CAPÍTULO 6

Correição parcial

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A correição parcial é medida que, desde suas origens, tem caráter eminentemente censório da atividade judicial do ponto de vista disciplinar.

2. NATUREZA JURÍDICA

O objetivo da correição parcial é verificar a regularidade da atuação judicial relativamente aos expedientes ou serviços forenses – à condução do processo, portanto –, incluindo também o comportamento e a própria disciplina do magistrado, e não a qualidade de suas decisões do ponto de vista procedimental ou material, isto é, para apurar a existência de errores in procedendo e errores in judicando, respectivamente (v. n. 3 do Capítulo 3 da Parte I). Trata-se, portanto, de medida que tem aplicação relacionada à atividade administrativa do magistrado (função atípica), e não, propriamente, à sua atividade jurisdicional (função típica). A correição parcial serve para apurar irregularidades administrativas cometidas pelo magistrado ou por serventuário da justiça, se for o caso, determinar as medidas que regularizem o andamento do processo desta perspectiva. A sua relação com os atos e as decisões do processo, destarte, é uma consequência da identificação da irregularidade ou do vício, e não uma causa, como se dá com os recursos.

Justamente por sua finalidade é que doutrina e jurisprudência não hesitam em negar-lhe caráter recursal, embora, do ponto de vista histórico, a correição parcial já tenha desempenhado papel de recurso cabível das decisões as quais o Código de Processo Civil considerava irrecorríveis, como bem destaca Alcides de Mendonça Lima (Introdução aos recursos cíveis, p. 227).

Em um sistema processual civil em que todas as decisões são recorríveis (v. ns. 4 e 5 do Capítulo 2 da Parte I), é imediata a percepção de que um mecanismo como o da “correição parcial” é de discutível utilidade, diferentemente do que, no passado, justificou-se à luz de outros princípios reinantes sobre as técnicas de controle das manifestações jurisdicionais.

3. PREVISÕES NORMATIVAS

É no sentido apontado pelo número anterior que devem ser entendidas as previsões normativas relativas à correição parcial que se encontram esparsas pelo sistema processual civil.

Com efeito, no âmbito da Justiça Federal ela é prevista no art. 6º, I, e no art. 9º da Lei n. 5.010/1966, que organiza a Justiça Federal de primeira instância, reservando ao Conselho da Justiça Federal competência para seu julgamento. Referido Conselho, como exposto pelo n. 3.1 do Capítulo 3 da Parte II do vol. 1, não tem competência jurisdicional, mas administrativa. Vale a ressalva, contudo, de que a Lei n. 8.472/1992, ao disciplinar a composição e a competência daquele Conselho, silenciou a respeito daquela específica competência, embora seja possível entendê-la vigente por força do parágrafo único do art. 11 da Lei n. 7.727/1989, que dispõe sobre a composição inicial dos Tribunais Regionais Federais e sua instalação.

Outra previsão da medida por lei federal estava no art. 5º, II, da Lei n. 1.533/1951, que disciplinava o mandado de segurança, antes do advento da Lei n. 12.016/2009 que, expressamente, a revogou. De acordo com aquela regra, “não se dará mandado de segurança quando se tratar (...) de despacho ou decisão judicial, quando haja recurso previsto nas leis processuais ou possa ser modificado por via de correição”. O dispositivo, de qualquer sorte, como propõe o n. 2.1 do Capítulo 4, sempre mereceu ser entendido tendo presente o caráter administrativo da correição parcial, negando, por isto mesmo, sua aptidão de modificar qualquer decisão jurisdicional.

Nenhuma outra lei federal – e, tampouco o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça – refere-se ou disciplina o instituto, inclusive para o âmbito da Justiça Estadual. Nesta, o que é bastante comum é a sua regulação por leis estaduais de organização judiciária e, mais ainda, por atos infralegais, sobretudo os Regimentos Internos dos Tribunais de Justiça.

No Estado de São Paulo, a título de exemplo, a correição parcial é expressamente prevista pelo art. 93 do Decreto-lei Complementar n. 3, de 27 de agosto de 1969, o “Código Judiciário do Estado”, segundo o qual: “Compete às Câmara isoladas do Tribunal proceder a correições parciais em autos para emenda de erro, ou abusos, que importarem inversão tumultuária dos atos e fórmulas de ordem legal do processo, quando para o caso não houver recurso”. A correição tem o mesmo procedimento do recurso de agravo de instrumento, manifestando-se, no procedimento, o Ministério Público, completa o art. 94 do mesmo diploma normativo.

