7.
Quando o sr. Decoroso pula e bate palmas
a impostora
Falei alto demais. A trinca de homens ficou brava, e o enxerido do Olheirento quase me encontrou. Melhor eu faço ficando quieta. Deixa eu manter o disfarce e voltar para o meu couto. Reaparecerei em melhor hora.
Que dia mais bonito faz hoje! Pena eu ter de permanecer sempre tão escondida. Pena eu não poder aproveitar o sol. Mas mais vale minha pele branca e farsante do que ela brônzea e flagrada. Meus saltos não me permitem correr. Vou sair devagarzinho.
a quituteira
O sol nasce e se eleva cada dia mais forte. É o Destinatário quem está mesmo a se retirar, e o Seu manto não peneira mais todos os raios que nos queimam.
Linda essa moça que anda pisando macio e passa em frente ao meu carrinho de quitutes. Usa vestido longo e rodado e chapéu de aba larga. Tem bracelete e joia brilhante no pescoço. São de verdade? Ela atravessa a rua fora da faixa e segue pelo quarteirão de baixo. Depois, perco a moça de vista.
Quem sabe o sr. Decoroso não passa por aqui mais tarde?
os andarilhos
Lembra de quando andávamos sobre a terra?
Lembro bem.
Era um perigo.
Bastava a gente ficar parado um pouquinho...
... e a terra começava a comer a gente.
Pelos pés! E, se nos deitássemos no chão, pelas costas!
Terra faminta.
O asfalto não come.
O asfalto é enfastiado.
A gente pode ficar um dia inteiro em cima do asfalto, que ele não quer nada com a gente.
O asfalto é indiferente.
O asfalto é repleto.
Andemos.
a amada
Que sorte tenho eu. Esposo e Filhos extraordinários. Isso é amor ou não é? É amor, sim. Eles estão de saída. Trabalho e escola. Preparo-lhes o café. Estão atrasados. Não sei por que se atrasaram. Se preparasse um café ruim, eles tomariam assim mesmo. Para me agradar. Porque eles me amam. Me amam, sim. Pó na quantidade certa. Água na medida certa. O filtro de papel no tamanho certo. Nada deve faltar, nada deve sobrar.
Deixo o noticiário ligado. Para saber dos assaltos. São muitos. Dos engarrafamentos. São muitos. A previsão do tempo. O horóscopo. Uma receita prática para o almoço de domingo. O café está na mesa. Comprei pão quentinho, fervi o leite. Bolo, faca e colherzinha. Um marido; um filho; uma filha; outra filha. Que sorte tenho eu.
O primeiro já saiu do banho e deve estar se vestindo. Fez a barba. Sinto daqui o cheiro de loção. Vai colocar a gravata: deixa eu ir até o quarto para acertar o nó! E levar para o meu filho o uniforme passado. Meia desfiada? Não deixo usar. Tênis sujo? Não deixo usar. Depois, volto-me para as meninas. Elas têm cabelo comprido para escovar. Arco para uma; rabo de cavalo para a outra. Que sorte eu tenho. Mas eles estão atrasados. Quase nunca se atrasam. Por que se atrasaram hoje? Não podem se atrasar.
as vizinhas
Por que é que o Esposo e os Filhos da sra. Amada se atrasaram tanto hoje?
Não sei. Eles são tão pontuais.
O Esposo não vai poder assinar o ponto.
Os Filhos já perderam as primeiras aulas.
Ela demorou para comprar pão?
Vi a senhora bem cedo na padaria.
Decerto, ficaram muito na cama.
E beijaram e abraçaram muito a senhora ao acordar.
Deve ter sido isso.
Todo dia, o Esposo cobre a esposa de beijos.
Os Filhos também a cobrem de beijos.
E todos a abraçam juntos.
os passantes
Passar, passar, passar, passar, passar.
o prestável
Não soube o que fazer ontem, não sei o que fazer hoje.
Que alguém me delegue alguma tarefa; que alguém me faça alguma solicitação; que alguém me dê alguma ordem; que alguém me peça algum obséquio.
o decoroso
Nenhum sangue derramado foi mais implacável do que a minha palavra. Não é um cochicho safado da Impostora que vai estragar o dia. Um homem bobo foi medicado com a dependura. Se precisar, dependuro patife por patife nas antenas, janelas, para-raios, parapeitos, telhados, caixas-d’água e saliências em geral dos altos prédios desta cidade. Pendentes, tornar-se-ão, a cada dia, mais compostos, mais decentes, mais retos.
Não me importo que meus servidores discutam desde que não se distraiam nem balancem muito a corda onde residem. Quem não tem título, nem estirpe, nem glória não pode vacilar. Compostura! Decência! Retidão! Vamos, todos, nos esforçar um pouco mais! Que os irmãos de corda não empreguem todo o ódio contra si mesmos: deve haver ódio de sobra a empregar contra os outros.
Apregoador!
o apregoador
Esta inquisição não persegue afrontadores de Bíblia, nem feiticeiras. Por mim, os salmos poderiam ser todos usados para adoçar poções no fundo de algum caldeirão, misturados a sapos, morcegos e penas de aves, que nenhuma denúncia da bruxa cozinheira seria feita. É o que afirma o Decoroso, e eu repito.
Nossa inquisição não presta contas a nenhum Estado, a nenhuma Igreja. A única crença que cobramos é a desta população desvirtuada numa lei que a preserve de se consumir em práticas infandas.
Reúnam-se, homens, ao arrimo da decorosa palavra do Decoroso!
