9
Tengo
Antes de a saída se fechar

Após comerem yakinuku, os quatro foram para outro local cantar karaokê e beberam uma garrafa de uísque. O pequeno banquete simples, mas de certa forma animado, terminou um pouco antes das dez. Ao deixarem o bar, Tengo ficou de acompanhar a jovem enfermeira Adachi até o apartamento dela. Em parte, porque as outras duas pegariam o ônibus até a estação, num ponto próximo de onde estavam e, também, porque elas meio que o fizeram acompanhá-la. Tengo e a enfermeira Adachi caminharam, lado a lado, por uma rua deserta cerca de quinze minutos.

— Tengo, Tengo, Tengo — disse a enfermeira, cantarolando. — Tengo é um nome bonito. Fácil de chamar.

A enfermeira Adachi tinha bebido bastante, mas, como suas bochechas eram naturalmente coradas, não se percebia o quanto estava alta. As palavras eram pronunciadas de forma clara, e seus passos eram firmes. Não parecia estar bêbada. Realmente, há diversas maneiras de as pessoas ficarem bêbadas.

— Sempre achei o meu nome esquisito — disse Tengo.

— De jeito nenhum. Tengo. Soa bem e é fácil de gravar. É um nome muito bonito.

— Por falar nisso, ainda não sei o seu primeiro nome. Notei que te chamam de Kuu.

— É o meu apelido. O meu nome verdadeiro é Kumi Adachi. Você não acha que é um nome sem graça?

— Kumi Adachi — Tengo falou em voz alta. — Nada mal. Simples e compacto.

— Obrigada — disse Kumi Adachi. — Desse jeito eu me sinto como um Honda Civic.

— Foi um elogio.

— Eu sei. Tenho uma boa milhagem — disse ela, e segurou a mão de Tengo. — Posso segurar a sua mão? Assim fica mais divertido caminhar junto, e me sinto mais segura.

— É claro que pode — respondeu Tengo. Ao estar de mãos dadas com Kumi Adachi, Tengo lembrou-se da sala da escola primária e de Aomame. O toque era diferente. Mas, ao mesmo tempo, havia algo em comum.

— Acho que estou bêbada — disse Kumi Adachi.

— Acha mesmo?

— Acho.

Tengo olhou para o rosto dela de perfil. — Não parece estar bêbada.

— Não aparento. É da minha natureza. Mas acho que estou bem alta.

— Não é para menos. Você bebeu muito.

— Realmente, eu exagerei. Faz muito tempo que não bebia tanto assim.

— Às vezes é bom ter momentos de descontração — disse Tengo, repetindo as palavras da enfermeira Tamura.

— Tem razão — disse Kumi Adachi, concordando enfaticamente com a cabeça. — De vez em quando, as pessoas precisam se descontrair: comer algo gostoso até se saciar, beber, cantar em voz alta, jogar conversa fora... Você também costuma fazer isso? Você consegue se soltar e deixar o cérebro espairecer? É que você parece sempre tão calmo e comedido.

Tengo parou para refletir sobre isso. Será que ultimamente havia feito algo para se distrair? Não conseguia se lembrar. E, se não conseguia se lembrar, era porque não tinha feito nada. O próprio conceito de se soltar e deixar o cérebro espairecer parecia inexistente para ele.

— Acho que não muito — admitiu Tengo.

— As pessoas são diferentes umas das outras.

— Há diversas maneiras de pensar e de sentir.

— Assim como há diversas maneiras de se embriagar — disse a enfermeira, dando risadinhas. — Mas acho que você também precisa espairecer, Tengo.

— Acho que você está certa — disse Tengo.

Os dois continuaram a caminhada noturna durante um tempo, de mãos dadas e em silêncio. Tengo estava um pouco incomodado com a mudança de como ela falava com ele. Quando ela usava o traje de enfermeira, sua linguagem era evidentemente polida e formal. Mas, com roupas comuns, e possivelmente por estar alcoolizada, passara a dizer tudo o que pensava, sem travas na língua. Esse seu jeito informal de falar era familiar para Tengo. Alguém falava desse mesmo jeito. Alguém que ele encontrara havia pouco tempo.

— Tengo, por acaso você já experimentou haxixe?

— Haxixe?

— A resina do cânhamo.

Tengo respirou fundo o ar noturno em seus pulmões e expirou. — Não, ainda não.

— Pois então, você não quer dar uma experimentadinha? — indagou Kumi Adachi. — Vamos fumar juntos? Tenho no meu quarto.

