Vista de lado, a testa do Obbe tem um aspeto azulado. Parece bolor num biscoito estragado. A cada dois minutos apalpa levemente o alto da cabeça e alisa o cabelo à volta com três dedos. Segundo a mãe, todos temos um crânio delicado. Penso que é porque, desde que o pai deixou de pousar a mão nas nossas cabeças, sentimos a falta de pressão no couro cabeludo. Ele guarda as mãos rigidamente dentro dos bolsos do fato-macaco quando o cocuruto é o ponto principal de onde evoluímos, onde todas as partes soltas do crânio se unem. Talvez por isso o Obbe, volta e meia, tenha de tocar na própria cabeça para se assegurar da sua existência.
O pai e a mãe não reparam nos nossos tiques. Não se apercebem de que, quanto menos regras há, mais novas inventamos. Assim, o Obbe achou que nos devíamos reunir depois do serviço na igreja e fomos para o seu quarto. Estou sentada na cama com a Hanna, que se encostou preguiçosamente a mim. Faço-lhe coceguinhas no pescoço. Ela tem o mesmo cheiro do desassossego do pai: o fumo do cigarro dele penetrou-lhe no casaco de malha. A madeira da cabeceira da cama do Obbe tem pequenas fissuras porque todos as noites ele bate com a cabeça contra ela ou vira-se como louco de um lado para o outro na almofada, produzindo um ruído monótono. Através da parede, tento adivinhar a canção. Às vezes é um cântico, mas geralmente são grunhidos. Felizmente omite os salmos, esses deixam-me triste. Quando o ouço a bater, vou até ao quarto dele para lhe dizer que não faça barulho, porque a mãe começa a cismar como vai ser quando estivermos numa tenda num parque de campismo, se bem que talvez a gente nunca mais lá vá. Resulta por uns instantes, mas passados alguns minutos ele recomeça. Chego a ter medo de que rache a cabeça, em vez de rachar a madeira, e que depois seja preciso lixar o meu irmão e voltar a envernizá-lo. A Hanna também bate com a cabeça, por isso dorme cada vez mais vezes na minha cama. Fico a segurar-lhe a cabeça até ela adormecer.
Ouvimos a mãe lá em baixo, a aspirar a sala da frente. Detesto o barulho. Tem a mania de aspirar três vezes ao dia, mesmo quando não fazemos lixo ou apanhamos as migalhas do chão e as levamos nas palmas das mãos para a porta da frente, atirando-as para o chão de gravilha.
«Será que ainda se beijam?», pergunta a Hanna.
«Quem sabe se até dão beijos com a língua », diz o Obbe.
Eu e a Hanna rimo-nos. As línguas fazem-me sempre lembrar as peras avermelhadas e pegajosas que a mãe coze com um pouco de canela, sumo de groselha, cravinho e açúcar, tudo misturado.
«Ou se se deitam nus em cima um do outro.»
O Obbe tira o hamster da gaiola ao lado da cama. Desde há pouco que se chama Tiesje. É um hamster Roborovski. A roda ficou amarela do chichi seco e por todo o lado há cascas de sementes de girassol. Primeiro é preciso mexer um pouco com o dedo na serradura, antes de o tirar da toca, pois pode assustar-se e morder. Também eu gostaria de ser abordada com o mesmo cuidado, mas todas as manhãs sou bruscamente arrancada da cova do Matthies pelo pai, que puxa o edredão e declara: «Hora de tratar das vacas, estão a mugir de fome.» É mais complicado entrar numa cova do que sair dela.
O hamster percorre o braço do meu irmão. Tem as bochechas inchadas, cheias de comida. Associo-as logo às da mãe, mas não, as dela estão ocas. É impossível que guarde ali comida para se deliciar mais tarde. No entanto, ontem depois do jantar apanhei-a a lamber os restos nos pacotes de iogurte, que rasgara para aceder melhor ao conteúdo, misturadas com um pouco de doce de amora. Ouvia repetidamente o som do dedo a desaparecer-lhe na boca, um fio de baba. Uma vez por semana, damos ao hamster um besouro ou uma bicha-cadela que encontramos na palha junto das vacas. Mas não pode viver só disso. A mãe tem de voltar a comer.
