PARTE I
PRIMÓRDIOS DA IMPRENSA
NO BRASIL
...
OS PRIMEIROS PASSOS DA PALAVRA IMPRESSA
Marco Morel
O surgimento da imprensa periódica:
ordenar um espaço complexo
Em relação à Europa ou mesmo às outras partes das Américas, os papéis impressos feitos no Brasil surgiram mais tarde. Enquanto no continente europeu já existiam tipografias desde meados do século xv, nas Américas a atividade impressora (embora escassa) surge no século xvi, décadas após a chegada dos europeus. A imprensa periódica propriamente nasce no século xvii no chamado Velho Mundo e somente no século seguinte surge nas Américas inglesa e espanhola. Eram, ainda assim, iniciativas com defasagens em relação à Europa, sob vigilância e repressão das autoridades e aparecendo de forma esparsa. Nesse sentido, a experiência brasileira não foi destoante na América, embora só tenha surgido de forma sistemática a partir de 1808, com a chegada da Corte portuguesa e a instalação da tipografia da Impressão Régia.
A censura prévia aos impressos era exercida, no âmbito dos territórios pertencentes à nação portuguesa, pelo poder civil (Ordinário e Desembargo do Paço) e pelo eclesial (Santo Ofício). Ainda em princípios do século xix, vários homens de letras nascidos na América portuguesa, como os futuros visconde de Cairu (José da Silva Lisboa) e marquês de Maricá (José Mariano da Fonseca), exerciam o cargo de censor. Ao longo do tempo foram elaboradas 24 listas com títulos e critérios para a interdição de obras. Entravam parâmetros religiosos, políticos e morais – numa atitude não muito diferente do que ocorria (com diferentes gradações) em todas as partes do mundo ocidental, embora em alguns países os impressos florescessem em maior quantidade. Tais características não precisam ser vistas apenas pelo ângulo restritivo ou negativista, pois, como veremos, antes mesmo do órgão oficial já se viam livros e outros impressos por aqui.
Antes mesmo de 1808, foi possível inventariar mais de trezentas obras de autores nascidos no território brasileiro, incluindo não só livros, mas impressos anônimos, relatando festejos e acontecimentos, antologias e índices, além de alguns manuscritos inéditos de autores clássicos.[1] Eram textos variados: desde narrativas históricas até poesias, passando pela agricultura, medicina, botânica, discursos, sermões, relatos de viagens e naufrágios, literatura em prosa, gramática e até polêmicas.
Por algum tempo historiadores debateram, sem chegar a conclusões efetivas, sobre a existência de prelos em Pernambuco durante a ocupação holandesa no século xvii, prevalecendo a tendência de negar a presença dessa atividade no território pernambucano. Da mesma forma quase não ficou registro de um impressor que, em Recife, 1706, estampou letras de câmbio e orações devotas. E quarenta anos depois, no Rio de Janeiro, uma tipografia, de Antonio Isidoro da Fonseca, chegou a publicar quatro pequenas obras. Ambas tentativas foram abortadas pela coerção das autoridades. Além dessas experiências tênues, vale lembrar as quatro tipografias instaladas pelos jesuítas no começo do século xviii na região das Missões, no Sul do continente americano: localizavamse próximas aos rios Paraná e Uruguai, em territórios que hoje pertencem à Argentina e ao Paraguai, área contígua às fronteiras com o Brasil. Os impressos aí produzidos por tipógrafos (que eram índios guaranis) circularam entre os demais aldeamentos, inclusive os situados em região hoje brasileira.
A ênfase no atraso, na censura e no oficialismo como fatores explicativos dos primeiros tempos da imprensa (ou de sua ausência) não é suficiente para dar conta da complexidade de suas características e das demais formas de comunicação numa sociedade em mutação, do absolutismo em crise.
Sem negar aqueles três fatores, em geral mais facilmente perceptíveis até pelo acúmulo de trabalhos e referências nessa linha, é possível acrescentar outro elemento para facilitar nossa compreensão: o de que o surgimento da imprensa periódica no Brasil não se deu numa espécie de vazio cultural, mas em meio a uma densa trama de relações e formas de transmissão já existentes, na qual a imprensa se inseria. Ou seja, o periodismo pretendia, também, marcar e ordenar uma cena pública que passava por transformações nas relações de poder que diziam respeito a amplos setores da hierarquia da sociedade, em suas dimensões políticas e sociais. A circulação de palavras – faladas, manuscritas ou impressas – não se fechava em fronteiras sociais e perpassava amplos setores da sociedade que se tornaria brasileira, não ficava estanque a um círculo de letrados, embora estes, também tocados por contradições e diferenças, detivessem o poder de produção e leitura direta da imprensa.
(A) (B)
(A) Paulo e Virgínia, folhetim de sucesso, “traduzido em vulgar” e um dos primeiros romances impressos pela Impressão Régia, no ano de 1811, com licença de Sua Alteza Real. (B)A impressão de textos sobre exploração mercantil do país era frequente, a exemplo desta Memória econômica sobre a raça do gado lanígero da capitania do Pará, de autoria do Tenente Coronel João da Silva Feijó, de 1811, oferecida à Sua Alteza Real.
As relações hierárquicas existentes no território brasileiro nessa passagem do século xviii para o xix podem ser representadas em mosaico e ultrapassam visões simplistas de uma sociedade dicotômica composta apenas de um punhado de senhores e uma multidão de escravos e de uma metrópole onipotente que tudo controlava. Estima-se, por exemplo, que um terço da população do Brasil era classificada como de “pardos livres” já no começo do século xix. Diversificados foram os espaços que serviram de base para as transmissões de palavras, impressas ou não. Alguns já estabelecidos, como as administrações civil, militar e eclesiástica, comportando ou não transformações; a expansão ou redefinição de fronteiras territoriais internas, para agricultura, mineração, colheita extensiva ou pecuária; as rotas de comércio terrestre ou marítimo, de subsistência ou exportação, com seus variados tipos de viajantes; as instâncias de representatividade eleitoral já estabelecidas a nível municipal e as que se implantavam a nível provincial e nacional. Grupos políticos com alguma estabilidade e identidade formavam-se baseados em vínculos diferenciados, como vizinhança, parentesco, clientela, trabalho (livre ou escravo), interesses materiais ou afinidades intelectuais, em torno de chefes, cidades, regiões ou sob determinadas bandeiras, que poderiam mudar com os contextos. Afinal, as identidades políticas eram mutáveis, ainda mais nesse período de definições e embates. Associações secretas, reservadas ou públicas surgem já no século xviii e ganham novo impulso a partir da Independência, com altos e baixos e uma verdadeira explosão quantitativa a partir de 1831, ano inicial das Regências. É dentro dessas tramas que surge a imprensa: longe de ser um papel sagrado, marcava e era marcada por vozes, gestos e palavras.
Nossos olhares sobre os começos da imprensa já estão condicionados por quase dois séculos de trabalhos sobre o assunto, gerando camadas de conhecimento produzidas em contextos diferentes, com preocupações distintas. É importante, em boa medida, tentar “limpar o terreno” em busca de uma reaproximação com aquela época (ao mesmo tempo tão próxima e distante), seus dilemas e desafios.
A ênfase à censura e ao oficialismo para caracterizar o surgimento da imprensa no Brasil, embora compreensível e justificável, pode conter elementos anacrônicos, isto é, quando tratamos de um período passado direcionando abordagens e preocupações para questões de nosso tempo recente, como o corajoso combate aos autoritarismos e censuras oficiais do século xx. Em certa medida, tal ênfase alimentou-se também do nacionalismo antilusitano que marcou boa parte da intelectualidade brasileira nos séculos xix e xx. E, apesar do valor empírico e interpretativo de muitos trabalhos, eles podem deixar de lado, por conseguinte, uma compreensão mais específica da dinâmica e de certos aspectos de uma sociedade que, em princípios do século xix, era ainda marcadamente organizada e concebida nos moldes absolutistas (com seus diferentes graus de ilustração), em crise e transformação.[2]
Dessa forma, parece ser sugestivo compreender que a primeira geração da imprensa periódica produzida no Brasil não surge no vazio, numa espécie de gestação espontânea ou extemporânea, mas baseada em experiências perceptíveis. Além da já citada cena pública complexa onde ela se inseria, havia uma tradição de atividades
A edição de livros técnicos atendia |
impressas da nação portuguesa, à qual o Brasil pertencia, sem esquecer a possibilidade de os primeiros redatores propriamente brasileiros terem aprendido e convivido, ainda que informalmente, com a imprensa de outros países. Foi o caso dos estudantes brasileiros em Coimbra que circulavam pela Europa ou de emissários enviados pela Coroa portuguesa aos quatro cantos do mundo, sem esquecer comerciantes, traficantes de escravos e navegadores. Questiona-se, assim, a noção, às vezes apresentada de forma simplista, que procura contrapor o florescimento da imprensa às repressões do absolutismo. A imprensa, periódica ou não, surgiu e se consolidou sob determinadas condições e características, que não eram, evidentemente, as de uma democracia moderna, de sociedades industriais ou de uma cultura de massas.
Nesse sentido, é oportuno destacar ainda um aspecto, aliás citado com frequência pelos enciclopedistas do século xviii: apesar da censura prévia oficial, o papel impresso gerava novos ordenamentos, conteúdos e transmissão de palavras que não eram somente impressas, mas que existiam, está claro, faladas ou manuscritas. A chamada opinião pública popular do século xviii (vozes e rumores, como expressões verbais de teias sociais complexas no meio urbano, mas também no rural) marcava corações e mentes.
Do mesmo modo, as práticas de leitura em alta voz e coletivas eram constantes nos antigos regimes, tanto por iniciativa oficial (as leituras dos bandos e pregões com os atos do governo) e da Igreja, quanto no âmbito de comunidades variadas: existe mesmo uma sugestiva iconografia europeia da época apontando como a leitura da imprensa periódica, em seus primeiros tempos, era ainda marcada por essa oralização coletiva. No mesmo caminho, é expressivo levar em conta a pluralidade e a intensidade dos escritos nas sociedades de tipo absolutista que, manuscritos, circulavam de formas variadas, através de correspondências particulares, cópias de textos, papéis e folhas que pregavam em paredes e muros ou rodavam de mão em mão, muitas vezes através da atividade de copistas. Tais formas de transmissão manuscritas e orais, típicas daquelas sociedades, marcavam e relacionavam-se à imprensa periódica, que não se afirmara ainda como o principal meio de transmissão, embora tenha alterado bastante e dado outras feições à cena pública em sua dimensão cultural.
Correio, Gazeta e outras experiências pioneiras
O surgimento propriamente da imprensa no Brasil ocorre em 1808. Já no seu primeiro número, junho desse ano, o Correio Bra ziliense referia-se ao Brasil como Império e tornava-se pioneiro em trazer tal denominação para a imprensa. Mas não era o criador isolado dessa fórmula, que não tinha caráter premonitório. Hipólito da Costa, redator desse periódico em Londres (onde foram redigidos outros jornais em português), expressava ampla articulação política – o chamado projeto do Império luso-brasileiro, capitaneado pelo fidalgo português D. Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro conde de Linhares e primeiro mecenas do redator. Projeto que desaguaria, a contragosto de seus adeptos, na separação entre Portugal e Brasil, rompendo os laços políticos entre os dois hemisférios. Imperio do Brazil, sim, mas na galáxia da Nação Portugueza e se possível como Sol e não mero planeta: esse era o sentido das palavras do Correio Braziliense entre 1808 e começos de 1822, quando finalmente aceitaria a Independência brasileira.
Publicado em Londres por Hipólito |
É sabido que o Correio Braziliense não foi o primeiro jornal feito na Europa a ser lido regularmente no continente do Brasil, como então se dizia. Desde 1778, por exemplo, a Gazeta de Lisboa circulava pela América portuguesa, inclusive no Rio de Janeiro. O mesmo ocorria com as demais publicações impressas em Portugal e outras partes da Europa, como os 15 periódicos existentes durante o governo (1750-1777) do marquês de Pombal ou os 9 que circulavam em Portugal em 1809: tratando de divulgação de cultura e utilidades, eram noticiosos, científicos, literários e históricos – e lidos pelos portugueses da Península e da América. Ou seja, havia jornais produzidos na Europa e normalmente recebidos no Brasil pelo menos desde o século xviii.
No entanto, essa imprensa periódica, embora disseminasse informações, opiniões e ideias, não praticava até 1808 o debate e a divergência política, publicamente, no contexto do absolutismo (ainda que ilustrado) português. E é na criação de um espaço público de crítica, quando as opiniões políticas assim publicizadas destacavam-se dos governos, que começa a instaurar-se a chamada opinião pública. Apesar de sofrer restrições e até perseguições do governo luso-brasileiro por suas contundência oposicionista, sabese que o Correio Braziliense era lido sistematicamente no Brasil.
A partir de 10 de setembro de 1808 passa a sair a Gazeta do Rio de Janeiro, na Impressão Régia então recém-instalada no território do Novo Mundo com a chegada da Corte portuguesa. Redigida inicialmente por frei Tibúrcio da Rocha, que abandona essa atividade quatro anos depois com a morte de D. Rodrigo de Sousa Coutinho (responsável direto pelo jornal). Em seguida, o redator foi Manuel F. de Araújo Guimarães (até meados de 1821), o mesmo que redigiria também O Patriota (1813-14) e O Espelho (1822), ambos no Rio de Janeiro. Com a mudança de orientação política após o movimento liberal português de 1820, a Gazeta do Rio de Janeiro tem novo redator, o cônego Vieira Goulart, que publicaria também O Bem da Ordem, jornal que pretendia ser lido pelo “povo rude e sem aplicação às letras”, segundo suas próprias palavras. Era uma atitude encontrada em parte dos redatores de diferentes posições políticas – a preocupação de atingir um público mais amplo e visto como despossuído e, por isso, carente de Luzes.
A Gazeta, fazendo jus ao nome, seguia o padrão das gazetas europeias de Antigo Regime, que circulavam na esfera do Estado absolutista, campo de disputas simbólicas e não de referências monolíticas. Até mesmo um crítico ácido como Voltaire elogiava tais gazetas pela dimensão cosmopolita e por fazerem circular palavras e informações, ainda que restritas. A própria Impressão Régia não pode ser considerada apenas divulgadora de papéis oficiais, pois desenvolveu ampla e complexa atividade tipográfica, tornando-se a primeira editora a funcionar em território brasileiro.
