56
HÁ ESPAÇOS EM BRANCO
QUE PRECISAM DE SER PREENCHIDOS
Várias coisas não faziam sentido. O mais preocupante era a total ausência de luz. Alguma alminha selara a abertura do poço. Mas quem faria tal coisa? E porquê?
Rezei para que alguém (quem quer que fosse) não tivesse empilhado pedras em cima da tampa, repondo o aspeto original. Nesse caso, a probabilidade de sair dali era praticamente nula
Tive uma epifania. Acendi a lanterna e olhei para o relógio. Eram 4h32. O segundo ponteiro descrevia um círculo pelo mostrador, fazendo o seu trabalho. O tempo estava a passar, sem dúvida. Pelo menos eu regressara aonde o tempo fluía a um ritmo definido e numa única direção.
Mas, pensando bem, o que era o tempo? Medíamos a sua passagem com os ponteiros de um relógio por uma questão de conveniência. Isso era correto? O tempo fluía realmente de forma tão estável e linear? Não poderia ser um modo errado de pensar, um erro de proporções trágicas?
Desliguei a lanterna e, deixando escapar um longo suspiro, voltei à escuridão absoluta. Para o diabo as meditações sobre o tempo. Para o diabo as meditações sobre o espaço. Pensar naquelas coisas não levava a lado nenhum, só contribuía para aumentar o meu stresse. Tinha de pensar em coisas concretas, coisas que podia ver e tocar.
Pensei em Yuzu. Podia vê-la com os olhos e tocar-lhe com as mãos (se voltasse a ter essa oportunidade). Naquela altura, estava grávida. O bebé – não meu, mas de outro homem – nasceria no mês de janeiro. Essa situação progredia sem o meu envolvimento, num lugar distante. Uma nova vida com a qual eu não tinha nenhuma relação entraria naquele mundo. Yuzu não me pedira nada. Então, porque se recusava a casar com o pai da criança? Não havia maneira de atinar com o motivo. Se ela tencionasse ser mãe solteira, o mais provável era ter de deixar o emprego no ateliê de arquitetura. Duvidava que, tratando-se de uma pequena empresa, concedessem uma longa licença de maternidade a uma mãe recente.
Não era capaz de encontrar respostas convincentes para aquelas perguntas, embora tenha tentado. Sentia-me perplexo. E a escuridão deixava-me ainda mais impotente.
Se saísse daquele poço, deixaria de lado as minhas hesitações e iria ver Yuzu. Não havia dúvida de que ficara magoado quando ela me trocou por outra pessoa. Isso também me irritou (embora tivesse tardado em perceber). Mas porquê albergar ressentimentos durante o resto da vida? Iria procurá-la e poderíamos conversar, pôr as cartas na mesa. Eu precisava de ouvir, da boca dela, o que pensava e o que queria a minha ex-mulher antes que fosse demasiado tarde. Assim que tomei a decisão, foi como se tirasse um peso de cima. Se ela quisesse ser minha amiga, bem, talvez eu desse uma oportunidade. Não era nada do outro mundo. Quem sabe, poderíamos resolver as coisas dessa maneira. Depois de sair do poço, como é óbvio.
A páginas tantas, adormeci. Despira o blusão de cabedal antes de entrar no túnel (que destino estaria reservado àquele meu blusão?), e o frio começava a incomodar-me. A camisola fina que eu vestira sobre a T-shirt estava de tal forma rasgada de roçar nas paredes do túnel que chamar-lhe camisola era favor. Além disso, eu regressara ao mundo real vindo da Terra da Metáfora. Por outras palavras, voltara ao local onde o tempo e a temperatura desempenhavam o papel que cabia a cada um. Mas a minha necessidade de dormir foi mais forte. Adormeci ali sentado no chão, encostado à dura parede de pedra. Foi um sono puro, livre de sonhos ou ilusões. Um sono solitário além do alcance de qualquer pessoa, como o ouro espanhol que jazia no fundo do mar da Irlanda.
