4.
Que trata de uma condenação de emergência
o olheirento
Sai o sr. Decoroso do cartório.
o apregoador
Quando a lei do nosso inquisidor treme, treme também a nossa corda.
o decoroso
Na rua, não permanecerei muito tempo. Vou logo entrar num prédio residencial que fica no final do quarteirão. Não trago comigo água com cólera, nem soda cáustica, nem faca, nem revólver. Não darei mais oportunidade aos bobos de tomar decisões sobre si. Alfaiate nenhum, nem mais ninguém, porá em risco os pressupostos da minha inquisição nem o império dos meus ditos.
Vou até um homem que não me confunda com argumentos, vou até um homem que não me confunda com decisões inesperadas. Depois, avançarei com a minha lei em mãos na direção de outros homens. Ninguém falará por mim. Eu falarei por todos. Ninguém aqui será condenado sem o meu julgamento. Quem estabelece como viverão sou eu.
Bobos e suspeitos de bobeira existem aos punhados. Conheço o endereço de muitos deles. Ainda assim, mesmo que eu desejasse de improviso encontrar um bobo nunca dantes denunciado nem investigado, bastaria escolher uma porta de apartamento para abrir e um homem nojento para apontar. Se, por acaso, eu errasse de endereço, seria pouco provável que no endereço errado eu não encontrasse um homem de quem pudesse, pelo menos, desconfiar. Tolices são fenômenos esperados nessa farsa que é a nossa vida citadina. Se um bobo falta, outro surge em seu lugar.
Atravesso a portaria. Aperto o botão do elevador. Subo. No andar em que desço, pouca luz entra pelos basculantes do corredor que dão para o vão interno do prédio. É pena que aqui não haja plantas. Gosto delas sempre que cultivadas em vasos, avisadas de que poderão continuar a ser plantas desde que não ultrapassem o limite que vai, em geral, do sofá ao televisor. Subalternas e obedientes, sob o risco de punitiva poda, as folhas não ousam tocar no aparelho: antes eram natureza; agora são, no máximo, unidades portáteis de flora subserviente. Pela mesma razão, gosto dos cães na coleira, dos peixinhos-dourados que vivem nos aquários, de passarinhos na gaiola, de tartarugas criadas em baldes, e de hamsters, em caixas de supermercado, comprimidos, todos eles, no tempo e no espaço organizados por uma civilização que os sequestrou de seus lares de origem e os oprimiu ao longo da história das espécies.
O homem que visitarei mora no final do corredor. Caminho em direção à porta. Não daria tempo de o Arrombador vir fazer o seu serviço, nem eu tive oportunidade de chamá-lo. Forço a maçaneta. A porta não abre. Raspo a sola dos pés no tapete. Quanto mais crespo, melhor. A porta é aberta. Surge, diante de mim, uma mulher vestindo uma longa e rosa camisola que a cobre desde o pescoço até os tornozelos. Não a conheço. Não sei de quem se trata. Ela se adianta.
O senhor...
A senhorita está sozinha?
Quem é o senhor?
A senhorita não me conhece?
Não. O senhor estava tentando abrir a porta?
Eu perguntei se a senhorita está sozinha.
O meu noivo...
O seu noivo? Onde se encontra o seu noivo?
O meu noivo?
Acordei-a com minha chegada, eu presumo. A senhorita parece sonolenta.
Mais ou menos...
A senhorita dorme sempre até tarde?
Bem...
Não importa. Sou um homem do decoro. Vim ver quem suponho ser o seu noivo.
Onde vive um bobo, normalmente não vive mais ninguém. Quando muito, uma mãe; ou um cão que, em geral, tem o mesmo senso de lealdade das mães.
Eu gostaria de falar com o seu noivo.
Ele ainda está dormindo.
Na minha presença, acordará.
Ela me indica o sofá. Assento-me.
Quem arrumou esta sala?
Ah, fui eu.
E por que motivo fez isso?
Eu gosto de cuidar da casa.
Você mora aqui?
Mais ou menos.
Você e o homem que está dormindo no quarto são noivos há muito tempo?
Quem é o senhor, mesmo?
Eu sou o Decoroso. E a senhorita é...