O Patriota, edição da Imprensa |
É comum colocar-se, em estudos históricos, a contraposição entre a Gazeta do Rio de Janeiro (enquanto jornal oficial) e o Correio Braziliense (que fazia críticas ao governo). Porém, uma comparação atenta indica que, além dessa evidente dicotomia oposição/situação, existiam convergências entre estes dois periódicos. Tanto a Gazeta quanto o Correio defendiam idêntica forma de governo (monárquica), a mesma dinastia (Bragança), apoiavam o projeto de união luso-brasileira e comungavam o repúdio às ideias de revolução e ruptura, padronizado pela crítica comum à Revolução Francesa e sua memória histórica durante a Restauração.
Além desses fatores, uma leitura sistemática indica como, a partir de meados de 1821 (após a Revolução do Porto e com o ministério de José Bonifácio e convocação da Constituinte brasileira), a Gazeta do Rio (o título é reduzido) passa a defender o liberalismo e a modernidade política (citando Rousseau e outros da mesma linha). E acompanha de perto o processo de separação entre Portugal e Brasil, posicionando-se a favor da independência deste antes mesmo do Correio Braziliense, que levava a desvantagem da distância geográfica e das comunicações demoradas entre os dois Hemisférios. Ou seja, é possível enxergar nuances nessa polarização, às vezes maniqueísta, entre esses dois jornais luso-brasileiros, vistos mais tarde como brasileiros apenas. Os dois faziam parte do mesmo contexto político e mental e, ainda que com diferenças, partilhavam um universo de referências comuns.
No mesmo período do governo joanino no Brasil (1808-1821) circulou na Bahia, com tipografia própria, o periódico A Idade d’Ouro do Brazil, desde 1811 até 1823, de propriedade de Manoel Antonio da Silva Serva e com vários redatores ao longo do tempo. Inicialmente situado nos limites das gazetas de Antigo Regime, trazia notícias internacionais e sobre o comércio da cidade, da vida cotidiana, festejos, além das ciências e artes. Após o movimento liberal ibérico, o jornal entraria na defesa das modernas liberdades, a exemplo de outros na época, e não sobreviveu ao fim da guerra de Independência na Bahia.
Através da publicação de O Patriota, que circulou entre 1813 e 1814 sob os prelos da Impressão Régia, no Rio de Janeiro, gerou-se um espaço para manifestação da vida intelectual lusobrasileira, colocando-se o Brasil como centro da nação portuguesa. Nesse periódico, voltado para a divulgação das ciências e das letras, encontramos obras dos “inconfidentes” Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antonio Gonzaga, bem como relatos de viajantes luso-brasileiros dos séculos xviii, sem esquecer a colaboração de portugueses (alguns nascidos no Brasil) situados em outros continentes, como Ásia e África. Tratava-se de uma iniciativa, ainda aqui, dos homens de letras que até então haviam atuado sob a égide do conde de Linhares. A partir da morte deste em 1812, tentavam manter-se agrupados e atuantes na cena pública, explorando as contradições no interior da Coroa portuguesa – e sem pregar abertamente um engajamento de tipo patriótico moderno, ao contrário do que seu título parecia sugerir. Todavia, não se constituiu em mero papel oficioso, tanto que, pela força das circunstâncias, teve duração efêmera, não resistiu às pressões na corda bamba do patriotismo.
Reino da opinião pública
Nas duas primeiras décadas do século xix surge, através dos papéis impressos no Brasil, a chamada opinião pública. Mas afinal, o que significa essa expressão? Há quem a tome de forma literal como personagem ou agente histórico dotado de vontade, tendência e iniciativa próprias. Porém, trata-se, antes de tudo, de palavras. A expressão opinião pública é polissêmica – e também polêmica. Conhecer a trajetória dessa noção numa determinada sociedade, situada cronologicamente e geograficamente, pode permitir uma aproximação da gênese da política moderna, isto é, pós-absolutista, cujos discursos invocando a legitimidade desta opinião continuam a ter peso importante na atualidade. Ou seja, a opinião pública era um recurso para legitimar posições políticas e um instrumento simbólico que visava transformar algumas demandas setoriais numa vontade geral.
Considera-se, em geral, que opinião pública remete a um vocabulário político que desempenhou papel de destaque na constituição dos espaços públicos e de uma nova legitimidade nas sociedades ocidentais a partir de meados do século xviii. Essa visão percebia no nascimento da opinião um processo pelo qual se desenvolvia uma consciência política no seio da esfera pública. Diante do poder absolutista, havia um público letrado que, fazendo uso público da razão, construía leis morais, abstratas e gerais, que se tornavam uma fonte de crítica do poder e de consolidação de uma nova legitimidade política. Ou seja, a opinião com peso para influir nos negócios públicos, ultrapassando os limites do julgamento privado.
Realizando-se, sobretudo, nos periódicos impressos, essa opinião pública tinha dois sentidos básicos na época de seu surgimento. Ou era vista como “rainha do mundo”, fruto da elaboração dos sábios ilustrados e enciclopedistas, como sinônimo da soberania da razão, isto é, uma simbiose entre o reino da opinião e a república das letras. Ou então, num sentido mais jacobino ou revolucionário, afirmada como resultado da vontade da maioria de um povo, que se expressava através da participação de setores da sociedade em agremiações e organizações políticas, ou seja, vinculada à ideia de democracia direta. A primeira concepção era criticada como aristocrática e, a segunda, como matemática (a soberania da maioria). Vê-se que essas discussões situavam-se no quadro da imprensa artesanal, isto é, não empresarial, que caracterizou a primeira metade do século xx no Brasil – diferenciando-se, pois, das atuais enquetes quantitativas de opinião e dos meios de comunicação de massa, que remetem a um contexto bem diferente.
O momento crucial para a emergência de uma opinião pública no Brasil, portanto, situa-se nos anos 1820 e 1821, contexto que antecede a Independência e marca mudanças significativas na estrutura política da Península Ibérica e de seus domínios na América. Em 1820, como é sabido, ocorreram as revoluções constitucionalistas na Espanha e em Portugal, inspiradas no modelo liberal da Constituição de Cadiz (1812). Esses acontecimentos teriam impacto importante nos domínios portugueses e espanhóis na América.
Entre as primeiras medidas da Junta de Governo da Revolução Constitucional portuguesa estava o decreto estabelecendo a liberdade de imprensa, datado de 21 de setembro de 1820. Em seguida, a 13 de outubro, as mesmas autoridades liberaram a circulação dos impressos portugueses fora de Portugal. Enterravam, assim, a censura prévia. Essas iniciativas tocavam diretamente o Brasil, que sediava a monarquia portuguesa, pois o rei D. João vi mantinha-se no Rio de Janeiro. Vendo seu poder dividido com a Junta de Governo revolucionária e não querendo perder terreno, o monarca assina, por sua vez, um decreto em 2 de março de 1821 suspendendo provisoriamente a censura prévia para a imprensa em geral. Tratava-se de uma decisão tardia, já que a livre circulação de impressos tornara-se incontornável naquele momento no Brasil. A partir daí, poderia se afirmar que a liberdade de imprensa estaria instalada no Brasil. Mas o que se verifica em seguida não é uma linha progressiva e ascendente de crescimento dessa liberdade. Houve um crescimento da imprensa, sim, mas a questão do controle desta atividade seguiria uma linha sinuosa, com recuos e expansões: os dilemas, vividos pelos redatores de diversas correntes políticas, se cruzariam com as preocupações governamentais e com as constantes alterações dessa legislação pelos parlamentares.
Uma das figuras marcantes dessa primeira geração da imprensa brasileira, o baiano Cipriano Barata, afirmaria em seu jornal Sentinela da Liberdade (1823):
Toda e qualquer Sociedade, onde houver imprensa livre, está em liberdade; que esse Povo vive feliz e deve ter aumento, alegria, segurança e fortuna; se, pelo contrário, aquela Sociedade ou Povo, que tiver imprensa cortada pela censura prévia, presa e sem liberdade, seja debaixo de que pretexto for, é povo escravo, que pouco a pouco há de ser desgraçado até se reduzir ao mais brutal cativeiro.[3]
O tema da liberdade de imprensa toca em permanências de longa duração histórica e em questões ainda mal resolvidas nos dias de hoje.
O estilo panfletário, entre vozes e espaços
Das entranhas da República das Letras (isto é, do conjunto de letrados e escritores) emergiu um tipo de ator histórico cujo perfil coletivo tinha traços peculiares. A imprensa de opinião entre meados do século xviii e começo do xix fez entrar em cena essa figura de homem público, até então inexistente no território da América portuguesa: o redator panfletário. Entre as mutações culturais vindas com a manifestação da modernidade política ocidental surge esse homem de letras, em geral visto como portador de uma missão ao mesmo tempo política e pedagógica. É o tipo do escritor patriota, difusor de ideias e pelejador de embates e que achava terreno fértil para atuar numa época repleta de transformações.
Ao contrário do que poderia parecer, tais letrados não tinham exatamente o mesmo perfil dos filósofos iluministas ou dos sábios enciclopedistas do século xviii, embora invocassem a esses com frequência. Foi a partir de processos como a Independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e os movimentos liberais ibéricos, por exemplo, que surge esse intelectual tão característico desses inícios da Era Contemporânea, do qual Thomas Paine foi um dos paradigmas. Publicavam livros talvez, mas, sobretudo, impressos de combate imediato, de apoio/ataque a pessoas e facções e de propagação das “novas ideias”, dirigidos ao povo e à nação ou, quando fosse o caso, para formá-los
No começo do século xix, ou seja, após a vaga revolucionária, o perfil desses novos intelectuais, no mundo sob influência europeia, podia ser repartido em duas grandes tendências: de um lado, um heterogêneo conjunto de escritores patrióticos e liberais e, de outro, nostálgicos da República das Letras tal como ela se apresentava em meados do século xviii (como José Bonifácio de Andrada e Silva, que não era um típico redator de periódicos). Eram características moldadas pelo rescaldo da onda revolucionária, em espaços públicos que se transformavam. É dentro desse quadro mais amplo de mutações culturais (e não exatamente como ilumi nistas) que se encontra a primeira geração de redatores brasileiros. Nessa época, não eram chamados de jornalistas, mas de redatores ou gazeteiros, enquanto os jornais eram comumente denominados de gazeta, folha ou periódico. E tais periódicos, por sua vez, não devem ser confundidos com os panfletos propriamente ditos, ou pasquins, que eram folhas volantes e avulsas, quase sempre anônimas e sem continuidade. Nessa primeira geração da imprensa brasileira não havia incompatibilidade entre o local, o nacional e internacional, nem entre as dimensões opinativas e informativas: o cotidiano e questões locais misturavam-se com discussões doutrinárias dos rumos que o Estado e a nação deveriam tomar, ao lado de notícias nacionais, internacionais e interprovinciais.
O que então se conhecia por imprensa periódica é bem diferente do que hoje se compreende como tal, inclusive em seu suporte físico: apesar de algumas iniciativas estáveis, havia grande número de títulos efêmeros. Mesmo demandando alguns recursos financeiros, não era preciso ser muito rico para fazer circular um jornal, que tinha formato pequeno e poucas páginas, com anúncios escassos. Tanto um jornal governista quanto um oposicionista tinham um alcance, em princípio, semelhante. E não era necessário ser um privilegiado social para comprar eventualmente um exemplar, cujo preço estava acessível até mesmo para um escravo de ganho que se interessasse em sua leitura.
A maioria dos homens de letras dessa geração, independente do posicionamento político, escrevia no chamado estilo panfletário, que expressou uma das fases mais criativas e vigorosas dos debates políticos mundiais e da imprensa brasileira em particular, só vindo a desaparecer na segunda metade do século xx. O estilo panfletário (difícil de ser redigido com qualidade e hoje em franco desuso na imprensa) alcançava eficácia por várias características retóricas interligadas, como: capacidade de convencer e de atacar, espírito mordaz e crítico, linguagem literária, sátira, requerendo ao mesmo tempo densidade doutrinária e ideológica e agilidade para expressar, em situações específicas e circunstanciais, uma visão de mundo geral e definida. Havia relação estreita dos livros com os jornais periódicos, até porque ambos podem ser definidos como imprensa, num sentido ampliado. Os jornais (também vendidos nas livrarias) custavam entre 40 e 80 réis o exemplar, de acordo com o número de páginas – o que os tornava muito mais acessíveis que os livros. E era comum, na época, impressos desse tipo transcreverem (e traduzirem, quando era o caso) longos trechos de livros, tornando-se, assim, veículos de disseminação. O jornal realizava também divulgação (e reinterpretação, com frequência) dos livros nos anos 1820 e 1830, antes de se expandir a publicação de volumes em folhetins nos periódicos. Ou seja, mesmo quem não tinha acesso a tais livros, poderia eventualmente lê-los em extratos na imprensa periódica. Existe um recorrente lugar-comum sobre a influência das novas ideias que, através de livros e outros impressos, teriam atravessado o oceano e causado, ou acelerado, as independências nas Américas, inclusive no Brasil. Tal esquema explicativo deve ser visto com cautela. As leituras e interpretações de tais impressos poderiam ser polissêmicas, de acordo com cada personagem ou momento. Não havia, necessariamente, um caminho de tipo linear e evolutivo, que vinculava as luzes das novas ideias europeias ao estímulo das independências. Primeiro, porque essas duas expressões, luzes e novas ideias, são, em geral, utilizadas de maneira imprecisa e abrigam, em seu bojo, autores, postulados, tendências e ideias bastante diferenciadas entre si, desde as várias vertentes da Ilustração do século xviii, passando pelas diferentes fases e modelos da Revolução Francesa e pelos liberalismos das primeiras décadas do século xix. Segundo, mesmo se aceitássemos uma coesão monolítica de tais referências, para que tal linha seguisse seu curso, seria preciso que os grupos políticos e letrados do mundo americano fossem também homogêneos e coerentes entre si e que recebessem tais postulados de maneira uniforme, transformando de modo mais ou menos repentino a percepção da realidade em que viviam e passando à disposição de agir para transformá-la – o que nos parece uma supervalorização do desempenho que a leitura pode ter sobre os agentes históricos. Haveria, pois, essa relação unívoca e quase imediata (isto é, sem mediações) entre luzes, elites nativas e independência? Fica uma questão para ser repensada. Os impressos viajavam, transpunham mares e faziam “viajar” seus leitores. Nota-se, aliás, na ampla tradição da literatura de viagens a conotação de descobrimento, de busca de conhecimento (e de apropriação) do outro, do diferente. A tênue fronteira entre o exótico e o exato, entre o igual e o semelhante. Navegantes, negociantes, emigrantes, cientistas, turistas, estadistas, militares e militantes – viagem implica contato, em marcar e ser marcado. A viagem desloca o tempo histórico e desvela a pluralidade de tempos de uma época. Ainda mais para os viajantes que transpõem fronteiras em contato com revoluções: impressos proibidos ou desconhecidos, palavras mobilizadoras, recursos, armamentos e munições, sementes, exemplos e lições. Outra novidade, com impacto a nível local: os pontos de venda e circulação da imprensa como espaços urbanos significativos nas principais cidades brasileiras em princípios do século xix. As tipografias e as primeiras livrarias eram habitualmente frequentadas por redatores e leitores: conversas, contatos, laços de solidariedade política, local de fazer compras. Pontos de venda dos impressos, leituras coletivas e cartazes e papéis circulando de maneira intensa pelas ruas incorporam-se ao cotidiano da população. A força da palavra falada, manuscrita ou impressa, e dos contatos pessoais. Note-se que as tipografias e livrarias compunham um comércio no sentido ampliado: não só em geral situavam-se nas “ruas do comércio”, mas vendiam também, quase sempre, produtos diversos, como roupas, lingeries, louças, bijuterias, perfumes, papelaria, mármores, remédios... O livreiro e o tipógrafo francês Pierre Plancher, por exemplo, instalado na rua do Ouvidor durante o Primeiro Reinado, ganhou dinheiro não só com jornais e livros importados ou com os que imprimia no Rio de Janeiro, mas também com a venda do purgativo Le Roy. Há igualmente inúmeros registros de leituras em grupo. O Diário Fluminense, oficial, alertava no ano agitado de 1831: “Nem todos os que se ajuntam em Casas de Livreiros vão à comprar Livros; […] aí se podem congregar em santa confraria.”[4]
Esse tipo de contato (e possível agrupamento) era visível com certa frequência. Evaristo da Veiga, livreiro, redator e autor da letra do Hino da Independência, veio a público denunciar um de seus colegas de profissão, Francisco de Paula Brito, reclamando contra o hábito de “[…] lerem-se Periódicos grátis na Praça da Constituição”. Paula Brito defendeu-se: “Jamais em minha casa se leram Periódicos de graça, e eu não posso privar que um Freguês que paga com seu dinheiro qualquer folha se apresse a lê-la; eis o que às vezes acontece.” Evaristo insistia na reclamação, reforçando o argumento com as conhecidas práticas de sociabilidades nos locais de venda e impressão, que eram também pontos de leitura e encontro: “É costume nas casas, aonde se vendem periódicos, facilitar-se a leitura aos que desejam”.[5] A generosidade de Paula Brito era notória e ele conscientemente buscava ampliar o círculo da República das Letras, tanto que seria o principal incentivador e primeiro empregador do então jovem e desconhecido Machado de Assis.
