11
Aomame
Não há coerência nem bondade

Na manhã de terça, Aomame escreveu um bilhete para Tamaru, informando que aquele homem que dizia ser cobrador da NHK havia aparecido novamente e batera insistentemente na porta, xingando-a e a insultando aos berros (ou melhor, ameaçando a senhorita Takai, suposta moradora do apartamento). Havia nessa conduta algo de muito estranho. Era necessário tomar cuidado.

Aomame colocou o bilhete dentro de um envelope, lacrou-o e o deixou sobre a mesa da cozinha. No envelope escreveu apenas a inicial T. Os homens que repunham os mantimentos se encarregariam de entregá-lo a Tamaru.

Um pouco antes da uma da tarde, Aomame foi para o quarto, trancou a porta, deitou-se na cama e retomou sua leitura de Proust. Pontualmente à uma, a campainha tocou uma única vez. Um tempo depois, alguém abriu a porta e a equipe de reposição entrou no apartamento. Como de costume, colocaram agilmente os alimentos na geladeira, recolheram o lixo e verificaram os mantimentos do armário. Em quinze minutos a equipe concluiu todas as tarefas predeterminadas, deixou o apartamento, fechou a porta, trancando-a pelo lado de fora. E, novamente, tocaram uma única vez a campainha. O mesmo procedimento de sempre.

Por precaução, Aomame aguardava os ponteiros do relógio marcarem uma e meia para sair do quarto e ir para a cozinha. O envelope não estava mais sobre a mesa e, no lugar, havia um saco de papel com o nome de uma drogaria estampado e um livro grosso intitulado Enciclopédia do corpo feminino, que Tamaru havia ficado de providenciar. Dentro do saquinho havia três tipos de testes de gravidez facilmente adquiridos em qualquer farmácia. Aomame abriu as embalagens e leu as respectivas bulas, com as instruções do passo a passo, comparando os três tipos de testes. As informações eram as mesmas. O teste poderia ser realizado a partir de uma semana após o dia em que a menstruação deveria descer. Possuía uma eficácia de 95 por cento, mas, se o resultado desse positivo, isto é, se a pessoa estivesse grávida, a primeira recomendação era marcar logo uma consulta com um médico especialista. As bulas ressaltavam, também, que o resultado indicava apenas a possibilidade de gravidez e, portanto, não devia ser considerado conclusivo.

O teste era simples. Bastava coletar a urina num recipiente e colocar uma fita de papel em contato com o líquido. Ou, então, urinar diretamente num bastão e aguardar alguns minutos. Se a cor ficar azul, você está grávida. Se não houver nenhuma alteração, você não está. Ou, se aparecerem duas riscas verticais numa das janelas, você está grávida; se aparecer uma única, você não está. Apesar de esses métodos possuírem diferenças mínimas entre eles, o princípio era o mesmo. A indicação de gravidez estava diretamente relacionada à presença ou ausência de gonadotrofina coriônica humana na urina.

“Gonadotrofina coriônica humana?”, Aomame franziu as sobrancelhas. Ela era uma mulher com trinta anos e nunca tinha escutado esse termo antes. “Será que, durante todo esse tempo, essa coisa estranha é que estimulava os meus órgãos reprodutores?”

Aomame folheou algumas páginas da Enciclopédia do corpo feminino e encontrou a seguinte explicação: a gonadotrofina coriônica humana é um hormônio produzido logo no início da gestação e serve para garantir e proteger o corpo lúteo no ovário. O corpo lúteo produz a progesterona e o estrógeno protege a membrana interna do útero, inibindo a menstruação. Durante essa fase, a placenta vai se formando gradativamente dentro do útero. Entre a sétima e a nona semana de gestação, quando a placenta está completamente formada, o corpo lúteo perde a sua função e, consequentemente, a gonadotrofina coriônica humana também deixa de ser produzida.

Em outras palavras, esse hormônio é produzido de sete a nove semanas desde o momento da fecundação. Se considerarmos o tempo de gestação provável, ela estaria num período delicado para a detecção desse hormônio, mas ainda havia a possibilidade de ele ser detectado. Uma coisa era certa: se o resultado desse positivo, ela certamente estaria grávida. Se fosse negativo, o resultado seria incerto, pois havia o risco de o hormônio não estar mais sendo produzido.

Aomame não estava com vontade de urinar. Ela pegou uma garrafa de água mineral na geladeira e bebeu dois copos. Mesmo assim, continuou sem vontade. “Tubo bem”, pensou. “Não preciso me afobar.” Resolveu, então, deixar de lado o teste de gravidez e, sentada no sofá, concentrou-se na leitura de Proust.

