12

Quando acordo, os planos parecem sempre maiores, tal como o líquido nos discos intervertebrais nos faz parecer uns centímetros maiores de manhã, mas desta vez os planos não perderam a sua dimensão: hoje partimos para a outra margem. Não sei se é por isso que me sinto estranha e tudo à volta parece mais escuro. Nas traseiras da vacaria, a primeira neve cai sobre mim e o Obbe, flocos grossos colam-se-nos às faces como se, de cima, Deus polvilhasse açúcar em pó sobre as nossas cabeças, tal como a mãe fez esta manhã com os primeiros sonhos. Ao dar-lhes uma dentada, a gordura escorre pelos cantos da boca. Este ano, a mãe adiantou-se, fritou-os ela própria, empilhando-os dentro de um balde de leite, sempre em três camadas: sonhos, papel absorvente, filhós de maçã. Levou dois baldes cheios para a cave, para os judeus, porque eles também merecem um ano novo. Ficou com as mãos torcidas de descascar tanta maçã para as filhós.

O cabelo do Obbe está branco da neve. Promete que, se eu fizer um sacrifício, não conta a ninguém que ainda faço chichi na cama, e assim o Dia do Juízo Final será adiado. Escolheu o galo de que o pai se vangloria e que o deixa «tão orgulhoso como uma vaca com sete tetas». É porque tem penas ornamentais verdes no pescoço, plumas vermelhas na cauda, lóbulos grandes e uma crista brilhante. Depois de tudo o que aconteceu com as vacas, o galo foi o único que se manteve impassível e desfila de peito inchado pelo pátio. Encara-nos calmamente com olhinhos sedutores. Sinto as rãs mexerem-se no bolso do casaco. Só espero que não apanhem frio. Era preferível tê-las metido numa luva.

«Quando ele cantar três vezes podes parar», diz o Obbe.