— Você tem haxixe?

— Tenho sim. As aparências enganam, não é?

— Realmente — disse Tengo, hesitante. Uma enfermeira jovem, saudável, de bochechas rosadas, que morava numa pequena cidade litorânea de Bôsô, tinha haxixe no quarto de seu apartamento. E convidava Tengo a fumar com ela.

— Onde foi que você conseguiu isso? — perguntou Tengo.

— Uma amiga dos tempos do colegial me deu de presente de aniversário no mês passado. Ela foi para a Índia e trouxe de lá dizendo que era uma lembrancinha — disse Kumi Adachi, e começou a balançar energicamente, em grandes arcos, a mão que segurava a de Tengo.

— A pena é pesada se descobrirem alguém traficando drogas. A polícia japonesa é muito rigorosa quanto a isso. Eles têm cães farejadores nos aeroportos.

— Ela não é de ficar se preocupando com detalhes — disse Kumi Adachi. — Mas o fato é que ela conseguiu passar pela alfândega. Pois então, vamos curtir juntos? O grau de pureza é alto, e o efeito é ótimo. Andei pesquisando sobre o assunto e descobri que, na questão da saúde, o risco é praticamente nulo. Não digo que não cause o vício, mas o grau de dependência é bem menor que o do cigarro, da bebida e da cocaína. As autoridades insistem em enfatizar o perigo de a pessoa se tornar dependente, mas isso é balela. Se o argumento for esse, os jogos eletrônicos dos pachinkos são muito mais nocivos. Tampouco dá ressaca, e creio que você vai conseguir espairecer um pouco.

— Você já experimentou.

— Claro que já. E é bem divertido.

— Divertido — disse Tengo.

— Você vai entender assim que provar — disse Kumi Adachi, soltando risadinhas. — Você sabia que a rainha Vitória da Inglaterra sempre fumava haxixe, como se fosse um analgésico, quando sofria de cólicas menstruais? O haxixe era uma prescrição oficial de seu médico particular.

— Verdade?

— É sério. Estava escrito num livro.

Tengo pensou em perguntar em que livro, mas desistiu para não complicar a conversa. Ele não queria aprofundar seus conhecimentos sobre as cólicas menstruais da rainha Vitória.

— Quantos anos você fez no mês passado? — perguntou Tengo, para mudar de assunto.

— Vinte e três. Já sou adulta.

— Certamente — disse Tengo. Ele tinha trinta, mas nunca se vira como adulto. Para ele, significava apenas que fazia trinta anos que estava vivendo neste mundo.

— Hoje, a minha irmã mais velha não está em casa; ela vai dormir na casa do namorado, por isso não precisa fazer cerimônia. Amanhã é a minha folga e posso relaxar.

Tengo não conseguiu encontrar palavras para lhe responder. Ele nutria uma espontânea simpatia por ela. E ela aparentemente sentia o mesmo por ele. Ela estava convidando-o a entrar. Tengo olhou para o céu, mas ele estava coberto por espessas nuvens em tons de cinza. Não era possível ver a lua.

— Outro dia, eu e essa minha amiga fumamos haxixe juntas — disse Kumi Adachi. — Era a primeira vez que eu fumava e senti como se o meu corpo estivesse flutuando no ar. Não nas alturas, mas a uns cinco ou seis centímetros do chão. E quer saber? Flutuar a essa distância foi uma experiência muito boa. Uma distância ideal.

— Nessa altura, se cair não machuca.

— Isso mesmo. É uma distância ideal para se sentir segura. A gente se sente protegida, como estar dentro de uma crisálida de ar. Eu sou a dohta, totalmente envolta pela crisálida de ar, e enxergo vagamente a maza do lado de fora.

Dohta? — indagou Tengo. Sua voz era baixa e dura. — Maza?

A jovem enfermeira assobiava alguma canção enquanto balançava a mão que segurava a de Tengo, caminhando pela estrada deserta. A diferença de altura entre os dois era grande, mas Kumi Adachi não se importava. De vez em quando, um carro passava por eles.

Maza e dohta. É do livro Crisálida de ar. Não conhece? — disse ela.

— Conheço.

— Leu o livro?

Tengo assentiu, balançando a cabeça.

