1.

Que trata do abobamento do Senhor

o decoroso

Diante de mim, apresenta-se de borco um homem com maneiras de quem dormita depois de uma comilança. Mas sei que este homem, apesar da balofice, nem come tanto. Se não engorda com comida, está gordo de quê? Um abnorme, cujo vício é a consumpção de si mesmo, só pode estar cheio daquilo que lhe é mais próprio, e fica extenuado de remastigar, permanentemente, sua corpórea e anímica composição. Felizmente, a flacidez cobre seu veio mais feio, e me aproximo.

Acendo a luz do seu abajur. O homem ajeita-se na cama, contrai o corpo e adota posição semelhante à de um bebê torturado em berço sujo. Chamo-o. Para todo bobo, sou o sineiro que o desperta. Chamo-o novamente, e ele se vira em minha direção, com cabelos amassados, dentes escuros, peito pelado e tez coberta de unto.

Este é mais um homem desagradável de encontrar, encantoado neste lar escroto; é mais um homem dono de uma gula irrefreável de se consumir; é mais um homem insatisfeito com a já conhecida pequenez de ser um homem, e vai decidido a se tornar coisa pior, é mais um homem que resolveu desligar-se da vida social e investir nesse projeto desonrante de ser o que é; é mais um homem doente, é mais um homem criminoso, para quem a minha lei foi formulada; é mais um homem para eu punir, para eu educar, para eu remediar.

Lamento muito que este homem tenha decidido ser bobo. Lamento mais ainda que eu, nas condições em que me encontro, desditoso, e que se encontra a minha inquisição, desbaratada, não possua outra escolha senão dividir com ele a mesma cama fétida onde se aninha. Essa cama será o meu parlatório, e é daqui, onde já assento, que pretendo realizar meu último ditado.

Foi anunciada, há muito tempo, num púlpito vizinho, a instalação da minha inquisição nesta cidade. Retomo eu a palavra pública para comunicar seu fechamento. Espero ser escutado acima da cabeça dos meus fiéis servidores, Apregoador e Olheirento: espero ser escutado lá de onde uma cabeça maior e luminífera deveria sobrevir. Mas Quem mora mais alto Se distraiu, desviou-Se, abobou-Se. Não temos muita esperança de que Ele sobrevirá.

Não precisamos de mais provas de que o Destinatário Se tornou um bedel aposentado, preferindo jogar sideral dominó a dispor as nossas existências terrenas, trocando nossas almas desordenadas pelo duplo-seis em vez de nos receber em Seu endereço final. Talvez Ele tenha Se refestelado numa curva acolhedora da abóbada do céu; talvez esteja brincando com aviões e alterando a meteorologia. O fato é que Se mantém longínquo e entediado, à revelia dos nossos anseios e das nossas necessidades. Ainda assim, confesso, continuo a acreditar piamente nesse Deus a Quem nos acostumamos a chamar de Destinatário. Entretanto, tendo Se recusado terminantemente a ser o nosso destino, passo a chamá-Lo, apenas e bobamente, de Senhor.

Acredito no Senhor, bem como acredito no abobamento do Senhor.

o apregoador

Eis, de volta, o nosso Decoroso!

o olheirento

Ele dita a lição que esperávamos ouvir!

o decoroso

Todas as provocações, desprezamentos, caretas, acusações e tentativas de deposição do Senhor feitas ao longo da nossa farsa cotidiana constituem nosso balar de ovelhas desafortunadas. Não tenho mais esperanças de que o Senhor me responda e de que desça em nosso socorro: ou nos perdemos do Pastor, ou foi o Pastor Quem nos perdeu nessa praça árida e cheia de feras que é a vida ordinária.

Pelo visto, os ateístas seguem outro raciocínio. É legítimo, mas não os acompanho. Se o Senhor não existisse, seríamos então progênie do pai anônimo e impessoal que é a contingência, e primos, portanto, do acidente, do acaso e da coincidência: para os almoços dessa família eu não quero ser convidado.

Continuo, portanto, a despeito da Sua indiferença e do Seu desamor, a acreditar na existência do Senhor. Faço-o também por ter concluído que Ele integra, de maneira incontestável, a boba e crescente seleção de criminosos e doentes do caráter que minha lei busca descrever.

