estivesse à espera de ouvir o resto.

– As corujas não fazem estragos – interveio Masahiko. – Até há quem diga que dão sorte.

– Adoro aquela ave – acrescentei. – E o sótão também é um lugar fascinante.

Deitado na cama, Tomohiko Amada fitava-me sem mover um músculo. A sua respiração tornara-se de novo superficial. Aquela fina membrana ainda cobria os seus olhos, mas a luz secreta no interior parecia ter-se intensificado.

Queria falar mais sobre o sótão, mas Masahiko estava ao meu lado e não havia forma de dizer o que lá encontrara. Só iria espicaçar a curiosidade dele. Deixei o assunto pairar enquanto Tomohiko Amada e eu nos olhávamos.

Escolhi as palavras com cuidado.

– O sótão é bom para as corujas, mas também pode ser bom para os quadros. Seria um local perfeito para guardá-los, especialmente as pinturas em estilo japonês, pois são realmente difíceis de preservar. Os sótãos não são húmidos como as caves, são bem ventilados e não é preciso preocuparmo-nos com a luz do Sol. Claro que há sempre o perigo de o vento e a chuva entrarem, mas se o embrulharmos com cuidado, um quadro deve aguentar-se lá durante bastante tempo.

– Sabias que nunca fui ao sótão? – considerou Masahiko. – Os sítios cheios de pó fazem-me impressão.

Eu observava o rosto de Tomohiko Amada. O seu olhar continuava fixo em mim. Senti que ele tentava construir uma linha coerente de pensamento. Coruja, sótão, quadros guardados... todas aquelas palavras familiares precisavam de ser alinhadas. No seu estado atual, isso não era tarefa fácil. Nada fácil. Como entrar num labirinto de olhos vendados. Mas senti que estabelecer essas ligações era importante para ele. Extremamente importante. Em silêncio, fiquei a vê-lo concentrar-se naquela tarefa urgente, mas solitária.

Pensei em falar do santuário na floresta e do estranho poço atrás dele. Descrever os passos dados até ele ser aberto e a forma do seu interior. Depois mudei de ideias. Não devia dar-lhe muito que pensar de uma só vez. O seu nível de consciência estava tão diminuído que até um único assunto era um fardo pesado. O pouco que ele tinha pendia num único fio, que facilmente seria cortado.

– Queres mais água? – perguntou Masahiko, de copo na mão.

O pai não reagiu. Era como se não tivesse ouvido a pergunta do filho. Masahiko aproximou-se e repetiu a pergunta. O ancião continuou sem responder, e ele desistiu. O filho era invisível aos olhos do pai.

– O meu velhote parece gostar de ti – admirou-se Masahiko. – Não consegue parar de te observar. Faz tempo que alguém ou alguma coisa prendia o interesse dele desta forma.

Continuei a contemplar os olhos de Tomohiko Amada.

– É estranho. Quando falo com ele não me passa cartão, diga eu o que disser, mas contigo não desgruda. Tem os olhos fixos em ti.

Não pude deixar de notar um leve tom de inveja na voz de Masahiko. Ele queria que o pai o visse. Era provavelmente um tema recorrente na sua vida, desde pequeno.

– Talvez consiga cheirar a tinta em mim – sugeri. – O cheiro despertou certamente algumas recordações.

– Tens razão, deve ser isso. Pensando bem, há muito tempo que não toco em tinta.

O seu tom já não era de pesar. Voltara a ser o Masahiko descontraído. Naquele momento, o telemóvel começou a zumbir na mesa.

Masahiko olhou para cima com um sobressalto.

– Raios, esqueci-me de o desligar. É proibido usar telemóveis aqui. Vou ter de ir lá para fora. Não te importas, pois não?

– Claro que não.

Masahiko pegou no telemóvel e foi até à porta.

– Isto pode demorar algum tempo – disse ele, ao olhar para o nome no ecrã. – Por favor, fala com o meu pai enquanto eu não estiver aqui.

Já ia a sussurrar para o telemóvel ao sair, e fechou silenciosamente a porta atrás dele.

Tomohiko Amada e eu ficámos sozinhos. Os seus olhos permaneciam fixos no meu rosto. Ele tentava sem dúvida descobrir quem eu era. Sentindo-me um pouco sufocado, contornei os pés da cama e fui até à janela virada a sudeste. Aproximando o rosto do vidro, olhei para a vasta extensão do oceano. O horizonte parecia estar a erguer-se contra o céu. Segui a linha onde o céu encontrava a água. Nenhum ser humano seria capaz de desenhar uma linha tão bonita, qualquer que fosse a régua que usasse. Abaixo daquela linha reta e longa medravam numerosas vidas. O mundo estava repleto de vidas e de igual número de mortes.

Pressentindo uma presença no quarto, virei-me. Tomohiko Amada e eu já não estávamos sozinhos.

– Confere, meu amigo. Já não estais sozinhos – disse o Comendador.