Entrega-me o martelo. Agarro-o pelo cabo pela segunda vez. Penso no pai e na mãe, no Dieuwertje, no meu irmão Matthies, no meu corpo cheio de sabão verde, em Deus e na Sua ausência, na pedra na barriga da mãe, na estrela que não há meio de encontrarmos, no meu casaco que tenho de despir, na sonda para o queijo dentro da vaca morta. O galo canta uma vez antes de o martelo lhe acertar e ficar morto no chão. Foi com este mesmo martelo que a mãe me obrigou a partir o meu mealheiro. Desta vez não sai dinheiro mas sangue. É a primeira vez que mato um animal com as minhas mãos, até agora só tinha sido cúmplice. Uma vez, ao esmagar com o pé uma aranha na casa geminada da avó que não geminava coisa nenhuma, ela disse: «A morte é um processo que se decompõe em ações e estas, por sua vez, em fases. A morte nunca chega inesperadamente, é sempre causada por alguma coisa. Desta vez foi por ti. Tu também podes matar.» A avó tinha razão. As minhas lágrimas fazem derreter os flocos de neve na cara. Os meus ombros tremem de forma irregular, tento pará-los mas não consigo. Indiferente, o Obbe remove o martelo do galo, passa-o por água na torneira ao lado da vacaria e diz: «Tu estás mesmo doente, fizeste o que te disse.» Depois vira as costas e vai para o campo, leva o galo pendurado pelas patas com a cabeça a baloiçar suavemente ao vento. Olho para as minhas mãos a tremer. Encolhi-me toda com o susto e, quando me levanto, parece que tenho pinos metálicos nas articulações que mantêm tudo unido mas que funcionam independentes uns dos outros. Ao meu lado, uma borboleta noturna levanta voo, tem manchas negras como tinta salpicada nas asas. Suspeito que tenha fugido da coleção do Obbe. Só pode ter sido, não há borboletas em dezembro, nesta altura do ano estão a hibernar. Apanho-a na concha das mãos e encosto-a ao ouvido. Como sucede com o cabelo e os brinquedos do Obbe, não se pode tocar em nada que seja dele, pois fica furioso ou começa a praguejar. Nem podemos tocar-lhe no cimo da cabeça, apesar de ele estar sempre a mexer-lhe. Ouço a borboleta a esvoaçar em pânico no interior das minhas mãos e fecho-as num impulso, como se fossem um papel de rascunho com palavras ímpias. Silêncio. Apenas a violência dentro de mim ruge. Cresce e cresce, tal como a tristeza. Só que a tristeza pede mais espaço, como disse a Belle, e a violência apodera-se simplesmente dele. Deixo cair a borboleta morta das minhas mãos para a neve, espalho com a bota uma nova camada de neve sobre ela: uma sepultura gelada. Furiosa, bato com o punho contra a parede da vacaria, esfolando os nós dos dedos. Cerro os maxilares e contemplo a vacaria. Não demorará a estar novamente ocupada – o pai e a mãe aguardam gado novo. O pai até deu uma demão de tinta ao silo da forragem, o que me deixou apreensiva porque agora dá mais nas vistas à mãe, é como um vaga-lume a aliciar o seu desejo de morrer. Mas aparentemente tudo vai voltar ao normal, como se todas as coisas, depois do Matthies e da febre aftosa, continuassem como se nada fosse, menos eu. Talvez o desejo de morrer seja contagioso ou salte, como os piolhos na turma da Hanna, para a cabeça seguinte: a minha. Deixo-me cair para trás na neve, estendo os braços ao meu lado e movo-os um pouco para cima e para baixo. Quem me dera levantar voo agora, transformar-me num objeto de porcelana que alguém deixa cair sem querer, estilhaçando-me em inúmeros cacos; e que alguém repare que estou partida e que, tal como os malditos anjinhos embrulhados em papel de alumínio, já não sirvo para nada. Da minha boca saem cada vez menos nuvens. Continuo a sentir o cabo do martelo na carne das minhas mãos, a ouvir o galo a cantar. «Não matarás, nem vingarás.» Vinguei-me, e isso só pode significar que a última praga virá. Subitamente, sinto duas mãos debaixo dos braços, sou erguida. Quando me volto, vejo o pai à minha frente, a sua boina preta está branca. Levanta a mão lentamente para a minha cara. Penso que me vai dar palmadas, como fazem os comerciantes de gado, para avaliar se a minha carne é saudável ou está doente, mas os seus dedos curvam-se e afagam-me o rosto tão fugazmente que mais tarde duvido se terá mesmo acontecido, se não terei imaginado uma nuvem de bafo formado pelo frio em forma de mão, talvez tenha sido o vento. A tremer, fixo com o olhar a mancha de sangue no pátio, o pai não repara nela, a neve cobre lentamente a morte.

«Vai para casa, eu já vou despir-te o casaco», diz o pai e vai até à parte lateral da vacaria, onde está o moedor de beterraba. Manobra com força a alavanca, a roda enferrujada chia ao girar, alguns pedaços de beterraba-sacarina voam em redor, mas a maioria acaba por cair no cesto metálico que está por baixo. É para os coelhos, que adoram. Quando me afasto deixo o meu rasto na neve. A esperança de alguém me encontrar cresce. Alguém que me ajude a encontrar-me, que me diga: frio, morno, quente, mais quente, a escaldar.

Quando o Obbe regressa do campo não se nota nada nele. De costas para o pai, põe-se à minha frente, agarra o fecho-ecler do meu casaco e puxa-o subitamente para cima com violência, prendendo-me a pele do queixo. Grito e recuo. Com cuidado, baixo o fecho-ecler e afago a pele dorida, que se esfolou com os pequenos ganchos metálicos do fecho.

«É esta a sensação de traição e isto é só o começo. Ai de ti se contares ao pai que o plano foi meu», cicia o Obbe e com a mão faz o gesto de cortar o pescoço, depois vira-se e acena para o pai. O pai deixa que ele o acompanhe à vacaria. É a primeira vez desde há muito que o pai volta a entrar no lugar onde as vacas foram abatidas. Não me pergunta se também quero ir com eles e deixa-me ao frio com pedacinhos de pele entalados no fecho-ecler e uma bochecha a arder do seu toque. Como Jesus, eu devia oferecer a outra face, para ver se foi a sério. Volto para a quinta e vejo a Hanna a fazer uma bola de neve.