Passava das três da tarde quando finalmente sentiu vontade de urinar. Recolheu a urina num recipiente qualquer e mergulhou a tira de papel dentro dele. A cor começou a mudar gradativamente diante de seus olhos e, por fim, tingiu-se de um azul vívido. Uma tonalidade linda, que serviria muito bem como cor de carro. Um conversível pequeno, azul com capota creme. Seria uma delícia conduzi-lo pela orla da praia sentindo os ventos do início do verão. Entretanto, o que esse azul anunciava no banheiro de um apartamento na cidade de Tóquio, numa tarde em plena estação de outono, era o fato de ela estar grávida — ou que as chances eram de 95 por cento. Aomame ficou em pé diante do espelho observando em silêncio a tira azul. Por mais que se detivesse em olhá-la, a cor não se alteraria.

Por precaução, resolveu testar a outra marca. Desta vez, tinha de urinar na extremidade do bastão. Como levaria tempo para ter vontade de urinar, ela mergulhou o bastão no recipiente. A urina era fresca, recém-colhida, e não haveria tanta diferença entre fazer na hora ou mergulhar o bastão no líquido. O resultado seria o mesmo. Na janela redonda do bastão plástico surgiram nitidamente duas linhas verticais. Também significava que ela “poderia estar grávida”.

Aomame jogou a urina no vaso sanitário e deu descarga. Embrulhou a tira e o bastão com papel higiênico e, os jogou no lixo e lavou o recipiente no banheiro. Depois, foi para a cozinha e tomou mais dois copos de água. “Amanhã, farei o terceiro teste”, pensou. “O número três era um bom número. Primeiro arremesso, segundo arremesso. E, contendo a respiração, vou aguardar o último.”

Colocou água para ferver, preparou um chá preto e, sentada no sofá, retomou a leitura de Proust. Colocou cinco bolachas de queijo no prato para ir mordiscando enquanto bebia o chá. Era uma tarde tranquila. Ideal para leitura. Mas, a despeito de seus olhos seguirem as letras impressas, não conseguia prestar atenção no con­teúdo. Precisava ler e reler várias vezes o mesmo trecho. Às vezes desistia e fechava os olhos, imaginando dirigir um conversível azul na orla da praia, a capota aberta. Sentir a brisa com o aroma do mar a balançar-lhe os cabelos. Havia dois riscos verticais na placa da beira da estrada. Eles avisavam: “Atenção. Você pode estar grávida.”

Aomame suspirou e largou o livro no sofá.

Ela sabia muito bem que não era necessário fazer um terceiro teste. Mesmo que o fizesse, o resultado seria o mesmo. Era uma total perda de tempo. “A minha gonadotrofina coriônica está agindo sobre o meu útero: ela está preservando e protegendo o corpo lúteo, inibindo a menstruação e formando a placenta. Estou grávida. A gonadotrofina coriônica humana está ciente disso. Eu também. Sinto claramente essa presença num ponto na parte inferior do ventre. Por enquanto ele ainda é pequeno. Não passa de um pontinho. Mas, com o tempo, a placenta vai se formar em torno dele e aumentar de tamanho. Ele vai receber de mim os nutrientes e crescer gradativamente, imerso num líquido escuro e denso, sem descanso.”

Era sua primeira gravidez. Ela era uma pessoa cuidadosa, e só acreditava no que via com os próprios olhos. Ao fazer sexo, sempre se certificava de que o parceiro usasse camisinha. Mesmo bêbada, nunca se descuidava. Conforme havia dito à velha senhora de Azabu, desde que menstruou pela primeira vez, aos dez anos, nunca falhou nem atrasou sequer dois dias. Suas cólicas eram leves durante o fluxo, que costumava durar alguns dias. A menstruação nunca foi um obstáculo para realizar suas atividades físicas.

Sua primeira menstruação ocorreu meses depois de ter segurado a mão de Tengo na sala da escola primária. Ela sabia que havia uma relação entre os dois acontecimentos. O toque da mão de Tengo teria estimulado internamente seu corpo. Quando informou a mãe que estava menstruando, ela fez uma careta, como se aquilo fosse mais um incômodo que tivesse de suportar. “Veio cedo demais, não?”, disse ela na ocasião. Aomame, no entanto, não se importou com esse comentário. Aquilo era problema dela, e não de sua mãe ou de qualquer outra pessoa. Ela havia dado seu primeiro passo, sozinha, num mundo novo.