Neste torrão infeliz, a enunciação ordinária vale mais do que a celestial anunciação. Salvar-se-ão todos aqueles que, incapazes de consertar sua própria moral, aceitarem o Decoroso como seu consertador, tornando-se parte integrante e mostrada de uma cidade que será redecorada, a cada condenação, com pernas pensas, braços esticados e rostos de pavor.
o decoroso
Consta que o Destinatário costumava ser mais interveniente séculos atrás. Talvez a destruição dos templos ou sua transformação em casas de espetáculo O tenham feito confundir os endereços, e, desde então, Ele vem se atrapalhando nas aparições em atendimento às preces. O fato é que o fiel passou a rezar sozinho, o aflito enfrentou sem companhia sua aflição, e a moral, até então por Ele determinada, passou a ser um encargo do próprio indivíduo. Sem o espelho divino, restou ao homem ser semelhante a outro homem, com o qual passou a medir seu direito e sua liberdade: não roubar para não ser roubado, não matar para não ser morto. Nisso, ora acerta, ora fracassa, e o código penal que os avalie. Quanto a destruir-se, entretanto, não há lei adequada para isso. Destruindo-se é como se arruína impunemente uma sociedade por meio de seus abnormes. Sendo ruim para si é como se começa a ser ruim para os outros.
Os homens sem entusiasmo, sem outra coisa a fazer além de se destruírem, são relegados por si mesmos à obsolência, e eu os tiro de lá perseguindo-os, apontando-lhes o dedo e ordenando que se levantem e andem. O abnorme perde o porte do corpo, mas, dependurado nalguma altura, recupera-o, esticado que está pela gravidade, tremulando para a esquerda ou para a direita, conforme ventar.
Quanto à sua soberania, o abnorme perdeu-a; eu a encontrei e não devolvo. É melhor que os condenados se submetam mais prontamente aos meus veredictos porque tenho muito trabalho e me canso de repetir, para cada um, razões que são sempre as mesmas: as minhas. O laço social enfraquece e ameaça arrebentar justo ao passar pelo bobo, mas eu vim para ser a emenda, uma emenda feita à força. Sou um homem da recolha de outros homens que se soltaram de ser um só colar.
o olheirento
Lei para conter!
o apregoador
Lei para amarrar!
o decoroso
Atravesso a rua e ando por quase todo o quarteirão seguinte, tomando cuidado para não me distanciar demais do prédio de onde saí. Estará o condenado visível? Assim espero. Um corpo sofrente e exposto deve advertir os donos dos corpos que transitam aqui embaixo, nas ruas e passeios, do destino que dou à bobeira.
Desvio-me com habilidade de quem vem na direção contrária, incluindo duas senhoritas uniformizadas empurrando carrinhos de bebê. Salto um bueiro. Um pombo sobrevoa meu ombro esquerdo. Viro-me, então, e vejo o que queria ver: meu culpadinho, dependurado na antena, da maneira como o deixei.
Felicito a mim mesmo pela condução deste caso. Bato palmas. Dou pequenos pulos de contentamento. Em seguida, retomo minha circunspecção corrente. Não me iludo. Muitos são os que prevaricam e que, diante de um homem dependurado, correm a fechar as próprias janelas para não ver o seu futuro penoso.
o olheirento
A história dos penitenciados patenteou uma série variada e criativa de modos de punir. Embora tenham vigorado com sucesso noutras épocas e sociedades, mostram-se, hoje, despropositados quanto às condições necessárias para a sua realização e, com frequência, quanto ao excesso injustificado de maldade.
Prender os braços e pernas de um condenado a correntes atadas ao lombo de quatro cavalos, chicoteando-os em seguida para que disparem, resulta em imediata desmembração. Mas por que o sr. Decoroso excitaria em sossegados jumentos de aluguel, que marcham em fila pelo parque da cidade, seus pendores de carrasco? Todos aqui detestamos sangue.
Grafar no dorso do condenado o nome de seu crime exige operar uma máquina de escrita; guilhotiná-lo exige o manuseio do aço; apedrejá-lo exige a conclamação de uma multidão e um provimento de pedras; enforcá-lo exige uma autorização da Secretaria Municipal de Parques e Jardins, para que numa árvore da cidade se amarre a corda. Confiscar os bens de um condenado exige que ele tenha bens; confiscar seus direitos exige que tenha direitos; confiscar sua liberdade exige que tenha liberdade; bani-lo o libertará para sempre. Chicotear o condenado cansa o executor; humilhá-lo publicamente cansa o público; atirá-lo às feras cansa as feras; algemar o condenado a uma rocha exposta à rebentação do oceano, à assadura do sol e à bicada das aves exige que aves, sol e oceano se encontrem a serviço da justiça.
o decoroso
Como não tenho muitos recursos, sobram-me, como instrumentos eficazes de condenação, minha voz e a indignidade dos sentenciados. Tem funcionado.
o olheirento
Precisamos nos tornar coisa melhor para deixarmos de ser essa farsa a que chamamos homens.
o apregoador
Uma melhoradinha que seja já faz uma grande diferença.
o decoroso
Para que creiam em mim e em minha lei. Creiam no que dizemos e no que diremos. Nas nossas intenções. Nos nossos propósitos. Uma farsa não é algo que eu queira desempenhar mais.
o apregoador
Continue a ditar, sr. Decoroso. Sua palavra fará declinar sobre todos nós o seu verbo purgativo. Em seu nome eu continuarei a apregoar.