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Ushikawa
Reunir provas concretas
Ushikawa foi para Ichikawa com o sentimento de sair em excursão, mas, na verdade, Ichikawa era uma das primeiras cidades da província de Chiba ao atravessar o rio e, portanto, não era tão distante do centro da capital. Ele pegou um táxi em frente à estação e informou o nome da escola primária. Passava da uma da tarde quando chegou à escola. O horário de almoço tinha acabado e as aulas da tarde haviam começado. Da sala de música ouviam-se vozes cantando em coro e, na quadra, os alunos jogavam futebol na aula de educação física. Crianças gritavam correndo atrás da bola.
Ushikawa não tinha boas recordações de seu tempo de escola. As aulas de educação física eram o seu ponto fraco, sobretudo quando a atividade envolvia jogos com bola. Ele era baixo, corria pouco e tinha astigmatismo. Era como se tivesse nascido sem coordenação motora. Educação física era realmente um pesadelo. Mas, em compensação, nas demais matérias suas notas eram excelentes. Era inteligente e muito estudioso (tanto que, aos vinte e cinco anos, foi aprovado no exame para o magistrado estatal). Mas as pessoas de seu convívio não gostavam dele nem o tratavam com respeito. Talvez o fato de ele também não ser bom nos esportes pode ter sido um agravante para que o tratassem assim. Suas feições também não ajudavam. Desde criança, seu rosto era grande e sua cabeça, disforme. Os lábios grossos arqueados para baixo davam a impressão de que, a qualquer momento, um fio de baba escorreria dos cantos (era apenas uma impressão, isso nunca chegou a acontecer). Os cabelos eram crespos e desajeitados. Definitivamente, não tinha uma aparência que despertasse qualquer tipo de atração.
Na época em que frequentava o primário, ele praticamente não falava. Sabia, porém, que, se a situação exigisse, seria capaz de se expressar com eloquência. Mas não tinha amigos para conversar ou oportunidade para falar diante de um público. Por isso, sempre ficava de boca fechada. E tomou por hábito prestar muita atenção em tudo que as pessoas falavam — independentemente do assunto — obtendo e assimilando informações do que escutava. Um hábito que, posteriormente, iria se tornar uma ferramenta útil para desvendar fatos muito importantes como, por exemplo, que a maior parte das pessoas não era capaz de usar a própria cabeça para pensar. E as pessoas que não sabem pensar são justamente as que não sabem escutar o que os outros têm a dizer.
De qualquer modo, o tempo do primário não era exatamente uma fase da vida de Ushikawa que ele tinha vontade de relembrar. Só de pensar que naquele dia ele precisava visitar uma escola primária já ficava desanimado. Havia algumas diferenças entre as escolas da província de Saitama e as de Chiba, mas na prática as escolas primárias do território japonês eram todas iguais. Todas do mesmo jeito, seguindo as mesmas regras. Mesmo ciente disso, Ushikawa resolveu visitar a escola primária de Ichikawa. Era de suma importância fazê-lo pessoalmente. Ele havia telefonado para a secretaria e agendado com uma das responsáveis um encontro à uma e meia.
A vice-diretora era uma mulher miúda, com cerca de quarenta e cinco anos. Era magra, bonita e se vestia bem. Vice-diretora? Ushikawa hesitou. Até então ele nunca ouvira falar desse cargo. Fazia muito tempo que ele havia se formado na escola primária e, desde então, muitas coisas haviam mudado. Ela parecia estar acostumada a lidar com diferentes tipos de pessoas e, a despeito da aparência incomum de Ushikawa, não se mostrou surpresa ao conhecê-lo pessoalmente. Ou simplesmente era uma pessoa muito educada. Ela acompanhou Ushikawa até a sala de visitas limpa e bem arrumada, e convidou-o a se sentar. Ela então se sentou de frente para ele e sorriu, como que ansiosa em saber que tipo de conversa agradável desfrutariam juntos.
Ela o fez se lembrar de uma garota que estudara com ele no primário. Era bonita, inteligente, simpática e responsável. Teve uma boa educação e tocava piano muito bem. Era a queridinha dos professores. Durante as aulas, Ushikawa sempre olhava para ela. Principalmente as suas costas. Mas nunca chegou sequer a conversar com ela.
— O senhor está fazendo um levantamento sobre um de nossos formandos? — perguntou a vice-diretora.
— Desculpe-me a indelicadeza — disse Ushikawa, entregando-lhe o cartão de visitas. O mesmo que entregara a Tengo e que especificava o seu cargo: “Diretor Efetivo, Nova Fundação Japão para a Promoção das Ciências e das Artes.” Ushikawa contou a mesma história que inventara para Tengo. Disse que Tengo Kawana, ex-formando daquela escola, era um forte candidato como escritor a receber um auxílio financeiro da Fundação. E que, por isso, precisava checar algumas informações básicas a respeito dele.