Agora estava grávida.

Ela pensou em seu óvulo. “Um de meus quatrocentos óvulos pré-programados — quem sabe um do meio da série — foi fecundado. Isso deve ter ocorrido em setembro, naquela noite do intenso temporal com trovoadas. Naquele dia, matei um homem num quarto escuro, enfiando uma agulha fina e pontuda na altura da nuca em direção à parte inferior de sua cabeça. Mas aquele homem era diferente de todos os outros que matei anteriormente. Ele não só sabia que seria morto, como também queria que isso acontecesse. E eu ofereci o que ele desejava. Não como uma punição, mas como um gesto de compaixão. Em troca, recebi o que queria. Uma troca ocorrida num quarto escuro. Foi naquela noite que, em segredo, deve ter ocorrido a fecundação. Eu sei disso.

“Enquanto eu tirava a vida de um homem com as minhas próprias mãos, uma vida passou a existir dentro de mim. Será que isso também fazia parte do acordo?”

Aomame fechou os olhos e parou de pensar. Ao esvaziar a mente, algo parecia fluir silenciosamente dentro dela. Sem querer, percebeu que estava orando:

Pai nosso que estais no Céu, santificado seja o Vosso Nome; venha a nós o Vosso Reino. Perdoai nossos pecados. Conceda-nos a Vossa bênção em nossa humilde caminhada. Amém.

“Por que estou orando numa hora dessas, se não acredito no Céu, no Paraíso ou em Deus? Mas essa oração parece esculpida em minha mente. Desde quando eu tinha três, quatro anos, antes de eu entender o significado dessas palavras, fui obrigada a decorá-la. Se eu errasse uma única palavra, eles batiam bem forte na minha mão. Mesmo que normalmente isso não fosse dito, quando acontecia algo, essa oração surgia como uma tatuagem secreta.”

“O que minha mãe diria se soubesse que fiquei grávida sem ter tido relação sexual? Para ela, seria um tremendo sacrilégio contra sua fé.” Afinal, isso não deixava de ser um tipo de gravidez imaculada. Obviamente, Aomame não era mais virgem, mas, mesmo assim... Ou, quem sabe, sua mãe nem se desse ao trabalho de prestar atenção ou dar ouvidos àquilo. “Para ela, eu sou uma tola; um ser humano imperfeito que despencou de seu mundo.”

Aomame tentou pensar na questão de outro modo. Em vez de buscar uma explicação plausível para algo implausível, procurou olhar o fenômeno sob outro ponto de vista, considerando-o como algo por si só enigmático.

Será que considero essa gravidez como uma coisa boa, que merece ser celebrada? Ou será que ela é ruim e indesejada?

Por mais que pensasse, não conseguia chegar a uma conclusão. “Estou numa fase em que o medo me assombra. Estou hesitante e confusa. Dividida. Ainda não consegui enfrentar e digerir essa nova situação.” Ao mesmo tempo, ela não podia deixar de admitir sua vontade de proteger essa pequena fonte de energia. Independentemente do que fosse, Aomame se sentia zelosa e queria acompanhar o seu crescimento. É claro que havia insegurança e medo. Isso era algo que ia além de sua imaginação. Um corpo estranho e hostil, que a devoraria internamente. Algumas possibilidades negativas espocavam em sua mente. Mesmo assim, ela tinha uma curiosidade saudável. E, por fim, um pensamento lhe ocorreu, lançando um raio de luz na escuridão.

O ser que está dentro do meu útero pode ser o filho de Tengo.

Aomame franziu levemente as sobrancelhas e, durante um tempo, pensou nessa possibilidade. “Por que tenho de conceber o filho de Tengo?

“Vamos tentar pensar na seguinte hipótese: Naquela noite turbulenta, em que vários fatos ocorreram sucessivamente, alguma coisa deve ter acontecido neste mundo, e o sêmen de Tengo alcançou o meu útero. Uma passagem especial — impossível saber por que razão — foi aberta entre os trovões, a chuva intensa, a escuridão e o assassinato. Possivelmente, um fenômeno momentâneo. E nós utilizamos eficazmente essa passagem. Meu corpo aproveitou essa oportunidade para avidamente receber Tengo e, assim, engravidei. Meu óvulo de número 201 ou, quem sabe, o de número 202, acolheu um de seus milhares de espermatozoides. Um único espermatozoide saudável, inteligente e sincero, como quem o produziu.