— Que bom. Isso facilita a conversa. Eu A-DO-RO aquele livro. Comprei no verão e já li umas três vezes. Saiba que é muito raro eu ler um livro três vezes. Pois então, enquanto eu fumava haxixe pela primeira vez, senti como se eu estivesse dentro da crisálida de ar. Eu estava dentro da crisálida de ar aguardando o meu aniversário. E a maza observava atentamente a chegada desse momento.

— Você consegue ver a maza? — perguntou Tengo.

— Sim. Eu consigo ver a maza. De dentro da crisálida de ar consegue-se ver vagamente o lado de fora. Se bem que do lado de fora não dá para se ver dentro da crisálida de ar. É assim que funciona. Mas não dá para ver o rosto da maza. Apenas o seu contorno, ainda que vagamente. Mas eu sei que é a minha maza. Sei que ela é a minha maza.

— Será que se pode dizer que a crisálida de ar é como uma espécie de útero?

— Acho que sim. Mas não posso comparar de verdade, pois não me lembro do que aconteceu no útero — e Kumi Adachi deu suas costumeiras risadinhas.

O apartamento ficava num prédio de dois andares de acabamento simples, comum nos subúrbios de uma cidade provinciana. Parecia recém construído, mas já apresentava sinais de deterioração. As escadas externas rangiam e as portas eram mal encaixadas. Os vidros das janelas vibravam toda vez que um caminhão pesado passava na rua. As paredes eram finas e, se alguém tocasse guitarra num dos quartos, o prédio todo se transformaria numa enorme caixa acústica.

Tengo não estava muito entusiasmado em experimentar haxixe. Ele mantinha a cabeça lúcida e vivia num mundo com duas luas. Para que distorcer ainda mais esse mundo? Ele também não nutria nenhum desejo sexual por Kumi Adachi, apesar de admitir que sentia uma afeição por essa enfermeira de vinte e três anos. Porém, afeição e desejo sexual eram coisas diferentes. Pelo menos para Tengo. Por isso, se ela não tivesse comentado sobre a dohta e a maza, ele certamente teria dado uma desculpa qualquer e recusaria o convite de subir até o apartamento dela. Ele pegaria um ônibus no meio do caminho ou, caso não houvesse mais, chamaria um táxi para levá-lo até a pousada. Pois aquela era a “cidade dos gatos”. Na medida do possível, era melhor evitar lugares perigosos. Mas, assim que ouviu as palavras maza e dohta, Tengo foi simplesmente incapaz de recusar o convite. Ele tinha a esperança de que Kumi Adachi conseguisse desvendar o porquê de a crisálida de ar aparecer naquele quarto de hospital com a menina Aomame dentro dela.

O apartamento era condizente com uma moradia de duas irmãs na faixa dos vinte anos. Havia dois quartos pequenos, copa e cozinha conjugada e contígua a uma pequena sala. A mobília parecia uma miscelânea de objetos trazidos de vários lugares, sem estilo próprio. Sobre a mesa laminada da cozinha havia uma imitação de luminária chamativa da Tiffany que destoava do lugar. Ao abrir a cortina de pequenas estampas florais, via-se através da janela uma plantação indistinta e, mais adiante, uma mata escura. A visão era boa e não havia nada que a bloqueasse. Mas o que se via não era uma paisagem enternecedora.

Kumi Adachi indicou o sofá de dois lugares da sala para Tengo se sentar. Era um sofá vermelho, bem chamativo, do tipo love chair, posicionado de frente à TV. Ela tirou da geladeira uma lata de cerveja Sapporo e a colocou diante dele, acompanhada de um copo.

— Vou colocar uma roupa mais confortável, espere um pouquinho que não demoro.

Mas ela nunca voltava. Do outro lado da porta, que ficava no fim do corredor estreito, vez por outra ouviam-se alguns barulhos, como o de gavetas emperradas abrindo e fechando ruidosamente e de coisas caindo no chão. Toda vez que isso acontecia, Tengo não podia deixar de olhar na direção da porta. Realmente, ela deve estar bem mais bêbada do que aparenta. As paredes finas deixavam passar o som da TV do vizinho. Não dava para ouvir detalhadamente as falas, mas, em compensação, como parecia ser um programa humorístico, dava para escutar claramente as risadas da plateia a cada dez ou quinze segundos. Tengo se arrependeu de não ter prontamente recusado o convite. Ao mesmo tempo, lá no fundo de seu coração, admitia que queria estar lá.