— Que notícia maravilhosa! — disse a vice-diretora sorridente. — É uma honra para a nossa escola. Teremos satisfação de ajudá-lo no que for preciso.
— Será que posso conversar com a professora responsável pela turma dele? — perguntou Ushikawa.
— Vou verificar. Como já se passaram vinte anos, ela pode ter se aposentado.
— Muito obrigado — agradeceu Ushikawa. — Se possível, gostaria de checar mais uma coisa.
— O quê?
— Talvez uma menina chamada Massami Aomame tenha estudado na mesma série que a do senhor Kawana. Poderia, por favor, verificar se os dois estudaram na mesma classe?
A vice-diretora esboçou no rosto uma expressão de ligeira desconfiança. — Existe alguma relação entre a senhorita Aomame e o fato de o senhor Kawana receber o auxílio financeiro?
— Não. Não se trata disso. É que na obra literária escrita pelo senhor Kawana parece haver uma personagem com as características da senhorita Aomame e, nesse sentido, nós da comissão sentimos a necessidade de verificar e esclarecer alguns pontos que ficaram dúbios. Não é nada de mais. Apenas uma formalidade.
— Entendo — disse a vice-diretora, levantando discretamente os cantos de seus lábios bem definidos. — O senhor deve saber que, dependendo do caso, não podemos fornecer informações pessoais como, por exemplo, o boletim escolar ou revelar questões que envolvem o ambiente familiar do aluno.
— Estou perfeitamente ciente disso. A única coisa que nós queremos saber é se eles estudaram ou não na mesma classe. E, no caso de terem estudado juntos, gostaríamos de saber o nome e o endereço da professora responsável.
— Está bem. Se a questão é essa, creio que não haverá problemas. O senhor disse Aomame?
— Isso mesmo. Os ideogramas são “ervilha” e “verde”. É um nome diferente.
Ushikawa pegou uma folha do seu bloco de anotações e escreveu a caneta: “Massami Aomame”, e a entregou para a vice-diretora. Ela pegou a folha e, após olhar por alguns segundos, guardou-a numa das divisões da pasta sobre a mesa.
— Por favor, poderia aguardar aqui? Vou verificar nos registros administrativos. Enquanto isso, minha assistente providenciará as cópias dos arquivos públicos.
— Desculpe-me o incômodo, sei que a senhora deve estar muito ocupada — disse Ushikawa, demonstrando gratidão.
A vice-diretora deu meia-volta, fazendo a saia dar um giro gracioso, e saiu da sala. Sua postura era bela, e ela caminhava com elegância. O corte de cabelo também era bonito e o jeito de prendê-lo combinava com sua idade. Ushikawa sentou-se novamente e, enquanto aguardava, leu o livro que trouxera consigo.
Passados quinze minutos, a vice-diretora retornou. Trazia consigo um envelope pardo junto ao peito.
— O senhor Kawana foi realmente um ótimo aluno. Suas notas sempre foram as melhores da classe e também se destacou como um excelente atleta. Era muito bom em cálculos, ou melhor, em matemática e, desde o primário, conseguia resolver questões do colegial. Ganhou concursos e chegou a sair no jornal como um menino prodígio.
— Isso é formidável — disse Ushikawa.
A vice-diretora prosseguiu:
— Mas, realmente, estou surpresa. Uma pessoa que, naquela época, foi considerada um prodígio da matemática, agora, depois de adulto, está se destacando no mundo da literatura.
— Quem possui um grande talento encontra várias maneiras de desenvolver suas potencialidades. É como um abundante veio de água que encontra vários caminhos a percorrer. Atualmente ele dá aulas de matemática e escreve romances.
— Tem razão — disse a vice-diretora, erguendo as sobrancelhas num belo arco. — Mas, em compensação, não consegui encontrar quase nada sobre Massami Aomame. Ela foi transferida de escola na quinta série. Foi morar com parentes em Tóquio, no distrito de Adachi, e transferida para a escola de lá. Ela estudou na mesma sala que Tengo Kawana na terceira e quarta séries.
“Foi o que imaginei”, pensou Ushikawa. Realmente, há uma ligação entre os dois.
— A professora Ôta foi a responsável pelas classes do terceiro e quarto anos. Professora Toshie Ôta. Atualmente ela leciona na escola primária municipal da cidade de Narashino.
— Telefonando para a escola, talvez ela possa me atender.
— Já entrei em contato — disse a vice-diretora, esboçando um leve sorriso. — Ela disse que, se o assunto for esse, terá o maior prazer em recebê-lo.
— Muito obrigado — agradeceu Ushikawa. Além de ser bonita, ela também era uma excelente profissional.
