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NUNCA NA VIDA PODERIA SER UM GOLFINHO
No domingo já eu esquematizara a imagem de Marie Akikawa que pretendia pintar na tela branca. Quero dizer, continuava a desconhecer a forma em concreto, mas sabia por onde começar. Surgidos do nada, os passos iniciais – o pincel e as cores, a primeira linha desenhada na tela – haviam conquistado terreno na minha mente, adquirindo, aos poucos, uma existência própria. Confesso que adoro o processo criativo.
Estava uma manhã fria. Uma daquelas manhãs que anunciam a chegada do inverno. Fiz café, tomei um pequeno-almoço simples e encaminhei-me para o estúdio. Ali, separei o material de pintura. Uma vez diante da tela, abri o caderno de esboços na página com o pormenorizado desenho a lápis feito dias antes: o interior do buraco, em pleno bosque. Já quase não me lembrava dele.
Quanto mais estudava o desenho, mais ele me atraía para as trevas. A câmara de pedra na floresta, que ninguém conhecia, a abertura secreta. A terra em redor do buraco, o tapete de folhas caídas. Os raios de sol infiltrando-se pelos interstícios das árvores. Deixei que a imaginação preenchesse os espaços em branco e comecei a visualizar uma mancha de cor. Conseguia respirar o ar daquele local, sorvia o odor da erva, ouvia o canto dos pássaros.
O poço, que eu desenhara com grande precisão, parecia atrair-me para qualquer coisa – ou numa determinada direção. O poço exigia ser pintado por mim. Poucas vezes me sentira tentado a pintar paisagens. Em boa verdade, durante dez anos dedicara-me exclusivamente aos retratos. Mas talvez uma paisagem não fosse, de todo, má ideia. O Poço na Floresta. Aquele esboço a lápis podia representar o impulso que me faltava.
Tirei o caderno de esboços do cavalete e fechei-o. Diante de mim tinha apenas a tela em branco. A tela que não tardaria a ser preenchida com o desenho de Marie.
O relógio rondava as dez quando o Toyota Prius azul subiu silenciosamente a encosta. As portas abriram-se, e Marie e Shoko Akikawa saíram do carro. Shoko vestia um casaco comprido cinzento-escuro com padrão espinhado, uma saia de lã cinzento-clara e meias pretas estampadas. À volta do pescoço usava um lenço Missoni em tons alegres. Um complemento elegante para um dia de outono. Quanto a Marie, trazia o habitual casaco da escola, um corta-vento, calças de ganga rasgadas e ténis azuis. Desta vez, dispensara o boné. O tempo estava fresco, e uma difusa camada de nuvens cobria o céu.
Após os cumprimentos da praxe, Shoko Akikawa enroscou-se no sofá e, como era seu apanágio, mergulhou na leitura do calhamaço. Marie e eu deixámo-la ali e encaminhámo-nos para o estúdio. Sentei-me no velho banco de madeira, e Marie na mesma cadeira de espaldar direito. Estávamos a dois metros um do outro. Marie tirou o casaco, dobrou-o e pousou-o ao lado da cadeira. A seguir, despiu o corta-vento. Trazia uma T-shirt azul de manga curta e, por baixo desta, uma camisola de manga comprida cinzenta. O peito continuava liso como uma tábua. Passou os dedos pelo cabelo preto e escorrido.
– Não tens frio? – perguntei. A um canto do ateliê existia um antigo aquecedor a óleo, mas estava desligado.
Marie abanou a cabeça. Como se dissesse: «Não, não tenho frio nenhum.»
– Começo hoje a pintar, sem falta – declarei. – Não tens de fazer nada. Basta ficares aí sentadinha. Deixa o resto comigo.
– É impossível ficar sem fazer nada – disse ela, olhos nos olhos.
De mãos nos joelhos, sustentei-lhe o olhar.
– O que queres dizer com isso?
– Que estou viva, respiro e invento várias teorias.
– Claro que estás viva e que respiras e que pela tua mente passam os mais diversos pensamentos. Quis apenas dizer que não precisas de fazer nada de especial. Basta seres tu própria.
Marie, porém, continuava a olhar para mim. Pelos vistos, não engolira as minhas explicações.