A poltrona em que se sentava era de um material vagabundo, e o estofado de pano pinicava em contato com a pele. O formato também era problemático e, por mais que ele tentasse diversas posições, não conseguia se assentar bem. Isso piorou ainda mais o desconforto que sentia ali. Tengo tomou um gole de cerveja e pegou o controle remoto sobre a mesa de centro. Após observá-lo durante um tempo, como se fosse um objeto estranho, finalmente ligou a TV. Mudou de canal várias vezes e, por fim, resolveu assistir a um programa de viagens da NHK sobre as ferrovias australianas. Escolheu esse programa porque seu som era mais tranquilo que o dos demais canais. Havia um oboé como música de fundo e a apresentadora comentava sobre os requintados carros-leito dos trens da Ferrovia Transcontinental.

Sentado desconfortavelmente na poltrona desengonçada, Tengo acompanhava o programa enquanto pensava sobre a crisálida de ar. Kumi Adachi não sabia que quem realmente escrevera o texto fora ele. Mas isso era o de menos. O problema era que, a despeito de ele ter descrito detalhadamente a crisálida de ar, ele próprio não sabia quase nada do que escrevera. Não sabia o que era a crisálida de ar e, mesmo enquanto escrevia, não sabia o significado de dohta e maza. E, mesmo agora, ainda não as compreendia. Apesar disso, Kumi Adachi gostava desse livro e o lera três vezes. Como era possível?

Kumi Adachi voltou à sala no momento em que apresentavam o cardápio do café da manhã servido no vagão restaurante do trem. Ela sentou na poltrona ao lado de Tengo. Por ser pequena, os dois ficaram com os ombros encostados. Ela estava com uma camiseta larga de mangas compridas e uma calça de agasalho de cor clara. A camiseta tinha uma estampa enorme de smiley face. A última vez que Tengo viu uma camiseta com esse sorriso foi no início dos anos setenta. Na época em que Grand Funk Railroad estremecia as jukeboxes com suas músicas extremamente barulhentas. Mas a camiseta não parecia ser velha. Será que, em algum lugar, as pessoas ainda fabricavam essas camisetas com sorriso?

Kumi Adachi pegou outra lata de cerveja, abriu a tampa fazendo barulho, serviu um pouco em seu copo e tomou cerca de um terço em um só gole. Estreitou os olhos como um gato satisfeito. Em seguida, apontou para a tela da TV. O trem percorria os trilhos em linha reta, passando por entre enormes penhascos vermelhos.

— Onde é isso?

— Austrália — respondeu Tengo.

— Austrália — disse Kumi Adachi, e sua voz parecia buscar algo no fundo de sua memória. — A Austrália no Hemisfério Sul?

— Isso mesmo. Austrália dos cangurus.

— Conheço uma pessoa que foi para a Austrália — disse Kumi Adachi, coçando o canto do olho. — Ela foi bem na época do acasalamento dos cangurus e, quando chegou a uma certa cidade, havia cangurus trepando a torto e a direito. No parque, na rua, em todos os lugares.

Tengo achou que deveria comentar algo a respeito, mas faltaram-lhe palavras. Foi então que pegou o controle remoto e desligou a TV. Ao desligá-la, o local ficou repentinamente silencioso. Não se ouvia mais o som da TV do vizinho. Vez por outra, um caminhão parecia fazer questão de passar na rua, mas, fora isso, a noite estava silenciosa. A única coisa que se podia ouvir, ao prestar atenção, era um som baixo e abafado vindo de longe. Não dava para identificar o que era, mas era regular e rítmico. De vez em quando parava, dava um tempo e recomeçava.

— É a dona coruja. Ela mora num bosque próximo daqui e toda noite ela canta — disse a enfermeira.

Kumi Adachi inclinou a cabeça, apoiou-a no ombro de Tengo e, sem dizer nada, pegou sua mão e a segurou. Os cabelos dela roçavam o pescoço de Tengo. A poltrona continuava desconfortável. A coruja continuava cantando no bosque como se estivesse dizendo algo importante. O som de seu canto soou aos ouvidos de Tengo tanto como um toque de encorajamento quanto de advertência. Também como uma advertência com toque de encorajamento. Um som ambíguo, polissêmico.

— Você acha que eu sou muito atirada? — perguntou Kumi Adachi.

Tengo não respondeu. — Você não tem namorado?

— É uma questão difícil — disse Kumi Adachi, com uma expressão séria no rosto. — Um rapaz esperto geralmente vai para Tóquio ao concluir o colegial. Por aqui não há boas escolas, e os empregos bons não são muitos. Não é pra menos.

— Mas você está aqui.