A vice-diretora escreveu o nome da professora e o telefone da Escola Primária Tsudanuma no verso do cartão pessoal e o entregou a Ushikawa, que o guardou cuidadosamente em sua carteira.
— Soube que a senhorita Aomame era seguidora de uma religião — disse Ushikawa. — Esse é um ponto que nos preocupa e que gostaríamos de esclarecer.
A vice-diretora franziu as sobrancelhas, fazendo surgir pequenas rugas nos cantos de seus olhos. Somente uma mulher madura e com vasta experiência pessoal conquista aquelas delicadas rugas, charmosas e inteligentes.
— Desculpe-me, mas esse é um assunto que não cabe discutirmos aqui — disse ela.
— É porque envolve questões pessoais, não é? — perguntou Ushikawa.
— Isso mesmo. Principalmente por envolver questões religiosas.
— Mas, se eu conversar com a professora Ôta, pode ser que eu consiga obter algumas informações.
A vice-diretora arqueou levemente sua delicada sobrancelha esquerda e sorriu de modo significativo: — Se a professora Ôta quiser comentar o assunto do ponto de vista pessoal, não teremos nada a ver com isso.
Ushikawa se levantou e agradeceu de modo respeitoso. A vice-diretora entregou o envelope. — Aqui estão as cópias dos documentos. Alguns arquivos sobre Tengo Kawana. Há também algumas coisas, se bem que poucas, sobre a senhorita Aomame. Espero que o ajude.
— Com certeza será de grande ajuda. Muito obrigado pela gentileza.
— Por favor, nos avise quando sair o resultado dessa ajuda financeira. Será uma grande honra para a nossa escola.
— Estou confiante de que o resultado será positivo — disse Ushikawa. — Tive a oportunidade de encontrá-lo algumas vezes e, com certeza, ele é um rapaz talentoso, com futuro promissor.
Ushikawa entrou num restaurante em frente à estação Ichikawa e almoçou uma refeição simples. Enquanto aguardava a comida, passou rapidamente os olhos no material do envelope. Havia um resumo do histórico escolar de Tengo e Aomame, e os registros informando as distinções honrosas que Tengo obteve por se destacar nos estudos e nos esportes. Realmente, ele fora um aluno exemplar, fora do comum. A escola não deve ter sido um pesadelo para ele. Havia também a cópia de um artigo de jornal de quando ele ganhou o concurso de matemática. Por ser um material antigo, a nitidez era sofrível, mas havia até uma foto de Tengo quando jovem.
Após o almoço, Ushikawa telefonou para a escola primária de Tsudanuma. Conversou com a professora Toshie Ôta e combinou de se encontrarem na escola às quatro. Ela lhe disse que, a partir daquele horário, poderiam conversar com calma.
“Sei que isso faz parte do meu trabalho, mas visitar duas escolas primárias num só dia é demais”, pensou Ushikawa, soltando um suspiro. “Fico deprimido só de pensar que preciso fazer isso.” Mas, até aquele momento, havia valido a pena ir pessoalmente até lá. Ele descobriu que Tengo e Aomame estudaram na mesma classe durante dois anos. Um grande avanço.
Tengo ajudou Eriko Fukada a transformar a Crisálida de ar em uma obra literária que se tornou um best-seller. Aomame matou secretamente o pai de Eriko, Tamotsu Fukada, na suíte do Hotel Ôkura. Parece que o objetivo dos dois é atacar o grupo religioso Sakigake, cada qual a seu modo. Eles podem estar agindo juntos. Qualquer um chegaria a essa conclusão mais que óbvia.
No entanto, seria precipitado revelar isso para aqueles dois de Sakigake. Ushikawa não gostava de passar as informações a conta-gotas. Ele preferia obter o máximo delas, confirmar meticulosamente uma série de evidências circunstanciais e, após agrupar todas as provas concretas, é que revelaria o resultado, dizendo “Bem, a verdade é que...”. Fazer esse tipo de encenação teatral era um hábito adquirido desde os tempos em que ele atuava como advogado. Ele se rebaixava para fazer o outro se descuidar e, momentos antes de o caso se encerrar, revelava as provas incontestáveis e dava a volta por cima.
Durante o trajeto de trem até Tsudanuma, Ushikawa levantou mentalmente algumas hipóteses.
Tengo e Aomame podem ser namorados. Isso não significava que estivessem juntos desde os dez anos, mas podiam ter se reencontrado em algum lugar após se formarem no primário e, desde então, passaram a ter um relacionamento mais íntimo. Por algum motivo — cujas razões ainda eram desconhecidas — eles resolveram unir forças para esmagar Sakigake. Essa seria uma das hipóteses.