– Sim, mas gostaria de fazer qualquer coisa – afirmou ela.
– Por exemplo?
– Ajudá-lo a pintar.
– Agradeço, mas isso quer dizer o quê, na prática? Ajudar-me como?
– Mentalmente, óbvio.
– Estou a perceber – retorqui, apesar de não fazer ideia do que pretendia a jovem dizer com «ajudar mentalmente».
– Gostava de ver as coisas como o senhor as vê – acrescentou ela. – De olhar para mim através dos seus olhos de pintor. Acho que isso me ajudaria a compreender-me melhor. Bem como o ajudaria a si a compreender-me melhor, também.
– Gostava muito – disse eu.
– A sério?
– Cem por cento a sério.
– Mas olhe que pode tornar-se bastante assustador.
– O quê, compreendermo-nos melhor?
Marie fez que sim com a cabeça.
– Para nos compreendermos melhor temos de nos dar ao trabalho de desenterrar coisas noutros sítios.
– Quer dizer que isso só é possível se acrescentarmos uma terceira perspetiva?
– Uma terceira perspetiva?
– Trocado por miúdos – expliquei –, para entender a relação entre A e B há que investigar C, ou seja, uma terceira perspetiva. É aquilo a que chamamos «triangulação».
Marie ponderou a explanação.
– Ã-hã – retorquiu, encolhendo os ombros.
– Estás a dizer que te arriscas a introduzir no processo alguns pensamentos assustadores, dependendo da situação?
Marie acenou afirmativamente.
– Alguma vez experimentaste na pele um pensamento assustador?
Marie deixou a pergunta sem resposta.
– Se te retratar como deve ser – declarei –, talvez consigas ver-te como eu te vejo. Isto se tudo correr pelo melhor, obviamente.
– Por isso é que precisamos da pintura.
– Acertaste em cheio. Por isso é que precisamos da pintura. Ou de literatura ou de música ou de cenas do género.
Se tudo correr pelo melhor, murmurei de mim para mim.
– Bom, vamos lá começar – disse eu, dirigindo-me a Marie. De olhos postos nela, comecei a misturar o castanho para traçar os contornos do seu rosto. Em seguida, selecionei o pincel.
O trabalho progrediu lentamente e de modo constante. O retrato iria mostrá-la da cintura para cima. Era uma bonita rapariga, mas a beleza pouco importava no que dizia respeito ao retrato. Interessava-me, acima de tudo, descobrir o que se ocultava por detrás das aparências. Que é como quem diz: o que sustentava a sua personalidade, permitindo-lhe subsistir. Desse por onde desse, tinha de encontrar essa «qualquer coisa» e transferi-la para a tela. A beleza não era para ali chamada. Podia até dar-se o caso de ela ser feia. De qualquer maneira, tinha de a conhecer suficientemente bem para descobrir que coisa era aquela. Não através de palavras ou da lógica, mas enquanto forma singular, feita de luz e sombra.
Alturas havia em que me concentrava na tarefa de traçar linhas e cores na tela, mediante movimentos rápidos; outras vezes demorando-me mais. Marie continuava sentada na cadeira de costas direitas, sem se mexer, mantendo a expressão inalterada. Congregara a sua força de vontade (pressenti-o) e permaneceria nessa posição enquanto fosse necessário. «É impossível ficar sem fazer nada», dissera ela. Com efeito, estava a fazer qualquer coisa. A ajudar-me, na melhor das hipóteses. Existia um elo entre a minha pessoa e aquela jovem de treze anos, sem dúvida.
Vieram-me à memória as mãos da minha irmã. Ela agarrara-me ao penetrarmos na escuridão gelada da gruta do monte Fuji. Tinha a mão pequena e morna, pese embora os dedos fossem espantosamente fortes. Estávamos ligados por uma energia vital. Cada um dava alguma coisa ao outro, recebendo concomitantemente algo em compensação. Tratava-se de uma troca limitada a um tempo e a um espaço concretos, condenada a esmorecer e a chegar ao fim, mas a lembrança continuava viva na memória. As recordações têm o condão de ressuscitar o passado. Assim como a arte pode – quando as coisas correm de feição – conferir um rosto a essas reminiscências e, porventura, preservá-las. Tal como Van Gogh, que ao inscrever indelevelmente a figura de um carteiro de província na nossa memória coletiva, lhe conferiu vida eterna.