— Sim. O salário não é grande coisa, apesar de o trabalho ser árduo, mas eu gosto de viver aqui. O único problema é que é difícil encontrar um namorado, mas quando encontro algum eu namoro. Só que ainda não encontrei aquele que eu possa dizer “é este”.

Os ponteiros do relógio indicavam um pouco antes das onze. Às onze horas a pousada fecha e ele não poderia mais entrar. Mas Tengo não conseguia se levantar daquele sofá desconfortável. Seu corpo não o obedecia. Talvez fosse o formato da poltrona. Talvez estivesse mais bêbado do que pensava. Ele escutava o canto da coruja à toa e, sentindo os cabelos de Kumi Adachi roçando seu pescoço, olhava para a luminária falsa da Tiffany.

Kumi Adachi preparou o haxixe assobiando uma música alegre. Ela cortou com um estilete um bloco de resina de cânhamo em lascas bem finas, encheu a boca de um cachimbo especial, pequeno e reto e, com o olhar sério, riscou um fósforo. Uma fumaça característica, de cheiro adocicado, pairou delicadamente no ar. Kumi Adachi foi a primeira. Tragou fundo a fumaça, prendendo-a durante um tempo nos pulmões, e a soltou lentamente. Ela indicou com um gesto para que Tengo fizesse o mesmo. Ele pegou o cachimbo e a imitou. Procurou manter ao máximo a fumaça em seus pulmões para depois soltá-la lentamente.

Durante um bom tempo, eles revezaram o cachimbo em silêncio. O morador do apartamento vizinho ligou novamente a TV e as risadas do programa humorístico ressoaram através das paredes. O volume estava um pouco mais alto que da vez anterior. De súbito, a plateia começava a rir animadamente, e essas risadas só paravam quando entrava o comercial.

Tengo e a enfermeira revezaram o cachimbo durante cinco minutos, mas nada acontecia. O mundo ao redor não parecia diferente. As cores, os formatos e os cheiros eram os mesmos de sempre. A coruja continuava a dizer ho-ho no meio da mata, e os cabelos de Kumi Adachi continuavam a espetar-lhe a nuca. O sofá de dois lugares continuava desconfortável. Os ponteiros do relógio que marcavam os segundos continuavam ritmicamente a marcar o tempo e a plateia se esborrachava de rir com alguma piada. Era uma risada do tipo que, por mais que se risse, não trazia felicidade para ninguém.

— Não acontece nada — disse Tengo. — Acho que, para mim, não faz efeito.

Kumi Adachi deu duas leves batidas no joelho de Tengo. — Não se preocupe. Demora um pouquinho.

Ela tinha razão. Realmente, aconteceu. Ele escutou um clique no pé do ouvido, como se um interruptor secreto fosse acionado e, em seguida, algo pastoso balançou dentro de seu cérebro. A mesma sensação de inclinar uma tigela com papa de arroz. “Meu cérebro está balançando”, pensou Tengo. Era a primeira vez que sentia isso. O cérebro parecia um objeto viscoso. O som profundo emitido pela coruja penetrava em sua cabeça, mesclando-se com a papa de arroz em completa fusão.

— A coruja está dentro de mim — disse Tengo. Naquele momento, a coruja era parte de sua consciência. Uma parte importante e inseparável.

— A coruja é a protetora da floresta e ela sabe tudo, por isso ela nos oferece a sabedoria da noite — disse Kumi Adachi.

Onde e como Tengo poderia adquirir essa sabedoria? A coruja está em toda parte e ao mesmo tempo em lugar nenhum: — Não consigo pensar numa pergunta — disse Tengo.

Kumi Adachi segurou a mão de Tengo. — Em vez de perguntar, vá até a floresta. É bem mais fácil.

Tengo ouviu novamente as risadas do programa humorístico e, de súbito, aplausos efusivos. Um assistente deve estar escondido atrás da câmera mostrando para a plateia cartazes indicando “risos” e “aplausos”. Tengo fechou os olhos e pensou na floresta. Resolveu ele próprio adentrá-la. As profundezas da floresta são território do Povo Pequenino. Mas a coruja também está lá. A coruja sabe tudo e nos oferece a sabedoria da noite.

De repente, não se ouvia mais nenhum som. Era como se alguém desse a volta por trás dele e tampasse seus ouvidos. Em algum lugar alguém fechou uma tampa e, em outro lugar, outra se abriu. A saída e a entrada foram trocadas.