Ainda estava escuro como breu quando acordei. Não via um palmo à frente do nariz. O negrume tinha o condão de eliminar a linha que separava o sono e a vigília. Onde terminava um e começava o outro, e de que lado me encontrava? Peguei nas minhas lembranças e comecei a folheá-las, como se contasse uma pilha de moedas de ouro: o gato preto que fora o nosso animal de estimação; o meu velho Peugeot 205; a mansão branca de Menshiki; o disco de O Cavaleiro da Rosa; o pinguim de plástico. Consegui invocar a recordação de cada uma delas com grande pormenor. A minha mente funcionava bem, a Metáfora Dupla não a devorara. O problema é que eu estava no escuro há tanto tempo que tinha dificuldade em distinguir entre o mundo do sono e o mundo da vigília.
Acendi a lanterna, cobri-a com a mão e consultei as horas com a ajuda da luz que passava entre os meus dedos: 1h18. Da última vez eram 4h32. Seria possível ter dormido numa posição tão desconfortável durante nove horas? Era difícil acreditar nisso. Sendo verdade, teria de me sentir todo amassado. Parecia mais razoável supor que, sem que eu soubesse, o tempo tivesse recuado três horas. Mas não conseguia ter certezas. Estar mergulhado num mar de trevas durante tantas horas dera cabo do meu sentido do tempo.
De qualquer forma, o frio tornara-se mais penetrante. E senti vontade de urinar. Uma vontade enorme. Resignado, arrastei-me para o outro lado do poço e abri as comportas. Um fluxo interminável, que o chão rapidamente absorveu. Pairou no ar um leve cheiro a amoníaco, mas não durou mais que um momento. Assim que a necessidade de urinar foi riscada da lista, veio a fome substituí-la. De forma lenta e constante, tudo indicava que o meu corpo se readaptava ao mundo real. Talvez os efeitos da água que eu bebera no rio da Metáfora estivessem a desaparecer.
Tinha de sair do poço quanto antes. Sentia-o de forma premente. Se não o fizesse, não demoraria muito a morrer à fome. Os seres humanos só podem sobreviver se ingerirem comida e água – era uma regra básica do mundo real. E na minha localização atual não existia nada disso. Havia apenas ar (embora a tampa estivesse fechada, o ar parecia entrar por algum lado). O ar, o amor e os ideais eram importantes, sem sombra de dúvida, mas não se sobrevive apenas disso.
Levantei-me e tentei escalar a parede lisa do poço. Experimentei em vários sítios, mas foi um desperdício de energia – já estava à espera. A parede não chegava aos três metros de altura, mas era completamente lisa, sem nenhum ponto de apoio. Só se tivesse qualidades sobre-humanas é que conseguiria escalá-la, e ainda que eu chegasse ao cimo, havia aquela tampa pesada. Precisaria de uma base sólida para a afastar.
Tornei a sentar-me, resignado. Restava-me uma opção: podia tocar o sino, como o Comendador fizera. Mas havia uma grande diferença entre o Comendador e a minha pessoa. Ele era uma Ideia, ao passo que eu era um ser humano de carne e osso. Uma Ideia nunca sentia fome, eu sim. Uma Ideia não morreria à fome, mas eu sim, e relativamente depressa. O Comendador podia tocar o sino durante cem anos (embora o conceito de tempo lhe fosse estranho) e não se cansar, ao passo que eu aguentaria provavelmente três ou quatro dias sem comida e, sobretudo, sem água. Passado esse limite, não teria forças, embora o sino fosse leve.
Comecei então a tocar o sino ali no escuro. Não havia mais nada a fazer. Claro que podia gritar por ajuda. Mas o buraco ficava no meio de uma floresta erma. Como a floresta era propriedade privada da família Amada, em circunstâncias normais ninguém andaria ali por perto. Para piorar a situação, a cobertura do poço fora bem fechada. Poderia gritar a plenos pulmões que ninguém ouviria. O mais certo era ficar rouco e sentir uma sede dos diabos. Pensando bem, tocar o sino era melhor que nada.