Durante as duas horas seguintes, concentrámo-nos nas respetivas tarefas, sem trocar palavra.
Diluindo a tinta com óleo de linhaça, utilizei uma única cor para afinar os traços de Marie. Sentada na cadeira, muito quieta, o modelo continuava igual a si próprio. Ao meio-dia, como sempre, ouviu-se ao longe o carrilhão, sinal de que o nosso tempo chegara ao fim. Pousei a paleta e o pincel, endireitei as costas e estiquei-me todo. Respirei fundo, a fim de interromper o fluxo da concentração, enquanto Marie se permitiu relaxar.
Na tela diante de mim aparecia o contorno monocromático da cabeça e dos ombros de Marie. Estava ali a base que me permitiria desenhar-lhe o retrato. Apesar de ser um simples esboço, albergava no seu âmago tudo o que ela era. Tinha a certeza de que me bastava descobri-lo para chegar ao fundo do dilema. A partir daí, só precisava de preencher o espaço vazio.
Marie não fez perguntas acerca do quadro nem pediu para vê-lo. Fiquei calado. Sentia-me esgotado. Saímos juntos do estúdio e dirigimo-nos para a sala de estar sem fazer barulho. Shoko Akikawa continuava mergulhada na leitura. Assim que entrámos, assinalou a página do livro com um marcador, tirou os óculos de armação preta e olhou para nós. Deu para ver que estava um bocadinho inquieta. O cansaço devia transparecer nos nossos rostos.
– Correu bem? – perguntou num tom que traduzia uma vaga preocupação.
– Só vamos a meio do processo, mas diria que sim.
– Fico contente por saber – disse ela. – Importa-se que prepare um chazinho? Já pus a água ao lume... e até sei onde guarda o chá preto.
Observei-a, atónito. Tinha um sorriso requintado nos lábios.
– Desculpe se fui um mau anfitrião, mas, sim, o chá é uma excelente sugestão – declarei. A verdade é que daria tudo por uma chávena de chá quente, mas estava completamente exausto e o simples facto de pensar em ir à cozinha fazia-me desistir. Há muito que uma sessão de pintura não me deixava derreado. Ao mesmo tempo, era uma sensação boa.
Shoko Akikawa regressou à sala passados dez minutos, transportando no tabuleiro três chávenas e um bule. Sentámo-nos e bebemos o chá em silêncio. Marie não abrira a boca desde que saíramos do estúdio. Volta e meia, levantava a mão e afastava o cabelo da testa. Tornara a vestir o casaco, como se precisasse de se proteger de alguma coisa.
Ficámos os três ali sentados a beber o nosso chá (sem sorver a bebida, atenção), deixando fluir a tarde de domingo. Durante muito tempo, ninguém disse uma palavra. Estamos a falar de um mutismo compreensível e natural. A dada altura, ouvi um som familiar, parecido com o marulhar numa praia do litoral distante. O rumor relutante provocado pelo embater suave das ondas depressa deu lugar ao inconfundível som produzido por um motor afinado. Concretamente, um motor com oito cilindros, de 4.2 litros, movido a combustível fóssil com um elevado teor de octanas. Levantei-me da cadeira, aproximei-me da janela e fiquei a ver pelos interstícios das cortinas o carro prateado aproximar-se.
Menshiki vestia um casaco de malha verde-lima por cima da camisa creme. As calças eram cinzentas, de fazenda. Estavam impecáveis, sem uma ruga, como se tivessem acabado de chegar da lavandaria. Embora dessem essa ideia, as peças de roupa não pareciam novas, mas sim confortavelmente usadas, o que contribuía para reforçar o ar limpo e aprumado. Bem penteado, o cabelo, branco e sedoso, cintilava. De inverno como de verão, fizesse chuva ou sol, palpitava-me que os seus cabelos mantinham aquele brilho radioso, mudando apenas de tom sob o efeito da luz.
