2.

Sobre a compostura, a lei e o amor

o decoroso

Por uma fresta desleixada do veludo, vejo o reflexo do Bem Composto num grande espelho que ele tem na alfaiataria. Está aí dentro meu servidor mais elogiado, que agora me vê pelo mesmo reflexo com que se mostra. Então se aproxima o homem que, não querendo mais o nome que já teve, propõe perder todo e qualquer nome. Bobo? Vejamos.

O Bem Composto afasta a cortina e abre a porta. Pesada cortina. Porta rangente. Terão sido feitas para esconder, por todo esse tempo, sua bobeira? Cumprimento-o. O alfaiate tem modos severos e grave suspiro aos quais respondo com suspiro ainda mais grave e modos severíssimos. Onde estará a gorda pasta levada há pouco ao cartório, maior do que aquela que levei comigo e que tanto me assombrou? Aposto que guardada nalguma gaveta sinistra, no alto de uma prateleira temível. Olho em torno: em que etiqueta, em que cabeçalho, em que folha de cheque, em que receita médica, em que apólice de seguro ainda resistirá uma amostra exposta do seu nome rejeitado? Onde o Bem Composto conserva, ao menos, uma toalha com as iniciais bordadas, uma folha de papel timbrado, um carimbo sem tinta, um anel gravado, uma carta de amor jogada próximo ao rodapé deste recinto, uma tatuagem que, a cada dia, se apaga? O alfaiate torna a suspirar.

Passa bem, alfaiate?

o bem composto

Um pouco esbaforido. Vim correndo para a alfaiataria, senhor.

o decoroso

Correndo de onde?

o bem composto

De problemas.

o decoroso

Resolveu-os?

o bem composto

Ainda não. É coisa boba, senhor.

o decoroso

As nossas coisas podem sempre ser bobas, Bem Composto. Umas mais que outras, mas todas bobas. As mais bobas são sempre as mais perigosas. Espero, pelo menos, que o seu problema não tenha feito o senhor...

o bem composto

Perder a compostura? Não perdi, senhor.

o decoroso

Tem coisas que, se a gente perde, não encontra mais. Perder a compostura imagino que seja como perder um alfinete: tão logo se perde, já se sente a espetada. Mas vim aqui para saber sobre o tecido para a minha toga...

o bem composto

Está na mesa. Eu o deixei separado para o senhor.

o decoroso

Posso tocar nele, eu suponho.

o bem composto

É claro, senhor.

o decoroso

Não vou marcá-lo?

o bem composto

Este é um pano puro como é puro um homem do decoro.

o decoroso

Com mãos espalmadas, cobiço a minha encomenda, enquanto o Bem Composto se afasta e colhe um alfinete da própria lapela. Curvo-me para tocar a desejada peça de pano. O Bem Composto ajeita uma régua. Eis o pano e, ao fundo, um homem de aparente e invejável compostura. Magnífico e inocente, sem dúvida, é o pano, mas... e o homem?

Admirar ou desprezar este homem, este e não outro homem, que está diante de mim?

Avanço os meus punhos sobre o pano, enquanto o alfaiate mira o seu braço esquerdo e retira da manga outro alfinete para repô-lo à caixa. Enrola uma fita métrica, depois vai à luminária da mesa, acende-a e volta ao lugar onde estava.

Absolver ou acusar este homem, este e não outro homem, que está diante de mim?

Tocam o tecido as minhas duas mãos da Justiça. Esta é a vestimenta do decoro. O alfaiate volta-se para os fundos da alfaiataria, dando-me as costas, e desabotoa o paletó. Entre as suas maneiras e as do tecido, confundo-me. Como se chamou um dia este homem para que prefira a anonímia? Quando é que começou a se tratar por Bem Composto?

Amar ou odiar este homem, este e não outro homem, que está diante de mim?

a amada

Mas, como eu dizia, quero dizer algo bom sobre o amor. Além da sorte de ser muito amada, é claro...

o decoroso

A questão não é mais se o alfaiate é bobo ou não é, mas se, em sua presença, sou ou não sou um inquisidor.

o olheirento

A sra. Amada está falando sobre o amor, enquanto molha as plantas. Sua voz é quase inaudível com o barulho da água caindo na terra dos vasos. Que as Vizinhas se ocupem dela, enquanto tento ouvir o que acontece na alfaiataria.

o decoroso

Dentro do pano, minhas mãos começam a tremer: é minha lei que se inclina da dúvida daninha ao espasmo.

a amada

Que não me entendam mal, afinal, não estou reclamando. Quem sou eu para reclamar? Sou uma mulher de sorte, que sorte tenho eu de ser tão amada...

o decoroso

Espasmada na trama indissolvível da minha dúvida, espasmada na trama carnuda da lã da minha toga.

as vizinhas

A sra. Amada fala.

Fala baixinho sobre o amor.

o decoroso

Retiro minhas mãos do pano.

a amada

É que esse amor...

o decoroso

Vou-me embora da alfaiataria. Caminho até a porta. Afasto a cortina.

as vizinhas

É mesmo a voz de uma mulher muito amada.

o decoroso

Abro a porta, mas o alfaiate ainda tem tempo de me pedir...

a amada

É que esse amor...

o bem composto

Quero ser seu bobo, sr. Decoroso.

as vizinhas

Ainda há muitos vasos com plantas para a sra. Amada molhar?

Ela molha as plantas devagar.

o olheirento

O sr. Decoroso sai da alfaiataria. Trancou-se a porta depois da sua passagem, e a cortina tornou a se fechar.

a amada

É que esse amor, que ninguém me ouça, nem me julgue...

o olheirento

Ao chegar à calçada, o nosso inquisidor volta-se subitamente para o interior da galeria. Mas para. Gira o corpo. Retorna à rua. Atravessa-a.

o apregoador

Ainda um grande pano, muito menos nobre do que a lã de uma toga encomendada e mais pesado do que a cortina do Bem Composto, cairá sobre esta cidade. Mas os homens, coxos sobre os muitos tablados onde costumam pisar, não ouvirão aplauso algum.

a amada

E que eu possa ser perdoada pelo que disser...

o olheirento

O sr. Decoroso anda depressa pela rua oposta.

a amada

Eu não preciso de tanto amor.

o apregoador

O sr. Decoroso anda cheio de raiva e desprezo.

a amada

Talvez, no lugar do tecido que eu comprei, eu devesse ter comprado outro, desmerecedor de nota, impercebível, e com ele me disfarçar de não ser ninguém, como uma parede, uma cristaleira e uma tábua de passar roupa não são ninguém.

as vizinhas

São muitas as avencas para a sra. Amada molhar.

Além de violetas de muitas cores.

a amada

Então eu seria amada apenas na modesta medida em que uma tábua de passar roupa, uma cristaleira e uma parede podem ser amadas.

as vizinhas

A água que a senhora despeja nas plantas está a terminar.

Haverá derramação hoje?

a amada

Eu troco amor por outra coisa qualquer.

as vizinhas

Esse deve ser o último vaso.

Na terra, não se escuta caírem muitas gotas mais.

a amada

Eu não quero ser amada.