Além disso, havia qualquer coisa fora do comum no toque do sino. Parecia ter um poder especial. Em termos físicos, não soava muito alto. No entanto, ouvira-o da minha cama, a longa distância, a meio da noite. Os insetos outonais calaram-se quando o ouviram. Como se recebessem ordens para acabar com o chinfrim.
Resultado: fiquei ali no fundo do poço, encostado à parede de pedra, a tocar o sino. Balancei o pulso de um lado para o outro e esvaziei a mente, tanto quanto possível. Já cansado, fiz uma pausa. Depois recomecei. Como o Comendador fizera antes de mim. Não foi difícil limpar a minha mente. Ao ouvir a campainha senti, de forma natural, que não precisava de pensar em nada. O toque soava de maneira diferente no escuro. Tenho a certeza de que a diferença era real. Estava preso num buraco negro sem saída, porém, enquanto tocava o sino, não sentia nem medo nem ansiedade. Também fui capaz de esquecer o frio e a fome. Na maior parte do tempo, consegui até dar descanso à minha necessidade de analisar o que estava a acontecer. Foi uma mudança bem-vinda, como podem imaginar.
Farto de tocar o sino, dormitei encostado à parede de pedra. Quando acordei, acendi a lanterna para ver as horas. O tempo, descobri, estava a comportar-se de maneira bastante aleatória. Como é óbvio, tal fenómeno podia ter mais que ver comigo do que com o relógio. Aí havia dúvidas. Mas não me importava com aquela qualidade fortuita. Alheado, continuei a tocar o sino, depois adormeci, e acordei de novo para tocar o sino. Uma repetição sem fim. Com a repetição, a minha consciência tornou-se cada vez mais ténue e rarefeita.
No poço não entrava um único som. Não conseguia ouvir os pássaros nem o vento. Porquê? O que poderia explicar isso? Aquilo era o mundo real ou não? Eu estava de volta a um lugar onde as pessoas sentiam fome e necessidade de urinar. Seria de esperar que o mundo real estivesse saturado de todo o tipo de ruídos.
Não tinha a mínima ideia de quanto tempo transcorrera. Desistira de ver as horas. A passagem dos dias fazia ainda menos sentido do que a passagem dos minutos e das horas. Como poderia ser de outra forma num lugar onde não existia dia e noite? E não era só a noção de tempo que me escapava; começava a perder o contacto com o meu próprio eu. O meu corpo tornara-se-me um estranho. Tinha cada vez mais dificuldade em entender o que significava a minha existência física. Ou talvez me estivesse nas tintas. A única coisa que eu podia fazer era continuar a tocar o sino até sentir o pulso dormente.
Depois do que pareceu uma eternidade (ou depois de o tempo avançar e recuar como ondas a bater na margem), e de a minha fome se tornar insuportável, ouvi qualquer coisa acima da minha cabeça. Parecia que alguém agarrara num canto do mundo e estava a tentar tirar-lhe a pele. Mas o som não me pareceu real. Quero dizer, como poderia alguém fazer isso? E se fizesse, o que se seguiria? Um mundo novo ou um nada infinito? Na verdade, tanto se me dava uma coisa ou outra. Provavelmente, o resultado seria mais ou menos o mesmo.
Ali no escuro, fechei os olhos e esperei que alguém acabasse de descascar o mundo. Mas o mundo, pelos vistos, não se deixava descascar com tanta facilidade, e o barulho só aumentava. Afinal, talvez fosse mesmo real. Um objeto real a passar por um processo que produzia um som físico real. Enchendo-me de coragem, abri os olhos e olhei para cima. Apontei o feixe da lanterna para o teto. Alguém estava lá em cima a fazer uma chinfrineira infernal. Não sei dizer porquê, mas era um ruído estridente e ensurdecedor.