Menshiki saiu do carro, fechou a porta e levantou os olhos para o céu nublado. Deu a impressão de refletir acerca das condições atmosféricas (pelo menos foi o que pensei), recuperou o sangue-frio e caminhou lentamente para a entrada. A seguir, tocou à campainha. Devagar e de forma ponderada, como um poeta em busca da palavra lapidar numa frase capital. Lirismo à parte, a campainha não passava disso mesmo.
Abri a porta e conduzi-o à sala de estar. Com um sorriso nos lábios, Menshiki saudou as duas mulheres. Shoko Akikawa levantou-se para o cumprimentar. Marie deixou-se ficar sentada no sofá, a brincar com o cabelo, mal se dignando a olhar para ele. Convidei toda a gente a sentar-se. Perguntei a Menshiki se lhe apetecia beber chá. Não valia a pena incomodar-me, respondeu, abanando a cabeça várias vezes e fazendo que não com o indicador.
– Como vai o trabalho?
Respondi que estava tudo nos conformes.
– Fazer as vezes de modelo deve ser cansativo, não é verdade? – perguntou Menshiki dirigindo-se a Marie. Que me lembrasse, era a primeira vez que a abordava diretamente. O tom de voz denotava ainda uma certa tensão, mas já não ficava pálido nem ruborizado na presença da jovem. Com efeito, estava quase igual a ele próprio. Era evidente que aprendera a controlar as emoções. Aposto que tinha treinado no duro.
Marie não respondeu, limitando-se a murmurar algo praticamente inaudível. Tinha as mãos enclavinhadas nos joelhos.
– Quero que saiba que é para nós uma grande alegria podermos vir até cá aos domingos de manhã – declarou Shoko, a fim de quebrar o silêncio.
– Servir de modelo não é tarefa fácil – intervim, contribuindo à minha humilde maneira para secundar os esforços da senhora. – A Marie tem-se portado lindamente.
– Também já fui modelo. Mas reconheço que estranhei. Houve momentos em que senti que me roubavam a alma. – Ao dizer aquilo, Menshiki riu-se.
– Não é nada disso – declarou Marie, quase num sussurro.
Virámo-nos os três para ela.
Shoko fez uma cara de quem tinha engolido inadvertidamente uma substância amarga. No caso de Menshiki, a expressão deixava transparecer pura curiosidade. Para não variar, remeti-me ao papel de observador neutral.
– O que quer dizer com isso? – perguntou Menshiki.
– Ninguém me roubou nada – respondeu num tom monocórdico. – Sinto que estou simultaneamente a dar e a receber.
– Tens toda a razão – disse Menshiki, no seu habitual tom calmo. Parecia impressionado. – Fui demasiado simplista. É preciso haver uma troca, claro. A criação artística nunca pode ser unilateral.
Marie ficou calada, de olhos postos no bule de chá em cima da mesa. Lembrava uma solitária garça-real à beira-mar, a observar a superfície da água durante horas a fio. O bule era de loiça branca, normalíssimo. Devia ser antigo (já vinha dos tempos de Tomohiko Amada). Não fosse uma pequena falha na pega, ninguém olharia duas vezes para ele. Marie, contudo, precisava de concentrar o olhar num objeto qualquer.
Semelhante a um cartaz branco, sem nada escrito, o silêncio tomou conta da sala.
Uma criação artística, pensei com os meus botões. As palavras possuíam uma carga que reduzia a quietude circundante a um único ponto. Como acontece quando o ar preenche um espaço vazio. Não; melhor dizendo, como o vácuo sugando o ar todo.
– Se sempre querem visitar a minha casa – sugeriu Menshiki timidamente, virando-se para Shoko –, o melhor é irmos no meu carro. Depois volto a trazê-las. O espaço lá atrás pode ser apertado, mas o caminho tem tantas curvas e contracurvas que assim é mais fácil.
– Claro que sim – acedeu Shoko sem hesitar. – Vamos no seu carro.
De olhos no bule, Marie parecia perdida em pensamentos. Claro que eu não fazia ideia do que lhe ia na mente (e na alma), assim como desconhecia o que iriam almoçar os três. Menshiki, porém, era um homem precavido, não se lhe podia apontar o dedo. Devia ter tudo planeado ao pormenor – não valia a pena matar a cabeça com aquilo.
