A festa dos bichos e/ou
o dia em que os bichos voaram


Musical

PRIMEIRA PARTE

Todos os bichos estavam reunidos numa grande festa para eles. A festa era numa mansão lá na Lagoa, aqui no Rio de Janeiro, e estava sendo promovida pelo dono da casa que era nada mais nada menos que o tamanduá-bandeira.

Os convidados vinham chegando um a um e o primeiro a chegar foi o papagaio. Ele veio cantando:

 

Eu sou o papagaio

amigo da arara

eu sou aquele que no mês de maio

inventa e canta coisas para ficar odara

também dizem que eu só repito

coisas decoradas

mas isso é besteira, sou ave brasileira e fico aflito

quando dizem coisas tão erradas

a meu respeito pois afinal

sou papagaio brasileiro e não sou aquele papagaio da piada

do seu Manoel lá de Portugal

 

curupacopapapaco

gosto de vatapá caruru e sou bom de papo. (bis)

Em seguida chegou afoito o bicho-preguiça, que como é de seu costume natural veio bem devagarinho e foi logo se apresentando cantando também devagarinho:

 

Eu estou aqui e me chamo bicho-preguiça

mas a verdade é que sou tão devagar por pura sabedoria

e quando me movo de galho em galho

esta noite em festa me enfeitiça, me espanta. Ah, caramba!

Tenho as unhas compridas

para abraçar o tronco das árvores

me contenho para que minhas unhas não machuquem as crianças queridas

quando dou um abraço mortal fatal tropical e quebro até colunas de mármore!

 

O tamanduá-bandeira sorriu e mostrou o caminho para a grande varanda que ficava no meio de um jardim particular cheio de coqueiros e palmeiras brasileiras de verdade rodeando um lago azul iluminado por holofotes coloridos e onde se viam pulando mais de duas dúzias de atrevidas, selvagens, perigosas, amazônicas, sangrentas, agressivas: piranhas! Elas pulando contentes mostrando seus dentes arreganhados cantaram em coro uníssono e muito bem ensaiado saudando esta festa linda que ia começar, saudando o dono da casa, o simpaticíssimo e brasileiríssimo anfitrião dono da casa, o tamanduá-bandeira, e finalmente todos os convidados que iam chegando, como se fosse uma espécie de balé com coreografia inventada por elas mesmas, as piranhas do Amazonas:

 

Somos as piranhas

do grande rio mar

ou seja o rio Amazonas de lendas tão estranhas

e vamos cantar

uma canção em homenagem ao nosso anfitrião

e saudar todos os convidados da festa

animais de boa vontade e celebrar a paz da união

com a estrela da Paz de Jesus bem brilhante na testa!

 

Hoje prometemos não morder ninguém

nem tirar nenhum sangue

apenas prometemos prazer e muito além

cantar-sambar-namorar-sapatear-nadar-até mesmo chorar

de tanto tanto amar alguém, que poderá ser você ou você ou você

e sem nenhum bangue-bangue celebrar a paz do Brasil universal

sul a norte, leste a oeste, do Amazonas ao Rio Grande do Sul,

da Vila Maria até o Mangue!

(breque: sem bangue-bangue, sem sangue!)

 

Assim iam entrando os vários personagens dessa nossa superópera “Festa brasileira”... A próxima a entrar foi a jaguatirica, que é a nossa onça do mato, ela foi entrando bem dengosa cantando e se apresentando:

 

Eu sou aquela gata dengosa

sou a prima da onça-pintada

sou a jaguatirica da serra famosa

sou da América Latina uma onça muito aclamada

sou feroz

sou amorosa

como todos nós

terrível e maravilhosa!

 

Entrou em seguida o jabuti de mãos dadas com a tartaruga-do-mar.

Formavam um par estranho-lindo, iam chegando bem devagarinho (em velocidade igual à do bicho-preguiça) e vinham cantando:

 

Nós somos o par ideal

caminhamos bem devagar

eu sou o jabuti do mato ela a tartaruga-do-mar

sabemos que a sabedoria ensina

que não adianta correr

devagar se vai ao longe para além e aquém daquela bela colina

e o coração tem razão e só quem canta seus males espanta

e a vida é um eterno nascer e morrer e renascer!

