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TUDO TEM UM LADO BOM

 

 

 

 

 

Ainda era uma longa jornada desde a minha montanha nos arredores de Odawara até ao centro de Tóquio. Visto que me enganei no caminho por mais de uma vez, a viagem demorou o dobro do tempo. O meu velho carro em segunda mão não possuía sistema de navegação nem dispositivo eletrónico que lhe permitisse passar pelas portagens. (Acho que me devia dar por contente pelo facto de vir equipado com um suporte para copos!) Primeiro que encontrasse a saída para Odawara-Atsugi foi um caso sério, e quando abandonei a via rápida de Tomei fui encontrar a circular metropolitana de Tóquio completamente engarrafada. Como tal, decidi sair em Shibuya e seguir por Yotsuya em direção à Avenida Aoyama. Mas até no coração da cidade as ruas estavam congestionadas, e a simples tarefa de escolher a faixa certa revelou-se o cabo dos trabalhos. Também não foi fácil estacionar, garanto. A cada ano, tinha a impressão de que o mundo ameaçava tornar-se um lugar mais difícil para viver.

Comprei na loja de material de pintura o que estava na minha lista, arrumei a tralha no porta-bagagem e arranquei para o escritório de Masahiko Amada, no bairro de Aoyama. Ao estacionar, já não podia com uma gata pela cauda. Sentia-me como o rato do campo que vai visitar o primo ratinho à cidade. Cheguei ao escritório dele já passava da uma, pelo meu relógio, o que significava que estava mais de meia hora atrasado.

Na receção, mandei chamar Masahiko. Ele apareceu em poucos segundos. Pedi desculpa pelo atraso.

– Deixa lá isso – disse ele a rir. – Os horários aqui no escritório são flexíveis, e os do restaurante… idem, idem.

Masahiko levou-me a um restaurante italiano ali perto, localizado na cave de um edifício pequeno. Saltava à vista que o meu amigo era conhecido no estaminé, pois, mal o empregado deu por ele, apressou-se a conduzir-nos a um reservado nas traseiras, onde não chegavam vozes nem música ambiente. Na parede havia um quadro – bastante aceitável, diga-se de passagem – representando uma península verde com um farol branco recortado no céu azul. Vulgar, dirão, mas suficientemente bem pintado para despertar no observador a vontade de visitar aquele local.

Masahiko pediu um copo de vinho branco, e eu uma água Perrier.

– Convém não esquecer que tenho uma viagem de carro pela frente depois do almoço – expliquei. – É uma estirada que não lembra ao diabo.

– Tens razão – disse Masahiko. – Mas não deixa de ser muito melhor do que Hayama ou Zushi. Em tempos, morei em Hayama, e era um tormento ir e vir todos os dias para Tóquio nos meses de verão. As estradas estavam cheias de gente que regressava das localidades junto ao mar. A viagem correspondia a quase meio dia de trabalho. Comparado com isso, conduzir até Odawara não é nada.

Consultámos as ementas e decidimo-nos pelo menu preço fixo: presunto a abrir, seguido de uma salada de espargos e massa com lagosta-japonesa.

– Decidiste finalmente dedicar-te a sério à pintura! – disse Masahiko.

– Agora que vivo sozinho, já não preciso de aceitar uma data de encomendas para pagar as contas. Daí que tenha sentido necessidade de pintar só para mim.

Masahiko assentiu.

– Tudo tem um lado bom – disse ele. – Escondido por detrás das nuvens mais negras e sombrias há sempre um raio de sol.

– Talvez, mas só a ideia de ter de trepar até às nuvens… fico sem fôlego.

– Estava a falar num sentido figurado – referiu Masahiko.

– Sendo, indiscutivelmente, o lugar ideal para me dedicar à minha arte, é possível que viver no cimo da montanha esteja a afetar o meu raciocínio.