«Tenho um gigante sentado no peito», digo quando chego junto dela. A Hanna para e levanta os olhos, tem o nariz vermelho do frio glacial. Traz calçadas as luvas azuis do Matthies que o veterinário trouxe do lago e que, como nacos de carne para o jantar, ficaram a descongelar num prato atrás da salamandra. O meu irmão tinha achado infantil que a mãe as tivesse prendido a um fio, com receio de que ele as perdesse, pois, como ela dizia, não há nada pior que dedos congelados, sem pensar no mal que fazia deixar um coração demasiado tempo ao frio.

«O que faz aí o gigante?», pergunta a Hanna.

«Fica simplesmente sentado a pesar.»

«Desde quando?»

«Há bastante tempo, só que desta vez não quer sair. Chegou quando o Obbe entrou na vacaria com o pai.»

«Ah», constata a Hanna, «estás com ciúmes».

«Mentira!»

«Estás, sim. O Senhor tem horror a lábios mentirosos.»

«Não estou a mentir.»

Incho o peito e volto a encolhê-lo como se também eu tivesse sido agredida com o martelo. Continuo a sentir o peso e a opressão iguais aos que senti depois de o Obbe se ter deitado sobre o meu corpo e que perduraram mesmo após eu ter tomado banho. Não sinto ciúmes por o Obbe acompanhar o pai, mesmo sendo tão culpado como eu da morte do seu galo favorito, isso não o fez cair de costas na neve, nem morrer de frio nas ciladas gélidas em que nos arrasta. Apetece-me contar à Hanna do galo, do sacrifício que tive de fazer para manter vivos o pai e a mãe, mas não digo nada. Não a quero preocupar sem necessidade. E talvez depois nunca mais se deitasse ao meu lado, encostada ao meu peito, onde há tanta coisa escondida, capaz de muito mais do que ela imagina. Esta é uma dessas tardes, penso, que colo com o stick de cola Pritt na página seguinte do meu diário, para mais tarde querer voltar a descolá-la cuidadosamente. Primeiro quero eliminá-la, depois quero verificar se aconteceu mesmo.

«Os gigantes encolhem se tu te fizeres grande», diz a Hanna e coloca uma bola de neve em cima de outra. A cabeça e o tronco. Faz-me lembrar o dia de Natal, quando eu, a Hanna e o Obbe fizemos um boneco de neve a que dei o nome de Harry.

«Ainda te lembras do Harry?», pergunto, para mudar de assunto. Os cantos da boca da minha irmã reviram-se para cima até às bochechas, que estão inchadas como duas pequenas bolas de mozarela num prato branco.

«Pusemos a cenoura no sítio errado. A mãe passou-se, toda a reserva de cenouras para o inverno foi para os coelhos.»

«Foste tu», digo a rir.

«Foi por causa das revistas da tabacaria Van Luik», corrige a Hanna.

«Na manhã seguinte o Harry tinha desaparecido e o pai surgiu na sala de trás a pingar de neve.»

«Passo a transmitir um comunicado grave: o Harry morreu», diz a Hanna com voz fúnebre.

«Nunca mais comemos ervilhas com cenouras, só ervilhas. Grande era o pavor de que pudéssemos ter pensamentos obscenos ao contemplar uma cenoura.»

A Hanna contorce-se de riso; antes de dar por isso, abro os braços. Ela sacode a neve dos joelhos, levanta-se e abraça-me. É estranho abraçarmo-nos em plena luz do dia, é como se os nossos braços de dia ficassem mais hirtos, e de noite parecessem untados com vaselina como os nossos rostos. Do bolso do casaco tira de repente um cigarro amolgado. Encontrou-o no pátio, de certeza que caiu de trás da orelha do Obbe, que o guarda ali porque todos os rapazes da vila guardam o cigarro atrás da orelha. A Hanna segura-o por um segundo entre os lábios, depois enfia-o no boneco de neve um pouco abaixo do lugar da cenoura.