As primeiras décadas do século xix foram marcadas pela expansão do público leitor, das tiragens e do número de títulos, dando à escrita impressa uma crescente importância, apesar de ainda diminuta em relação ao total da população. A alfabetização era escassa, mas o rótulo de “elitismo” para a imprensa que surgia deve ser visto com cautela. Mesmo no Brasil escravista. Havia cruzamentos e interseções entre as expressões orais e escritas, entre as culturas letradas e iletradas. E a leitura, como nos tempos então recentes do Antigo Regime, não se limitava a uma atitude individual e privada, mas ostentava contornos coletivos. Nesse sentido, a circulação do debate político ultrapassava o público estritamente leitor, embora sua produção impressa fosse monopolizada por um conjunto restrito de redatores heterogêneos.
Os primeiros jornais
Baseados nas tipografias e nas rotas de comércio como espaços de difusão cultural e sociabilidade, esses novos agentes culturais e políticos, os redatores, tinham nome e rosto na sociedade que buscava se efetivar como nação brasileira. Eram, com frequência, construtores do Estado nacional.
Na primeira geração da imprensa surgiram figuras notáveis no estilo panfletário, com variadas e até antagônicas posições no espectro político: o conservador e erudito José da Silva Lisboa (visconde de Cairu), redator de vários folhetos e jornais de combate; Evaristo da Veiga e sua influente Aurora Fluminense (1827-1839) criticando D. Pedro i e depois apoiando as regências, formava opiniões e expressava uma ampla rede de associações a nível nacional; o republicano e posteriormente socialista Antonio Borges da Fonseca com vários títulos, destacando-se O Repúblico, criador de uma ortografia ortofônica bem particular que almejava a formulação de uma língua nacional; o neojacobino Ezequiel Correa dos Santos e seu Nova Luz Brasileira pregando uma reforma agrária; o lendário carmelita frei Joaquim do Amor Divino Caneca e seu Tiphis Pernambucano, que custaria a vida de seu redator; o Revérbero Constitucional Fluminense, do incansável e onipresente cônego Januário da Cunha Barbosa e do maçom Joaquim Gonçalves Ledo, com decisiva atuação na Independência, em 1822; O Observador Constitucional, em São Paulo, 1829, do italiano Libero Badaró, assassinado no ano seguinte devido à sua atuação no jornal; O Carapuceiro, ao mesmo tempo conservador e irresistivelmente satírico, do padre pernambucano Lopes Gama, mesclava saborosa críticas de costumes e agudos embates doutrinários; outros defendiam inabaláveis o ponto de vista governamental, como a Gazeta do Brasil e o Diário Fluminense, com vários redatores; nem mesmo o imperador Pedro i ficaria isento desse clima, publicando, anônimo ou com pseudônimo, textos igualmente provocantes.
A lista seria extensa, com centenas de títulos e dezenas de redatores somente até a década de 1830. (Nesse ano, Evaristo da Veiga calculava que, apenas no Rio de Janeiro, duzentas pessoas sobreviviam da atividade impressa, entre tipógrafos, livreiros, redatores e outras profissões diretamente derivadas.) Eram publicações geradas inicialmente em determinados polos geopolíticos e comerciais mais ativos no período colonial, como Rio de Janeiro e Bahia (tiveram imprensa durante o governo de D. João vi), Pernambuco, Maranhão e Pará; posteriormente e em menor escala, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, São Paulo e Rio Grande do Sul; mais tarde ou com menos força em outras províncias. Circulavam por todo o território que se constituía em nacional. Basta verificar, por exemplo, as constantes citações recíprocas entre os periódicos de diferentes províncias. Eram elos de tipo nacional que se constituíam, também, pela palavra impressa.
Uma anotação sumária indica os primeiros passos da imprensa nas províncias: Aurora Pernambucana, 1821; O Conciliador do Mara nhão, 1821; O Paraense, do combativo Alberto Patroni, 1822; O Com pilador Mineiro, 1823, em Vila Rica (Ouro Preto); Diário do Governo do Ceará, 1824; Gazeta do Governo da Paraíba do Norte, 1826; Farol Paulistano, 1827, redigido por José da Costa Carvalho, futuro regente e marquês de Monte Alegre; Diário de Porto Alegre, no mesmo ano. Algumas províncias, como Alagoas, Santa Catarina e Rio Grande do Norte, somente teriam imprensa própria no período regencial; outras, como Amazonas e Paraná, na segunda metade do século xix.
Nem todos os jornais enveredavam pelo debate político acentuado e predominante. O Jornal do Commercio, criado no Rio de Janeiro em 1827, ou o Diário de Pernambuco, Recife, 1825 (ainda hoje o mais antigo da América latina em circulação), sem esquecer um pioneiro Jornal de Anúncios, 1821, apostavam mais na linha mercantil e noticiosa, embora nem sempre escapassem ao estilo marcante da época. Na verdade, não ocorre uma transformação repentina de uma imprensa artesanal e política para a empresarial: trata-se de uma mudança gradativa e não linear que se deu ao longo de todo o século xix, durante o qual as duas características conviveram.
Os jornais do período inicial constituíram-se, em alguns casos, através de várias redes de sociabilidade, dentro das condições da época, formadas no Brasil recém-independente que buscava se constituir em nação. Não se deve negligenciar dentro desses laços que se articulavam (criavam, mantinham ou refaziam), com densidades desiguais, uma forma de associação bastante específica em suas características, embora articulada com as demais: as redes de sociabilidade pela imprensa periódica. Essa pode ser considerada um palpável agente histórico, com sua materialidade no papel impresso e efetiva força simbólica das palavras que fazia circular, bem como dos agentes que a produziam e dos leitores/ouvintes que de alguma forma eram receptores e também retransmissores de seus conteúdos.
Dessa maneira, grupos com alguma estabilidade e identidade política a nível nacional, como os liberais exaltados, moderados e caramurus na década de 1830, articulavam-se em associações públicas, respectivamente as Sociedades Federais, as Sociedades Defensoras e as Colunas. Além dessas, havia associações públicas com funções diversificadas: culturais, científicas, pedagógicas, por ofício, de estrangeiros, filantrópicas e benemerentes etc. A cada um desses grupos, apesar de alguma heterogeneidade e mudanças de posição, equivaliam quase sempre publicações espalhadas pelas províncias e unificadas por determinadas bandeiras, interesses e palavras de ordem. Exemplo palpável deu-se através dos periódicos com o mesmo título de Sentinela da Liberdade (e outras publicações aliadas) que surgiram desde os anos 1820 pelos vários pontos do Brasil. E sem negligenciar em outros casos o papel das maçonarias, ou mais propriamente das concepções maçônicas de organização, cujos grupos serviram como aglutinadores, embora só se fizessem explícitos na imprensa a partir dos anos 1830.
E foi justamente no período das Regências (1831-1840) que ocorreu no Brasil uma verdadeira explosão da palavra pública, com crescimento visível de associações, de motins, rebeliões... e de periódicos, embora, claro, nem todos fossem rebeldes. A imprensa constituiu-se como formuladora de projetos de nação distintos entre si (apesar das convergências) e de uma cena pública cada vez mais complexa, na qual emergiam atores políticos diferenciados. Permeiam as páginas dos jornais como protagonistas: soldados, oficiais de média patente, lavradores arrendatários, profissionais liberais, clero regular e secular, camadas pobres urbanas livres, homens negros, pardos e brancos, além da presença nítida das mulheres na cena pública, como leitoras ativas. Aparecem na imprensa manifestos coletivos e de caráter político assinados apenas por mulheres nos anos 1820 em diferentes localidades, como Paraíba e Rio de Janeiro. Era a época dos primeiros passos, disputas e ensaios de construção de um Estado e uma nação no Brasil, com seus dilemas, contradições, mudanças e permanências.
Foi o momento também da emergência, sobretudo na imprensa, de uma sensibilidade romântica, que se transformaria depois em movimento. A revista Nictheroy, publicada em Paris, 1836, por brasileiros, e considerada pioneira do romantismo, resulta do clima de efervescência do período regencial.
Com a restauração do poder centralizador e monárquico em 1840 (antecipação da maioridade e coroação de D. Pedro ii), anuncia-se outra tendência em termos de imprensa periódica. O debate político não desaparece, mas se arrefece, no bojo de uma ação conjugada de repressão e incorporação de agentes políticos sob a égide do Estado imperial. Nesse momento há um certo declínio quantitativo nos títulos dos jornais, mas ao mesmo tempo uma estabilização da imprensa através de alguns órgãos que, paulatinamente, vão se consolidando como empresas.
No âmbito da imprensa, como das associações, a década de 1840 é marcada pela valorização dos “interesses materiais”, ou seja, a defesa de um progresso socialmente conservador, gerando certa despolitização desses veículos (apesar de alguma pluralidade ideológica que surge com a Revolta Praieira em Pernambuco, por exemplo). Tendência que desaguaria na chamada Conciliação dos anos 1850, marcando o apogeu do Império brasileiro e remodelando o universo dos papéis impressos.
A seguir, o enfoque mais detido do período imperial permitirá avaliar as nuances e a complexidade da produção, circulação, consumo e papel social do fazer jornalístico no Brasil.
Notas
[ 1] Inventário realizado por Rubens Borba de Moraes, Bibliografia brasileira do período colonial, São Paulo, ieb/usp, 1969, obra cuja publicação foi curiosamente financiada pelo então jovem compositor Chico Buarque de Hollanda, através de seu pai, o historiador Sergio Buarque de Hollanda.
[ 2] Sem pretender igualá-las, desmerecê-las ou mesmo analisá-las aqui, cito como exemplo as obras de A. J. Barbosa Lima Sobrinho, O problema da imprensa, Rio de Janeiro, Álvaro Pinto, 1923 (2. ed., Edusp, 1988), R. Borba de Moraes, Livros e bibliotecas no Brasil colonial, São Paulo, scct, 1979; C. Rizzini, O livro, o jornal e a tipografia no Brasil 1500-1822, reimp., São Paulo, 1988 (1946); N. W. Sodré, História da imprensa no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966; 4. ed., Rio de Janeiro, Mauad, 1999. Variando do liberalismo democrático e do nacionalismo de esquerda ao marxismo, os contextos em que foram escritas correspondem, em geral, a momentos mais agudos de combate a diferentes formas de autoritarismo e defesa da liberdade de expressão no Brasil republicano do século xx, passando pela Primeira República, Era Vargas e Ditadura Militar de 1964.
[ 3] Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco, Recife, Typographia Cavalcante e Cia., n. 11, 10 maio 1823.
[ 4] Diário Fluminense, Rio de Janeiro, n. 4, v. 17, 7 jan. 1831.
[ 5] Aurora Fluminense, Rio de Janeiro, Typographia de Gueffier, n. 564, 2 dez. 1831.
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IMPRENSA EM TEMPOS DE IMPÉRIO
Ana Luiza Martins
Mudar para permanecer
Na sequência dos primeiros passos da palavra impressa, o periodismo permaneceu como formato preferencial de uma imprensa significativamente voltada para as causas políticas e em menor escala para manifestações literárias. Mas ampliavam-se suas funções como prestadora de serviços, num quadro econômico e social mais complexo, que permitiram a alguns de seus órgãos transformarem-se em empresas.
O debate da Maioridade foi um dos últimos temas de tratamento político exaustivo veiculado pela imprensa ao tempo das Regências, por meio de escritos apaixonados, que se dividiam – a despeito das tantas nuances – entre falas de conservadores e liberais. O Des pertador, “órgão maiorista” do Rio de Janeiro, em 19 de julho de 1840, divulgava a campanha, singelamente:
Queremos Pedro Segundo
embora não tenha idade;
a nação dispensa a lei,
e viva a Maioridade!