Mas, até onde Ushikawa podia constatar, não havia nenhuma evidência de que Tengo e Aomame estivessem juntos. Tengo mantinha relações sexuais periódicas com uma mulher casada, dez anos mais velha. Pelo tipo de personalidade de Tengo, caso estivesse envolvido com Aomame, dificilmente teria um caso regular com outra mulher. Ele não era o tipo de homem capaz de realizar tamanha proeza. Ushikawa já havia investigado a rotina de Tengo durante duas semanas. Três dias por semana ele dava aulas de matemática numa escola preparatória e, nos demais, costumava ficar sozinho, enfurnado no apartamento. Possivelmente, passava o dia escrevendo seu romance. De vez em quando, saía para fazer compras ou para caminhar. Uma vida modesta e monótona. Simples e sem mistérios. Ushikawa achava improvável que uma pessoa como Tengo estivesse envolvida numa conspiração para matar o Líder.
Ushikawa tinha um apreço pessoal por Tengo. Ele era um rapaz humilde e honesto. Independente e autoconfiante. E, como normalmente se nota em pessoas de grande porte, às vezes faltava-lhe a disposição de tomar alguma iniciativa, mas não era de agir furtiva e traiçoeiramente. Era um tipo que, uma vez decidido, seguia em frente, firme e de cabeça erguida. Um perfil que nunca daria certo como advogado ou corretor da bolsa de valores. Seria uma questão de tempo até alguém puxar o seu tapete para derrubá-lo num momento crucial. Mas, como professor de matemática e escritor, tinha grandes chances de se sair bem. Tengo não era uma pessoa social e eloquente, mas atraía a atenção de um certo tipo de mulher. Em outras palavras, Tengo era o oposto de Ushikawa.
Por outro lado, Ushikawa pouco sabia a respeito de Aomame. As únicas informações eram que a família dela era fiel devota das Testemunhas de Jeová e que, desde que se entendia por gente, era obrigada a acompanhar a mãe nas pregações. Na quinta série abandonou a religião e foi morar na casa de parentes no distrito de Adachi. Possivelmente, ela não aguentava mais aquela vida. Por sorte, possuía uma grande aptidão física e, do ginásio ao colegial, destacou-se como uma exímia jogadora de softball, chamando a atenção das pessoas. Conseguiu obter uma bolsa de estudos e cursou a faculdade de educação física. Essas eram as informações que Ushikawa possuía. Mas ele não tinha ideia de como era sua personalidade, seu raciocínio, seus pontos fortes e fracos, e tampouco sabia o tipo de vida que levava. O que ele tinha era só uma série de informações curriculares.
Enquanto Ushikawa tentava estabelecer uma relação entre os currículos de Tengo e Aomame, ele descobriu alguns pontos em comum. O primeiro era que a infância de ambos não fora muito boa. Aomame precisava acompanhar a mãe pela cidade para divulgar a religião. Iam de casa em casa tocando a campainha. Todas as crianças das Testemunhas de Jeová são obrigadas a fazer isso. O pai de Tengo era cobrador da NHK. Neste caso, também precisava andar de porta em porta. Será que ele também levava o filho, como as Testemunhas de Jeová? É provável que sim. Se Ushikawa fosse o pai de Tengo, ele certamente levaria o filho consigo. As cobranças são mais eficazes se o cobrador estiver com uma criança e, ainda por cima, não precisaria contratar uma babá. É como matar dois coelhos com uma cajadada só. Mas, para Tengo, essa experiência não deve ter sido boa. Talvez aquelas duas crianças tenham se cruzado em suas andanças pelas ruas de Ichikawa.
O segundo ponto em comum é que os dois, assim que cresceram e começaram a entender as coisas, se esforçaram em ganhar bolsas de estudo e ficar o mais distante possível de seus pais. Os dois realmente se destacaram como atletas. O fato de possuírem um talento nato para os esportes contribuiu para que conquistassem essa autonomia. Mas, na situação em que estavam, eles precisavam veementemente se destacar em alguma coisa. Para eles o único meio plausível para conquistar a própria independência era se destacarem como atletas e, como estudantes, precisavam tirar boas notas, de modo a obterem o reconhecimento das pessoas. Era um passaporte importante para a sobrevivência e a autoproteção. Eles não pensavam como as demais crianças de dez anos, e o modo de os dois enfrentarem o mundo era diferente.
Pensando bem, a situação de Ushikawa também não diferia tanto da deles. No caso de Ushikawa, ele não precisou obter bolsas de estudo nem passou por dificuldades financeiras, pois sua família era abastada. Mas, para ingressar numa faculdade conceituada e passar no exame de magistratura, precisou estudar muito. Assim como Tengo e Aomame. Não tinha tempo para se divertir como faziam os demais colegas de sala. Deixou de lado todos os prazeres mundanos — sabia que não seria fácil obtê-los, mesmo que os desejasse — e dedicou-se exclusivamente aos estudos. Seus sentimentos sempre oscilaram entre o complexo de inferioridade e o de superioridade. “Sou um Raskolnikov que jamais encontrou uma Sonia”, era o que Ushikawa costumava pensar. “Vamos deixar esse assunto de lado. Não adianta nada pensar nisso agora. Preciso voltar para o caso Tengo e Aomame.”