– Sem dúvida. Desde que haja sossego, podes concentrar-te na tarefa que tens em mãos, sem distrações. Uma pessoa normal talvez se sentisse um nadinha reclusa, mas tu és gajo para te desenrascares.

A porta abriu-se e trouxeram as entradas. Ficámos os dois calados enquanto o empregado colocava os pratos à nossa frente.

– O estúdio do mestre tem qualquer coisa que me dá vontade de começar logo a pintar. Momentos há em que sinto que é o centro da casa.

– Uma espécie de coração, queres tu dizer.

– Ou então a consciência.

Body and mind – divagou Masahiko em inglês. – Para ser franco, tenho uma certa aversão àquele estúdio. Encontra-se impregnado pelo cheiro dele. Sinto-o no ar. Quando eu era mais novo, o meu pai isolava-se durante todo o santo dia, a pintar, sem falar com ninguém. Aquele espaço funcionava como uma espécie de santuário, interdito a um puto da minha idade. Por isso é que prefiro nem pôr lá os pés, mesmo nos tempos que correm. E tu farias melhor se tivesses cuidado.

– Cuidado?... Porquê?

– Para não seres possuído pelo espírito do meu pai. Olha que a força mental dele é poderosíssima.

– Espírito?

– Talvez seja melhor falarmos em «energia psíquica». Ou «fluxo da energia vital». A dele, garanto-te, é intensa ao ponto de nos dominar por completo. Se alguém como ele passar muito tempo num determinado sítio, esse local arrisca-se a ficar dominado pela sua aura. Funciona como se fossem partículas de cheiro.

– Achas que me arrisco a ficar possuído?

– «Possuído» talvez não seja a expressão mais apropriada. «Absorver a sua influência», que tal? No fundo, é como se ele tivesse impregnado aquele espaço com uma energia insólita.

– Achas mesmo? Afinal, sou apenas a pessoa que toma conta da casa, nem sequer cheguei a encontrar-me com ele. É possível que escape a essa influência.

– Acredito. – Masahiko bebeu um gole de vinho branco. – Ser filho dele talvez tenha aumentado a minha sensibilidade. E se a «presença» do mestre te inspirar aos mais altos voos, quem sou eu para julgar?

– Como tem passado o teu pai?

– Bom, não podemos asseverar que padeça de um mal específico. Tem mais de noventa anos. Não é propriamente a saúde em pessoa, claro, e dá sinais de algum aturdimento mental, mas lá consegue andar sozinho com a ajuda da bengala, come com apetite e tem os olhos e os dentes em excelente estado. Os dentes dele estão melhor do que os meus, nem uma cárie para amostra!

– E no que respeita à memória? Lembra-se das coisas?

– Qual quê! Já não me reconhece. Perdeu o conceito de família. É provável que nem saiba distinguir a sua pessoa dos outros. No fundo, talvez seja mais fácil quando tudo isso desaparece e deixamos de pensar no assunto. Depende da sensibilidade de cada um.

Levei o copo estreito à boca, dei um gole na minha Perrier e anuí. Com que então, Tomohiko Amada, desmemoriado, deixara de reconhecer o rosto do filho! O mais provável era os acontecimentos dos dias de estudante em Viena terem caído igualmente no esquecimento.

– Ainda assim, aquilo a que chamamos o «fluxo de energia» mantém-se forte – referiu Masahiko, parecendo ele próprio espantado. – Curioso... não se lembra de quase nada, ainda que continue a ser um homem obstinado. Basta olhar para ele. É caso para dizer que a força de vontade fez do meu pai quem é. De quando em quando, sinto-me culpado por não ter herdado a sua maneira de ser, mas não há volta a dar. Cada um é como cada qual. Não é por partilharmos o sangue que os dons nos são transmitidos.

Olhei-o nos olhos. Masahiko disposto a abrir o coração era coisa rara e nunca vista.

– Deve ser complicado ter um pai tão famoso – continuei eu. – Nem consigo imaginar. O meu pai era apenas um vulgar homem de negócios.