A noiva.
o olheirento
Apregoador, no apartamento do bobo, há uma mulher com quem o Decoroso conversa.
o apregoador
O que ela diz?
o olheirento
Que é noiva do réu.
o apregoador
Seja precavido, sr. Decoroso! Enrubescimento oportuno de noiva disfarça a autêntica palidez; recato disfarça promiscuidade; doçura disfarça salinidade. Ela pode ser outra impostora!
a impostora
Impostoras não faltam nesta cidade. Mas eu sou a verdadeira.
o decoroso
Eu perguntei quando a senhorita e o seu noivo noivaram.
Há cinco anos, aproximadamente.
E têm data para casar?
No ano que vem, se Deus quiser.
Deus?
Ela me mostra a aliança, contendo pequena e fosca pedra. Bobo noivo, bobo brilhante! Depois, retorna a mão às costas, junto da outra. O interior do apartamento desta cúmplice disfarçada de mocinha está mais bem cuidado do que as áreas comuns do prédio: a cortina é bordada; a mesa de centro tem um vaso com flores verdadeiras e novas; as almofadas estão dispostas corretamente no sofá; os enfeites, organizados sobre a cômoda. Conheço como se montam essas cenas de engano.
A senhorita sabia que eu vinha?
Não sabia nem quem era o senhor.
Agora já sabe.
O senhor é o Decoroso.
A senhorita se acha esperta?
Não. É que eu gosto da casa arrumada.
A senhorita se considera uma mulher sensível?
Acho que sim.
Frágil?
Sim.
Zelosa?
Sim.
Sensibilidade, fragilidade e zelo são a face apresentável e simpática das verdadeiras esquivez, ardileza e manipulabilidade. Será o que esconde essa noiva de bobo? Talvez. É provável. É quase certo. Assentada no sofá, com as mãos agora cruzadas sobre as pernas, respondendo às minhas perguntas, essa mulher me atrapalha, e sua camisola é mais ultrajante do que o vibrião que nada nas águas que costumo oferecer a um réu na véspera das condenações.
Sensibilidade, então?
É, sou uma mulher sensível.
Vamos ver, então, se o seu futuro marido é sensível como você.
Eu disse para o senhor que ele está dormindo.
E eu digo que ele acordará.
Deixamos a sala de visitas e caminhamos por um corredor onde há fotografias mal tiradas do casal. A porta do banheiro está aberta. Limpo é o banheiro. A porta do outro quarto está aberta. Limpo é o quarto. A última porta é a do recinto onde o dorminhoco, supostamente, fica. A esposa estende um dos braços, e eu me adianto.
Na cama, ninguém dorme. De cócoras sobre o beiral da janela, entretanto, encoberto em parte pela cortina que esvoaça, encontra-se um homem a exibir seus vacilantes pendores para trapezista. Incomum apresentação para um tipo de homem que, via de regra, denega todas as suas faculdades de homem! Embora fosse aquele com quem eu vim ter, ele não se mostra como eu esperava.
Aos pés do vulto de mórbido ginasta, a noiva se atira. No chão, numa performance meio a tombo meio a desespero, com os braços estendidos na direção do atual cúmplice de bobeira e futuro cúmplice de altar, ela se deita. Está entre mim e o noivo, que tende ora para o interior do quarto ora para o exterior, indeciso quanto a permanecer, indeciso quanto a saltar. A noiva implora-lhe.
Desça daí! Desça daí! Fique! Fique!
Implora a noiva sem necessidade, creio, pois a questão é menos de decisão que de equilíbrio: quanto tempo o homem aguentará, exposto ao vento e à vertigem, ficar naquele beiral? Pedindo-lhe, aos gritos, que fique, a esposa é quase comovente. Sua camisola rosa, que me pareceu ridícula à primeira visão, parece-me ainda mais ridícula à segunda, nessa pose de desvario conjugal: sua voz é estridente e lacrimosa; seus gestos são agudos e extremos; suas mãos encrespam o tapete que fica junto à cama, justo onde eu gostaria de raspar, por alguns segundos, a sola dos meus sapatos.
Perto da cama, com a mulher estirada entre mim e meu até então réu, temi que o início do processo de condenação tivesse de ser adiado ou, até mesmo, cancelado. A ameaça real da morte desse marmanjo de pijama exige o pronto exercício da minha lei. Dirijo-me a ele. Sou obrigado a elevar a minha voz para superar o choro feminino.
Você me permite falar-lhe um pouco?
O quê?
Falar-lhe. Você me permite?