Se, por acaso, os dois se reencontraram em algum lugar após completarem vinte anos, devem ter ficado surpresos em constatar que tinham muitas coisas em comum, e a conversa certamente foi longa. Naquele momento, sentiram uma forte atração um pelo outro. Ushikawa conseguia imaginar vividamente essa cena. Um encontro decisivo. Extremamente romântico.
Será que realmente se reencontraram? Houve um romance entre eles? Ushikawa não tinha como saber. Mas pensar nessa hipótese do reencontro fazia sentido. E, consequentemente, fazia sentido os dois terem se unido para atacar Sakigake. Cada qual a seu modo: Tengo utilizou sua caneta e Aomame, provavelmente, alguma habilidade específica. No entanto, essa hipótese não convencia Ushikawa. A história, de certa forma, fazia sentido, mas algo não se encaixava.
Se Tengo e Aomame estavam intimamente ligados, era estranho que isso não pudesse ser detectado de forma clara. Um encontro decisivo resultaria em algo igualmente decisivo e, aos olhos experientes de Ushikawa, não passaria despercebido. Aomame poderia ser capaz de esconder isso, mas Tengo não.
Ushikawa era um homem movido pela razão. Sem obter provas, não conseguia seguir em frente. Ao mesmo tempo, confiava em sua intuição. E sua intuição discordava toda vez que ele imaginava Tengo e Aomame conspirando e agindo juntos. Sua intuição negava de modo discreto, porém insistente. Talvez os dois ainda não soubessem da existência um do outro. O envolvimento de ambos com Sakigake poderia ter sido obra do acaso, e foram impelidos a agir à mercê dos acontecimentos.
Por mais que fosse difícil acreditar nessa suposta casualidade, essa era a hipótese que sua intuição aceitava mais do que a da teoria da conspiração. Juntos, eles conseguiram abalar a estrutura de Sakigake ao acaso, cada qual com seus próprios objetivos, suas próprias motivações e meios. Duas histórias originalmente diferentes que caminhavam lado a lado.
Mas será que Sakigake aceitaria uma hipótese baseada na intuição? Ushikawa sabia que não. O que eles com certeza aceitariam seria a teoria da conspiração. Afinal, gostavam de fazer intrigas e jogos secretos. Antes de revelar as informações, ele precisava obter provas concretas. Caso contrário, havia o perigo de incorrer em um erro e isso poderia se reverter em algo prejudicial para o próprio Ushikawa.
Ushikawa ficou ruminando essas coisas durante todo o trajeto de Ichikawa a Tsudanuma. Enquanto repassava essas ideias, deve ter feito caretas, suspirado ou encarado o vazio. Algumas meninas da escola primária que sentavam na sua frente olhavam para ele de forma espantada. Para tentar disfarçar a vergonha, Ushikawa relaxou a expressão do rosto e passou a mão em sua cabeça calva e deformada. Mas, ao contrário do que esperava, esse seu gesto as deixou mais assustadas. Todas se levantaram um pouco antes da estação Nishi-Funabashi e, tão logo saltaram do trem, saíram em disparada.
A professora Toshie Ôta recebeu Ushikawa numa das salas de aula, após a saída dos alunos. Tinha cerca de cinquenta anos. Sua aparência contrastava com a da vice-diretora refinada da escola primária de Ichikawa. A professora Ôta era baixa, gorda e seu jeito de andar era tão esquisito que, vendo-a de costas, parecia um crustáceo. Ela usava óculos pequenos de aro dourado, mas, como a distância entre as sobrancelhas era grande, nesse intervalo brotavam pequenas penugens. Vestia um blazer que parecia ser de lã, de idade indeterminada, mas que certamente já estava fora de moda na época em que fora confeccionado. Exalava um leve cheiro de naftalina e era cor-de-rosa, mas de um tom estranho de rosa, como se outra cor houvesse sido misturada a ele por acidente. Provavelmente a intenção era obter uma cor distinta e elegante, mas, no final, o rosa resultou numa cor tímida, enrustida e conformada. Em contraste, a blusa branca e nova sob o blazer parecia uma pessoa indiscreta infiltrada num velório. Os cabelos secos com alguns fios brancos estavam presos com uma presilha de plástico escolhida ao acaso. Três rugas finas marcavam nitidamente o seu pescoço, como se fossem entalhes dos anéis da vida. Ou, quem sabe, eram o sinal de que três de seus desejos haviam sido concretizados. Mas Ushikawa achou improvável que essa última hipótese tivesse realmente acontecido.