– Não deixa de ser vantajoso ter um pai famoso, reconheço, mas há alturas em que é uma merda. Se contabilizarmos, acho que as desvantagens ganham aos pontos. Tens sorte de não saberes o que a casa gasta. Podes dar-te ao luxo de seres tu próprio.

– Tu é que pareces ser dono e senhor do teu destino.

– Num certo sentido, sim – retorquiu Masahiko, fazendo rodar o copo de vinho na mão. – Mas de resto, não.

O meu amigo possuía uma vincada sensibilidade artística. Após os estudos, aceitara trabalhar para uma agência de marketing de média dimensão. Nesta fase do campeonato, tendo o salário subido consideravelmente, aos olhos do mundo ele transformara-se num solteirão que gozava de uma boa vida. Mas não tinha maneira de confirmar se isso correspondia à verdade.

– Tinha esperança de saber meia dúzia de coisas sobre o teu pai – disse eu, abrindo o jogo.

– Coisas? Que coisas? Já te disse que sei pouco acerca dele.

– Consta que tinha um irmão mais novo chamado Tsuguhiko.

– Sim, o meu tio Tsuguhiko. Morreu há um ror de tempo. Antes de Pearl Harbor.

– Contaram-me que se suicidou.

Uma sombra passou pelo rosto de Masahiko.

– Isso era uma espécie de segredo de família, mas aconteceu há imenso tempo. De qualquer maneira, parece que em parte já anda nas bocas do mundo, por isso acho que posso alongar-me sobre o assunto. Cortou os pulsos com uma navalha da barba. Tinha apenas vinte anos.

– O que o levou a isso?

– Porque é que perguntas?

– Ando a ver se saco mais informações sobre o teu pai e, por mero acaso, ao folhear uns papéis, descobri a história do teu tio.

– Queres saber mais acerca do meu pai?

– Acerca da obra dele, acima de tudo, mas, ao investigar a sua carreira, fiquei cada vez mais interessado pela vida pessoal. Gostaria de saber que tipo de homem era.

Sentado do lado oposto da mesa, Masahiko estudou atentamente o meu rosto.

– Muito bem – disse ele. – Vejo que estás interessado na vida do meu pai! Isso deve ter algum significado. O facto de morares na mesma casa pode ter contribuído para se criar um elo entre vocês os dois.

Dito aquilo, bebeu um gole de vinho branco antes de voltar a puxar o fio à meada.

– O meu tio, Tsuguhiko Amada, andava a estudar no Conservatório de Tóquio. Um pianista carregado de talento, segundo rezam as crónicas. Adorava Chopin e Debussy, e toda a gente lhe preconizava um futuro brilhante. Desculpa se pareço arrogante, mas o talento corre-nos no sangue. Em diversos graus, claro. A meio do curso, foi recrutado. Deveria ter recebido um documento que lhe garantiria o adiamento, mas houve um berbicacho qualquer com a inscrição dele. Se os papéis tivessem sido corretamente preenchidos, isso permitir-lhe-ia adiar a entrada no Exército até acabar a licenciatura, se é que não se livraria de vez do serviço militar. O meu avô era um conhecido proprietário rural e um homem politicamente influente na região. Resumindo: houve um mal-entendido de natureza burocrática e o tio Tsuguhiko foi apanhado no torvelinho. A partir do momento em que as rodas da engrenagem foram postas em movimento, ninguém pôde fazer nada. Todo e qualquer protesto se revelou inútil. O Tsuguhiko foi integrado no Exército como soldado de infantaria e enviado para a China, direitinho à baía de Hangzhou. Na altura, o irmão mais velho, Tomohiko, isto é, o meu pai, estudava pintura com um famoso mestre, em Viena.

Eu ouvia-o mudo e quedo.