Shoko Akikawa sentou-se ao lado do condutor, enquanto Marie se instalava no banco traseiro. Adultos à frente, crianças atrás. A ordem natural das coisas, sem necessidade de consulta prévia. Permaneci à porta de casa, vendo o Jaguar percorrer lentamente a estrada. Assim que o carro desapareceu no horizonte, voltei para dentro, levei as chávenas e o bule para a cozinha e lavei a loiça.
Quando acabei, pus O Cavaleiro da Rosa a tocar no gira-discos e esparramei-me no sofá a ouvir ópera. Habituara-me a ouvir O Cavaleiro da Rosa nas alturas em que não tinha mais nada para fazer. Fora Menshiki quem inculcara em mim aquela rotina. Ele tinha razão: a música era um vício. Um vício bom. Uma ininterrupta torrente de emoções. Timbres sonoros proporcionados por instrumentos musicais em profusão. Richard Strauss vangloriava-se de conseguir descrever este mundo e o outro com a sua música, até mesmo uma vulgar vassoura. Talvez o compositor não tenha dito «vassoura», pode ter sido outro utensílio de limpeza qualquer. Fosse como fosse, a sua música estava repleta de elementos pictóricos. Pela minha parte, esforçava-me por imprimir à pintura um rumo completamente diferente.
Quando abri os olhos, passado um momento, tinha diante de mim o Comendador, sentado numa cadeira de couro e trajando as vestes tradicionais do período Asuka, incluindo a espada à cintura. Debruçado para a frente, a figurinha de meio metro arvorava uma expressão séria.
– Há quanto tempo! – saudei-o. A minha voz, tensa e forçada, parecia ter saído das profundezas do inferno. – Como passa Vossa Excelência?
– Já tinha dito ao caro amigo que o tempo é um conceito alheio ao mundo das Ideias – respondeu o Comendador, alto e bom som. – Como vedes, portanto, esse sentimento é-me desconhecido.
– Trata-se apenas de uma força de expressão. Uma pura convenção, no fundo. Não vale a pena amofinar-se.
– Convenção? Ora aí está outra realidade que me é desconhecida.
Acreditava piamente nele. Onde não existe «tempo» não existem «convenções». Levantando-me, dirigi-me à aparelhagem, levantei a agulha e devolvi o disco à procedência.
– Como deveis imaginar – voltou o Comendador à carga, lendo os meus pensamentos –, convenções e coisas que tais não fazem sentido num reino onde o tempo corre em ambas as direções.
– As Ideias não requerem uma fonte de energia? – quis eu saber. Há muito que a pergunta me causava engulhos.
– Trata-se de um ponto espinhoso – retorquiu o Comendador, deixando transparecer a complexidade no rosto. – Todos os seres humanos precisam de energia que lhes permita virem ao mundo e sobreviver. É um dos princípios que regem o Universo.
– O que me está a dizer é que as Ideias precisam de uma fonte de energia. Correto? Isto partindo do princípio que enunciou.
– Afirmativo! É um facto indiscutível. As leis universais dizem respeito a todos, sem exceção. Como tal, as Ideias são ditosas na medida em que não possuem uma forma digna desse nome. Enquanto Ideias, materializamo-nos quando as pessoas tomam consciência da nossa existência, e só então ganhamos corpo. Claro que essa forma mais não é do que uma etapa transitória.
– Portanto, uma Ideia não existe a não ser que os outros tenham consciência dela.
O Comendador apontou para cima com o indicador direito e fechou um olho.
– E que conclusão tirais daí, ilustre amigo?
Vi-me e desejei-me com aquela analogia. O Comendador esperou pacientemente.
– Quer-me parecer – acabei por dizer – que as Ideias existem porque se alimentam da perceção dos outros.
– Afirmativo! – exclamou o Comendador, exultante, confirmando insistentemente. – Tendes uma boa cabeça sobre os ombros! As Ideias não existem sem o reconhecimento dos demais. Em bom rigor, essa perceção é a nossa única fonte de energia.
– Nesse caso, se eu pensar: «o Comendador não existe», o senhor deixa de existir. Certo?