«Tiesje? É um diminutivo de Matthies», constato.
O Obbe dá-me um grande empurrão no peito, caio da cama e aterro em cima do cotovelo. Tento não chorar, apesar da dor e do ligeiro choque elétrico a passar pelo corpo. Não é justo não chorar pelo Matthies e depois chorar por mim. Mesmo assim, tenho de me esforçar para engolir as lágrimas. Talvez esteja a ficar tão frágil como o serviço de porcelana da mãe e qualquer dia têm de me embrulhar em jornais para ir para a escola. Sê forte, digo para mim. Tens de ser forte.
De repente, o Obbe volta a ser simpático, fala com voz meiga. Num gesto breve, toca no cocuruto. Com alegria forçada, diz que não era sua intenção magoar-me, não sei qual era então a intenção, mas não é boa ideia averiguar, pois também não se deve pôr o serviço na máquina da louça, porque estraga as alegres pinturas que o decoram. Assustada, a Hanna olha para a porta. Por vezes, o pai fica tão furioso quando nos ouve brigar que vem atrás de nós pela quinta afora. Apesar de isso se parecer mais com saltar ao pé-coxinho, porque com a perna aleijada ele não consegue correr. Mas, quando nos consegue apanhar, levamos um pontapé no traseiro ou um calduço. O melhor é uma pessoa esconder-se atrás da mesa da cozinha. Depois de umas voltas ele desiste, porque lhe entrou mais oxigénio no cérebro, como acontece às borboletas que o Obbe guarda escondidas na gaveta da secretária, numa antiga embalagem de requeijão com buracos para entrar ar. Quando não há ruído ouvem-se as asinhas a bater na tampa de plástico. Contou que fazem parte de um projeto importante da escola sobre a longevidade de certos tipos de borboletas. O pai também esconde a perna. Nunca usa calções, nem mesmo quando está um calor de morrer – imagino as pernas dele como um gelado duplo com dois pauzinhos, um dia soltam-se e depois deitamos fora a perna má ou deixamo-la derreter ao sol atrás do estábulo de inseminação.
«Se não chorares, mostro-te uma coisa incrível», diz o Obbe.
Inspiro fundo e depois expiro, puxo as mangas do casaco até taparem os nós dos dedos. Está a começar a desfiar-se junto à bainha. Espero que não encolha e eu fique destapada. Os casulos que temos lá atrás, no jardim, também não se devem tentar abrir com as unhas antes de ocorrer a metamorfose. Podem nascer borboletas defeituosas e depois de certeza que não podem participar no projeto do Obbe.
Aceno que sim, que não vou chorar. Ser forte começa por conseguir engolir as lágrimas.
O meu irmão deixa o Tiesje entrar-lhe pela gola do pijama. Quando o hamster se encontra na barriga, levanta o elástico dos boxers. Vejo a pila envolta em caracoizinhos escuros parecidos com o tabaco de enrolar do pai. A Hanna ri novamente.
«Que coisa estranha, a tua pilinha pôs-se em pé.»
O Obbe sorri orgulhoso. O hamster desce-lhe pelo corpo, encostado à pila. O que acontecerá se ele morder ou quiser escavar?
«Se eu puxar, sai um líquido branco.»
O que me parecia ser mesmo doloroso. Já me tinha esquecido do cotovelo e quero tocar-lhe na pila, afagá-la, como quando passo a mão no pelo do Tiesje. Apenas para saber qual é a sensação, de que material é feita e se é possível mexê-la. Talvez puxá-la suavemente; quando fazes isto ao rabo de uma vaca, ela limita-se a olhar para trás; se continuas, dá-te um coice.
O Obbe larga o elástico dos boxers às riscas azuis e brancas. Vemos como o alto se move, como uma onda no oceano.
«Mais um pouco e o Tiesje ainda morre asfixiado», comenta a Hanna aflita.
«A minha pila também não morre asfixiada», diz o Obbe.
«Lá isso é verdade.»
«Não fica a cheirar a chichi?»