– Toda a gente sabia que o meu tio não possuía arcaboiço físico nem era talhado para a dura vida militar e para as carnificinas que ocorriam nos campos de batalha. Para tornar o cenário mais dramático, os jovens soldados recrutados no Sul de Kyūshū, que formavam a Sexta Divisão, constituíam um pelotão implacável e com queda para a crueldade. Quanto ao meu pai, caiu-lhe a alma aos pés ao saber que o irmão fora enviado para a frente de batalha. Tinha uma personalidade egoísta e altamente competitiva, própria do segundo filho, ao passo que o irmão era tímido e recatado, o menino querido da família, por assim dizer. Enquanto pianista, tinha de proteger os dedos. Já em criança o meu pai se sentia na obrigação de tomar conta do irmão, três anos mais novo, e protegê-lo do mundo exterior tornou-se para ele uma espécie de segunda natureza. Por outras palavras: funcionava como seu guardião. Desterrado em Viena, porém, estava de pés e mãos atados. As escassas notícias provinham das cartas que o irmão lhe enviava da frente.

«Apesar de essas cartas terem sido severamente censuradas, como seria de esperar, os dois irmãos eram unha com carne, o que permitia ao mais velho perceber nas entrelinhas os sentimentos do benjamim da família. Sob uma perspetiva diferente, o sentido legítimo das linhas trocadas entre eles encontrava-se habilmente camuflado, de modo que só o meu pai era capaz de o decifrar. O regimento do meu tio lutara nos campos de batalha de Xangai a Nanquim e estivera debaixo de fogo nas cidades e povoações ao longo do caminho, semeando um rasto de morte e pilhagem. Esses sangrentos acontecimentos deixaram no meu tio profundas feridas emocionais.

«Uma das cartas escritas pelo seu punho descrevia um maravilhoso órgão de tubos com que se tinham deparado numa igreja cristã, na cidade ocupada de Nanquim. O instrumento sobrevivera incólume aos combates. Mas, por qualquer razão insondável, a longa descrição do órgão havia sido alvo do crivo dos censores. Porque seria a descrição de um órgão numa igreja cristã um segredo militar?... Tornava-se difícil, se não impossível, determinar quais os critérios utilizados pelo censor de serviço, até porque o dito-cujo tinha por hábito riscar a tinta preta as passagens mais inócuas e inofensivas, deixando, em contrapartida, à vista desarmada, aquelas que punham as tropas em risco. Resultado: o meu pai ficou sem saber se o irmão chegara a tocar órgão na tal igrejinha.

«A comissão de serviço do meu tio Tsuguhiko terminou em junho de mil novecentos e trinta e oito – continuou Masahiko no seu relato. – Embora fizesse inicialmente tenções de regressar de imediato ao Conservatório, voltou para Kyūshū e suicidou-se no sótão da casa de família. Com a ajuda de uma pedra de amolar, afiou ao extremo uma navalha de barba e cortou os pulsos. Tratando-se de um pianista, deve ter-lhe custado horrores fazer isso às mãos. Se tivesse sobrevivido, poderia nunca mais tocar piano... Foram encontrá-lo numa poça de sangue. Mantiveram a notícia do seu suicídio no mais absoluto segredo. Aos olhos do mundo, a causa oficial da morte foi uma paragem cardíaca, ou coisa que o valha.

«Na realidade, toda a gente acreditava que o Tsuguhiko se suicidara, considerando que a guerra tinha contribuído para lhe dar cabo do sistema nervoso e o arrasar psicologicamente. Senão, atenta no seguinte: um jovem delicado e virtuoso, na casa dos vinte, cujo mundo se resumia até então a tocar piano, atirado sem apelo nem agravo para o mar de sangue da campanha de Nanquim, rodeado de pilhas de cadáveres. Nos tempos que correm fala-se muito acerca da perturbação do stresse pós-traumático, mas, como é óbvio, essa expressão... e até mesmo o conceito na sua génese... não existia na época. Numa sociedade profundamente militarista como aquela, pessoas da estirpe do meu tio eram depreciadas como tendo falta de coragem, de patriotismo, ou de força de carácter. Daí que a família procurasse enterrar o assunto, em sinal de vergonha.