Sobre?
Sobre a situação em que se encontra.
Você tem que ser rápido.
Você, não. Senhor. Comigo o tratamento certo é senhor.
Ah, o senhor. O senhor vai ter que ser rápido.
Por quê?
Não aguento mais segurar o meu peso.
Você pesa quanto?
Eu? Ah... estou para mais de cem quilos.
É muita gordura para um corpo do seu tamanho, não é?
Está ventando muito. Além disso, tem a posição.
Posição?
Esse beiral... Não é fácil ficar aqui.
O que tem ele?
É muito estreito para os meus pés.
Eis mais um que desmerece os esforços do primeiro macaco a descer de uma árvore e aplicar-se no andar ereto. Ele desrespeita a civilização e me desrespeita. Se essa sua noiva fosse uma espécie mais nobre de Eva, ela não lhe daria uma maçã do pecado, mas uma banana.
o apregoador
Toma uma banana para você, abnorme!
o decoroso
A noiva grita. Eu prossigo.
Nem gordura, nem vento, nem sua posição, nem beiral estreito. O que você tem é culpa.
Culpa?
A culpa faz mais volume do que sua pança.
Como o senhor sabe que tenho pança, se não pode vê-la daí?
Do mesmo modo que sei que tem culpa. Eu o conheço. Você é bobo. Você é culpado pela bobeira que tem.
Culpa do quê?
Me diga você.
Sei por que o senhor veio até aqui.
Por que vim?
Para me condenar.
Se você sabe que vim para condená-lo, é porque tem culpa.
O senhor é o Decoroso, não é?
Sou.
O senhor faz parte de uma inquisição, não faz?
Eu sou a inquisição.
Não vou ser condenado.
Por que não?
Vou me atirar lá embaixo.
O noivo olha na direção da rua. Enquanto isso, eu pulo a noiva e fico mais próximo da janela. Não gosto de gritar. O grito adultera minha voz. A adulteração da voz prejudica a proclamação da pena. A noiva disfarçou bem o crime cometido nesta casa, arrumando-a e cuidando da aparente higiene do noivo. Cúmplice! Infelizmente, não posso condenar as mulheres, nem mesmo pela ridicularia a que se prestam
Vou falar-lhe mais de perto.
Não tente me salvar.
Não estou aqui para salvá-lo.
Não quero ser condenado.
Você vai jogar-se logo? Se não for atrasá-lo, gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
Estou para morrer.
Pular do oitavo andar deste prédio não resultará noutra coisa.
O senhor não poderá mais me matar.
Não vim matá-lo.
Achei que o seu trabalho fosse matar pessoas.
Eu não mato. Eu primeiro investigo; depois julgo; então, sentencio.
O senhor vai me julgar?
Seu julgamento já ocorreu, e à sua revelia. Encontramo-nos na hora da sua condenação.
Por que fui julgado?
Por ser o homem que é.
Não sei o que isso quer dizer.
Se fosse possível despregar do seu corpo indecente a sua alma corrupta, eu o faria imediatamente.
Deixe-me sozinho.
Numa cidade em que somos obrigados a viver juntos, o um está atado ao dois, o dois está atado ao três, o três está atado ao quatro, e o quatro está atado ao todo. Quando o um se desgarra, desgarra-se o todo. Nada é só seu.
O senhor é considerado um inquisidor, não é?
Sou um inquisidor.
O que se deve fazer para ser um inquisidor?
Compromissar-se com a saúde da moral. Legislar. Agir.
E se eu admitir que não sou um homem inocente?
Concordaremos. O que mais?
Sou um homem muito triste.
Minha lei exulta. Minha lei se regozija. Minha lei celebra. Tenho pressa em aplicá-la e restaurá-la ao que sempre foi: eminente. Pois o homem triste é um homem bobo. Passemos, de imediato, ao julgamento. Não sairei desta casa sem deixar atrás de mim um dependurado.
Você acha que consegue se segurar mais um pouco?
Não sei quanto tempo eu aguentarei.
Por que aguenta?
Não sei.
Por que não se solta?
Não sei.
Por que não sai daí?
Não sei.
A noiva diminui o choro. O vento diminui de soprar. O homem já se encontra na posição correta para ouvir a sentença e começar a penar, suportando-se, entre aqui e lá. Que sua oscilação sofrente seja educativa e interminável.