Ela fora professora de Tengo da terceira série até o último ano do primário. Normalmente os professores mudavam de turma a cada dois anos, mas ela o acompanhara durante quatro anos consecutivos. No caso de Aomame, foram somente dois, a terceira e a quarta séries.
— Lembro-me muito bem do senhor Kawana — disse ela.
Em contraste com o jeito pacato, sua voz era clara e jovial. Uma voz firme, que alcançava todos os cantos de uma sala de aula barulhenta. “A profissão molda a pessoa”, admirou-se Ushikawa. “Ela deve ser uma professora competente.”
— Ele era um aluno excelente em todos os sentidos. Leciono há mais de vinte e cinco anos e dei aulas para inúmeros alunos em diversas escolas, mas nunca encontrei alguém tão bom quanto ele. Ele se destacava em tudo o que fazia. Era uma pessoa boa e com espírito de liderança. Sempre achei que seria capaz de se sair bem em qualquer área que escolhesse seguir. No primário se destacou pela capacidade de lidar com a matemática, mas não me surpreende que tenha seguido a carreira literária.
— Se não me engano, o pai dele era cobrador da NHK, não era?
— Isso mesmo — disse a professora.
— O próprio senhor Kawana comentou que o pai era bem rigoroso — disse Ushikawa. Era um tiro no escuro.
— Era mesmo — disse a professora, sem titubear. — Era um pai muito rigoroso em certos aspectos. Tinha um grande orgulho de seu trabalho, o que não deixa de ser maravilhoso, mas isso, às vezes, era um fardo para Tengo.
Ushikawa puxou habilmente o assunto para colher informações mais detalhadas. Essa era uma de suas melhores técnicas. Deixar o outro à vontade para que falasse espontaneamente das coisas. A professora contou que Tengo detestava acompanhar o pai nas cobranças e que, na quinta série, resolveu sair de casa. — Não foi exatamente sair de casa; na prática, foi como ser expulso — disse a professora. “Tengo realmente era obrigado a acompanhar o pai nas cobranças”, pensou Ushikawa. “Isso deve ter afetado muito seu lado emocional quando criança. Foi o que imaginei.”
A professora acolheu Tengo durante uma noite, pois ele não tinha para onde ir. Ela lhe deu um cobertor e preparou o café da manhã. No dia seguinte, ao anoitecer, foi conversar com o pai de Tengo, e o convenceu a aceitá-lo de volta. A professora contou essa história como se fosse um dos capítulos mais lindos de sua vida. Ela também contou o dia em que reencontrou Tengo num concurso musical e como ele tocara maravilhosamente bem o tímpano.
— A Sinfonietta de Janáček. Não é uma música fácil. Algumas semanas antes, ele sequer sabia tocar tímpano. Mas subiu ao palco para substituir um músico e tocou magnificamente bem aquele instrumento. Só pode ter sido um milagre.
“Essa mulher realmente gostava de Tengo”, admirou-se Ushikawa. “É um sentimento quase incondicional. Como será que se sente uma pessoa ao saber que alguém gosta tanto assim dela?”
— A senhora se lembra de Massami Aomame? — perguntou Ushikawa.
— Também me lembro muito bem dela — disse a professora, com a voz neutra, totalmente diferente de quando falava de Tengo. O tom havia caído dois níveis.
— É um sobrenome diferente.
— Sim. Bem diferente. Mas não é por causa disso que eu me lembro dela.
Houve um breve silêncio.
— Ouvi dizer que a família dela era fiel seguidora das Testemunhas de Jeová, é verdade? — indagou Ushikawa, para sondá-la.
— Gostaria que esse assunto ficasse somente entre nós — disse a professora.
— É claro. Não vou comentar com ninguém.
Ela concordou. — Existe uma grande filial das Testemunhas de Jeová na cidade de Ichikawa. Por isso, tive contato com muitas dessas crianças ao longo dos anos. Do ponto de vista do professor, lidar com essas crianças sempre foi um problema delicado, que requeria um certo cuidado. Mas até hoje não conheci nenhuma família tão fiel às Testemunhas de Jeová quanto a de Aomame.
— Está querendo me dizer que são pessoas intolerantes?
A professora mordiscou levemente os lábios, como se voltasse no tempo. — Isso mesmo. Eram pessoas extremamente rigorosas com as regras e exigiam o mesmo rigor de suas crianças. Por isso, Aomame sempre ficava sozinha na classe.
— Aomame, de certo modo, era uma pessoa especial, não era?
— Era uma pessoa especial — a professora admitiu. — É claro que a criança não pode ser responsabilizada por isso. Se fosse necessário apontar o culpado disso, seria a intolerância que domina o coração das pessoas.