 

De repente todos os animais viram e enxergaram uma asa-delta voando pelos céus. Foi uma gritaria sem fim, gritaria não de medo mas de puro entusiasmo. E vozes dos animais mais afoitos diziam gritando excitados: “Queremos voar!”, “Sim, sim! Por que apenas os seres humanos é que podem e sabem voar além das aves e pássaros e insetos com asinhas que Deus lhes deu?”.

O urubu, a arara, o papagaio, a ema e a avestruz limitaram-se a sorrir sem dizer nada. Continuaram a comer e a beber os quitutes como se toda aquela gritaria do desejo dos outros animais querendo voar não tivesse nada que ver com eles.

A outra metade tinha medo e repudiava a proposta porque achava que o saci-pererê era gente, isto é: ser humano adulto, e ser humano adulto era muito mau com os animais (pois sempre que podia os escravizava, matava e/ou engaiolava ou botava em jaulas) e também sempre mau com as crianças e plantas que os adultos seres humanos também engaiolavam e botavam em jaulas reais e/ou mentais.

Foi uma sessão de grande tumulto no meio daquela festa. Finalmente ganhou a tese dos que provaram que o saci-pererê não era ser humano, nem ser adulto que engaiolava as crianças e animais. Em seguida antes que alguns animais mudassem de opinião a mula sem cabeça telefonou para o saci-pererê que veio voando fumando seu cachimbinho e ao chegar ele logo foi cantodizendo:

 

Cheguei aqui num redemoinho

trazendo dois erês meus amiguinhos

ê ê ê ê ê e oi ieieieie

sou o saci-pererê.

 

Taí epahê epahê

Sou o que sou o saci-pererê!

Eu sei o que vocês querem

vocês querem é voar

então eu vou vos dar este talento

de voar que nem o vento

na mania da ventania

com o nome de ciclone

ou então de furacão

e na calmaria voar que nem a brisa chamada Maria!

 

E um dois três

e olorum agogôs vereis

oxum nagôs erês!

doum e dois a dois os reis que são erês

amigos antigos dos sacis-pererês!

 

O saci-pererê, junto com seus dois amiguinhos Cosme e Damião e ou então também chamados de Doum e Dois no candomblé, faz uma feitiçaria tipo despacho infantil e cuja letra irracional­-misteriosa religiosa é assim:

 

Trác trác trác trác trec tric

é no plá do plá do plác do plec do plic que se faz

a magia milenar

da harmonia no ar da sinfonia e voar voar revoar!

Um dois três

Olorum agogôs erês!

Doum e os sacis-pererês!

Vamos voar de vez!

Um a um, dois a dois, três a três

doum olorum, agogôs erês

um dois três.

 

Os animais começaram uma longa discussão sobre por que alguns voavam e por que outros não voavam. A discussão já ia longe quando se ouviu a campainha tocar muito fortemente quatro vezes. Quando o tamanduá-bandeira foi atender este ou estes últimos convidados retardatários ouve um grande e uníssono grito de terror. Todos os animais começaram a correr, a uivar, a chorar, a tremer de medo e a esconder-se atrás dos móveis e lugares mais estranhos (esconderijos naturais) daquela linda mansão propriedade do sr. tamanduá-bandeira.

 

“Tenho medo! Tenho horror!”

 

Na realidade quem havia chegado era a mula sem cabeça! Ela havia chegado em companhia de duas amigas, a anta e a capivara. Estas duas como não eram animais de assombração começaram a falar e a acalmar as demais criaturas da festa que estavam literalmente apavoradas.

 

“Mas ela não tem cabeça!”

“É, e além disso ainda solta fogo e fumaça pelas ventas!”

“Mas não é nada disso...”