Não percebia se o som me ameaçava ou se estava a ser feito em meu nome. Fosse qual fosse o caso, continuei sentado no fundo do poço a tocar o sino, à espera do desenrolar dos acontecimentos. Por fim, uma fina camada de luz atravessou uma fenda entre as tábuas e penetrou no poço. Como a lâmina larga e afiada de uma guilhotina a deslizar por uma massa de gelatina, desceu pelo escuro até pousar no meu tornozelo. Larguei o sino e cobri o rosto para proteger os olhos.
A seguir, uma das tábuas foi afastada para o lado e a claridade do sol entornou-se poço adentro. Embora tivesse os olhos fechados e as palmas pressionadas contra eles, senti a escuridão transformar-se em luz. Ato contínuo, uma aragem fluiu lá de cima. Era pura e fria e cheirava ao início do inverno. Adorava aquele cheiro. Recordou-me o que sentia em criança quando enrolava um cachecol no pescoço na primeira manhã fria do ano, a lã macia contra a pele.
Alguém gritava o meu nome do cimo do poço. Pelo menos, parecia ser o meu nome. Esquecera-me de que tinha um. Os nomes não possuíam significado algum no mundo em que eu permanecera tanto tempo.
Levei algum tempo a conectar esse alguém que chamava por mim com a pessoa de Wataru Menshiki. Respondi com um grito, mas nenhuma palavra surgiu. Consegui apenas produzir uma espécie de grunhido, sinal de que ainda estava vivo. Não sabia se a minha voz era suficientemente forte para chegar até ele, mas eu ouvia-a. O estranho e áspero chamamento de uma fera imaginária.
– Está tudo bem? – gritou Menshiki.
– Menshiki?
– Sim, sou eu. Está ferido?
– Não, estou bem – respondi. A minha voz regressara. – Penso eu – acrescentei.
– Há quanto tempo está aí em baixo?
– Não sei. Aconteceu.
– É capaz de subir a escada se eu a baixar?
– Acho que sim. – Provavelmente.
– Espere só um minuto. Vou buscá-la.
Os meus olhos começaram a adaptar-se à luz solar naquele compasso de espera. Ainda não conseguia abri-los na totalidade, mas já não havia necessidade de pôr a mão à frente deles. Por sorte, a claridade não era assim tão intensa. Percebi que era de dia, mas o céu devia estar encoberto. Ou o anoitecer aproximava-se. Finalmente, ouvi a escada de metal descer até mim.
– Por favor, dê-me só um minutinho – pedi. – Os meus olhos não estão habituados à luz. Preciso de ter cuidado.
– Claro, leve o tempo que quiser – disse Menshiki.
– Porque estava o poço tão escuro? Não havia nem um pingo de luz.
– Cobri-o há dois dias. Alguém andava a brincar com a tampa, pensei eu, por isso trouxe uma lona pesada de casa e prendi-a com estacas de metal e corda para que ela não se movesse. Não queria que uma criança escorregasse e caísse aí dentro. Verifiquei primeiro para ter a certeza de que não havia ninguém. O poço estava vazio, tenho a certeza.
Fazia todo o sentido. Menshiki cobrira a tampa. Daí estar tão escuro.
– Não creio que alguém tenha mexido na lona. Estava exatamente como a deixei. Sendo assim, como é que entrou? Não entendo – disse Menshiki.
– Eu também não. Aconteceu.
Não podia dizer-lhe mais nada. E também não tencionava explicar-lhe.
– Quer que eu desça? – perguntou Menshiki.
– Não, fique onde está, por favor. Vou subir.
Já era capaz de manter os olhos entreabertos. Atrás deles havia imagens misteriosas, mas pelo menos a minha mente estava a funcionar. Firmei a escada contra a parede, pus o pé no degrau mais baixo e tentei içar-me, porém, as pernas fraquejaram-me. Não pareciam as minhas pernas. Ainda assim, consegui subir cautelosamente a escada, um degrau de cada vez. O ar ficou mais fresco à medida que me aproximava da superfície. Ouvi os pássaros cantar.