O meu irmão diz que não com a cabeça. Tenho pena de não conseguir ver mais tempo a pila dele, sinto formiguinhas a mexerem-me na barriga, o que é quase impossível, pois desde o incidente com o urso de peluche que a mãe me dá uma colher grande de um xarope que sabe a alcaçuz. O rótulo na garrafa diz: Remédio para as lombrigas. Não lhe contei que deitada no urso pensava no Joãozinho e na Dieuwertje Blok, sobretudo na Dieuwertje. De certeza que ia falar com o pai, porque a mãe não gosta de histórias inventadas por nelas o sofrimento ser apagado e ela acha que deve fazer parte, não consegue dar um dia de folga à dor, sentir-se-ia culpada. Devemos carregar os nossos pecados, como carregamos dentro da mochila as frases copiadas de castigo no caderno.
O Obbe mexe a perna e o Tiesje escorrega para o edredão. Os olhinhos negros parecem cabeças de fósforo, tem um risco preto ao longo das costas e a orelhinha direita está dobrada. Por mais que se tente erguê-la, ela volta a enrolar. No momento em que a Hanna quer encostar-se a mim, o Obbe pega no copo de água turva da mesinha de cabeceira. Ao lado do copo há uma pilha de tazos10 cheios de areia. Na primária chamavam-lhe o Rei dos Tazos. Ganhava a todos, até aos batoteiros.
«Então eu não ia mostrar uma coisa?»
«Mas não mostraste já?» A minha boca ficou subitamente seca, engulo com dificuldade. Continuo a pensar no líquido branco de que o Obbe falou. Será como o creme usado no saco de pasteleiro para fazer ovos recheados nos aniversários? A mãe guarda-o na cave porque senão a casa toda fica a cheirar àquilo. Deve ser difícil para os judeus não comerem um pouco às escondidas, não tirarem com os dedinhos um pouco de recheio amarelado com pedacinhos verdes de salsa, como eu fazia sem que ninguém visse. Deixava ficar a clara, que sem recheio não serve para nada. Quando o Matthies era vivo, ela comentava: «Cá estão eles outra vez, os comedores de ovos voltaram a atacar», enquanto sorria e retirava o segundo saco de pasteleiro do frigorífico que, à cautela, tinha guardado. Agora já não se celebram aniversários e a mãe deixou de fazer ovos recheados.
«Não», responde, «só agora é que vou mostrar».
Deixa cair o Tiesje no copo de água, que tapa com a mão e começa lentamente a abaná-lo de um lado para o outro. Dá-me vontade de rir, tem um ar cómico. Tudo o que pode ser usado para resolver um problema de matemática acalma: calculei que aguentaria um minuto sem respirar. O hamster nada cada vez mais depressa de um lado para o outro no copo, os olhos ficam esbugalhados, as patinhas batem desesperadamente. Demora apenas uns segundos até ficar a boiar como a bolha de ar cinzenta num nível. Ninguém abre a boca. Só ouvimos o bater das asas das borboletas. A Hanna desata a soluçar. De imediato, ouvimos passos nas escadas. Assustado, o Obbe coloca o copo atrás do castelo de lego, onde o inimigo aceitou um cessar-fogo.
«Que se passa aqui?» O pai empurra a porta, irritado, e olha em volta. A minha face corou. A Hanna está encolhida sobre os cobertores cinzentos.
«A Cas empurrou a Hanna para fora da cama», explica o Obbe. Olha-me nos olhos. Não se nota nada nos olhos dele. Não possuem uma bolha de ar que os nivele, estão completamente secos. Mal o pai deixou de olhar, o Obbe abre a boca, empurra com o dedo como se quisesse vomitar. Saio depressa da cama.
«Tu, já para o quarto e põe-te a rezar», ordena o pai.
O sapato acerta-me no rabo, o cocó preso lá dentro talvez volte para os intestinos. Quando a mãe souber a verdade sobre o Tiesje ficará novamente deprimida e sem falar durante dias. Lanço um último olhar na direção da Hanna, do Obbe e do castelo de lego. O meu irmão está subitamente ocupado com a coleção de borboletas, de certeza que as apanhou à mão.
10 Pequenos discos de plástico colecionáveis populares entre as crianças nos finais dos anos 1990. [N. da R.]