Ao discutível “Quero Já” proferido pelo jovem Pedro de Alcântara, que selou a vitória conservadora em seu projeto de antecipação da Maioridade, seguiram-se as festas da coroação. Marcadas por grande fausto, transcorreram de 16 a 19 de julho de 1841, produzindo raro espetáculo – “o mais reluzente dos teatros da Corte, que exibia com luxo seus símbolos e rituais diletos”.[1] A decoração das cerimônias, a cargo de Manuel Araújo Porto Alegre – arquiteto, pintor e também jornalista – foi enaltecida pelos representantes estrangeiros presentes, mas mereceu crítica severa do ministro da Alemanha, que viu as festividades como “Uma exibição de luxo nada razoável, dado o estado das finanças do país, mas bem conforme o gosto brasileiro”. A riqueza do espetáculo a que se assistiu, no país recém-saído de sua condição colonial, justificava aquele estranhamento. Basta lembrar que a cidade do Rio de Janeiro possuía então cerca de 37 mil escravos, numa população total de 97 mil habitantes.
Balizava-se o início do Segundo Reinado. Em plena crise do absolutismo, ascendia ao trono um imperador menino, de apenas 14 anos, primeiro monarca nascido no Brasil, loiro de olhos azuis – de típica compleição física habsburgo –, que deveria reinar no país tocado a escravos, de população significativamente negra, mestiça e analfabeta, jovem precoce que fora arrancado dos livros para assumir o poder. Com sua ascensão ao trono sagrava-se a Monarquia no vasto império tropical ao sul do Equador, vista então como a flor exótica das Américas, cercada de repúblicas por todos os lados. Para além da simbologia oficial, porém, aquela celebração sinalizava que novos padrões de Corte e de civilidade eram cogitados, a despeito do acanhado do meio. Naquela cena – marco figurativo da nova representação que se pretendia do país – inseria-se o cultivo da imprensa, pela carga de civilidade que comportava.
Logo, nos anos subsequentes, a palavra e a imagem impressas conheceram outro lugar, ganharam força e expressão, com escritos de toda ordem que se propagaram por múltiplas experiências periódicas, produzidas por agentes sociais diversos, que atuaram em favor do desejado cenário civilizatório do Império. A simples cobertura da rotina do imperador pelos jornais e revistas já colocava em pauta a questão da civilização.[2] Acentuou-se o projeto de inserção do Brasil na cultura ocidental, reforçado pela descendência europeia do monarca e pela ligação de nossas elites com o mundo das artes e da ciência, conforme disseminados pela França ou Inglaterra, países que inspiravam a pretendida agenda de uma sociedade de Corte.
Todavia, o novo espaço e modo de fazer da imprensa do Segundo Reinado – que se estendeu de 1841 a 1889 – não se deram de pronto. Isso porque, a despeito das transformações institucionais advindas da Independência, do Primeiro Reinado, da Regência e agora da Maioridade, a mudança fundamental não se dera. Em lugar da república livre e laica, cogitada pelos liberais, vingara a monarquia centralizadora e católica, na qual Igreja e Estado prosseguiram compartilhando o poder enquanto o regime escravo – levado às últimas consequências com a entrada dos maiores contingentes africanos – consolidou a tradição monocultora e a ordem estamental do país, mantendo os tradicionais obstáculos do passado como forte entrave para a propagação de uma imprensa livre e atuante. E mais: o caráter mercantil, inerente àquela atividade, ainda não encontrava consumidores que a tornassem lucrativa no quadro da ordem escravocrata, do fraco comércio interno e do analfabetismo reinante. Logo, a despeito da protagonização da mudança, o Brasil permanecia o mesmo.
Sublinhe-se que o café, favorecido pela demanda externa em crescimento e pela cotação em alta, foi o agente econômico mobilizador de significativas conquistas técnicas e por conta delas, o país e a imprensa conheceram transformações, não de pouca monta. Logo, à sombra do café e com a palavra liberada, tinha início o nosso Segundo “Império”, que foi o império do café, mas não só. Iniciava-se também o império da palavra impressa. Nele, podem ser pontuados dois momentos: o primeiro, de 1841 a meados da década de 1860, no qual predominou o discurso conservador e áulico, a despeito das costumeiras vozes dissonantes; o segundo, sobretudo de 1868 em diante, quando da queda do Gabinete liberal de Zacarias de Góes e Vasconcelos, que figurou como porta-voz de credos diversos, reunindo polifonia de falas que pregavam a liberdade de religião, a emancipação e/ou libertação do escravo, o advento da república, não sem reverberações da permanência do regime monárquico. No tom dos discursos, o cânone romântico conferia nativismo e paixão às falas e ao texto impresso.
Nesse processo, em que as identidades ideológicas cambiantes ainda persistem, um registro imprescindível, que singulariza e favorece a atuação dos prelos: a postura do monarca, tolerante para com as manifestações irreverentes da imprensa nativa, generoso para com os arroubos de parte de seus súditos, não obstante o caráter centralizador de seu governo, a força de seu poder moderador, a concentração das decisões na sede da Corte.
No remanso do Império, dissonâncias impressas
As lentes da política presidem as novas páginas periódicas abertas com o Segundo Reinado, assinadas em sua maioria por servidores do trono. Política e imprensa se conjugam, a serviço dos partidos – Conservador ou Liberal – atrelados a grupos familiares, condicionados a seus interesses econômicos e afinidades intelectuais. Em geral, os partidos e respectivas famílias se fazem representar por meio de um jornal, demarcador de suas posições, ambições e lutas.
Caricatura do português Rafael |
Na aparente pacificação do país pontificaram jornalistas dotados de larga erudição, conhecidos então como publicistas, que redigiam em tom conselheiral e se comunicavam com a restrita elite letrada. Justiniano José da Rocha (1812-1862) e João Francisco Lisboa (18121863) são representações desse jornalismo áulico, desde então conjugando imprensa e literatura. O primeiro, formado em Direito em São Paulo, dirigiu o jornal O Brazil, que circulou até 1852, e publicou em 1855 o famoso panfleto – Ação, reação, transação –, no qual fixou o curso (em seu entender) bem-sucedido dos primeiros tempos do Segundo Reinado, dando conta de que chegara a hora da Conciliação. O segundo atuou, sobretudo, no Maranhão, sendo responsável pelo O Brasileiro, Farol Maranhanse, Eco do Norte, A Crônica Maranhense, e em 1852 editando o primeiro número do Jornal de Timon, folheto mensal com 100 páginas. Em 1855 transferiu-se para a Corte e daí para Lisboa, incumbido de coletar dados para uma História do Brasil, quando sua atividade jornalística praticamente cessa.
Todavia, o quadro não é tão conciliador como se supõe. Há jornais de confronto, fruto da imprensa político-partidária, há panfletários ousados, que sob o anonimato denunciam mazelas e propõem rupturas, há denúncias permanentes através da ilustração caricata do cotidiano do Império. A Revolução Liberal de 1842, quando São Paulo e Minas recorreram às armas, a rotatividade belicosa dos gabinetes, a Revolta Farroupilha em curso no sul do país, os confrontos com a Inglaterra por conta dos privilégios comerciais são alguns dos episódios, ainda da primeira década do reinado de Pedro ii, que ilustram o latente vespeiro que subjazia no aparente “remanso do Império”, divulgado por uma imprensa aguerrida. Nesse sentido, a Praieira, em Pernambuco, merece incursão.
Ecos da Rua da Praia
Nesse momento, o Movimento da Praieira (1842-1849), no Recife, figura como expressão maior do embate de facções partidárias da Monarquia. Ali atuaram em campos opostos jornalistas que também eram proprietários ou altos comerciantes, relacionados às autoridades administrativas, defensores de seus interesses de classe e de grupo. Divididos entre liberais (praieiros) e conservadores (guabirus), dominaram a produção jornalística da província – das folhas de circulação diária ou semanal, aos almanaques, pequenos jornais de recreação, revistas literárias e científicas –, travando suas disputas na imprensa, fazendo do jornal o instrumento de luta político-partidária.[3]
Não havia espaço para posições intermediárias. Cada facção possuía sua tipografia, com uma folha principal diária, que se desdobrava em publicações menores, fossem jornais semanais ou bissemanais, por vezes suspensos, mas que se reacendiam, a exemplo de O Artilheiro
– “sai quando lhe toca serviço”; ou folhas episódicas destinadas ao ataque de determinadas figuras, como O Papa-Angu, periódico estraordinário, Oposicionista, Político, apenas em três números; outras, ainda, voltadas à defesa de uma causa específica, cara ao partido, a exemplo das eleições, como A Grande Tempestade, que procurava desmoralizar os candidatos da oposição.
A relação de alguns títulos ilustra os segmentos apartados do confronto, que se desdobraram entre governistas e oposicionistas. O
Diário Novo (1842-1849) representava o grupo liberal, com sua Tipografia Imparcial na rua da Praia – daí o nome do movimento – local de moradia de mercadores, sobretudo de origem portuguesa. Como folha partidária desdobrou-se n’ O Guarda Nacional (1842-1848); O
Cometa (1843-1844); O João Pobre (1844-1845); O Atleta (1843), A Gazeta do Povo (1844); A Marmota (1844) e O Foguete (1845). O órgão oficial do Partido Conservador, Diário de Pernambuco, era o mais antigo e importante jornal da província, a serviço dos guabirus, com sua Tipografia de Manuel Figueiroa de Faria, mais tarde Tipografia União, também conhecido como Diário Velho. Entre os jornais de sua orientação, estavam O Artilheiro (1842-1844), A Estrella (1843-1844), O Paisano (1843), O Chora Menino (1843), O Guararapes (1844). Quando passaram à oposição, lançaram O
Lidador (1845-1848); O Clamor Público (1845-1846); A Carranca (1845-1847), sendo que só em 1846 circularam: O Esqueleto, O
Portilhão, O Papa-Angu, O Saquarema; em 1847, O Eleitor Per nambucano e A Grande Tempestade; em 1848, O Bom Senso, O
Brado da Razão, A União.
Os tantos títulos revelam o significado daquele jornalismo partidário, que presidiu a província pernambucana já na primeira década do Segundo Reinado e que alcançava o Rio de Janeiro, por conta do envio de notícias d’ O Diário Novo aos periódicos da Corte, a exemplo d’ A Sentinella e d’O Brasil.
Libelos do povo e “penas de ouro”
Outra dissonância, no marasmo das publicações oficiais daquelas décadas: a produção dos panfletários, que punha em circulação opúsculos e panfletos políticos facciosos, expressão das paixões do momento, escritos com arroubo, trazendo autoria de inspirados representantes do Império. Entre os de maior repercussão mencionam-se Carta aos eleitores, de Bernardo de Vasconcelos (1828); Facção áulica, por Firmino Rodrigues Silva (1847); Libelo do povo, por Timandro (1849 – pseudônimo de Sales Torres Homem); Ação, reação, transação, de Justiniano Rosa da Rocha (1855), jornalista conservador, que apontava para a Conciliação; Conferência dos divinos, por Antônio Ferreira Viana (1867) – conservador e ultramontano –, autor do mais violento panfleto contra o Poder Moderador, no qual chamava o imperador de César Caricato; e, as Cartas de Erasmo, de José de Alencar (1865-66), estas mais festejadas pelo renome de seu autor.
Em todo o país, nomeadamente no Maranhão, Pernambuco,
Bahia, São Paulo e Minas, a obra da imprensa jornalística se propaga, produzindo os primeiros jornalistas que viveram dos escritos da imprensa. O leque temático amplia-se, sobretudo em face do comércio internacional diversificado, quando se escreveu, e muito, sobre questões públicas, problemas de administração e economia
Representante do melhor |
nacional. Nessa pauta, atuaram no Rio de Janeiro homens de bagagem enciclopédica, de escrita versátil, a exemplo de Saldanha Marinho, Quintino Bocaiuva, Ferreira Viana, Tôrres Homem, José de Alencar, Francisco Octaviano de Almeida Rosa, o “pena de ouro”, Silva Paranhos, que se iniciaram como publicistas em suas respectivas províncias, alçando outros voos na sede da Corte. Entre o modelo inglês ( Correio Braziliense) e francês ( Jornal do Commercio) de fazer imprensa, a criação nativista se expressou com largueza, impondo-se na caracterização das mensagens que se adaptavam ao tom e à cor locais. Nesse sentido, a imprensa guardou desses anos uma divisão precisa: aos jornais, o debate político; às revistas, a reflexão cultural.
A partir da década de 1850, uma mudança formal se observa: rareavam os jornaizinhos de quatro folhas in – 8o para darem lugar aos grandes jornais, a exemplo de O Constitucional, o Diário do Rio de Janeiro, O Correio Mercantil. Além disso, criava-se a profissão de jornalista e firmara-se aquela do tipógrafo. Em 1858, os tipógrafos até fizeram uma greve e criaram seu próprio jornal, o Jornal dos Tipógrafos. Consolidado e figurando como modelo de jornal, colocava-se o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro.
Jornal do Commercio, a voz oficial
Talvez o Jornal do Commercio seja, por sua antiguidade e linha conservadora, a melhor representação do jornalismo oficial do Império. Sua história se confunde com a do próprio Reinado, abrigando os jornalistas mais expressivos do período, decisivo nas questões comerciais do país. Nasceu em 1826, com o nome de Espectador Brasileiro, criado pelo francês Pierre Plancher; fechado, foi reaberto em 1º de outubro de 1827 como Jornal do Commercio, considerado hoje o mais antigo diário da América Latina a circular ininterruptamente desde o seu nascimento.[4]
Mestre em artes gráficas, Plancher chegou ao Brasil em 1824, onde procurou criar um jornal que superasse o monopolizador Diário do Rio de Janeiro, sobretudo na cobertura econômica. Trazia equipamentos avançados e alguns operários especializados. Inicialmente ampliou seu número de editorias, publicando cadernos de interesse econômico com “Preços Correntes”, e “Movimentos de
Em 1º de outubro de 1827, na oficina |
Importação e Exportação”. Em seguida, incluiu editorias de política e de comércio.
Reuniu o melhor do jornalismo do país, com nomes como Justiniano José da Rocha, José de Alencar, Guerra Junqueiro, Alcindo Guanabara, José de Maria da Silva Paranhos, Francisco Octaviano, Joaquim Nabuco – correspondente em Londres e mais tarde seu arauto abolicionista – entre tantos outros que formaram sua credibilidade no tocante à informação comercial e política. Eximia-se, porém, de assuntos polêmicos, isentando-se de partidarismos, figurando como jornal apartidário, de perfil conservador. Em 1870 iniciou de forma cautelosa a coluna “A Província”, que tratava das questões sociais e econômicas em curso, como a liberdade dos escravos sexagenários, a questão religiosa, eleitoral, federativa, militar e, finalmente, a abolição da escravatura e o destino do próprio regime. Acima de tudo, o Jornal do Commercio espelhava o estado da nação.