Quando cheguei ao cimo, Menshiki agarrou-me no pulso com um aperto férreo e puxou-me para fora. Era muito mais forte do que eu esperava. Suficientemente forte para me entregar nas suas mãos sem pensar duas vezes. Sentia apenas gratidão. Fora do buraco, deitei-me de barriga para cima e olhei para o céu escuro. Como eu previa, estava coberto por nuvens cinzentas. Que horas seriam? Pequenos grânulos de chuva atingiram-me a cara, a cabeça. Achei emocionante a forma irregular como aterraram no meu rosto. Nunca tinha percebido que a chuva podia ser uma bênção. Era tão cheia de vida. Até a primeira chuva fria do inverno.
– Estou esfomeado. E cheio de sede. Além do frio. Estou a congelar – anunciei. Não fui capaz de dizer mais nada. Os meus dentes batiam como castanholas.
Menshiki guiou-me através da floresta com o braço em volta dos meus ombros. Eu sentia dificuldade em articular os pés; ele acabou por ter de me puxar. Era muito mais forte do que faria antever. Os ditos exercícios diários valiam a pena.
– Tem a chave? – perguntou Menshiki.
– Está debaixo do vaso à direita da porta. Provavelmente.
O «provavelmente» impunha-se. Não se podia afirmar nada naquele mundo com absoluta certeza. Continuava a tiritar. O barulho dos meus dentes a bater era tal que só a custo ouvia a minha voz.
– Vai gostar de saber que a Marie voltou para casa em segurança esta tarde – revelou Menshiki. – Foi um alívio. Recebi um telefonema da Shoko há uma hora. Tentei ligar-lhe, mas ninguém atendeu. Fiquei preocupado, por isso vim até cá. Ouvi o toque de um sino vindo da floresta. Segui a minha intuição, fui até lá e tirei a lona.
A perspetiva tornou-se mais ampla quando saímos das árvores. Vi o Jaguar prateado de Menshiki estacionado diante da minha casa. Imaculado, como sempre.
– Porque é que o seu carro está sempre um mimo? – perguntei a Menshiki. Não era uma pergunta adequada às circunstâncias, talvez, mas há muito tempo que queria fazer-lha.
– Não sei – respondeu ele num tom desinteressado. – Talvez porque o lavo quando não tenho mais nada para fazer. De uma ponta à outra. Uma vez por mês, vem cá um homem aplicar cera. E a minha garagem protege-o dos elementos. Apenas isso.
Apenas isso? Se o meu pobre Toyota Corolla tivesse ouvido aquilo, depois de seis meses ao vento e à chuva, os seus ombros curvar-se-iam em desânimo. Talvez até lhe desse uma coisinha má.
Menshiki pegou na chave que estava por baixo do vaso e abriu a porta.
– A propósito, que dia da semana é? – perguntei.
– Hoje? É terça-feira.
– Terça? Tem a certeza?
Menshiki confirmou a memória.
– Deixei as garrafas e as latas vazias na reciclagem ontem, portanto deve ter sido segunda-feira. Logo, hoje é terça-feira.
No sábado eu visitara Tomohiko Amada. Tinham passado três dias. Não me surpreenderia se tivessem sido três semanas, três meses ou até três anos. Tomei uma nota mental e esfreguei o queixo com a palma da mão. Não tinha uma barba de três dias. O meu queixo estava liso. Qual era a explicação?
Menshiki conduziu-me imediatamente para a casa de banho. Enfiou-me num duche quente e entregou-me roupa lavada. A que eu levava vestida estava esfarrapada e suja. Fiz uma trouxa e deitei-a no lixo. O meu corpo estava coberto de contusões, mas não tinha ferimentos visíveis. Pelo menos, não sangrava.
Depois levou-me para a cozinha, sentou-me e obrigou-me a beber água aos poucochinhos. Acabei por emborcar uma garrafa grande de água mineral. Enquanto eu bebia, ele encontrou umas quantas maçãs no frigorífico e descascou-as. Fiquei ali sentado, a admirar a sua perícia com a faca. O prato de maçãs descascadas ficou bonito, diria até elegante.