Quando recobrou os sentidos, Tengo estava na sala de aula da escola primária.

As janelas estavam completamente abertas e as vozes das crianças, vindas do pátio do colégio, invadiam a sala. As cortinas brancas balançavam ao ritmo dos ventos. Aomame estava ao seu lado segurando firmemente sua mão. A mesma cena de sempre, mas, desta vez, alguma coisa estava diferente. Tudo o que via era tão nítido a ponto de se tornar irreconhecível e, de tão vívidas, as coisas pareciam ter a superfície granulada. Os contornos e as formas podiam ser vistos claramente em seus mínimos detalhes. Se esticasse o braço, podia realmente tocá-los. O cheiro das tardes do início do inverno invadia as suas narinas. Era como se tirassem, de uma só vez, algo que até então o impedia de sentir todos esses cheiros. Era um odor autêntico. Aquele que define uma determinada estação. O cheiro do apagador de lousa, dos produtos de limpeza, da queima das folhas secas no canto do pátio do colégio. Eles se mesclavam em um cheiro único, impossível de discernir. Tengo o tragou para dentro dos pulmões. Isso fez com que sentisse seu coração crescer em largura e profundidade. Seu corpo, silenciosamente, foi se reorganizando. A pulsação deixou de ser uma mera pulsação.

Por um segundo, o portal do tempo se abriu para dentro de si. Uma luz antiga mesclou-se com a luz nova. O ar velho mesclou-se com o ar novo. “Esta é a luz e este é o ar”, pensou Tengo. Com isso, podia entender tudo. Quase tudo. “Por que será que eu não conseguia me lembrar desse cheiro? Era algo tão simples!” Um mundo em que as coisas são vistas como elas são.

— Queria te encontrar — disse Tengo para Aomame. Sua voz soava distante e hesitante. Mas não havia dúvidas de que era sua voz.

— Eu também queria te encontrar — disse a menina. Essa voz parecia a de Kumi Adachi. Ele não conseguia distinguir a realidade e a imaginação. Quando tentava definir a linha divisória entre elas, a tigela se inclinava e o cérebro pastoso balançava.

Tengo disse: — Eu devia ter te procurado antes, mas não consegui fazer isso.

— Ainda não é tarde. Você consegue me encontrar — disse a menina.

— O que devo fazer para te encontrar?

Não houve resposta. Ela não seria dita em palavras.

— Mas eu sei que vou te encontrar — disse Tengo.

A menina disse: — Saiba que eu consegui te encontrar.

— Você me encontrou?

— Me encontre — disse a menina. — Enquanto ainda houver tempo.

A cortina branca balançou silenciosamente em movimentos amplos, como um espírito que não conseguiu fugir a tempo. Foi a última cena que Tengo viu.

Quando voltou a si, Tengo estava deitado numa cama estreita. A luz estava apagada e, por entre as cortinas, a lâmpada da rua iluminava discretamente o quarto. Ele estava de camiseta e cueca. Kumi Adachi estava somente com a camiseta larga estampada com o sorriso. Sem as roupas íntimas. Seus seios macios haviam encostado no braço de Tengo. E a coruja continuava a cantar dentro de seu cérebro. Agora até a floresta estava dentro de sua mente. Ele carregava dentro de si toda a floresta noturna.

Mesmo estando na cama com a jovem enfermeira, Tengo não se sentiu atraído por ela. Kumi Adachi também não parecia sentir desejo sexual por ele. Ela abraçava Tengo e apenas dava suas risadinhas. Ele não entendia o que era tão engraçado. Quem sabe alguém, de algum lugar, esteja mostrando uma placa indicando “risos”.

“Que horas são?”, Tengo levantou a cabeça para ver o relógio, mas não encontrou nenhum. De repente, Kumi Adachi parou de rir e envolveu o pescoço dele com os braços.

— Renasci — Tengo sentiu a respiração quente de Kumi Adachi em seus ouvidos.

— Renasceu — disse Tengo.

— É que morri uma vez.

— Você morreu uma vez — repetiu Tengo.

— Numa noite de chuva fria — disse ela.

— Por que você morreu?

— Para poder renascer, como agora.

— Você renasce — disse Tengo.

— De um jeito ou de outro — disse ela sussurrando bem devagarzinho — há várias maneiras de renascer.

Tengo refletiu sobre o que acabara de ouvir. O que será que ela quis dizer com de um jeito ou de outro há várias maneiras de renascer? Seu cérebro estava pastoso e denso, como um oceano primitivo repleto de vida a germinar. Mas isso não o levava a lugar nenhum.