Acredito piamente no Senhor, acredito no abobamento do Senhor.

É sempre bom que tenhamos, diante de qualquer dilema, um sim ou um não, um certo ou um errado, e não nos desencontremos na dúvida. Uma única indecisão pode agravar, séria e irreversivelmente, a bobeira de um homem, estragando-o para sempre. Pois eu tenho me dedicado ao certo, ao justo e ao ordeiro. Será esta madrugada canalha, sucessora de um dia mais canalha ainda, a medalha que mereço pelos serviços que prestei ao remédio da moral? Se assim for, não pode haver orgulho no meu peito condecorado, mas rancor e ressentimento. Meu heroísmo, só eu achei que o tinha. Porém, não o tenho, nunca o tive. Minha inquisição era resoluta; tornou-se duvidosa; e agora caiu, vexaminosa.

Acredito piamente no Senhor, acredito no abobamento do Senhor.

Se estamos próximos do final, este será o nosso apocalipse dos bobos: rachará o plástico da Terra; o fogo será de papel celofane vermelho e amarelo; as estrelas, pisca-piscas que sobraram do Natal. Se tudo o que eu disse até agora não teve muita eficácia, não foi por falta de esforço. É que me faltaram recursos; achei que os possuísse; enganei-me.

Durante os meus anos de catequese, repetimos com afinco, meus crentes irmãos citadinos e eu, o alfabeto que começava em Alfa e terminava em Ômega. Mas percebo agora que foi pouco: restritos a não mais que duas letras para iniciar e findar a nossa história, descobrimo-nos carentes do que deveria rechear-lhe o meio.

Diante disso, cuidamos do meio por nossa própria conta e o batizamos de civilização. Contudo, quando fomos uni-la ao início e ao fim que o Senhor soletrara precocemente em Seu Livro, não havia mais conciliação possível: foi-se o Livro para um lado, fomos nós para outro. Carregando conosco o meio que desajudados inventáramos, tornamo-nos homens sem começo nem término, a perguntar indefinidamente por nossa origem e a rezar interminavelmente por nosso destino. Restou-nos ser, os homens, uma turma de meios-termos, de médios, de mais ou menos, olhando para o céu à espera de resposta e completude.

Aqueles que condeno, Senhor, embora não manifestem quase nenhuma crença, são os que mais desesperadamente O procuram em vida. Eles foram do ordinarismo à bobeira buscando conhecer, pela consumpção de si mesmos, ao menos uma das extremidades de suas vidas medianas: ou o fim ou o início, o que quer que viesse primeiro, desde que lá o Senhor estivesse. Definhar é um desejo de saber, definhar é um desejo de encontrar.

Acredito piamente no Senhor, acredito no abobamento do Senhor.

Antes de ser um inquisidor, eu quis ser testemunha, mas não havia mais o que testemunhar. Os milagres, os desfibriladores e os antibióticos se encarregavam de empreender; as grandes obras de criação couberam aos engenheiros civis; nas águas diluvianas mergulharam oceanógrafos ou banhistas em férias; o firmamento reduziu-se ao cosmos, tendo sido medido e pesado pelos astrônomos como se fosse um legume de feira. Assemelhar-me ao Senhor foi a minha mitologia: meu céu de estrelas, meu Urano, meu desastre, minha sereia, meu naufrágio. Do que adianta buscar semelhança quando o modelo falta, insistentemente, às malformadas cópias?

Acredito piamente no Senhor, acredito no abobamento do Senhor.

Porque o Senhor escolheu apenas uns poucos para chamar à Sua presença, tive eu de começar a reunir os restantes, um a um, entre os homens ordinários mais esquecidos e mais decadentes desta localidade. Agora são todos bobos, e seus nomes de origem não se conhecem mais. Eu deveria condenar o Bem Composto, chamando-o de bobo de agora em diante, garantindo-lhe que nunca mais seria nomeado como um dia já foi. Entretanto, não consegui sequer investigá-lo adequadamente. Sua linha sinuosa de alfaiate mostrou-se mais resistente do que a linha dura da minha lei. E eu, que tinha o não ou o sim sempre comigo para empregar em qualquer decisão, rebaixei-me à já xingada dúvida; ali, espasmei.