Inovador no aparato técnico, em edição de agosto de 1877 publicou os primeiros telegramas, distribuídos pela agência telegráfica Reuter-Havas, substituindo o antigo e demorado método via correio, no que foi seguido pelas demais folhas com colunas internacionais. Em 1889 era visto por jornalistas estrangeiros como uma espécie de Times, com um bom repertório de fatos e conjunto útil de documentos.[5]
Segmentação temática:
“comer e vestir bom agasalho”
A segmentação de público ainda tardaria, considerando a restrita população leitora dos primeiros anos do Império. Quanto à segmentação temática, essa se delineou na sociedade que se tornava mais complexa, em face da expansão dos aparelhos administrativos, da ampliação do quadro burocrático e do aumento populacional. O jornal se impunha para a comunicação oficial de atos do governo, para a conexão entre as províncias e o poder central e – a despeito do quadro urbano incipiente – para consumo de proprietários rurais que edificavam casa na cidade, visando alguma protagonização no teatro da política imperial.
Logo, jornais e algumas revistas podiam ser adquiridos apenas nos centros administrativos de maior expressão, cujo quadro burocrático, presumivelmente leitor, dependia daqueles impressos. Em todos esses circuitos, o jornal desempenhou papel relevante acrescido de outra função imprescindível: veículo de divulgação de anúncios de todo o teor, numa sociedade que ingressava na oferta e procura de serviços diversos.
Nas praças comerciais de Recife, Salvador e Rio de Janeiro, os anúncios ganharam rapidamente as páginas das gazetas. O Jornal dos Anúncios do Rio de Janeiro, desde 12 de maio de 1821, foi o primeiro a publicar as cotações dos gêneros com regularidade. Igualmente, a Gazeta do Rio de Janeiro trazia seção expressiva de anúncios, uma demanda da sociedade mercantil que se ampliava. A função veiculadora comercial da imprensa foi além da divulgação de negócios, pois desde a década de 1820 figurou como instância oportuna na formação de um mercado de trabalho livre, instrumento valioso para empregado e empregador. Para o Recife, praça comercial de destaque na Colônia e no Império, o trabalho de Marcus Carvalho revelou o importante papel desempenhado pelo jornal na formação do mercado de trabalho feminino. Ali, desde a década de 1840 e a despeito da ordem escravocrata, não eram poucas as mulheres livres que colocavam anúncios em busca de trabalho doméstico. Assim como as patroas, que também anunciavam naquelas folhas, indicando o perfil da empregada que desejavam. Eram anúncios que compartilhavam o mesmo quadro dos avisos de compra e venda de cativos, denotando quão imbricado estava o trabalho livre à matriz escravista. Junto a isso, explicitavam-se as contrapartidas não monetárias de pagamento, quando se oferecia à pessoa “comer e vestir bom agasalho” desde que quisesse “se sujeitar a algum serviço”.[6]
Não é desprezível a produção de periódicos da primeira década do reinado de D. Pedro ii, antes que as modernidades técnicas potencializassem seus circuitos. Ao lado dos jornais, proliferaram revistas, expressando a gama de interesses que perpassavam os ensaios da pretendida sociedade de Corte. A despeito da ordem estamental reinante, Paula Brito, o editor autodidata e mulato, se colocou no incipiente mercado editorial com títulos que fizeram sucesso. Em 1832, já publicara A mulher do Simplício ou A fluminense exaltada, voltada para público feminino, e mais tarde editou A marmota fluminense (1849-1864) e Guanabara (1849-1856), esta última uma revista de alta literatura. Também na primeira década, a mulher comparece como protagonista dessa imprensa – seja como consumidora e mesmo produtora de impressos –, através de O Espelho das Belas (1841) e A Violeta (1848), ambas do Rio de Janeiro. Na Corte, a literatura é contemplada com vários títulos: Minerva Braziliense (1843-1845), O Ostensor Brasiliense (1843-1846), Íris (1848), O Beija Flor ii (1849). Em 1844, sai a Lanterna Mágica, uma das primeiras ilustradas; no Recife, registra-se O Progresso (184648); na Bahia, o Ateneu (1849) e A Época Literária (1849), todos eles periódicos de relativo alcance. Data também daí, a publicação de um dos primeiros almanaques, o Almanaque Laemmert (1844), contendo informações úteis para os diversificados usos e gostos.
Forma e técnica, engenho e arte
Na perspectiva material daqueles impressos, o formato das publicações – jornal e revista – permaneceu praticamente o mesmo até meados do Império, conhecendo melhorias em função de episódicos avanços técnicos. A anterior divisão da política nos jornais e a literatura nas revistas fundia-se agora no jornal, pois eram literatos os homens de imprensa que acabavam por fazer política.
O Bazar Volante, do Rio de Janeiro, no qual colaboraram os artistas Flumen Junior, A. Seelling e Joseph Mill. Competia com a Semana Ilustrada, de Henrique Fleuiss.
Salvo os já citados em grande formato, os periódicos traziam fatura modesta, papel ordinário, dimensões reduzidas, saindo de prelos toscos que se instalaram nas principais capitais. A impressão de livros não vingou, conforme se conhece da experiência do editor carioca Paula Brito (1809-1861), sucumbindo logo aos reveses mercantis ditados, sobretudo, pelo baixo consumo daquele produto. Logo, no país de fraco poder aquisitivo, o gênero periódico figurou como suporte fundamental do impresso no Brasil ao longo do século xix.
As assinaturas sustentavam parte das publicações, mas o aporte de capitais era fundamental para manutenção do impresso, alimentando uma imprensa política desde então comprometida com seus financiadores.
A julgar pela limitada evolução gráfica da Impressão Régia, os avanços técnicos foram modestos no Império. Os primeiros equipamentos de 1808 só seriam substituídos em 1845 por prelo mecânico; em 1877 se reequiparia através de módico investimento, para efetivamente modernizar-se só com a República. Mas se, inicialmente, contavam-se nos dedos os números de tipografias do país, a atividade foi crescente ao longo do século, registrando-se no Rio de Janeiro uma tipografia em 1808; meia dúzia em 1822; vinte e cinco em 1850; trinta em 1862; um sem-número delas em 1889; quase que uma a cada esquina em 1908.[7]
Geografia dos impressos
A geografia dos focos do impresso também pouco se alterou, destacando-se a concentração das folhas de maior alcance no Rio de Janeiro, produzidas sob as vistas do poder. A economia rural, assentada na escravidão concentrada no campo, contribuiu para a permanência da incipiente rede urbana, composta de aglomerados que estavam longe de figurar como cidades com dinâmicas próprias. É possível traçar um circuito inicial dessas publicações nas poucas capitais de província que conheceram relativa expressão econômica e política. A começar pela sede da Corte, com cem mil habitantes, abrigando comunidades estrangeiras ávidas de negócios. Ali, o jornal foi o veículo disseminador de notícias, inclusive em língua estrangeira. Salvador e Recife prosseguiam com a imprensa remanescente dos momentos de crise política aguda, assim como a província do Pará. Em 1822 foi impresso O Paraense, em prelo adquirido em Lisboa, despachado juntamente com dois tipógrafos para seu manuseio. Em 1840 lançou-se o Treze de Maio, que durou até 1862, cuja tipografia era tocada por dois escravos a serviço do proprietário Honório José dos Santos. Já na província do Amazonas – apartada dos centros mais promissores da orla marítima –, a imprensa chegou com atraso, sobretudo pela carência de leitores. Ali a língua falada era o nheengatu, originária do tronco tupi, inviabilizando o consumo de escritos em língua portuguesa. A primeira publicação que se tem notícia foi Província do Amazonas, que circulou brevemente em 1850, veiculando apenas os atos governamentais. Em 1851 foi lançado o Cinco de Setembro, que em 1854 teve seu título mudado para Estrela do Amazonas. Mas foi no quadro da propaganda republicana e do abolicionismo que se conheceram novos títulos. A serviço das ideias republicanas estava O Argos (1870) e, defendendo o ideal abolicionista, em 1884, circulou O Abolicionista do Amazonas. No Piauí, o relacionamento entre política e imprensa foi permanente, registrando-se jornais políticos ligados aos tradicionais grupos que se sucediam – conservadores, liberais, elites e mais tarde ao Partido Republicano.
Maior efervescência encontrava-se em Minas Gerais, especialmente nas cidades de Vila Rica e São João Del Rey. A província mineira exercitou precocemente uma “vida urbana” nas cidades nascidas com a mineração e desde o século xviii abrigou a elite letrada que se colocou nas Academias Literárias, na produção dos Árcades, na imprensa local. Nesse movimento, se antecipou no cuidado de formar uma “opinião pública” em seu projeto de ilustrar, de levar as Luzes à população, com vistas à formação de um “senso comum”. Ali, a palavra impressa figurou como instrumento da política e recurso para a propagação de escritos de todo o teor, traduzidos em verso e prosa. Já a província do Rio Grande (atual Rio Grande do Sul) se destacou como tradicional possuidora de prelos, imprimindo até mesmo livros de poesias redigidos por mulheres, a exemplo da primeira edição, em 1834, do livro Poesias oferecidas às senhoras rio-grandenses, de Delfina Benigna da Cunha (1791-1857), que em 1838 mereceu uma segunda edição no Rio de Janeiro pela Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve.[8]
São Paulo, núcleo acanhado, antes que o café lhe mudasse a fisionomia, abrigava uma Faculdade de Direito, propulsora de ideias, escritos e jornais, figurando como centro promissor do jornalismo no Brasil. Daquela célula de produção de letrados saíram novas gerações familiarizadas com a palavra impressa que fizeram da imprensa o instrumento de sua ação. Interrompiam a cadeia de escritos produzidos quase que exclusivamente por representantes do clero ou pelos egressos da Universidade de Coimbra e transferiam a oratória sacra dos púlpitos para o jornal. Mais que isso, ali a imprensa tornou-se instrumento decisivo para o exercício político e literário, a expressão do jornalismo do Império, através de escritos que formularam sua política, enquanto se lançava na produção de uma literatura brasileira, expressão e síntese do país.
Do púlpito à Academia
O locus dessa produção foi a primeira Faculdade de cunho humanístico do país, a tradicional Academia de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, criada por D. Pedro i, por meio da lei de 11 de agosto de 1827, simultaneamente com a Faculdade de Direito do Recife.[9] A iniciativa régia atendia à necessidade de formar quadros nacionais para servir ao país recém-independente jovem. A Academia formava aprendizes do poder, que se expressavam quase que exclusivamente pelas folhas da imprensa. Assim, a tradição dos estudantes das Arcadas de refletir sobre o Brasil, colocar-se em suas lutas, ocupar cargos da estrutura sociopolítica, formular leis e dominar a vida nacional não se deu só pelos caminhos formais da colocação pública, mas através da imprensa como agente de visibilidade e poder.
A instituição, nascida à sombra do romantismo, aninhou talentosos escritores e possibilitou toda a sorte de ensaio da palavra nos campos da poesia, teatro, ficção, filosofia, história e, naturalmente, no da imprensa. Eram textos que traziam o cuidado literário, o envolvimento com a escola Romântica e o nativismo sempre latente. Nesse sentido, de uma produção inaugural de relevo, Antonio Candido conclui: “[...] só há literatura em São Paulo depois da Independência, e notadamente depois da Faculdade de Direito”.[10]
Logo, a melhor produção literária paulista – extensiva à produção literária nacional – encontrou na imprensa periódica o veículo ideal para sua colocação, o suporte preferencial de homens letrados que conjugavam a política e a literatura na atividade jornalística. Registre-se, contudo, um preconceito constante e efetivo que fatalmente dividia o bacharel já formado: o divórcio que havia entre as letras e a dignidade das funções públicas, mesmo no Brasil imperial, ao tempo dos românticos. Convinha cautela aos escritores que produziam literatura e almejavam ascender na carreira política e obter êxito social. A figura do literato era vista com restrições no crivo político, razão pela qual muitos deles valeram-se do anonimato ou do pseudônimo para colocar-se literariamente na imprensa. Mesmo José de Alencar, que se pretendia advogado com cadeira no Parlamento, agiu com discrição lançando O Guarani sem assinatura no Diário do Rio. Ao ser preterido pelo imperador e justificar que saíra da imprensa para a vida política, foi motivo de comentário cáustico do exaltado republicano Padre João Manuel:
De que imprensa? A imprensa do anônimo, do romance, da comédia, nunca deu direito a um assento nos Conselhos da Coroa. O romancista, o dramaturgo, vivem da imaginação, de sonhos, de ilusões, de cismas, de êxtases, de ficções; o estadista deve inspirarse no estudo, nos conselhos da razão e da experiência. A boêmia estudantil, as extravagâncias inspiradas no poeta inglês ultrarromântico Lord Byron e a produção literária deviam terminar no dia da formatura. Aqueles que desejavam ascender na vida pública e pretendiam ser vistos como agentes políticos do país, a exemplo de Francisco Octaviano de Almeida Rosa, procuraram logo romper com o passado acadêmico, assumindo atitudes solenes e burguesas, desvencilhando-se dos arroubos literários juvenis. O preconceito foi severo para com a geração romântica e data do último quartel do século xix a massiva produção de textos políticos, em detrimento da criação literária de estética romântica. Na galeria de bacharéis explicadores do Brasil via literatura, os nomes se sucedem compondo quase que exclusivamente o panorama da vida literária do país. A simples menção dos acadêmicos e bacharéis Castro Alves, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, José de Alencar, Bernardo Guimarães, Saldanha Marinho, Quintino Bocaiuva, Ruy Barbosa e Joaquim Nabuco, entre tantos outros, já situa as respectivas produções literárias e políticas no âmbito da imprensa, fossem como talentosos escritores do romantismo e escolas subsequentes, fossem com esgrimistas da palavra no debate ideológico.
À Faculdade de Direito estão ligados em São Paulo o primeiro jornal impresso local, o Farol Paulistano (1827), com redatores dos quadros da recém-criada Academia; o segundo jornal, de oposição ao absolutismo, O Observador Constitucional (1829), do médico italiano Líbero Badaró, assassinado por sua posição liberal; o primeiro jornal diário da cidade, O Constitucional (1853), com quatro páginas; o Correio Paulistano (1854), primeiro grande jornal da imprensa paulistana.
Entre O Paulista (1823) e o Correio Paulistano (1854), só na capital circularam 64 periódicos, em geral de curta duração, mas servindo a dois propósitos: às correntes políticas e à produção de uma literatura nacional. Em 1875, formando seus quadros com ex-alunos, nascia o jornal A Província de São Paulo, atual O Estado de S. Paulo. Em todos eles, registre-se, a presença dos “aprendizes do poder” egressos da Academia de Direito, que se envolveram com literatura e transferiram para os escritos políticos a estetização da palavra.