– Deixou algum bilhete? – perguntei.

– Sim, encontraram um documento na gaveta da secretária. Um testemunho na primeira pessoa, longo e mais próximo de um caderno de memórias, para ser rigoroso. Nele, o meu tio Tsuguhiko descrevia pormenorizadamente as suas recordações de guerra. Apenas quatro pessoas tiveram acesso a esse relato: os pais dele, ou seja, os meus avós, o irmão mais velho, e o meu pai. Ao lê-las, regressado de Viena, queimou aquelas páginas na presença dos outros três.

Esperei pelo resto da história.

– O meu pai nunca entrou em confidências – continuou Masahiko. – Era o segredo mais obscuro da família. Metaforicamente falando, tinha sido fechado a sete chaves, carregado com pedras e atirado ao fundo do mar. Mas, um belo dia, bêbedo que nem um cacho, descaiu-se e revelou o conteúdo da missiva. Já eu andava no ensino básico quando me contaram que um tio meu cometera suicídio. Até hoje, continuo sem saber se o álcool contribuiu para lhe puxar pela língua, ou se ele achou que estava na altura de eu ficar a conhecer a história.

Os pratos de salada foram levantados da mesa e serviram-nos o spaghetti com lagosta-japonesa.

Masahiko pegou no garfo e observou-o. Dir-se-ia que estava a inspecionar um utensílio destinado a uma função específica.

– Olha lá, meu – disse ele –, e se mudássemos de assunto enquanto comemos?

– Por mim, perfeito. Vamos falar de outra coisa.

– O quê, por exemplo?

– De um assunto que não tenha relação com o documento deixado pelo teu tio.

Dito e feito. Falámos de golfe enquanto comíamos o spaghetti. Eu nunca tinha jogado golfe, naturalmente, tão-pouco conhecia alguém que jogasse. Bem vistas as coisas, nem sequer sabia as regras do jogo. Masahiko, esse, aprendera a dar umas tacadas com os clientes, por razões profissionais... e não só. Também com o objetivo de recuperar a forma física, após vários anos de inatividade. Comprara um dispendioso conjunto de tacos e costumava passar os fins de semana nos greens.

– Talvez não saibas, mas o golfe é um desporto estranhíssimo, para não dizer que é o mais absurdo do mundo. Cá para mim, nem merece ser considerado como tal. O mais curioso é que uma pessoa habitua-se a essa estranheza e depois não quer outra coisa.

Masahiko continuou a discorrer sobre a singularidade do golfe, debitando vários episódios de enfiada. Por natureza um espantoso contador de histórias, teve o condão de animar o nosso repasto. Há muito tempo que não nos divertíamos tanto.

Quando o empregado levantou os pratos da mesa e perguntou se queríamos café (Masahiko optou por mais um copo de vinho branco), o meu amigo retomou a conversa.