Tudo o que mais sei é chamar alguém de bobo. Que palavras poderiam nos compreender melhor do que essa e, quem sabe, nos levar a ser mais que os homens que somos? Eu nunca as soube, não as aprendi e não consegui, mesmo contando com um rico vocabulário impregnado de fervor acusatório, formulá-las.

Acredito piamente no Senhor, acredito no abobamento do Senhor.

Um homem sem princípio não pode pleitear o fim. Talvez seja essa a razão pela qual temos tanta dificuldade em morrer. Pois nós, Senhor, que passamos toda a vida à procura desventurosa de uma convincente explicação sobre a nossa procedência, envelhecemos. Precisamos agora de um fim que nos arrebate, que nos acalme, que nos acolha, que nos silencie. O Senhor tem mania de imensidão; nós somos pequenos.

Devo declarar que foi para inquiri-Lo que me tornei um inquisidor. Na ausência do Senhor, pus-me a inquirir Seus outros descendentes, meus irmãos. É do lado de um deles que me encontro agora. Veja como ele é repelente! Veja como ele é torpe! Veja como é sórdido, Senhor! Mas, para que também veja que o tratarei como a um igual, meto as mãos nos seus cabelos, beijo suas bochechas, encosto minha testa em suas mamas fofas. Veja, Senhor, como me recosto nesse corpanzil desconsiderado, que foi reservado para pasto do caráter virulento que aí dentro está acondicionado.

Talvez tenhamos esperado tempo demais por alguma matéria Sua visível e tateável, exigindo até que o vigia Olheirento segurasse por todo esse tempo uma rede com a qual poderia pescá-Lo. Percebo agora que nos esquecemos de nos perguntar sobre o que faríamos com o Senhor, caso aparecesse, se estenderíamos a nossa mão clemente em direção à Sua, ou se assim agiríamos apenas para torcê-La e maculá-La com nosso cuspe cheio de mágoas. Com nossos corpos e almas, que temos sempre conosco, também não sabemos exatamente o que fazer, se cuidamos deles, como eu acho correto fazer, ou se os enxovalhamos, como faz todo abnorme.

Mesmo assim, eu acredito piamente no Senhor, acredito no abobamento do Senhor.

Mais fácil seria, mais uma vez, caluniá-Lo, agredi-Lo, queimá-Lo por meio de Suas barbadas réplicas, que governam altares improvisados nos cantos das salas de estar das casas dos fiéis. Mas os que O combateram estão hoje enterrados em vala vizinha à dos seus adoradores, e os dois times sugam as raízes da mesma terra. Não quero ser um valentão contra o Senhor. Quero ser um medroso, um fraco, um pidão, um filho. Seja o Senhor, pois, o valentão, o forte, o concedente, o papai: chute a porta da minha casa, aponte-me o dedo na cara, estapeie-me; empurre-me no chão, escarneça de mim com impiedade sobrenatural; cuspa em mim; arraste a minha pele macia e cuidada até estragá-la na lixação do pior piso desta cidade; trate-me por réprobo, por bastardo e, depois, por querido, por dileto. Some a minha aniquilação à dos amados que o Senhor aniquilou ao amar; então venha me colher como a uma frutificação que, machucada pela mão imensa e brusca do coletor, ainda pode ser comida com alguma delícia.

O Senhor pode ver daí de cima que tenho envoltos, numa das mãos, os cabelos do bobo. Pois veja também que apanho na outra os meus próprios cabelos. Tome aqui então, como evidência da minha dedicação ao Senhor, uma parte dos meus fios, que costumo alinhar com tanto cuidado pela manhã: arranco-os com o couro cabeludo e, com mãos humildes, deixo à Sua disposição este fresco escalpo. Eis o meu ofertório, Senhor. Abandonará outro filho sangrando?

Mesmo abandonado, mesmo ferido, mesmo descabelado, eu acredito piamente no Senhor, pois acredito no abobamento do Senhor.

Era para o Senhor ser nossa máquina de somar ordinários, era para o Senhor ser nosso único resultado: nosso dois, nosso mais, nosso dois, nosso quatro. Seríamos partes, e o Senhor, o todo a nos unificar. Ausentando-Se o Senhor, permanecemos soltos, aprendizes de uma matemática frustrada, obrigados a fabricar uma cola bem grudenta que impedisse a nossa completa dispersão. Nossos amores são incertos, inconstantes, ocasionais, enquanto o Senhor poderia amar-nos certamente, constantemente, ininterruptamente. Sem a Sua religião, como faremos, os ordinários e eu, tão ordinário quanto os outros, para nos religarmos num só povo? E o que será feito desta cidade sem resgate, sem luz beatificadora, sem redenção?