Periodismo, publicismo, jornalismo, história, conferência, verso e prosa foram gêneros intensamente vivenciados na trajetória do polígrafo-bacharel[11] e/ou naquela dos jornalistas de plantão, agentes que se conjugam, figurando como principais atores da palavra impressa no Império. Sílvio Romero, contemporâneo daquela produção, acrescentou a oratória como adereço complementar do polígrafo-bacharel, que foi o jornalista por excelência do Império:
No Brasil, mais ainda que em outros países, a literatura conduz ao jornalismo e este à política que, no regime parlamentar e até no simplesmente representativo, exige que seus adeptos sejam oradores. Quase sempre as quatro qualidades andam juntas: o literato é jornalista, e orador, e é político.
Gondim da Fonseca concluiu mais cáustico: É de fato o Bacharel que domina o jornalismo carioca, de 1870 a 1908. Superficial, agitado, parlapatão. E sério. Sério como um burro. Não admite o gracejo. Nem o fair play em qualquer discussão de imprensa. Cheios de literatura. Retóricos. Delirantes.
Duas exceções, porém, com atuações e produções bastante diversas, revelam a diversidade que subjazia ao segmento dos bacharéis e ao discurso padrão: José Maria Machado de Assis e José do Patrocínio. Ambos contemporâneos, de origem humilde, mulatos, formaram-se como autodidatas e não frequentaram a Academia. Sem eles, contudo, o jornalismo do Império não teria sido o mesmo.
A biografia e a produção de José Maria Machado de Assis (18391908) singularizam-se no quadro da imprensa, figurando como representação não só da abalizada produção literária em curso, mas dos bastidores daquele jornalismo, espelho das transformações do país. Revisor de provas no Correio Mercantil, versejador n’ A Marmota, cronista no Diário do Rio, contista e folhetinista dos principais jornais e revistas da Corte, construiu no âmbito da imprensa não só a crítica sutil ao Império escravocrata, mas a obra literária de envergadura internacional.
Já José Carlos do Patrocínio (1853-1905), que trazia um diploma da Escola de Farmácia do Rio de Janeiro, deslanchou na carreira como arauto abolicionista, tornou-se articulista famoso em todo o país, conhecido como Tigre da Abolição. Foi proprietário da Gazeta da Tarde, dirigiu a Cidade do Rio, que havia fundado, de onde saudou a Abolição em 13 de maio de 1888.
Outros espaços, novas vozes e seções variadas
Mas nem só da retórica bacharelesca viveu a imprensa condoreira do Segundo Reinado. O modelo pasquim – jornal de sátira ou panfleto difamador – circulou com estardalhaço na Corte, por iniciativa de figuras polêmicas, que imprimiram outros registros na pauta das informações.
Durante a Guerra do Paraguai, o Ba-ta-clan do Rio de Janeiro, publicado em francês por Charles Berry, ridicularizava os chefes militares brasileiros. O jornalista autodidata, mulato, Apulco de Castro, em seu temido pasquim O Corsário, chegou às últimas consequências, atacando o imperador. Ficou conhecida a quadrinha ali veiculada que mencionava a ligação de D. Pedro ii à condessa do Barral:
Não é por certo
Boa moral
Trair a esposa
Com a Barral.
Com tantas críticas violentas e atirando para todos os lados, foi vítima do pouco escrúpulo, assassinado por militares ofendidos com suas maledicências.
As especulações em torno dos acontecimentos sociais da Corte geravam matérias de enorme interesse público, a exemplo do exploradíssimo episódio do roubo das joias do Palácio Imperial, entre 17 e 18 de março de 1882. A rápida soltura do suspeito –
Manuel de Paiva, ex-criado do Paço – levou O Mequetrefe a sugerir suspeição do imperador por tomar sua defesa; na Gazeta de Notícias, um conto foi publicado por Raul Pompeia sob o título “As joias da Coroa”; na Gazeta da Tarde, José do Patrocínio publicou o conto “A ponte do Catete”; e Raul Pompeia, em sua Gazetinha, imprimiu a peça de teatro Um roubo no Olimpo. Era o prenúncio do sensacionalismo, que atraía leitores e vendia jornal, conforme se daria já nos primeiros anos da República.
Curiosas e instigantes eram as seções “A pedidos”, que mediante pagamento veiculavam reclamações dos leitores, de ordinário voltadas contra o governo. O espaço de livre colocação se tornara chamariz para o jornal, pela atração exercida sobre os consumidores para ali se posicionarem sobre assuntos variados. Sabe-se que mesmo não havendo encomenda de pedidos, os jornalistas se encarregavam de inventá-los, a ponto de haver pessoas especializadas em assumir a autoria dos ataques pessoais.[12]
Para todas essas manifestações, o imperador se colocava com altivez olímpica. Nas páginas de seu Diário exarava seu juízo de governante: “A imprensa é inteiramente livre, como julgo deve ser” [...]; ou ainda: “A imprensa se combate com a imprensa”.[13]
A oportunidade das revistas
Ao lado do jornal, colocou-se o gênero periódico revista, suporte expressivo da palavra no processo histórico da imprensa brasileira. Muitas vezes, coube à revista figurar como espaço exclusivo para a colocação do literato em letra impressa. A modalidade se fez presente já nos primeiros anos da Impressão Régia, persistiu no Império e se difundiu como gênero de sucesso no país. O caráter de leitura ligeira e amena, acrescido do recurso da ilustração, adequavam-na ao consumo de uma população sem tradição de leitura, permitindo a assimilação imediata da mensagem. [14]
Sua introdução no Brasil também se deu no quadro das demandas dos impressos, o gênero se consagrava na Europa como espaço suplementar para a publicação de textos literários. São conhecidas as revistas inaugurais As Variedades ou Ensaios de Literatura (1812), da Bahia, vinculada à Maçonaria; O Patriota, jornal literário, político e mercantil (1813), do Rio de Janeiro; a Revista da Sociedade Filomática (1833), em São Paulo, de caráter erudito e propósito nacionalista, iniciativa do grupo letrado da Academia de Direito. Marcante, contudo, foi o lançamento de Niterói, Revista Braziliense, Ciências, Letras e Artes (1836), editada em Paris. Sob a epígrafe “Tudo pelo Brasil e para o Brasil”, pretendia-se revista de alta cultura, idealizada pelos representantes de nossa primeira geração literária romântica – Gonçalves de Magalhães, Salles Torres Homem, Araújo Porto-Alegre e Monglave – publicação, que não passou de dois números, é vista como baliza da emergência da escola romântica entre nós. Importante, ainda, a Revue Française (1840) do Rio de Janeiro, igualmente impressa em Paris. Produzida por subscrição, contava com uma lista de 46 assinantes, na maioria franceses e alguns nomes brasileiros, entre eles, Salles Torres Homem, J. M. Rocha Cabral, José Clemente Pereira. A despeito de escrita em francês, seu conteúdo é apontado como expressivo de interesses do grupo letrado da Corte. Ao que consta, seria também uma das primeiras revistas a estampar ilustração.
Contudo, um gênero de revista sobressaiu-se no quadro da imprensa do Império, representação daquele tempo cultural diverso: as revistas ilustradas de caricaturas, que, valendo-se do humor e do chiste, espelharam o cotidiano do país e vincaram nossa formação. Foi essa modalidade que logrou enorme sucesso nas terras de fracas letras, população escrava e incipiente mercado.
“Rindo criticam-se os costumes”
A comunicação pelo humor via caricatura ganhou relevo no país de difícil propagação da palavra escrita. A válvula de escape do humor funcionou como antídoto contra a censura vigente, bem como o desenho, como expressão plausível de fácil e imediata comunicação. Da oralidade jocosa da colônia – com um Gregório de Mattos, por exemplo –, chegou-se rapidamente à proliferação
do desenho satírico do papel impresso da Regência, constituindose o traço caricaturado numa das linguagens de maior aceitação do Brasil. Não por obra imediata da introdução dos prelos, em 1808, mas por arte dos tantos transplantes que pontuaram nosso ansioso e desesperado ajuste com o tempo cultural dos países ditos “adiantados”. Sobretudo quando ateliês e/ou oficinas litográficas (na sua maioria de estrangeiros), prevendo um novo mercado e engendrando-o, subsidiaram as estampas iniciais.
O recurso da ilustração periódica também vinha na esteira de uma voga europeia – aquela dos jornais caricatos que faziam sucesso na Europa. Em particular na França, onde o talento do caricaturista Honoré Daumier (1808-1879) imprimia em desenho as contradições e ironias da Paris pós-revolução burguesa de 1830, num quadro de barateamento das ilustrações e multiplicação das folhas periódicas, espaços de liberdade e recreação.
Caricatura de Henrique Fleuiss, publicada na Semana Ilustrada, no início da Guerra do Paraguai. Fleuiss destacou-se pelo tom conciliatório de suas charges.
Não seria diferente no Brasil, onde os novos modelos não tardaram a chegar. Dessa vez, na bagagem do talentoso pintor brasileiro Manoel de Araújo Porto Alegre (1806-1879), que vivenciara a experiência em Paris, transplantando-a para o Rio de Janeiro. Há consenso em atribuir-lhe a veiculação da primeira caricatura no Brasil, em desenho de Rafael Mendes Carvalho, impressa no Jornal do Commercio, no ano de 1837. O tema? Uma cena de suborno, metáfora prenunciadora e recorrente até nossos dias da corrupção no país. Em 1844 lançaria um dos primeiros jornais de caricatura do Brasil monárquico, irônico e engraçado: A Lanterna Mágica – Periódico Plástico-Filosófico.
Não tardou que outros impressores, ilustradores e jornalistas de talento investissem no gênero, que se propagou por todo o Império como uma das formas de expressão mais festejadas do período, sobretudo pela pena de estrangeiros, que anteviram no jovem país, oportunidades para seus talentos. A começar pelo alemão Henrique Fleuiss, que aqui chegou em 1853 e, como tipógrafo imperial, produziu um dos raros periódicos de caricaturas favoráveis ao monarca: A Semana Ilustrada (1860). Em 1854 aportava o piemontês Angelo Agostini, que se opôs frontalmente à monarquia e foi portavoz da Abolição; em 1874, o italiano Luigi Borgomainerio, diretor artístico do importante jornal humorístico italiano Spirito Foletto; em 1875, era a vez do português Rafael Bordallo Pinheiro, crítico mordaz e inspirado, que fundou em março de 1878 O Besouro, com desenhos satíricos de alta qualidade, e em julho publicou as primeiras fotos da imprensa brasileira, retratando crianças abatidas pela seca do Nordeste, imagens tiradas em viagem pelo jornalista José do Patrocínio, então redator do jornal Gazeta de Notícias. Mas não se pode perder de vista a produção de Flumen Junior, A. Seellinger e Joseph Mill, atuantes no Bazar Volante (1865), no Rio de Janeiro; a de Nicolau Huaskar de Vergara, caricaturista de O Polichinelo (1876), em São Paulo; assim como a posterior inovação de Julião Machado (1863-1930), que abriu a fase zincográfica. Para o inspirado desenho caricato aqueles artistas valeram-se não só da pedra litográfica como suporte técnico, mas da crítica política como mensagem de comunicação. Aquela permitia a reprodução de custo baixo no território sem tradição de prelos; esta se infiltrava contundente em meio à sociedade reprimida pela Igreja, pelo Estado e pelo regime escravo. As três temáticas – Igreja, Governo e Escravidão – foram recorrentes no lápis de sebo de carneiro daqueles caricaturistas, que investiram especialmente contra a benevolência na distribuição dos títulos nobiliárquicos, o obscurantismo religioso, a presença retrógrada da instituição escrava, as crises ministeriais. Nessa produção, em meio às nuanças em preto e branco, surgia o monarca D. Pedro ii, figura caricata preferencial do período, celebrizado ora na recorrente afirmação Já sei, já sei..., ora dormindo no trono, ora perdido na visão das estrelas, trazendo a legenda Pedro Caju, por seu perfil prognata ou Pedro Banana, como definiam seus detratores. Confirmava-se nesse uso irreverente da imagem do monarca, a extrema liberdade de imprensa que permitiu aquela produção. Em seus conselhos à filha regente, princesa Isabel, declarava: “[...] Os ataques ao imperador não devem ser considerados pessoais, mas apenas manejo ou desabafo partidário”.[15]
Outros assuntos caminhavam em paralelo, a exemplo da retratação caricata e cruel da Guerra do Paraguai ou a introdução apressada da modernidade técnica no país tocado a escravos, sobretudo por companhias mercantis estrangeiras, prenúncio da infiltração voraz com que o capital externo entrou e se manteve no país.
Assim, na imprensa que se construía à sombra do modelo francês – inclusive adotando o folhetim de pé de página como veremos adiante –, colocaram-se as historietas ilustradas não menos rocambolescas, que introduziram no Brasil a caricatura como narrativa, recurso poderoso que educava, fazia rir, enfeitava e potencializava uma incipiente imprensa das letras.
Entre o espelho e a moda,
o reflexo da imprensa feminina
Data da primeira metade do século xix, ainda de forma tímida, a participação da mulher na produção de impressos no Brasil, fosse como consumidora ou produtora, em geral às voltas com a moda e ensaios de literatura. O Espelho Diamantino (1827), o Correio das Modas (1839), no Rio de Janeiro, e O Espelho das Brasileiras (1831), no Recife, são referências iniciais de uma segmentação periódica voltada para um público tradicionalmente desconsiderado. Agentes de sua própria história, coube-lhes produzir significativos títulos daquela imprensa periódica, dando visibilidade para o universo feminino enquanto se colocavam num mercado predominantemente masculino. Em 1852, o surgimento d’ O Jornal das Senhoras, no Rio de Janeiro, editado por Joana Paula Manso de Noronha, argentina de nascimento, figura como um dos primeiros jornais de propósitos femininos e abrigo da mulher escritora, contando inclusive com mulheres na redação. A publicação convidava todas as senhoras “dotadas de inteligência” a apresentar suas produções literárias sob o anonimato. Seis meses após a sua primeira publicação, a direção do jornal passou para as mãos da colaboradora Violante Atalipa Ximenes de Bivar e Velasco e, no ano seguinte, para Gervásia Numésia Píres dos Santos Neves. Violante, filha do redator de Idade d’Ouro (periódico da Bahia, de 1811) e de As Variedades, foi uma das primeiras mulheres a exercer funções de direção na imprensa brasileira. A publicação ilustrada trazia notícias de modas, literatura, belas-artes, teatro e crítica, circulando até 1855.