A professora falou sobre Aomame. Contou que era ignorada pelas demais crianças. Costumavam fingir que ela não existia. Ela era como um elemento estranho à sociedade e que incomodava as outras pessoas, propalando seus ensinamentos esquisitos. Essa era a opinião geral da classe. Para se proteger dessa hostilidade, Aomame procurava ao máximo apagar a sua presença.
— Confesso que tentei ajudá-la, mas a união das crianças era muito mais forte do que se podia imaginar e, por isso, Aomame vivia como um fantasma. Hoje em dia, casos assim podem ser encaminhados aos conselhos educacionais, mas, naquela época, isso não existia. Eu também era jovem, e só ter de manter os alunos na classe já era uma tarefa desgastante e ocupava praticamente todo o meu tempo. Creio que isso deve parecer uma desculpa.
Ushikawa compreendia o que ela estava querendo dizer. O trabalho de um professor de escola primária é árduo. De certa forma, às vezes o jeito é deixar que as próprias crianças resolvam as coisas entre si.
— A fé e a intolerância são faces de uma mesma moeda. Nem sempre é possível lidar com isso — disse Ushikawa.
— O senhor tem razão — disse ela. — Mas creio que eu podia ter encontrado outros meios para ajudá-la. Tentei conversar várias vezes com Aomame. Mas ela não me ouvia. Era teimosa e, uma vez decidida, jamais mudava de ideia. Era inteligente, possuía uma grande capacidade de aprendizado e gostava de estudar. Mas, para não demonstrar isso abertamente, ela procurava controlar e reprimir essa sua capacidade. O único meio de se proteger talvez tenha sido o de não chamar a atenção. Se ela vivesse num ambiente normal, certamente teria sido uma excelente aluna. Quando me lembro disso, sinto realmente muita pena.
— A senhora chegou a conversar com os pais dela?
A professora assentiu. — Várias vezes. Os pais dela frequentemente iam à escola reclamar que a filha estava sendo perseguida por questões religiosas. Nessas ocasiões, eu solicitava a eles que ajudassem Aomame a se enturmar mais com os colegas. Tentar ser um pouco mais flexível em relação aos preceitos religiosos. Mas foi em vão. Para os pais dela, obedecer rigorosamente as crenças religiosas era fundamental. Para eles, a felicidade era alcançar o Reino dos Céus, e a vida na Terra era algo transitório. Mas essa era a lógica dos adultos. Eles não entendiam como é terrível para uma criança ser ignorada e repelida pelos demais colegas; e como isso pode causar uma ferida fatal.
Ushikawa informou que Aomame fora atleta tanto no time de softball da faculdade quanto no da empresa em que trabalhava e que, atualmente, era uma ótima instrutora num clube esportivo de luxo. O correto seria dizer que estava trabalhando nesse clube até pouco tempo atrás, mas não precisava ser tão detalhista.
— Que bom — disse a professora, corando levemente. — Ela cresceu bem, tornou-se independente e está com saúde. Saber disso me deixa com menos remorso.
— Há uma coisa que eu não consigo entender — disse Ushikawa, esboçando um sorriso inocente. — Será que no primário Tengo e Aomame não tiveram alguma relação mais próxima?
A professora entrelaçou os dedos e pensou por um tempo. — Pode ser que sim. Mas eu nunca presenciei nada nem ouvi comentários a respeito. A única coisa que posso dizer é que acho difícil imaginar que alguém daquela classe tenha tido algum tipo de relacionamento mais próximo com ela. Tengo pode ter lhe estendido a mão. Ele era uma criança muito gentil e responsável. Mas, mesmo que isso tenha acontecido, Aomame não era uma criança que facilmente abriria o seu coração, assim como uma ostra grudada na rocha dificilmente abre a concha.
A professora calou-se por um tempo e depois prosseguiu:
— Lamento ter de dizer isso, mas, naquela época, confesso que não pude fazer nada. Como já disse, eu era inexperiente e não tinha segurança para enfrentar a situação.
— Se o senhor Kawana e a senhorita Aomame tivessem tido algum relacionamento mais próximo, isso teria uma grande repercussão na sala, e a história com certeza chegaria aos seus ouvidos, não é?
A professora concordou:
— A intolerância era comum em ambos os lados.
Ushikawa agradeceu:
— Esta conversa com a senhora será de grande importância.
— Espero que a conversa que tivemos sobre Aomame não seja um obstáculo para que ele receba o auxílio financeiro — disse a professora, preocupada. — Os problemas que ocorreram na sala de aula são de minha responsabilidade. Não é culpa de Tengo nem de Aomame.
Ushikawa balançou a cabeça:
— Não se preocupe. Estou apenas verificando os fatos que podem estar por trás de sua obra literária. Como a senhora já deve saber, as questões que envolvem religião são sempre muito complicadas. O senhor Kawana possui um grande talento e, em breve, se tornará conhecido.