Serei breve a partir de agora.
O senhor crê na minha inocência ou na minha culpa?
Nunca na inocência. Sempre na culpa.
E a minha tristeza?
Você é culpado pela sua tristeza, bem como por tudo o que é e o que faz: subtrair-se do convívio social; descumprir seus compromissos de cidadão; desapegar-se dos valores desta cidade; abster-se das práticas cotidianas em geral; decair; perder o ânimo; perder a compostura; perder o decoro; perder a ambição; descuidar-se de si; ignorar os outros; ignorar a sociedade inteira; estupidificar-se; comportar-se como nem um bicho se comportaria; deixar de ser um homem que se possa chamar de homem.
Você só disfarça sua pequenez porque tem uma noiva devota e chiliquenta ao seu dispor, providenciando para que nesta casa e no seu corpo não transpareça a sua miséria. Mas é importante lembrar que pelo comportamento da noiva você também é culpado. Meu veredicto poderia se resumir tão somente a isto: é um homem; está condenado. Se a sua noiva discorda do que eu acabo de dizer, ela que me conteste.
A noiva permanece calada.
Se você discorda do que eu acabo de dizer, conteste-me, bobo.
O homem permanece calado.
Sou um bobo, então?
É um bobo.
O que será de mim?
Você ficará onde está.
Neste beiral de janela?
Exatamente.
E se eu me soltar e cair?
Então não o chamarei de nome algum, porque, morto, não haverá razão nem oportunidade para chamá-lo.
Sou tão triste!
A tristeza é a presença da abnormidade.
Do quê?
Daquilo que desvia o seu caráter e o seu corpo do vínculo social e de um cotidiano que poderíamos considerar normal e ordeiro, afastando-o de bons hábitos que todos nós devemos cultivar e considerar como o bem.
Divino?
Não. O meu bem. Você pode e talvez até deva acreditar no Destinatário, mas saiba que Ele balança tanto quanto você. Agora, mantendo-se acocorado onde está, vire-se para fora.
Para fora?
Você esteve voltado, durante muitos anos, para a direção contrária à desta sociedade que o pariu. Você tem se comportado de modo reprovável, omitindo-se em relação ao exercício moral e às suas responsabilidades civis, e o resultado disso é que será condenado agora por mim. Você não se excita com nada, nem mesmo com o cigarro e com o jogo, nem mesmo, aposto, com sua noiva. Veja a pose que ela é forçada a fazer para tentar comovê-lo. Ela é ridícula, você é ridículo, tudo isso é ridículo.
A noiva interrompe o choro e levanta a cabeça do chão.
Basta de ridículos. É chegada a hora do maior de todos os acontecimentos. A partir deste momento, o seu horizonte não se encerrará no seu guarda-roupa ou na televisão. Se belo ou não, você decidirá. Há muito para ver. Não faça de conta que essa cidade não lhe diz respeito. Vire esse seu bandulho de encantoado para a cidade à qual pertence.
Ai!
É a minha lei que o encurrala, herege!
A noiva ergue os ombros, apoia as mãos no chão e assenta.
Senhorita, não sou especialista em moral feminina. Você me confundiu e atrapalhou muito com sua camisola, choro e casa arrumada. Não atrapalhará mais. Decida-se, portanto, quanto ao que fazer. Existem opções. Se a senhorita decidir se manter ligada ao noivo, tornar-se-á, para sempre, cúmplice de abnorme, ou seja, mulher de bobo, não sendo designada como nada mais do que isso. Lembre-se de que um bobo remediado não deixa de ser bobo, e a senhorita pode preferir levantar-se e procurar melhor emprego para a sua vida. A senhorita também é livre para permanecer estirada no chão.
A noiva fica de pé e ajeita a camisola. Chego à janela, próximo ao condenado. Peço à noiva que se aproxime também.
Que bom que se levantou. Vejo que não gosta tanto do chão assim. É um bom sinal. Já que está de ânimo renovado, vire-se na direção do seu noivo e me ajude a condená-lo.
Ajudo.
Afirme que ele é culpado.
Você é culpado!
Que é doente.
Você é doente!
Que chegou a hora de ele penar.
Você vai penar no tribunal do decoro!
Volto-me para ele.
Bobo, a sua noiva quer você no mesmo lugar em que eu o quero. Mantenha as mãos firmes; ajeite os pés no beiral.