— De onde vem a crisálida de ar?

— Pergunta errada — disse Kumi Adachi. — Ho, ho.

Ela se virou sobre o corpo dele e Tengo sentiu sobre suas coxas os pelos pubianos. Pelos espessos e abundantes. Pelos que pareciam fazer parte dos pensamentos dela.

— O que é preciso fazer para renascer? — indagou Tengo.

— O mais difícil para renascer — disse a pequena enfermeira, como a revelar um segredo — é que a pessoa não consegue renascer para si mesma. A não ser que seja por alguém.

— É isso que significa de um jeito ou de outro há várias maneiras.

— Ao amanhecer, você deve ir embora. Antes de a saída se fechar.

— Ao amanhecer, devo ir embora — Tengo repetiu as palavras da enfermeira.

Ela esfregou novamente os pelos pubianos na coxa de Tengo, como a deixar um sinal. — A crisálida de ar não é algo que vem de algum lugar. Por mais que você espere, ela não virá.

— Você sabe disso.

— É porque eu morri uma vez — disse ela. — É penoso morrer. Muito mais do que você possa imaginar, Tengo. Você se sente infinitamente solitário. É surpreendente que uma pessoa possa se sentir tão solitária. Não se esqueça disso. Mas, quer saber? No final das contas, se você não morrer, não há como renascer.

— Sem morrer, não há como renascer — assentiu Tengo.

— Mas a pessoa pode ser forçada a morrer durante a vida.

— Forçada a morrer durante a vida — repetiu Tengo, sem ainda conseguir entender o que isso significava.

A cortina branca balançava com o vento. O ar da sala de aula estava impregnado com o cheiro do apagador de lousa misturado com o de detergente. Cheiro da fumaça queimando as folhas secas. Alguém está treinando flauta. Uma menina está segurando sua mão com força. Ele sentia uma leve pontada na parte inferior do corpo, mas não havia ereção. Isso aconteceria muito tempo depois. As palavras muito tempo depois selavam com ele um compromisso eterno. A eternidade era uma linha comprida que se estendia até o infinito. A tigela novamente se inclinou fazendo seu cérebro pastoso balançar.

Ao acordar, Tengo ficou um bom tempo sem saber onde estava. Demorou até se lembrar o que havia feito na noite anterior. A luz ofuscante do sol da manhã entrava por entre as cortinas de estampas florais e os pássaros cantavam alegremente. Ele havia dormido numa cama pequena com o corpo todo apertado e em posição totalmente desconfortável. Admirou ter conseguido dormir a noite toda desse jeito. Ao seu lado havia uma mulher. Ela estava de lado, com o rosto apoiado no travesseiro, dormindo profundamente. Os cabelos cobriam parte de sua bochecha como um viçoso gramado de verão, úmido com o orvalho da manhã. “Kumi Adachi”, pensou Tengo. “Uma jovem enfermeira que acabou de completar vinte e três anos.” O relógio de Tengo estava caído no chão, no canto do pé da cama. Os ponteiros indicavam 7h20. 7h20 da manhã.

Tengo se levantou da cama bem devagar, tomando o cuidado de não acordá-la, e foi até a janela observar a paisagem por entre as cortinas. Havia uma plantação de repolho. Sobre a terra preta, os repolhos enfileirados mantinham-se agachados e, cada qual, firmemente enrodilhado. Adiante, havia uma mata. Tengo se lembrou do canto da coruja. Na noite anterior, era de lá que a coruja cantava. A sábia da noite. Tengo e a enfermeira fumavam haxixe enquanto ouviam seu canto. Ele ainda sentia em suas coxas os rijos pelos pubianos dela.

Tengo foi para a cozinha e tomou água da torneira com as mãos. A sede era tanta que, por mais que bebesse, parecia nunca se saciar. Fora isso, não sentia nada de diferente. Não tinha dor de cabeça nem sentia o corpo mole. A consciência estava lúcida. Mas algo o fazia sentir que, dentro dele, as coisas circulavam bem demais. Era como se um técnico tivesse feito uma hábil limpeza na tubulação. Ele foi para o banheiro de camiseta e cueca e urinou longamente. O rosto refletido no espelho desconhecido não parecia o seu. Alguns fios de cabelo estavam espetados. Precisava fazer a barba.