– Portanto, voltando à carta de despedida do meu tio – disse ele, subitamente sério. – Segundo o meu pai, o tio Tsuguhiko dava conta, num depoimento assaz vívido e pormenorizado, de ter sido obrigado a decapitar um prisioneiro chinês. Claro que um soldado raso como ele não usava espada, nem ele em toda a vida pegara numa sequer. Antes de mais, era pianista, certo? Como tal, capaz de ler na perfeição partituras complexas, mas não fazia ideia de como cortar a cabeça a um ser humano. Contudo, o comandante entregou-lhe uma espada japonesa e ordenou-lhe que cumprisse a tarefa. O prisioneiro, que já não era novo, além de não usar uniforme e estar desarmado, alegava ser apenas um civil. Acontece, porém, que o Exército do imperador arrebanhava todos os nativos que encontrava pelo caminho e limpava-lhes o sebo. Bastava ter as mãos calejadas para um nativo ser considerado camponês. No caso de as ter macias, partiam do princípio de que se tratava de um soldado que se livrara da farda a fim de passar por civil, e executavam-no sumariamente, sem perder tempo. Tanto podiam matá-los a golpes de baioneta como decapitá-los. Se houvesse uma metralhadora por perto, os prisioneiros eram alinhados e passados pelas balas, mas, regra geral, o Exército mostrava relutância em «gastar» munições neste tipo de incumbências. Posto de outro modo, os projéteis tendiam a escassear, e preferiam recorrer a baionetas e espadas. Os cadáveres eram depois empilhados e lançados ao rio Yangtzé, servindo de pasto aos numerosos peixes-gato. Verdade ou ficção? O que sei é que, a acreditar nas histórias que circulam por aí, à base dessa dieta, os peixinhos ficaram do tamanho de póneis.

«O meu tio pegou na espada de um jovem tenente, acabado de sair da academia militar, e preparou-se para decapitar o prisioneiro. Contrariado, naturalmente. Todavia, recusar-se a cumprir a ordem era impensável, pois tal ousadia não seria punida apenas com uma simples reprimenda. Com efeito, as ordens de um oficial eram como se fossem dadas pelo próprio Imperador. O meu tio agarrou na espada com as mãos a tremer. Estava longe de ser um homem robusto, e, para piorar a situação, tratava-se de uma espada ordinária e fabricada em série. Ora, não é pera doce separar o pescoço humano do resto do corpo. A tentativa falhou. O sangue espichou em profusão, o prisioneiro gritou e estrebuchou. Enfim, um cenário dantesco.

Masahiko abanou a cabeça. Dei um gole no café.

– A seguir, o meu tio vomitou. Quando já não tinha nada no estômago, despejou suco gástrico, e depois expeliu ar. Os camaradas de armas desataram a fazer troça. O oficial disse que ele mais não era do que um «triste arremedo de soldado» e deu-lhe um valente pontapé com as botas da tropa. Ninguém teve pena dele. Pelo contrário. Foi-lhe ordenado que decapitasse mais dois prisioneiros. Não passava de um mero exercício, disseram, para o ajudar a habituar-se. Uma espécie de ritual de passagem, se quiseres. Participar em semelhante carnificina ajudava a transformar qualquer homem num «guerreiro de verdade». Ora, o meu tio não estava fadado para a arte da guerra. Não viera a este mundo para ser soldado. Tinha queda, isso sim, para tocar maravilhosamente piano. Chopin e Debussy. Não nascera para decapitar outros seres humanos.

– Mas alguém nasce para degolar os seus semelhantes? – interpelei-o.

Masahiko abanou de novo a cabeça.

– Não te posso responder a isso. Só sei que existe um punhado de seres que consegue ganhar-lhe o hábito. As pessoas acostumam-se a todo o género de coisas, especialmente quando levadas ao limite. Não imaginas como isso se torna fácil.

– Ou quando lhes são apresentadas justificações para os seus atos.

– Tens razão – retorquiu Masahiko. – E é quase sempre o caso. Não ponho as mãos no fogo por mim, digo-o com sinceridade. Apesar de ter consciência de estar a receber uma ordem errada e até mesmo desumana, confesso que não sei até que ponto teria a coragem necessária para enfrentar os meus camaradas e dizer «não» se me visse mergulhado até ao pescoço num sistema tão absurdo e desumano como o militar.

Pus-me na pele do tio dele. Atuaria de modo diferente se estivesse na mesma circunstância? Veio-me à memória a imagem da mulher estranha com quem passara a noite numa cidade portuária da província de Miyagi. A jovem que me entregara o cinto do roupão de banho e me pedira que a estrangulasse durante o sexo. Tenho ainda gravada na memória a sensação provocada pelo tecido do cinto nas minhas mãos. Provavelmente, nunca a esquecerei.