Quanto tempo ficarei aqui?
Quem decide sou eu. Sua preocupação é manter-se dependurado.
Não sei se vou aguentar muito.
Aguentará.
Como sabe?
Sei porque, condenado, você está sob minha lei. E minha lei prevê a sua sobrevida, o cumprimento de sua pena e a sua reeducação. Sem o vivo, não há lei que se possa aplicar nem lição que se possa ministrar.
Bom, então já estou como o senhor quer.
Razão pela qual vou proferir a sua condenação.
Ajudo-o de alguma maneira?
Ajude-me sofrendo. Agora fique calado.
o olheirento
O sr. Decoroso aponta o homem com a mão direita.
o apregoador
Silêncio na urbe! Vamos ouvir a condenação!
o decoroso
Condeno-o, bobo, com o poder conferido pelo meu próprio ditado, a permanecer, pelo tempo equivalente ao da longevidade da sua culpa, acocorado no beiral estreito da janela do seu quarto de dormir, como forma de puni-lo pela corrupção de seu caráter, crime este que incide sobre a saúde da sua moral, desviando-o do comportamento considerado, por mim, normal, digno e exemplar. Ao ferir, com a sua conduta, esta sociedade e a mim, o Decoroso, você se candidatou à pena que começa a cumprir. Agora vai conhecer a norma à força, abnorme, à força dos seus próprios membros. Dou-lhe uma razão consistente para a tristeza que diz sentir. Dou-lhe vivo sofrimento para ocupar o lugar de tudo o que negou com a sua abstinência. Você terá bolhas na sola dos pés; dormência nas pernas; dores terríveis nas articulações dos joelhos e tornozelos; vertigem; náusea decorrente da vertigem. Você deve moralidade e comprometimento a esta cidade: pague, tristonho!
o olheirento
Pague!
o apregoador
Tristonho!
o decoroso
Antes que eu me retirasse, a noiva do condenado aproximou-se de mim.
O senhor me disse que eu poderia fazer outra coisa em lugar de ficar com o meu noivo.
Eu disse que a senhorita poderia fazer o que quisesse da sua vida. Não legislo sobre a mulher.
Eu posso fazer o que eu quiser, mesmo?
Se eu não tivesse vindo a este apartamento, o seu noivo poderia estragar sua hominalidade até atingir o estado de boi, e a senhorita poderia, se quisesse, acompanhá-lo em estado de vaca; e vocês poderiam continuar a viver juntos neste decorado curral, contando mais anos de noivado. Mas eu aqui vim, e o processo que levaria o homem a boi foi interrompido. Logo, fica vedada a sua chance, pelo menos por ora, de ser vaca. Arrume alguma coisa útil para fazer.
É que eu...
A dependura do seu noivo deve interessar mais a mim que à senhorita. Coisas muito importantes ocorrem todos os dias nesta cidade. Assuste-se com o preço dos aluguéis, tenha medo dos ladrões, lamente a chuva que caiu ontem, leia o horóscopo, tome café na padaria. O bobo está ocupado com sua pena, e a pena pertence apenas ao penitenciado.
Nesse caso...
Nesse caso, a senhorita vai sair da minha frente, para que eu não precise ver essa sua camisola nem mais um minuto sequer.
Está bem.
Obrigado. Agora fique quietinha, que eu vou concluir.
Sem mais para o momento, retiro-me, o Decoroso, deste tribunal estabelecido na presença de uma noiva malvestida e de uma cortina que esvoaça, com a certeza de que a Justiça ocupa este quarto com mais substância e integridade do que encontramos em cada página de jornal que circula durante a manhã nesta cidade. Eis a minha lei de volta à forma! Nada mais me confunde: aí está um bobo inconfundível.
Antes de eu sair do quarto, o condenado me chama.
O senhor terminou?
Terminei.
O que será de mim?
Por que se preocupa? Você está sob o melhor dos códigos.
E se meu corpo não aguentar?
Aguentará. Seu corpo agora dita o meu provérbio.
Não posso recorrer da sentença?
Minha lei é soberana, e é por isso que você se encontra dependurado neste alto andar de prédio, superior às outras legislações. Seu corpo de bobo tornou-se um corpo de letra, a letra da minha lei. Saiba que o brasão do decoro é o homem dependurado. Adeus, bobo, e obrigado. Condená-lo me fez muito bem.