Em 1862, saía a revista Belo Sexo do Rio de Janeiro, feita por mulheres com instrução secundária que já não se escondiam sob o anonimato, assinando crônicas literárias. Em Minas Gerais, no ano de 1873, Francisca Senhorinha Motta Dinis dirigia O Sexo Feminino, enquanto o Rio de Janeiro contribuía com mais exemplos: O Domingo, 1874, de Violante Atabalipa de Bivar e Velasco; Eco das Damas, 1879, de Amélia Carolina da Silva Couto, que encetou em 1887 a publicação de O Leque, no qual propunha moderadamente a libertação das mulheres. À frente d’ A Família, de 1889, Josephina Álvares de Azevedo, irmã do poeta Álvares de Azevedo, autora da peça teatral O Voto Feminino, encenada em São Paulo, em 1878, alertava para o movimento sufragista feminino, que ganharia força no Brasil só nas primeiras décadas do século xx.
Não obstante, essas iniciativas isoladas, algumas com mensagens inovadoras, a tônica dessa produção pautou-se por açucaradas publicações, sob títulos alegóricos, sugestivos da “fragilidade da figura feminina”: A Camélia, A Violeta, O Lírio, A Crisálida, A Borboleta, O Beija Flor, A Esmeralda, A Grinalda, O Leque, O
Espelho, Primavera. Impressos que nasciam de clubes recreativos e/ou literários, associações que se queriam fazer representar, reforçando o papel dependente da mulher naquela sociedade em transição. Júlia Lopes de Almeida, habitual colaboradora daquela imprensa, admitia:
Quantas e quantas revistas e jornais, criados entre nós com o bafejo de gordos capitais e de grandes nomes feitos nos maiores centros brasileiros, soçobram mal dão os seus primeiros passos na existência, e entretanto a modesta folha escrita por estas diáfanas mãos femininas, já cansadas, mas não desiludidas, logra varar o tempo durante anos e anos, ininterruptamente.[16]
Assim, conformava-se a mulher ao mercado do impresso, não apenas como leitora, mas como produtora de textos e periódicos, assim como consumidora de produtos anunciados pela imprensa. Nessa última condição, mobilizou todo um mercado, tornandose alvo de editores em busca de lucro, cientes do potencial de consumo daquele segmento às voltas com a economia do lar, dos produtos de saúde e beleza, de trabalhos domésticos – tricô, crochê e bordados – estampados com frequência nas páginas das revistas que já se tornavam de variedades.
Ao correr da pena:
entre a crônica e o conto, o Império do folhetim
A temática de interesse feminino ajudava a vender o impresso, mas a partir de meados do século xix, quando o jornalismo político, pesado e conselheiral entrou em declínio, outro chamariz se impôs para ampliar a circulação do jornal: o folhetim de pé de página.[17]
Chegou nas tantas vogas francesas que aportaram em nossa imprensa, entrando em grande moda no país em que os romances tardavam a chegar. O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, foi um dos primeiros sucessos, veiculado pelo Jornal do Commercio. Em breve, em lugar de autores estrangeiros, dos dramas rocambolescos de Dumas ou Eugene Sue, o espaço passou a ser ocupado por escritores brasileiros. Saem como folhetim Memórias de um sargento de milícias (1852-1853), de Manuel Antônio de Almeida, no Correio Mercantil; O guarani (1857), de José de Alencar, no Diário do Rio de Janeiro; A mão e a luva (1874), em O Globo, e Iaiá Garcia (1878) em O Cruzeiro, ambos de Machado de Assis.
Ao lado do folhetim, a crônica e o conto ocuparam as páginas daquela imprensa periódica, gêneros que permitiram ao literato brasileiro colocar-se em letra impressa. Na impossibilidade de editarse um romance, dada a inexistência de uma editoração nacional, produzia-se o conto, esse sim, com publicação garantida nas revistas. Teria sido tão vasta a produção de crônicas e contos de Machado de Assis, propagada pelos jornais e revistas, não fosse a limitação de instrumentos de veiculação da época, restringindo o autor ao que “cabia” no periódico, ao que era possível ser publicado naquela altura nos jornais, ao que tinha saída no mercado? Romances, só aos bocaditos, em forma de folhetim, que aos jornais interessavam comercialmente como atração de primeira página. A característica da seriação, instigando a leitura seguinte, garantia o consumo da publicação enquanto lá se encontrasse, de suspense em suspense, o enredo instigante com os lances rocambolescos pertinentes.
Coube à crônica, porém, exercer papéis múltiplos, ocupando o lugar do artigo de fundo, fazendo as vezes do que hoje se denomina editorial ou lançada no interior da revista, em seção exclusiva. Aproximava-se do artigo, sobretudo na característica comum de voltarse para as ocorrências contemporâneas, no seu suceder imediato. Marcada pela reflexão despretensiosa, redundou na forma ideal do trato literário de eventos cotidianos, driblando seu caráter efêmero.
Rede urbana e folhas volantes na esteira do café
Entre a imagem que fazia rir e o texto pomposo dos bacharéis, ao alcance de poucos, documentava-se o remanso do Império, ainda com poucas cidades, seguindo curso pacato de uma economia fechada e dependente em tudo do comércio externo.
Essa situação mudaria em parte, a partir da segunda metade do século xix, ao compasso de nossa balança comercial de exportação, quando o café – que desde 1830 ascendera ao primeiro lugar no rol dos produtos exportados – transformou o Brasil num dos maiores produtores mundiais do grão. Em seu rastro sobrevieram transformações importantes, que aparelharam tecnicamente parte do país, viabilizando o melhor curso da palavra impressa.
A proibição do tráfico de escravos pela Inglaterra em 1850, a promulgação da Lei de Terras no mesmo ano e a necessidade de avançar com a produção dos cafezais sinalizavam mudanças. Nesse sentido, iniciativa decisiva foi a implantação da ferrovia, inaugurada no Rio de Janeiro, em 30 de abril de 1854, quando o trem figurou como móvel transformador que imprimiu outro ritmo ao Império, marco também do crescimento da rede urbana, da circulação das ideias e do desenvolvimento da imprensa no país.
A agilização da notícia, agora transportada pelo trem, dava significado a uma imprensa que se expandia por regiões de população adensada, mais ainda quando se deu o fluxo imigratório para as cidades e fazendas de café do interior. Não só como consumidores, mas como produtores de impresso, afinados com as mais diversas correntes ideológicas, políticas e religiosas. O Rio Grande do Sul se destacava na produção de impressos, pois desde as primeiras levas de imigrantes que chegam a São Leopoldo encontra-se a profissão de impressor e de fabricante de papel, sabendo-se que naquela província, desde 1836, publicouse jornais em língua alemã. O primeiro deles, O Colono Alemão (1836), foi editado por Hermann von Salisch, um farrapo. Após a Revolução Farroupilha, José Cândido Gomes lança em Porto Alegre Der Colonist: Wochenblatt fuer Handel, Gewerbe und Landbau ( O Colono: semanário para Comércio, Indústria e Agricultura) (18521853), substituído pelo Der Deutsche Einwanderer ( O imigrante alemão), jornal originalmente editado no Rio de Janeiro com o apoio do Governo Imperial e transferido para Porto Alegre em 1854. Talvez o mais importante jornal em língua alemã, editado em Porto Alegre, tenha sido o Deutsche Zeitung ( Jornal alemão) (18611917), administrado por comerciantes porto-alegrenses, que contou com Carlos von Koseritz como redator. Koseritz fundaria, em 1881, seu próprio jornal, Koseritz’ Deutsche Zeitung ( Jornal alemão de Koseritz), que dirigiu até 1890. Mas também gráficas artesanais foram implantadas nos centros urbanos nascidos com o café, dando origem ao jornal do interior das províncias, iniciativa de agentes sociais anônimos, imbuídos da crença na ação modificadora dos prelos. Na sequência, a otimização técnica advinda da introdução do telégrafo e do cabo submarino passou a dar sustentação à produção do jornal, transformando-o em negócio potencialmente rendoso. A agilização da notícia punha em funcionamento engrenagens do universo econômico agora mais azeitadas, intermediadas por novos profissionais – correspondentes estrangeiros e funcionários de agências de notícias. Junto a isso, imprimia outro ritmo à notícia e à própria escrita, que deveriam ser ágeis, breves, telegráficas.[18]
No rastro das técnicas do impresso
Das várias pontuações passíveis de nortear o percurso das técnicas gráficas no país, cabe à caricatura inaugurar, acompanhar e valer-se das conquistas do impresso e das estéticas em curso. O caráter artesanal da primitiva xilogravura (gravação em madeira) e o talho doce (gravação em sulcos da madeira ou do metal) não se adequaram à impressão seriada de grandes tiragens e ao traço do caricaturista. Revelou-se ideal a litografia (gravação em pedra), em que o artista desenhava às avessas, com lápis gorduroso, diretamente sobre uma pedra calcárea. O processo foi introduzido Rio de Janeiro em 1817, pelo francês Arnaud Julien Palliére (17831862), seguido da experiência de Johann Jacob Steinmann ( c.1801 c.1844), registrando-se então uma série de ateliês litográficos que permitiram toda a sorte de impresso ilustrado, contemplando mapas, etiquetas, letras de câmbio, cartões de todo tipo e as primeiras caricaturas do Brasil. Entre as afamadas oficinas litográficas, quase todas no Rio de Janeiro, estavam as de Louis Aléxis Boulanger e Carlos Risso, Edouard-Philippe Riviére (1832), Pierre Victor Larée ( c. 1832), Ludwig & Briggs (1843), Brito & Braga (1848), Martinet (1851), Paula Brito, Oficina de Manuel Joaquim Cardoso (1851), Leuzinger (1853) e Sisson (1853).
A conquista técnica de ponta, porém, viria com a zincografia, por volta de 1885, que substituía a pedra por lâminas de zinco, alterandose também o processo de impressão. Desde 1885 foi utilizado por Paulo Robin, na revista A Semana, que fazia fotozincografia e fotolitografia, sistema efetivamente adotado na República.
A utilização da cor foi outro passo que qualificou a imagem.
Desde 1859 o recurso de colorir foi utilizado pelo sistema em relevo, à base de estereótipos (letra pronta) e galvanótipos (revestimento mediante processo eletrolítico) destacando-se como exemplar a impressão realizada pelo Arquivo Militar, que imprimiu em 1866 os Figurinos do Exército, desenhados por Álvaro e Larée. Nos anos de 1870, surgem caricaturas coloridas, nas litografias de Bordalo Pinheiro para Psitt! com fundos em dois tons de verde, ou aquelas de O Fígaro, tiradas em sépia e preto, sabendo-se que na década de 1880 a cor já não era raridade, tendo Paulo Robin como seu melhor realizador. Todavia, a despeito da otimização técnica, o artista gráfico do Império permaneceu como artista do lápis por um bom tempo, valendo-se dos recursos inovadores da imprensa apenas no momento da reprodução em série. Já os textos beneficiaram-se das conquistas das Alauzet e das Marinoni.
Imprensa propagandística
e jornalismo republicano
No último quartel do século xix, através das folhas da Corte e mesmo do interior, o questionamento do sistema – significativamente expresso através da imprensa – acirrou-se centrado em três temas recorrentes: as crises entre a Igreja e o Estado (a chamada Questão Religiosa), a insatisfação dos militares para com o Império (a chamada Questão Militar), acirrada em 1886 com a discussão pela imprensa entre o coronel Cunha Matos e o ministro da Guerra, e a campanha da Abolição. Todas elas foram habilmente trabalhadas pela pena dos jornalistas de plantão, contrapondo uma Monarquia que sufocava a uma República que libertava.
Na perspectiva da história da imprensa, o ano marco de 1870 vem carregado de significados. A fundação do Partido Republicano, a criação do jornal A República e o lançamento do Manifesto Republicano, redigido pelo bacharel e jornalista Quintino Bocaiuva, secundado pelos também bacharéis e jornalistas Saldanha Marinho e Salvador de Mendonça, balizaram o uso exaustivo da imprensa a serviço da propaganda da causa republicana.
O ideal republicano – acalentado no Brasil desde o século xviii – retornava agora sob a pena dos jornalistas como programa de partido, que privilegiava a atuação por meio de uma imprensa partidária. Certo que entre 1870 e 1885 essa propaganda republicana arregimentou poucos correligionários. Mas a ideia de República foi encampada e propalada por uma imprensa vivaz, onde militaram liberais, jovens oficiais, cafeicultores do sudeste e os quadros do Partido Republicano Paulista (prp), que fizeram dos prelos o instrumento preferencial da campanha republicana.
O Correio Paulistano converteu-se em órgão liberal, agasalhando atos oficiais dos republicanos, enquanto em Campinas, a Gazeta de Campinas (1869) apresentava-se como ninho de republicanos. A criação do jornal A Província de São Paulo –um dos primeiros periódicos a formar-se através de sociedade por cotas – a despeito das bases de sua organização enfatizarem que o jornal “não é órgão de partido algum, nem advoga interesse de qualquer deles”, levou seus acionistas a divulgar atos oficiais do prp; inclusive um “Boletim Republicano”, redigido por Rangel Pestana e Américo de Campos. Republicano também era o Diário Popular (1884), embora se declarasse voltado apenas aos “interesses municipais”.
Datam daquela época as inúmeras pequenas folhas de proposta republicana que se espalharam pelas cidades do interior, alinhadas no roteiro do café, não obstante precárias na fatura e efêmeras na duração. Em campanha orquestrada – em geral presidida por membros das lojas maçônicas –, propagavam as Luzes, veiculavam a criação de escolas de primeiras letras, escolas noturnas para alfabetização de adultos e escravos, bibliotecas populares e pregavam a República, tentativas preliminares de construção do cidadão.
Oficialmente, a imprensa da Corte e das demais capitais mantinhase monarquista, a exemplo de O País (1884), A Gazeta de Notícias (1875) e o Diário de Notícias (1875), não obstante a defesa do regime republicano por muitos de seus colaboradores. Era o caso de O País, cujo diretor, Quintino Bocaiuva, dava espaço para as crises do governo, especialmente no episódio da Questão Militar. Republicano assumido, representava a linha evolucionista do partido, propunha a mudança do regime sem revolução, em contrapartida a Silva Jardim, da ala revolucionária, que se valeria da palavra na imprensa e nos comícios para a contestação radical à Monarquia. A dubiedade de parte significativa daquela campanha, sobretudo no Sudeste, devia-se a um entrave delicado: o Partido Republicano não endossara a proposta abolicionista, uma vez que muitos de seus correligionários eram proprietários de efetivos plantéis de escravos e – mais que isso – as instituições políticas e a economia do país se sustentavam na ordem escravocrata. Como, porém, uma República com escravos?
