4.

Quando começa a derradeira condenação
do sr. Decoroso

os andarilhos

Onde estamos?

Não sei.

Você conhece este lugar?

Não. Nunca estive aqui.

Você está muito molhado?

Estou. E bebi muita água.

Foi uma enxurrada e tanto.

Você acha que...

Que conseguimos?

Que saímos da cidade?

Não estou vendo ninguém que costumava ver.

Nem os prédios, nem os carros, nem o horizonte.

Então acho mesmo que...

as vizinhas

Como isso tudo vai acabar?

Como tudo acaba: de um jeito ou de outro.

Você gosta de morar nesta cidade?

Não tem outra, tem?

Não sei, não sei. A vizinha do andar de cima disse que já foi para o litoral.

Litoral?

Lá, onde fica a Guanabara.

Existe mesmo uma Guanabara?

Dizem que é linda.

Melhor do que aqui?

Isso eu já não sei.

Até que aqui não é ruim.

o olheirento

É assim que vai acabar esta farsa?

o apregoador

Que de farsa, afinal, não sei se teve muito.

o olheirento

O pior da farsa é quando ela se revela menos farsante do que nós pensávamos.

o apregoador

Esperamos muito que a verdade fosse revelada após o soar dos clarins e o afastar das nuvens do céu do Destinatário. Depois, esperamos que viesse dos veredictos do sr. Decoroso.

o olheirento

No final das contas, a verdade é uma coisa boba.

a impostora

Depois de todos os animados episódios vividos nesta cidade, os saltos dos meus sapatos ficaram gastos; as penas dos meus chapéus perderam o viço; meus colares estão prestes a arrebentar; a maquiagem está no fim; algumas perucas desfiaram, e uma das minhas principais fantasias está a servir num outro corpo de mulher... Se eu nunca mais vestir as coisas que eu já vesti, perco a impostura? Talvez eu passe uma hora na costureira. Talvez eu possa visitar um alfaiate.

o bem composto

Ainda tenho uma toga para fazer, uma toga magna, com a melhor lã até hoje encontrada, lã negra especialmente encomendada para uma vestimenta plena de decoro e compostura.

a amada

Ainda tenho de ser amada.

a quituteira

Tenho quitutes para fritar.

o prestável

Tenho que prestar.

o candidato

Tenho uma candidatura.

o versificador

Ainda tenho estrofe

Rima

E um pouco de codeína.

o arrombador

Tenho muitas portas para arrombar.

a menininha de tranças

Tenho bolas para fazer, tenho bolas para estourar.

os passantes

Temos de passar, passar, passar, passar, passar.

o decoroso

E eu ainda tenho uma condenação a proclamar. Um pouco de silêncio, por favor, nas ruas e apartamentos! Serei breve. E, como todo bobo confesso e julgado, não permanecerei longe do convívio social. A culpa será um bom laço e um instrumento eficiente para me manter integrado à força à comarca. Esta falida inquisição penará do mesmo modo que penaram os hereges que aqui tiveram seus pecados condenados: permanente e incessantemente.

Venha, bobo, ajude seu semelhante. Aproxime-se da janela. Apoie as mamas no beiral. Agora, ajude-me a passar para o lado de fora. Coloque-se diante de mim. Isso mesmo. Vamos nos dar as mãos. Segure-me com o máximo de firmeza que conseguir. Não me solte. Obrigado. Passaremos uma grande temporada assim: você pisará o chão; eu nada pisarei. Vou proferir a minha condenação.

Condeno-me, o Decoroso, doravante incluído no odioso panteão dos bobos pelas razões já expressas em minha confissão, a dependurar-me nas alturas deste prédio durante todo o tempo de vigência da minha culpa, exposto à atmosfera desabrigada desta cidade e suspenso unicamente pelas palmas das mãos de um homem torpe. Lamento os xingamentos, lamento os dedos que apontei. Podem xingar-me à vontade, podem apontar-me por desforra. De tudo isso serei merecedor. Saibam vocês, citadinos, que tremularei com pesar e arrependimento: eis, hasteado, o que restou da minha lei. Se ela não serve para mais ninguém, servirá para mim. Proferida a sentença, desfaz-se este tribunal, e eu começo a penar devotado ao meu último dito.

Pronto, ordinários! Podem recomeçar com o palavrório.