Ao ouvir isso, a professora sorriu satisfeita. Suas pequenas pupilas cintilaram como se tivessem captado os raios solares; uma luminosidade como o brilho da geleira no cume de uma distante montanha. Ushikawa achou que ela estivesse se recordando do menino Tengo. Já haviam se passado mais de vinte anos, mas, para ela, era como se tivesse acontecido ontem.
Enquanto aguardava o ônibus que o levaria até a estação Tsudanuma, num ponto próximo à escola, Ushikawa pensou nas professoras da escola em que estudou. Será que elas ainda se lembram dele? Caso se lembrem, certamente seus olhos não refletiriam um brilho tão carinhoso ao pensar nele.
O que Ushikawa conseguiu verificar e esclarecer era algo muito próximo ao que ele havia imaginado. Tengo era o melhor aluno da classe. E também era um garoto popular. Aomame, ao contrário, era solitária e ignorada por todos. Não havia possibilidade de eles se aproximarem nesse tipo de ambiente. A posição deles era oposta. E Aomame mudou-se de Ichikawa e foi transferida para outra escola. A ligação entre eles foi cortada nesse momento.
Se havia algum ponto em comum entre os dois nesse período, era o fato de terem de obedecer aos seus pais a contragosto. Os fins da pregação e da cobrança eram diferentes, mas ambos eram obrigados a acompanhar os pais nas andanças pela cidade. A situação deles na sala de aula era diametralmente oposta, mas eram igualmente solitários e buscavam desesperadamente algo. Algo que os aceitasse incondicionalmente e que os protegesse em seus braços. Ushikawa conseguia imaginar os sentimentos dos dois. Em certo sentido, ele sentia o mesmo.
“Pois então”, pensou Ushikawa, sentado de braços cruzados no assento do trem expresso de Tsudanuma rumo a Tóquio. “Pois então, e agora? O que devo fazer? Por ora, descobri algumas conexões entre Tengo e Aomame. Conexões interessantes. Mas, infelizmente, elas não podem ser comprovadas.
“Estou diante de um muro de pedra. Um muro com três portas. Preciso escolher uma. Cada porta possui uma placa com um nome. A primeira está escrito Tengo, a segunda, Aomame, e a terceira, Velha senhora de Azabu. Aomame sumiu feito fumaça, sem deixar pistas. A Mansão dos Salgueiros de Azabu está muito bem protegida, como um cofre-forte. Não há como entrar nela. Sendo assim, resta uma única porta.
“De agora em diante, devo ficar grudado em Tengo por algum tempo”, pensou Ushikawa. “Não há alternativa. Eis um exemplo perfeito de como realizar um método de eliminação. Tão perfeito que dá vontade de imprimi-lo em forma de panfleto e distribuir às pessoas. E aí, tudo bem? Venham conhecer um belo exemplo de método de eliminação.
“Tengo sempre foi um jovem adorável. Matemático e escritor. Campeão de judô e o queridinho das professoras do primário. O jeito é usá-lo para conseguir desembaraçar os fios dessa situação complexa. Uma situação extremamente confusa. Quanto mais se pensa no assunto, mais difícil se torna resolvê-lo. Meu cérebro parece um tofu com a validade vencida.
“E Tengo? Será que ele já consegue ver a situação como um todo? Creio que não.” Ushikawa achava que Tengo devia estar lidando com a situação na base da tentativa e erro, apenas indo de um lado para outro. “Ele também deve estar confuso, formulando inúmeras hipóteses. Afinal, é um matemático nato. Um perito em juntar peças e montar quebra-cabeças. Como Tengo está diretamente envolvido nisso, deve ter muito mais peças do que eu.
“Vou vigiar seus movimentos por um tempo. Ele certamente me conduzirá para algum lugar. Se tudo der certo, vai me levar até o esconderijo de Aomame.” Ushikawa se gabava de ser como uma rêmora que, uma vez grudada na rocha, jamais se solta. Uma vez decidido a ficar, ninguém era capaz de arrancá-lo de lá.
Ao decidir vigiar Tengo, Ushikawa fechou os olhos e desligou o interruptor do pensamento. “Vou descansar um pouco. Hoje visitei duas escolas e conversei com duas professoras de meia-idade. A bela vice-diretora e a professora que andava como caranguejo. Preciso relaxar os nervos.” Um tempo depois, sua cabeça enorme e deformada começou a balançar lentamente, para cima e para baixo, acompanhando o movimento do trem. Parecia um boneco em tamanho natural que, a qualquer momento, soltaria pela boca um oráculo de mau agouro.
O trem estava lotado, mas nenhum passageiro quis sentar ao seu lado.