Comi três ou quatro maçãs ao todo. Foi uma experiência comovente – nunca tinha percebido como as maçãs eram deliciosas. Apeteceu-me agradecer ao seu criador por ter inventado um fruto tão maravilhoso. Não havendo mais maçãs, Menshiki desencantou um pacote de bolachas de água e sal e entregou-mo. Esvaziei-o. Estavam um pouco moles, mas sabiam divinalmente. Enquanto isso, ele ferveu água, fez chá e juntou mel. Bebi várias chávenas. O chá e o mel aqueceram-me por dentro.
O frigorífico estava quase vazio, mas havia ovos para dar e vender.
– Que tal uma omeleta? – perguntou Menshiki.
– Adorava – respondi. Precisava de encher o estômago; qualquer coisa serviria.
Menshiki pegou em quatro ovos, partiu-os para uma tigela, bateu-os com pauzinhos e acrescentou leite, sal e pimenta. A seguir bateu-os de novo. Era evidente que sabia o que fazia. Acendeu o fogão, pegou numa pequena frigideira e deitou-lhe um pouco de manteiga. Encontrou uma espátula numa das gavetas e cozinhou habilmente a omeleta.
A sua técnica era notável, já seria de esperar. Podia ter participado num programa de culinária. As donas de casa por todo o país suspirariam de inveja. Quando se tratava de omeletas – quando se tratava de qualquer coisa, diria eu –, Menshiki era preciso, eficiente e incrivelmente elegante. Restava-me apenas olhá-lo com admiração. Verteu-a para um prato e serviu-ma com um bocadinho de ketchup.
A omeleta pronta estava tão bonita que tive vontade de pegar em papel e lápis para a desenhar. Em vez disso, peguei na faca e comecei a comer. Não era apenas bonita – estava deliciosa.
– Perfeita – comentei.
Menshiki riu.
– Nem por isso. Já fiz melhor.
Que tipo de omeleta teria sido? Uma que ganhava asas e voava de Tóquio para Osaka em menos de duas horas?
Quando acabei de comer, ele depositou o prato no lava-loiça. Fiquei saciado. Menshiki sentou-se à minha frente.
– Podemos falar? – perguntou.
– Com certeza.
– Não está cansado?
– Talvez, mas temos muito que conversar.
Menshiki assentiu.
– Parece que há espaços em branco que precisam de ser preenchidos.
Se puderem ser preenchidos, pensei.
– Deu-se o caso de ter passado aqui no domingo à tarde – disse Menshiki. – Já tinha ligado várias vezes, e como não havia meio de atender, fiquei preocupado. Cheguei aqui por volta da uma.
Assenti. Eu estivera noutro lado.
– Toquei à campainha e o filho do Tomohiko Amada veio abrir. Masahiko, não é?
– Sim, Masahiko Amada. Um velho amigo. É o proprietário desta casa e tem a chave, para poder entrar quando eu cá não estiver.
– Achei-o… como devo dizer… muito preocupado consigo. Disse que foram visitar o pai dele na casa de repouso no último sábado e, de repente, você desapareceu.
Assenti, mas não disse nada.
– Disse que você simplesmente desapareceu depois de ele sair do quarto para fazer um telefonema. O lar fica em Izu-Kōgen, pelo que a estação de serviço mais próxima é demasiado longe para lá chegar a pé. Mas não havia registo de que alguém tivesse chamado um táxi. E a rececionista e o segurança também não o viram sair. O Masahiko ligou para cá mais tarde, mas ninguém atendeu. Encontrava-se de tal forma em sobressalto, que veio de carro até aqui ver o que se passava. Estava preocupado com a sua segurança. Receava que lhe tivesse acontecido...
Suspirei.
– Vou tentar explicar as coisas ao Masahiko. O pai dele encontra-se doente e eu só contribuí para as suas preocupações. Como está o velhote, a propósito? Ele disse alguma coisa?