– Negativo! Tendes razão, em teoria – afirmou o Comendador. – Mas apenas em teoria. Na realidade, não funciona, pois é impossível uma pessoa deixar de pensar num determinado assunto. A saber, concretamente: o simples facto de alguém «deixar de pensar» em qualquer coisa já é, em si, um pensamento, e a partir do momento em que alimentamos esse pensamento estamos a pensar em algo e esse pensamento tem vida própria. Logo, deixarmos de pensar em algo significaria pensarmos em deixar de pensar, ponto final.
– Por outras palavras – disse eu –, é impossível escapar a uma Ideia, a não ser que se perca a memória ou o interesse na dita Ideia.
– Só os golfinhos têm essa faculdade – referiu o Comendador.
– Os golfinhos?
– Os golfinhos têm a capacidade de pôr a dormir a metade esquerda ou direita do cérebro. Não sabíeis disso?
– Não, não sabia.
– Afirmativo! Por essa razão é que os golfinhos não se interessam pelas Ideias, inferindo-se daí que eles deixaram de evoluir. Nós, as Ideias, bem que nos esforçámos, mas falhámos em toda a linha. Custa-me dizer isto, de mais a mais tratando-se de uma espécie tão promissora. Em proporção ao tamanho, e até ao aparecimento do homem, os golfinhos possuíam o maior cérebro da sua espécie, os mamíferos.
– Mas para os humanos isso constituiu uma relação frutuosa?
– Sim, é sabido que, ao contrário do que acontece com os golfinhos, o cérebro dos humanos percorre um único caminho. Por esse motivo, a partir do momento em que lhes entra uma Ideia na cachimónia, dificilmente pode ser ignorada. Isso faz com que retiremos daí energia... energia essa que, por seu turno, permite sustentar a nossa existência.
– Como os parasitas – comentei.
– Rematado disparate! – indignou-se o Comendador, agitando o dedo como fazem os professores a ralhar com os alunos. – Quando falo em «retirar daí energia», refiro-me a uma quantidade mínima. Uma partícula tão ínfima que nenhum ser humano dará por isso. Demasiado pequena para poder afetar a saúde ou atrapalhar a vossa vidinha, convenhamos.
– Mas o senhor disse-me que as Ideias desconhecem o que é a moral. As Ideias são um conceito totalmente neutro, nem bom nem mau, e dependem do uso que os comuns mortais lhes dão. Por exemplo, as Ideias podem ter um efeito positivo em certos casos e um efeito negativo noutros, se não me engano.
– A equação que diz que a «energia é igual à massa vezes a velocidade da luz ao quadrado» é neutra em si mesma, contudo, a Ideia que lhe subjaz levou à criação da bomba atómica. Seguiram-se as bombas largadas em Hiroxima e Nagasáqui. É aí que pretendeis chegar, meu amigo?
Abanei a cabeça.
– O meu coração derrama sangue por vós... em sentido figurado, é bom de ver. Nós, as Ideias, somos incorpóreas, logo, não temos coração. Mas tudo neste mundo é caveat emptor, meu amigo!
– Como assim?
– Caveat emptor. É uma expressão latina que significa, à letra, «toma cuidado, comprador». Numa tradução livre, avisa que o risco é à responsabilidade do comprador, aconselhando-o a acautelar-se. Acaso pode o dono de um estabelecimento comercial determinar que tipo de homem está em condições de usar a roupa que ele tem na montra?
– Esse argumento soa-me a desculpa esfarrapada.
– A equação «energia é igual à massa vezes a velocidade da luz ao quadrado» esteve na origem da bomba atómica, mas, na sua génese, a fórmula também trouxe coisas boas à humanidade.
– O quê, por exemplo?
O Comendador ponderou o assunto. Parecia ter alguma dificuldade em desencantar um bom exemplo, limitando-se a esfregar vigorosamente a face com a palma das mãos, sem dizer de sua justiça. Ou, então, talvez não visse vantagem em prolongar o bate-boca.
– A propósito – disse eu, lembrando-me de repente –, faz alguma ideia do que terá acontecido ao sino que estava no estúdio? Desapareceu.