Voltou para o quarto e juntou suas roupas. Elas estavam misturadas com as de Kumi Adachi e espalhadas pelo chão. Ele não se lembrava quando e como as tirou. Encontrou o par de meias, calçou o jeans e a camisa. Enquanto procurava suas roupas, pisou num anel grande e barato. Ele o colocou sobre a mesinha ao lado da cama. Vestiu uma malha de gola redonda e pegou seu blusão. Verificou se a carteira e a chave estavam no bolso. A enfermeira estava embrulhada no cobertor até o pescoço e dormia profundamente. Não dava nem para ouvir sua respiração. “Será que devo acordá-la? Acho que não fiz nada. Apenas dividimos a cama para dormir. Sei que é falta de educação ir embora sem ao menos me despedir. Mas ela está dormindo profundamente e hoje é o seu dia de folga. O que faríamos, caso ela acordasse?”, pensou Tengo.

Tengo encontrou um bloco de anotações e uma caneta ao lado do telefone. Deixou um bilhete: “Muito obrigado pela noite de ontem. Foi divertido. Vou voltar para a pousada. Tengo.” E anotou a hora. Deixou o bilhete sobre a mesinha de cabeceira e colocou o anel encontrado no chão sobre ele, como peso de papel. Depois, calçou os tênis surrados e foi embora.

Após andar um pouco, encontrou um ponto e, cinco minutos depois, passou um ônibus que ia para a estação. Ele subiu com um grupo animado de estudantes e todos desceram na parada final. O pessoal da pousada não comentou nada ao vê-lo chegar após as oito horas e com a barba por fazer. Não pareciam estar nem um pouco surpresos e, sem dizer nada, prontamente serviram a refeição matinal.

Tengo comeu a refeição quentinha e, enquanto tomava o chá, rememorou o que aconteceu na noite anterior. As três enfermeiras o convidaram para sair e foram comer yakiniku. Depois, foram a um bar e cantaram karaokê. Ele seguiu para o apartamento de Kumi Adachi e, enquanto ouviam o canto da coruja, fumaram haxixe indiano. Sentiu o cérebro como se fosse uma papa de arroz, quente e pastosa. E, de repente, ele estava na sala de aula da escola primária, no inverno, onde sentiu o cheiro do ar e conversou com Aomame. Na sequência, Kumi Adachi, deitada na cama, falou sobre a morte e o renascimento. A pergunta errada gerou respostas ambíguas. A coruja continuava a cantar na mata e as pessoas que participavam do programa de televisão davam risadas.

As lembranças saltavam, deixando algumas lacunas. Faltavam algumas conexões para preencher essas lacunas. Em compensação, as partes de que conseguia se lembrar eram extremamente nítidas. Conseguia resgatar todas as palavras, uma por uma. Tengo lembrou das últimas palavras ditas por Kumi Adachi. Eram um aviso, uma advertência.

— Ao amanhecer, você deve ir embora. Antes de a saída se fechar.

Realmente, já estava na hora de ir embora. Ele tirou férias do trabalho e veio até esta cidade para tentar reencontrar a Aomame de dez anos dentro da crisálida de ar. E todos os dias, durante quase duas semanas, ele visitava o pai na casa de saúde e lia em voz alta um livro. Mas a crisálida de ar não apareceu. Em compensação, quando ele estava pensando em desistir, Kumi Adachi preparou para ele um jeito diferente de lidar com o poder da imaginação. E com isso ele reencontrou a menina Aomame e conversou com ela. “Me encontre, enquanto ainda houver tempo”, foi o que ela disse. Não. Quem realmente disse isso pode ter sido Kumi Adachi. Ele não sabia. Mas isso era o de menos. Kumi Adachi morreu uma vez e renasceu. Não para ela, mas para alguém. Após ela dizer isso é que ele passou a acreditar no que escutava. Isso é que devia ser importante. Provavelmente.

Essa é a cidade dos gatos. Há uma coisa que só se pode obter aqui. Foi por isso que ele pegou o trem e veio. Mas, para tudo o que se obtém aqui, há um risco. Se ele confiar na sugestão de Kumi Adachi, esse risco pode ser fatal. Seu polegar pinica e lhe diz que algo ruim está se aproximando.

“Preciso voltar para Tóquio. Antes de a saída se fechar. Enquanto o trem ainda para na estação”, pensou Tengo. Mas, antes, ele precisava passar na casa de saúde. Precisava encontrar o pai e se despedir dele. Havia também mais uma coisa que ele precisava verificar.