– O tio Tsuguhiko nunca iria recusar-se a obedecer às ordens do oficial – afirmou Masahiko. – Faltava-lhe coragem. O que não o impediu, mais tarde, de afiar uma navalha e tirar a própria vida. Nesse sentido, não creio que ele fosse um homem fraco. Suicidar-se foi a única maneira que o meu tio encontrou para recuperar a sua humanidade.

– A notícia da morte do Tsuguhiko deve ter apanhado o teu pai de surpresa, em Viena, e constituído um choque enorme para ele.

– Lógico que sim – concordou Masahiko.

– Comenta-se à boca pequena que o teu pai se viu envolvido num incidente político, em Viena, e que foi deportado para o Japão. Esse episódio esteve de alguma forma relacionado com o suicídio do irmão dele?

Cruzando os braços, Masahiko franziu a testa.

– É difícil saber ao certo. Bem vês, o meu pai nunca se descoseu sobre o assunto.

– Ouvi uns zunzuns de que o teu pai se apaixonou por uma rapariga que pertencia ao movimento da resistência. A acreditar nos rumores, ela teria estado envolvida numa tentativa falhada de assassínio.

– Sim, estou a par da história. Tanto quanto sei, a jovem era uma estudante universitária de nacionalidade austríaca, e os dois tencionavam casar-se. Mas quando a conspiração veio à tona, ela foi presa e enviada para o campo de concentração de Mauthausen, onde possivelmente terá morrido. O meu pai foi capturado pela Gestapo e repatriado sem apelo nem agravo na qualidade de «estrangeiro indesejável», em início de mil novecentos e trinta e nove. Esta história não chegou até ao meu conhecimento através dele, claro; foi-me contada por um elemento da família. Uma fonte credível, para que saibas.

– Achas que alguém impediu o teu pai de contar a verdade sobre o que aconteceu em Viena?

– Sim. Tenho a certeza de que as autoridades dos dois lados, Japão e Alemanha, fizeram os possíveis e os impossíveis por abafar a sua deportação. O meu pai sabia que não podia abrir a boca, que era esse o preço a pagar se queria salvar o pescoço. Além do mais, não creio que ele sentisse vontade de falar sobre o sucedido. Caso contrário, não se teria remetido ao silêncio depois de a guerra acabar e de a ameaça se ter dissipado.

Masahiko fez uma pausa antes de prosseguir.

– É muito possível que o suicídio do tio Tsuguhiko tenha desempenhado um importante papel no facto de o irmão se ter envolvido na resistência antinazi, em Viena. A Conferência de Munique dissipou a ameaça de guerra, à data, mas também teve como consequência fortalecer o eixo Berlim-Tóquio, ao mesmo tempo que o mundo caminhava a passos largos numa direção ainda mais perigosa. O meu palpite é que o meu pai estava apostado em travar aquele movimento. Era um homem que prezava a liberdade, sem cedências. Fascismo e militarismo iam contra tudo aquilo em que ele acreditava. A meu ver, a morte do irmão mais novo só pode ter reforçado as suas convicções.

– Sabe-se mais pormenores?

– O meu pai não falava sobre o passado. Nunca deu entrevistas, e ainda menos deixou alguma coisa escrita para a posteridade. Pelo contrário, dir-se-ia que andava às arrecuas, esforçando-se por apagar o seu rasto com uma vassoura.

– Já como pintor foi a mesma coisa – disse eu. – Desde o regresso de Viena que o teu pai se refugiou num silêncio insondável, assim tendo permanecido até a guerra acabar.