– Sino? – repetiu o Comendador, erguendo os olhos. – Que sino?
– O velho sino que o senhor fez tocar no fundo do poço. Guardei-o numa prateleira do estúdio, mas, aqui há dias, olhei para lá e dei pela sua ausência.
O Comendador abanou a cabeça, negando com ênfase.
– Ah, esse sino! Negativo! Não lhe toquei com um dedo, ultimamente.
– E quem é que, no seu entender, poderia ter-se apropriado dele?
– Como quereis que eu saiba?
– Ao que tudo indica, quem o sonegou fê-lo tocar algures em parte incerta.
– Bom, o problema não é meu. Já não tenho uso para lhe dar. De resto, o sino nunca foi única e exclusivamente pertença minha. É propriedade do lugar e, nessa qualidade, destina-se a ser partilhado por todos. Por isso, se o sino levou sumiço, tem de haver uma razão. Mas não vos apoquenteis, que há de aparecer mais cedo ou mais tarde. Deveis aguardar.
– O sino pertence ao lugar? – espantei-me. – Refere-se ao poço?
– A propósito – continuou ele, sem se dignar responder. – Se vós, meu amigo, estais expectante do regresso da Shoko e da Marie, aviso já que tendes muito que esperar. Pelo menos até ao cair da noite.
– E acha que o senhor Menshiki tem alguma na manga? – inquiri. Foi a minha última pergunta.
– Afirmativo! O Menshiki está sempre a tecer maquinações... Nunca perde a oportunidade, aquele salafrário. Corre-lhe no sangue, é uma espécie de doença congénita. No caso dele, os dois lados do cérebro estão ativos em permanência. Nunca na vida poderia ser um golfinho.
Posto aquilo, a figura do Comendador começou a desvanecer-se, até que, como o nevoeiro numa manhã de inverno sem vento, ficou reduzida a uma pequena mancha e desapareceu de vez. À minha frente havia apenas uma velha poltrona vazia. A sua ausência era tão absoluta, tão profunda, que me custava a crer que, minutos antes, a criatura se sentara ali. Dar-se-ia o caso de eu ter estado a olhar para o vazio e a falar sozinho?
Tal como o Comendador previra, o Jaguar prateado de Menshiki demorou uma eternidade a aparecer. As duas lindas meninas pareciam não ter pressa de se vir embora. Fui até ao terraço e observei a casa branca do outro lado do vale, mas não vi vivalma. Para matar o tempo, voltei para dentro e comecei a fazer o jantar. Preparei um caldo, cozi legumes ao vapor e guardei no congelador o que não ia comer. Mantive-me ocupado. Mas, quando terminei, as duas mulheres ainda não haviam regressado. Voltei para a sala de estar, coloquei um disco a tocar, estendi-me no sofá e ali me deixei estar a ler e a ouvir O Cavaleiro da Rosa.
Shoko Akikawa ficara encantada com Menshiki, não havia dúvida. Olhava para ele de um modo diferente de como olhava para mim. Os olhos brilhavam-lhe. Bastava dizer que Menshiki era um homem de meia-idade bastante atraente. Um bonito solteirão, educado e bem-apessoado, que vivia numa enorme mansão em plena montanha e que possuía quatro automóveis britânicos na garagem. Que a maioria das representantes do sexo feminino à face da terra o achasse sobremaneira interessante não era mistério nenhum (da mesma forma que as mulheres me achavam tudo menos o objeto do seu desejo). No entanto, também era mais do que evidente que Marie desconfiava ligeiramente de Menshiki. Ora, Marie era uma jovem muito perspicaz. Possivelmente, a sua intuição dizia-lhe que o sujeito tinha alguma escondida. Assim sendo, Marie preferia manter uma distância de segurança. Pelo menos era a minha opinião.
Como se desenrolaria o enredo daquela trama? Apesar de estar naturalmente curioso, começava a ficar cada vez mais apreensivo. Era caso para dizer que a curiosidade e a apreensão pediam meças. Como o movimento das marés quando enfrenta a força das águas na foz do rio.
Passava das seis e meia quando o Jaguar de Menshiki deu, enfim, um ar da sua graça. Tal como o Comendador prognosticara, já era quase de noite.