Estrategicamente, embora não desfraldada como bandeira do Partido Republicano, a luta pela emancipação e/ou libertação do cativo foi assumida paralelamente, caminhando pari passu àquela republicana. A imprensa foi sua porta-voz mais expressiva, veiculando o jornalismo abolicionista, marco da história da imprensa do país.
Jornalismo abolicionista
Valendo-se da retórica habitual, mesclada pela literatura romântica e pela oratória bacharelesca, os propagandistas levaram a causa da abolição para a imprensa, reconhecida como a mais popular das campanhas até então desfraldadas no país. Intensa e arrebatadora, posto que sob a pena de talentosos literatos e de inspirados ilustradores, envolveu representantes da elite, das camadas médias urbanas, do funcionalismo público, do segmento estudantil, parte da Igreja e agentes emblemáticos da população negra. Nessa última figuraram Luiz Gama, rábula de São Paulo, com ampla penetração nos círculos ilustrados, José do Patrocínio, proprietário de jornal e jornalista que comovia multidões com seus discursos inflamados, e André Rebouças, filho de senador, que convivia com a família real, a despeito de discriminado nos salões pelas damas do Império.
Entre os estudantes, o jovem Castro Alves, assíduo na imprensa da Academia, foi a voz apaixonada da causa que traduziu no poema Navio Negreiro a luta de uma raça. A cada linha de atuação, emancipacionista ou abolicionista, e a cada sociedade libertadora ou clube abolicionista, ensaiou-se e/ou editou-se um jornal. Consta que até mesmo os filhos da princesa Isabel – envolvida com a abolição, sobretudo, por sua formação católica – publicavam um jornalzinho abolicionista no Palácio de Petrópolis. Em meados da década de 1880, a campanha fervilhava como opinião pública. Já falecidos, Ferreira de Menezes, Luiz Gama e o visconde do Rio Branco eram evocados como propulsores do movimento. O Teatro Politeama, em plena Corte, brilhava como palco da pregação.
Página da Revista Ilustrada, de |
Toda uma figuração se mobilizou por meio daquela campanha, marcada pelo dandismo de Nabuco nos salões e nas praças, pelas camélias brancas na lapela do grupo dos Caifazes, de Antonio Bento, em São Paulo, pela veemência escrita e falada de José do Patrocínio, no Rio de Janeiro e no Ceará, pela ação do Clube do Cupim, em Pernambuco. Reverberando todas essas posições, dando-lhes concretude, circulavam inúmeros jornais abolicionistas.
Ao fim da campanha, coube a Joaquim Nabuco centralizar o movimento, impondo-se até mesmo acima de Patrocínio, com textos que evoluíram do emancipacionismo com indenização ao abolicionismo radical, ingressando ao final na defesa da monarquia federativa. Regressando da Europa, em 1884, desembarcou no quadro da campanha reformista, em pleno embate abolicionista e sua reação escravocrata, tornando-se o elo entre as praças e o parlamento, trânsito que faltava aos propagandistas José do Patrocínio e André Rebouças. Mais que isso, como registrou Angela Alonso: “Obteve dos correligionários o mandato tácito que demandara aos escravos em O Abolicionismo”. Escreveu cerca de 26 artigos até outubro de 1884, no Jornal do Com mercio – sob anonimato, conforme exigência da direção –, e constrangeu o país, definindo-o em duas falanges: aquela da pirataria e da civilização.[19] Centralizou suas campanhas eleitorais na plataforma abolicionista. A começar pela campanha de 1884 a deputado, em sua terra natal, Pernambuco, num dos pleitos mais aguerridos, posto que se transformara em verdadeiro plebiscito sobre a abolição, com mee tings a céu aberto, conferências em teatros, ampliação do eleitorado. Radicalizou as escolhas entre “a política de governo livre e a outra, a do chicote”. No rebate da imprensa oposicionista, foi visto até mesmo como niilista e socialista, atacado pelo conservador O Tempo, de Pernambuco, que chegou ao extremo de prever sua promessa de lei agrária como um caminho para o comunismo.
Na ampla mobilização, seu rosto foi estampado em lenços e tecidos, impresso como rótulo de cerveja, de charuto e pacotes de fumo. Após duas votações, venceu com a maioria de 890 votos.
Alçou-se a “chefe real do abolicionismo”, sendo recebido no Rio de Janeiro por Quintino Bocaiuva, portando flores, pelas sociedades abolicionistas com seus estandartes e banda de música. Houve festa na Gazeta da Tarde e ampla divulgação em O País. Até mesmo O
Tempo, em 29 de janeiro, noticiou a recepção:
A gente do Patrocínio
Desta vez perdeu o tino! [...]
O Nabuco lá na Corte
Teve foguetes e sino
Cinco mil pessoas teve [...]
Acompanhando o menino[20]
Já o Jornal do Commercio silenciou sobre o evento. Ciente da necessidade de ter seu próprio veículo, Nabuco admitiu em carta para o amigo barão de Penedo: “Sem jornal próprio, não se é nada aqui e vive-se do favor alheio”, projeto ensaiado na formulação de O Século, com capital de Dantas, do qual seria redator com 50% dos lucros. O projeto, que não vingou, ainda seria tentado em 1886, com anúncio na imprensa: “A aparecer proximamente: O Século – órgão liberal democrático. Redator – Joaquim Nabuco”. Mas os capitais prometidos também não vieram. Com as portas fechadas no Jornal do Commercio, acabou por ingressar em O País, do amigo Quintino, em que fazia a “Crônica Parlamentar”, uma vez por semana.
Patrocínio saiu da Gazeta da Tarde para lançar seu próprio jornal, o Cidade do Rio. Em São Paulo, o arrebatamento não era menor. O grupo radical dos Caifazes, liderado pelo advogado Antonio Bento, lançou o jornal Redenção (1887), marco do desenrolar da campanha abolicionista. Rui Barbosa, militando nos quadros do Grande Oriente Brasileiro do Vale dos Beneditinos, propunha a criação de Caixas de Emancipação, enquanto se empenhava em reformas do ensino, que privilegiassem a educação popular.
Até aqui, porém, a cena coube à imprensa escrita. Mas papel igualmente decisivo, por vezes mais contundente, estaria reservado à imprensa ilustrada.
A imprensa ilustrada de oposição
Há quem diga que a história da Abolição pode ser contada por meio dos desenhos de Agostini, um dos testemunhos mais completos da campanha, estampada na sua Revista Ilustrada (1876-1898), órgão de intensa divulgação da causa republicana e abolicionista. Ali se colocou a sensibilidade e talento do piemontês Angelo Agostini (1843-1910), que chegou ao Brasil em 1854, com 16 anos, após ter passado a adolescência em Paris, politizado, talentoso, perspicaz, ousado, deflagrando a contribuição mais expressiva e formadora de escola. De sua produção paulista tem-se os periódicos O Diabo Coxo e O Cabrião, no ano de 1866, com a Igreja como alvo sistemático dos ataques. No Rio de Janeiro, estreou com O Arlequim (1867), atuou na Vida Fluminense (1868) e, em 1876, iniciou sua vitoriosa Revista Ilustrada, em sociedade com Paul Théodore Robin, proprietário de qualificada oficina a vapor. Ali investiu seu talento e obstinação no combate à escravidão. A premonitória caricatura que trazia fazendeiros trocando seus chapéus
– chile pelo barrete frígio, com a legenda: Sem negro não queremos imperadô [sic], sinalizava a proximidade do fim da Monarquia. Em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinava a Lei Áurea, extinguindo a escravidão, em apenas dois artigos. Tinha ao lado Joaquim Nabuco, enquanto das galerias apinhadas se lançavam chuvas de pétalas, pombas, coroando o delírio do recinto. As sedes de jornais balizaram o trajeto dos cortejos comemorativos.
As páginas de comemoração da Abolição da Escravatura, em 13 de maio de 1888 e aquela da Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, permitem uma conclusão. A maior parte daquela história era tributária da imprensa, mobilizada e escrita nas páginas do jornalismo imperial, pontuando uma etapa marcante da história da imprensa no Brasil.
O Império sai de cena
Raul Pompeia, síntese do homem de imprensa do final do
Império – bacharel, literato, abolicionista, jornalista –, deixou no Jornal do Commercio de 24 de novembro de 1889 a reportagem mais pungente do embarque da família real para o exílio, ao qual assistiu na calada da noite, postado numa janela para o cais Pharoux. Página de perda, de morte, de fim de um ciclo.
O profundo silêncio do lugar pareceu fazer-se maior nesta ocasião, como se a noite compreendesse que se ia, ali mesmo em poucos momentos, estrangular a última hora de um reinado. A tranquilidade que havia era lúgubre. [...] Às três da madrugada, menos alguns minutos, entrou pela praça um rumor de carruagem. [...]
Apareceu então o préstito dos exilados.
Nada mais triste.
Um coche negro, puxado a passo por dois cavalos que se adiantavam de cabeça baixa, como se dormissem andando. [...]
Quase na extremidade do molhe, o carro parou e o Sr. D. Pedro de Alcântara apeou-se – um vulto indistinto, entre outros vultos distantes – para pisar pela última vez a terra da pátria. [...]
A página é adequada para encerrar este capítulo, que aberto com a coroação do jovem imperador, em 1841, percorreu em traços largos seu reinado de 49 anos, três meses e 22 dias. Cumprira-se a fase heroica do jornalismo brasileiro, arrebatado pelos ideais de gerações que fizeram da imprensa o instrumento eficaz de crítica ao regime, arauto quase exclusivo das forças descontentes. Na bagagem de seus agentes – fossem publicistas, jornalistas, bacharéis, autodidatas, caricaturistas – estava o jornalismo de combate, conjugando a causa política, a linguagem empolada e os compromissos literários. Nasce daí a construção da mística republicana como proposta de modernidade, a despeito do jornalismo áulico de exaltação ao imperador que permaneceu até as vésperas do golpe militar.
A consolidação da unidade do país e o estabelecimento das bases do sistema representativo são, em boa parte, tributários da imprensa desse Império tropical.[21] Como diferencial do período – em que o anonimato também foi uma constante – sublinhe-se a ampla liberdade de expressão, propulsora daquela rica produção, de credos diversos e ensaios múltiplos, em busca do ideal maior: a construção da nação.
Ato contínuo ao 15 de novembro, porém, essa imprensa de caráter monarquista – salvo exceções –, se transformaria em imprensa republicana, agente do projeto civilizador, secularmente acalentado. Nela, estamparam-se à exaustão as ideias e imagens do progresso pretendidas pela nova ordem. Ao lado da política, a urbanização foi um de seus grandes temas, veiculado pela festejada modernização do aparelhamento jornalístico, com novas oportunidades tecnológicas para a produção e reprodução do texto e da imagem, em que desabrochou a estética literária parnasiana emoldurada por guirlandas art-nouveaux. Conglomerados jornalísticos consolidaram-se naqueles anos eufóricos, introduzindo novas relações no mercado do impresso. O debate político, a veiculação do quadro econômico e a exaltação das transformações urbanas foram conduzidos pela propaganda e pela publicidade, que se profissionalizavam, a serviço de grupos estrangeiros e dos primeiros governos republicanos. Tudo com muito ranço do Império. Mais perceptível ainda na centralização do poder e no figurino dos governantes, cujas imagens em pose patriarcal traduziam o cultivo aristocrático e a permanência dos valores de uma pretendida sociedade de Corte. Que se transmutava, agora, numa frase de ordem: o Brasil civiliza-se!
Os próximos capítulos cuidam exatamente dessa imprensa em tempos republicanos, marcados pelo cultivo do progresso, pela segmentação do mercado e pela presença de novos atores na República que se queria da ordem e do progresso.
Notas
[ 1] Lilia Moritz Schwarcz, O império em procissão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, p. 10.
[ 2] Henrique Buarque de Gusmão, “A imprensa e o ideal civilizatório no segundo reinado”, disponível em <www.sigma-foco.scire.coppe.ufrj.br/UFRJ/SIGMA/>, acessado em 30 dez. 2007.
[ 3] Isabel Andrade Marson, Movimento praieiro: imprensa, ideologia e poder político – 1842-1849. São Paulo, Moderna, 1980, p. 7
[ 4] Atribui-se ao Diário de Pernambuco a mesma longevidade, com o diferencial de ter se fechado por breve período.
[ 5] Gabriel Ferreira, “A Folha que nunca caiu”, disponível em <http://www.canaldaimprensa.com. br/canalant/foco/doito/foco3.htm>, acessado em 27 dez. 2007.
[ 6] Marcus Carvalho, “A imprensa na formação do mercado de trabalho feminino no século xix”, in Lúcia M. B. P. Neves; Marco Morel; Tania M. B. da C. Ferreira (orgs.), História e imprensa: representações culturais e práticas de poder, Rio de Janeiro, faperj/DP&A, 2006, p. 179.
[ 7] Gondim da Fonseca, Biografia do jornalismo carioca: 1808-1908, Rio de Janeiro, Quaresma, 1941, p. 220.
[ 8] Delfina Benigna da Cunha, Poesias: oferecidas às senhoras rio-grandenses, org. Carlos Alexandre Baumgarten; introdução Rita Terezinha Schmidt, Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 2001, p. 5.
[ 9] Ver: Ana Luiza Martins e Heloisa Barbuy, Arcadas: história da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, Alternativa/Melhoramentos, 1999.
[10] Sérgio Adorno, Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira, São Paulo, Paz e Terra, 198, p. 140.
[11] Ver: Sérgio Miceli, Poder, sexo e letras na República Velha: estudo clínico dos anatolianos, São Paulo, Perspectiva, 1977.
[12] José Murilo de Carvalho, D. Pedro ii, coordenação Elio Gaspari e Lilia M. Schwarcz, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, pp. 84-5.
[13] José Murilo de Carvalho, op. cit., pp. 83-4.
[14] Ana Luiza Martins, Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República, 1890-1922, São Paulo, Edusp/Fapesp/Imesp, 2001.
[15] José Murilo de Carvalho, op. cit., p. 89.
[16] Júlia Lopes de Almeida, Jornadas no meu país: desenhos de Albano Lopes de Almeida, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1920, p. 215.
[17] Ver Marlyse Meyer, Folhetim, uma história, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
[18] Laura Antunes Maciel, “Cultura e tecnologia: a constituição do serviço telegráfico no Brasil”, in Revista Brasileira de História, v. 21, n. 41, São Paulo, Unesp, 2001.
[19] Angela Alonso, Joaquim Nabuco, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, pp. 180-2. Ver especialmente o cap. iv, “No olho do furacão”, pp. 178-233.
[20] Apud Angela Alonso, op. cit., p. 194.
[21] José Murilo de Carvalho, op. cit., p. 9.