– A última informação é de que está em coma. Não recuperou a consciência. O filho alugou um quarto perto do lar. Estava de regresso a Tóquio quando parou aqui.
– Eu devia ligar-lhe imediatamente – afirmei, abanando a cabeça.
– Isso é verdade – disse Menshiki, pousando as mãos na mesa. – Mas primeiro acho que precisa de arranjar uma história coerente acerca de onde esteve e do que fez nos últimos dias. Incluindo uma explicação de como desapareceu do lar. Ninguém vai acreditar se disser que acordou e deu por si de novo aqui.
– Tem razão – respondi. – Então e o senhor? Acredita na minha história?
Menshiki pensou um pouco. Franzira a testa, como se tivesse dificuldade em decidir que palavras empregar.
– Sempre fui uma pessoa racional – disse ele por fim. – Fui treinado assim. Mas, para ser sincero, não consigo ser lógico em relação ao poço atrás do santuário. É possível acontecer ali tudo e mais alguma coisa, e não seria nada estranho. Passar uma hora dentro do poço fez-me perceber isso. Aquele sítio é mais do que apenas um buraco no chão, mas duvido que alguém que não o tenha experimentado seja capaz de entender.
Como não encontrei as palavras certas para responder, remeti-me ao silêncio.
– Acho que deve alegar que não se lembra de nada e manter essa versão – aconselhou Menshiki. – Não sei se acreditarão em si, mas, pelo que vejo, é a sua única opção.
Assenti. Sim, essa podia ser a minha única opção.
– Há coisas que não podem ser explicadas nesta vida – continuou Menshiki –, e outras que provavelmente não devem ser explicadas. Em especial quando explicá-las por palavras não abarca o mais crucial.
– Fala com conhecimento de causa, certo?
– Como é óbvio – respondeu Menshiki com um pequeno sorriso. – Mais de uma vez.
Terminei o chá.
– A Marie não se magoou, então? – perguntei.
– Estava cheia de lama e arranhada, mas não sofreu ferimentos graves. Um joelho esfolado e pouco mais. Tal como você.
Tal como eu?
– Onde esteve ela nestes últimos dias?
Menshiki mostrou-se perplexo.
– Não estou muito bem informado a respeito disso. O que sei é que ela voltou para casa há pouco tempo. Suja e combalida. Foi o que me disseram. A Shoko estava de tal maneira que não adiantou grande coisa pelo telefone. Devia perguntar-lhe quando as coisas acalmarem. Ou, se possível, perguntar diretamente à Marie.
Anuí.
– Tem razão. É o que vou fazer.
– Não era melhor dormir um bocado? – perguntou Menshiki.
Mal as palavras saíram da sua boca, apoderou-se de mim uma enorme sonolência. Dormira profundamente enquanto estava no poço (penso eu), mas, ainda assim, naquele momento mal conseguia manter os olhos abertos.
– Sim, tem razão. Acho que me vou deitar – anunciei, olhando para as costas das suas mãos entrelaçadas, perfeitamente alinhadas na mesa.
– Durma bem. Está mesmo a precisar. Posso fazer mais alguma coisa por si?
Abanei a cabeça.
– Não, não me ocorre nada. Obrigado.
– Então vou andando. Por favor, não hesite em ligar-me por qualquer motivo. Estarei por casa durante as próximas horas. – Levantou-se devagar. – Felizmente, a Marie chegou a casa em segurança. E ajudei-o a sair de uma situação difícil. Para dizer a verdade, também não tenho dormido muito. O melhor é ir para casa descansar.
Dito e feito, foi-se embora. Como sempre, ouvi a pancada sólida da porta do carro a fechar-se e o motor a ser ligado. Esperei que o carro se afastasse antes de ir para a cama. Quando a minha cabeça tocou na almofada, veio-me à memória o velho sino (deixara-o no poço com a lanterna!). Mergulhei num sono profundo.