Antes tivéssemos cometido muitos e mais violentos atos imorais, suficientes para que o Senhor nos molhasse com enxofre, numa chuva punidora que mereceríamos por termos descumprido o pacto que nos reunia sob uma mesma lei e sobre uma mesma praça. O Senhor acha que somos bonzinhos? Nós fazemos muitas coisas erradas: praticamos adultério, subornamos guardas, mentimos para o patrão. Venha nos constranger, Senhor! Venha nos humilhar! Venha nos afogar com dilúvio. Venha queimar este torrão municipal com pingos de incêndio, numa grande queimação de reprimenda! Venha nos danar, Senhor!

Mesmo enraivecido, mesmo cansado, mesmo capenga, eu acredito piamente no Senhor, acredito no abobamento do Senhor.

Sei que não tenho muito além do meu corpo vestido com terno lanoso e negro, similar a uma ovelha malquista do Seu rebanho. Mas é do interior desse mesmo corpo que o Senhor, se preferisse, em vez de aparecer de dentro de uma nuvem, poderia advir, como advém um adoecimento progressivo: uma dor de estômago, o repuxo de uma perna, um soluço após a refeição, um pigarro insistente; então, progredindo, desenvolvendo-Se, avolumando-Se, o Senhor passaria a corresponder à dormência de um braço inteiro, a uma cefaleia de três dias, à aguda ardência durante a micção; depois, imperioso e irresistível, o Senhor Se ocuparia de uma das minhas metades, a da direita ou a da esquerda, e a paralisaria, como num violento derrame.

Com o olho bem aberto da metade ativa do meu corpo, eu assistiria, admirado, à última etapa da manifestação de Si: ocupando cada vez mais o meu organismo, valendo-Se de um metabolismo veloz como o de alguns tumores, o Senhor, já pela altura da minha glote, devoraria os analgésicos em meu lugar e, com eles, toda a água que eu tomasse para engoli-los. Aos poucos, tudo o que fosse meu passaria à Sua posse, e assim continuaríamos até a chegada do dia em que, perdido definitivamente de mim, eu me encontraria inteiramente no Senhor, remontado no divino Verme que teria me comido por dentro, famigerado, íntimo e paterno.

Abraço o bobo. Como cheira mal quem se apega ao leito por semanas. Mas é ele quem me ampara nesta madrugada amarga. Infelizmente, e contra a minha esperança e a minha fortuna, que um Senhor exista ou deixe de existir não tem feito nenhuma diferença. Se Ele não reage em reconhecimento aos esforços da minha inquisição, não tenho mais por que ser inquisidor.

Talvez os homens desta cidade passem bem melhor sem mim, sem visitas às suas casas, sem dedos a apontar para eles. A bobeira é muito mais forte do que a minha capacidade de curá-la. A queda do condenado junto de sua noiva já me advertia da falibilidade de uma norma que, confundida nas tramas do Bem Composto, foi ao chão, mais tarde, ante os pés de uma mulher sem disfarce.

O Senhor não me ensinou a vencer a impostura, e, quando a impostura se apresentou, confiada, nua e consagrada à minha lei, eu não tinha palavra à qual recorrer para ordenar que ela se dependurasse, culpada e boba, numa altura desta cidade. Perdi, perdi para um corpo inconquistável, e peço à sua dona, encarecidamente, que volte a revesti-lo com as roupas e adereços que usava para me despistar. Vista-se, por favor, Impostora. O que ali se testemunhou foi a deposição do meu decoro, foi o silenciar do meu ditado. Tenha, eu lhe peço, piedade do derrotado: cubra-se. Não posso, não consigo, não suporto, não admito, não tolero colocar-me diante de uma mulher descoberta.

Senhor, eu vejo agora que minha lei foi a minha doença, que minha lei foi a minha infração. A maior abnormidade, reconheço, é a deste inquisidor: bobo sou eu. Fica sendo este o meu depoimento prestado, fica sendo esta a minha confissão.