6.
Quando se discute sobre o horizonte
e o futuro
o apregoador
Olheirento, você acha o nosso horizonte belo?
o olheirento
Ele me parece um tanto embaçado. Mas pode ser efeito do meu astigmatismo. Por quê?
o apregoador
Eu acho que o horizonte não é tudo isso que dizem. Mas o resto da cidade também não é.
o olheirento
Talvez, se retirássemos de todas as ruas as placas com os seus nomes, poderíamos nos esquecer desta cidade um dia.
o apregoador
É preciso que se passem muitos anos para não lembrarmos mais como as ruas e o resto das coisas se chamam.
o olheirento
Bom, então sugiro deixar os nomes das ruas e do resto das coisas onde estão e agir como o Bem Composto: recusemos nossos nomes e nos esqueçamos de nós mesmos.
o apregoador
É uma boa medida, coisa de que o alfaiate entende bem. E talvez ele saiba, mais do que todos nós, manter a linha.
o olheirento
Você acha que a hora é boa para trocadilhos?
o apregoador
Não acho que seja uma hora boa para nada. O sr. Decoroso se empenhou tanto para que fôssemos uma cidade coesa e população vinculada, mas agora constato que nós e a cidade somos um congregado de negativas. Não convencemos como a extensão ou complemento dos nossos colegas: somos seu limite, somos sua contestação. Uma cidade e sua população constituem uma consensual ilusão de que sejamos uma só e indivisível coisa.
o olheirento
Pelo menos, a Impostora parou de gritar, enrolou-se num dos lençóis que caíram no chão da área e foi embora. Atrás dela, a mãe do bobo não tardou a sair. Desde então, continuo a procurar o sr. Decoroso pelas ruas desta cidade que ainda consigo enxergar. Não o encontro: para casa ele não voltou; para a alfaiataria também não; com a Quituteira não está.
Os transeuntes estão calmos. Os carros não avançam os sinais. Não houve acusações de furtos, nem de estelionatos, nem de traições nas últimas horas. O Apregoador não tem mais o que apregoar, nem eu a quem vigiar. Em breve vai anoitecer. Qual será o nosso futuro eu não sei: o Decoroso não está mais aqui para ditá-lo.
o apregoador
E, para a sua decepção, mano, terminaremos esta farsa sem termos sido modernos.
o olheirento
Você também queria ser moderno.
o apregoador
Não como você. Aliás, não sei o que você viu na modernidade para ela lhe interessar tanto assim.
o olheirento
É que eu queria me tornar aquilo para o qual vínhamos nos preparando havia muito tempo.
o apregoador
É verdade que nos preparamos. E muito.
o olheirento
Decidimos ficar dependurados na corda por nossa própria conta. Pregamos. Vigiamos.
o apregoador
Tomamos vacina. Aprendemos tabuada. Procuramos usar os pronomes corretamente.
o olheirento
Nossa educação foi em vão. Nosso empenho foi em vão. Agora que o Decoroso foi embora, ninguém nesta cidade aprenderá mais nada.
o apregoador
Nada.
o olheirento
São uns moleirões, os citadinos.
o apregoador
Somos moleirões também.
o olheirento
Para que servem as nossas aptidões agora?
o apregoador
Como propriedade, temos só a nossa corda.
o olheirento
E essa rede de apanhar ninguém.
o apregoador
O Destinatário não deu as caras. Não nos queimou com raios, nem nos recolheu como filhos. Não patrocinou nossa guerra, nem incitou possíveis inimigos a nos destruir.
o olheirento
Não há modernidade sem uma grande guerra que a inaugure, eu penso. E para onde correu aquele que foi o nosso general, nosso inquisidor, nosso ditador, nosso Decoroso?
o apregoador
Com esses homens frouxos que são todos, com esses homens frouxos que somos...
o olheirento
Não é possível, sem auxílio celeste ou líder terrestre, guerrear.
o apregoador
Já que nunca seremos modernos, o Destinatário deveria, pelo menos, nos trazer um cavalo para ferrar.
o olheirento
Um tear com muitos fios para urdir.
o apregoador
Deveria levar-nos ao córrego para pescar.
o olheirento
A um pasto para carpir.
o apregoador
O que você fará com essa rede, mano?
o olheirento
Usarei com alguma mariposa.
o apregoador
Por que não usa para prender o cabelo?
o olheirento
Meu cabelo?
o apregoador
Está grande, ó. Você ficou muito tempo sem cortar.
o olheirento
Ficaremos aqui muito tempo ainda?
o apregoador
Algo me diz que estamos perto do fim.