– Sim, foram oito anos de silêncio, desde mil novecentos e trinta e nove até mil novecentos e quarenta e sete. Durante esse tempo, manteve-se o mais possível afastado daquilo a que se convencionou chamar «círculos artísticos». Detestava essa gentalha, assim como a sua «arte nacionalista», que mais não fazia do que glorificar o esforço de guerra. Para bem dos seus pecados, nascera em berço de ouro. Logo, não precisava de se preocupar em sobreviver. E, graças aos deuses, nunca foi chamado a integrar as fileiras do Exército. Resumindo e concluindo, assim que o caos do pós-guerra cessou, Tomohiko Amada renasceu das cinzas, tendo-se convertido num genuíno pintor nihonga. Abandonou o modo de pintar que o caracterizava e adotou um estilo completamente novo.

– E assim nasceu uma lenda.

– Exato – afirmou Masahiko. – Uma lenda. – Fez um gesto com a mão, parecendo enxotar um inseto. Como se a lenda fosse uma traça que andasse por ali a esvoaçar, impedindo-o de respirar como deve ser.

– Ao ouvir o teu relato – disse eu –, dou por mim a pensar que, independentemente das circunstâncias, os tempos de estudante que o teu pai viveu em Viena lançaram uma sombra sobre a vida dele.

Masahiko concordou com a cabeça.

– Sim, também me parece. Aqueles acontecimentos mudaram a sua vida de forma drástica. A derrota do complô deve ter desencadeado uma série de consequências terríveis. Coisas demasiado tenebrosas para serem sequer mencionadas.

– Seja como for, não conhecemos pormenores.

– Pois não. Já em pequeno não sabia de nada, e, agora, continua a ser uma grande incógnita. Palpita-me que o indivíduo em questão também não sabe.

Talvez, pensei. As pessoas tendem a esquecer-se do que têm obrigação de guardar na memória, e lembram-se do que deviam deixar cair no esquecimento. Sobretudo quando se aproxima a hora da morte.

Masahiko emborcou o resto do segundo copo de vinho branco e consultou o relógio de pulso, franzindo o sobrolho.

– Tenho de voltar para o escritório – disse ele.

Assim do pé para a mão, lembrei-me.

– Não tinhas qualquer coisa para me contar? – perguntei.

Ele bateu ao de leve com os nós dos dedos na mesa, como que sublinhando a minha pergunta.

– Tens razão, pá. Queria dizer-te uma coisa, mas passámos o tempo entretidos com a história do meu pai. Terá de ficar para segundas núpcias. Não é urgente, descansa.

Antes de nos levantarmos da mesa, olhei-o nos olhos.

– Porque é que te estás a abrir desta forma comigo? – Voltei à vaca-fria: – Estás a revelar-me os esqueletos no armário da tua família.

Masahiko esticou as mãos sobre a mesa e ponderou a resposta. A seguir, coçou a orelha.

– Bom, vamos lá ver. Para começar, começo a ficar cansado de carregar os chamados «esqueletos no armário» às costas. Talvez tenha chegado a hora de os partilhar com alguém. Uma pessoa que nada tem a ganhar com este estado de coisas e que saiba ficar de bico calado. E, convenhamos, tu és o ouvinte ideal. Além disso, tenho de confessar que me sinto um bocado culpado em relação à tua pessoa e foi a maneira que encontrei de me redimir.

– Culpado? – exclamei. – Por que carga de água?

Masahiko semicerrou os olhos.

– Fazia tenções de te contar – disse ele –, mas hoje já não vai dar. Tenho uma reunião importante, não posso faltar. Vamos combinar qualquer coisa nos próximos dias. Na altura, logo pomos a escrita em dia.

Foi ele quem pagou a conta.

– Não te preocupes – afirmou –, posso sempre abater a despesa nos impostos.

Aceitei agradecido.

Em seguida, meti-me no Corolla e pus-me a caminho de Odawara. Quando estacionei a velha carrinha coberta de pó diante de casa, já o Sol praticamente desaparecera por detrás das montanhas a oeste. Chegou-me aos ouvidos a vozearia de um bando enorme de corvos voando por sobre o vale, a caminho dos seus ninhos.