 

E as duas amigas a anta e a capivara continuavam pacientes em seu trabalho de convencer os outros animais de que apesar de a mula sem cabeça ser animal do outro mundo era a mais inofensiva criatura desta e de qualquer outra terra.

 

A mula sem cabeça então começou a cantar, a se apresentar:

 

Eu sou pra que ninguém se esqueça

aquela que pula e pulula mesmo sem ter cabeça

sou a mula sem cabeça!

Venho com minhas duas amigas uma que me encanta que é a anta

a outra que é axé e odara que é a capivara

apesar de eu não ter cabeça

e soltar fogo pelas ventas

sou amiga de todos e é bom que não se esqueça

gosto de dançar de brincar de cantar de pular mas se o jogo

ficar fogo sou das mais violentas

mas quando tratada com amizade

sou a maior amiga e cheia de amor, fé e solidariedade!

 

Depois desta canção todos se abraçaram e abraçaram a mula sem cabeça e as suas duas amigas, a capivara e a anta. E a partir deste instante voltaram a discutir o fato real de que só os seres humanos além dos animais a quem Deus deu a capacidade de voar é que voavam, e como voavam!

Foi nessa hora que a mula sem cabeça veio com uma ideia salvadora:

“Eu já sei! Eu já sei a solução!”, “Qual é? Qual é?”, perguntavam os animais afoitos! “Ora é muito simples... é só eu telefonar para o meu amigo o saci-pererê, e ele vem e faz todos voarem!”

Houve um óóóóó de espanto e todos os animais começaram a discutir. Na verdade esta festa maravilhosa parecia o próprio Congresso brasileiro em época de abertura e das eleições diretas porque todos discutiam e discutiam todos os pontos de vista. Mas a discussão que se seguiu à proposta da mula sem cabeça de convidar por telefone seu amigo saci-pererê para resolver o assunto e fazer todos voarem foi recebida com total entusiasmo por metade dos animais convidados e com total medo e repúdio pela outra metade. Por quê? Ora, o motivo era simples. A metade que queria voar e topava a ideia da mula sem cabeça de chamar o saci apenas queria voar a qualquer preço e pronto!

E como num passe de magia total, surgiu uma nuvem azul fosforescente, e uma voz dentro da nuvem brilhante fosforescente dizia:

 

Amiguinhos e amiguinhas

seres humanos e animais

ouçam que esta é a voz de Deus o ancestral e eterno

de todos os tempos e ventos

vamos, comecem a voar

porque é assim que eu vos quero agora

nesta hora da aurora, no ar do ar, a voar revoar!

 

A fumaça azul fosforescente brilhante sumiu com a rapidez com que surgiu e de súbito todos os animais começaram a voar. Todos sem exceção. Até o bicho-preguiça e o jabuti e a tartaruga voavam, se bem que num voo mais vagaroso que os demais. Assim na terra como no ar... Enfim! O saci-pererê ia na frente ao lado dos erês e ao lado da mula sem cabeça e suas duas amigas faladeiras que nem matracas, a anta e a capivara.

Os animais voavam excitadíssimos e comentavam: “Olha o sol nascendo. Olhem as luzes da Guanabara como se parecem com os diamantes da pulseira de ouro e joias de madame avestruz”.

De repente todos deram um óóóóó de espanto: é que acabavam de ver um disco voador.

“Vamos segui-lo?”, propôs o saci-pererê, e todos concordaram, e dava pra ver que o disco voador gostou da brincadeira, porque ao ver aquele bando de animais voando e fofocando enquanto voavam, deu uma parada no ar como se fosse um colibri ou um beija-flor, como se estivesse convidando todo mundo a segui-lo e a brincar numa cósmica-celestial brincadeira de pega-pega, esconde-esconde. E assim foi. A partir daquele momento encabeçados pela mula sem cabeça e pelo saci-pererê todos começaram uma perseguição espacial-celestial.

Dava para ver através da cabine transparente que parecia ser feita de supervidro colorido que quem guiava o disco voador era uma estranha e dengosa flor amarela ao lado de uma pedra falante!