O antigo Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo previa a correição parcial em seu art. 830 “para a emenda de erro, ou abusos que importarem a inversão tumultuária dos atos e fórmulas da ordem legal do processo civil ou criminal, quando para o caso não houver recurso específico”. O atual limita-se a discipliná-la no âmbito do direito processual penal em seus arts. 208 a 212, o que se explica, não há por que duvidar, diante da recorribilidade de qualquer decisão no âmbito do direito processual civil.

4. O PAPEL A SER DESEMPENHADO PELA CORREIÇÃO PARCIAL

O mais correto com relação ao tema versado neste Capítulo é entender a correição parcial – bem assim as correições em geral, isto é, as correições “não parciais” – como medida administrativa que busca verificar a regularidade dos serviços forenses como um todo e de todos os seus serventuários, inclusive o magistrado, e, se for o caso, aplicar as penalidades, igualmente administrativas, aos responsáveis. Trata-se, portanto, de medida que diz respeito a função atípica do Poder Judiciário.

Bem ilustra a conclusão do parágrafo anterior o art. 96 do “Código Judiciário do Estado de São Paulo”. De acordo com o dispositivo, após a manifestação do Tribunal acerca da “correição parcial” e envio do acórdão respectivo para o juízo de origem “para os fins de direito” (art. 95), “serão os autos encaminhados ao Conselho Superior da Magistratura para aplicação das penalidades disciplinares, se for o caso”.

O que importa destacar, e não pode ser olvidado para os fins presentes, é que a correição parcial não pode, mormente quando disciplinada por leis ou atos infralegais dos Estados, querer fazer as vezes de quaisquer recursos porque isto violaria o inciso I do art. 22 da Constituição Federal, segundo o qual compete privativamente à União Federal legislar sobre processo civil. Nem mesmo o inciso XI do art. 24 da mesma Constituição vem ao socorro da tese de inconstitucionalidade porque os procedimentos lá previstos não abrangem a possibilidade de criação de recursos, mas, apenas e tão somente, o modo de seu exercício, como já destacado em diversas passagens deste volume, em especial, pelo n. 3 do Capítulo 2 da Parte I.

A circunstância de se afirmar que se trata de medida administrativa e não jurisdicional, contudo, não significa que a ela e à sua disciplina respectiva não devam também incidir as garantias constitucionais do “contraditório”, da “ampla defesa” e, mais amplamente, do “devido processo legal”. O inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal é expresso em reservar aquelas diretrizes também aos “processos administrativos”. A respeito do tema, pertinente a menção às Súmulas vinculantes n. 3 e n. 5 do STF e à Súmula 343 do STJ.

A correição parcial, em suma, não pode querer fazer as vezes de qualquer recurso, sendo indiferente, para esta finalidade, que as suas previsões normativas, por vezes, reservem seu uso para decisões “irrecorríveis” ou, quando menos, como medidas aptas para modificar decisões jurisdicionais. Até porque, mesmo a reconsideração da decisão pelo próprio magistrado que a proferiu pode esbarrar, legitimamente, em algum óbice, o mais comum, a sua estabilização, a exigir, também dessa perspectiva, que eventual prejuízo dela decorrente seja questionado e removido pelas técnicas apropriadas previstas no sistema processual civil (v. n. 3 do Capítulo 5).

A irrecorribilidade de qualquer decisão jurisdicional deve ser compreendida e, se for o caso, superada de acordo com as premissas do sistema processual civil, observando-se, inclusive, as considerações apresentadas pelo n. 2 do Capítulo 4, quanto ao uso do mandado de segurança contra ato judicial, quando o tema é retomado da perspectiva do art. 5º, III, da Lei n. 12.016/2009. As decisões recorríveis – que representam a grande maioria dos casos – devem receber contraste pelos recursos admitidos pelo sistema processual civil para tal fim ou, ainda, por outras medidas impugnativas, entre as quais recebem destaque os “sucedâneos recursais”. Não, contudo, por medidas que têm, vale a insistência, objetivo diverso de apuração de irregularidades administrativas e a normalização do andamento dos atos processuais desta perspectiva.