“É sem dúvida uma ideia disparatada. Sem nenhum fundamento. Por mais que eu tente explicar, ninguém irá acreditar em mim. Mas minha gravidez é algo inacreditável. É preciso levar em conta que estou em 1Q84; um mundo onde coisas estranhas podem acontecer.

“E se for realmente o filho de Tengo?”, pensou Aomame.

“Naquela manhã, no acostamento da Rota 3 da Rodovia Metropolitana, eu não consegui puxar o gatilho. Eu estava decidida a me matar e, por isso, fui até lá e coloquei o cano da arma dentro da minha boca. Eu não temia a morte e estava prestes a tirar a minha vida para salvar a de Tengo. Mas alguma força agiu em mim, fazendo com que eu desistisse de morrer. Uma voz longínqua chamava o meu nome. Será que era porque eu estava grávida? Será que alguém estava me avisando que uma nova vida estava dentro de mim?”

Aomame lembrou-se do sonho em que uma mulher elegante, de meia-idade, cobria o seu corpo nu com um casaco. Ela desceu do Mercedes-Benz prateado e trouxe um casaco leve e macio cor de gema de ovo. Ela sabia. Ela sabia que eu estava grávida. E com esse gesto ela carinhosamente me protegeu dos olhares indiscretos, do vento gelado e de todas as outras coisas ruins.

Era um sinal positivo.

Aomame relaxou os músculos faciais e sua expressão voltou ao normal. “Alguém está cuidando de mim, está me protegendo”, pensou Aomame. Mesmo neste mundo de 1Q84, não estou completamente só. Talvez não.

Aomame foi até a janela com a xícara de chá preto já frio. Saiu para a varanda, afundou-se na cadeira de jardim para não ser vista e ficou observando o parque infantil por entre os vãos do parapeito. Queria pensar em Tengo, mas, naquele dia em especial, não conseguia. A única imagem que lhe vinha à mente era a de Ayumi Nakano. Ela estava feliz e sorrindo. Um sorriso espontâneo, sem segundas intenções. Elas estão no restaurante, sentadas frente a frente, bebendo uma taça de vinho. Estão levemente embriagadas. O excelente Borgonha se misturava ao sangue e suavemente circulava pelo corpo, e o mundo ao redor tingia-se de uma suave tonalidade cor de vinho.

— Pois é, Aomame — disse Ayumi, passando o dedo na borda da taça. — Acho que não existe nenhuma lógica neste mundo, muito menos bondade.

— Acho que sim. Mas tudo bem. Num piscar de olhos, este mundo irá se acabar — disse Aomame. — E virá o Reino dos Céus.

— Não vejo a hora — disse Ayumi.

“Por que será que disse aquilo?”, pensou Aomame, intrigada. “Por que fui falar aquilo se nem acredito no Reino dos Céus?” Pouco depois, Ayumi morreu.

“Quando aquelas palavras saíram de minha boca, o Reino dos Céus que eu imaginava não era o mesmo que o das Testemunhas de Jeová. Talvez eu tenha dito Reino dos Céus com um significado mais pessoal, e isso explica por que eu disse aquilo de modo tão espontâneo. Mas, afinal, o que é o Reino dos Céus para mim? Que tipo de reino eu acho que vai surgir após a destruição do mundo?”

Aomame apoiou delicadamente a mão sobre o ventre e tentou escutá-lo. Mas, por mais que prestasse atenção, não conseguia ouvir nada.

“Seja como for, Ayumi Nakano foi lançada para fora deste mundo. Ela foi morta num hotel de Shibuya com algemas frias e rígidas a prender-lhe os pulsos, e estrangulada com um cinto de roupão (até onde Aomame sabia, ainda não haviam encontrado o criminoso). Após a autópsia, o corpo de Ayumi foi novamente costurado, levado para o crematório e incinerado. Neste mundo não existe mais o ser humano chamado Ayumi Nakano. Sua carne e seu sangue deixaram de existir. Ela passou a viver apenas na forma de documentos e lembranças.

“Não. Pode não ser nada disso. Ela pode estar viva e saudável no mundo de 1984. Ela ainda reclama que não a deixam andar armada e continua a colocar as multas de infração de trânsito nos para-brisas dos carros. Deve continuar a visitar as escolas secundárias do distrito para ensinar às alunas os métodos contraceptivos: Garotas, não se esqueçam: sem camisinha, sem penetração.”

Aomame queria encontrar Ayumi. Talvez, se subisse a escada de emergência da Rodovia Metropolitana, poderia retornar para o mundo de 1984 e revê-la. “Naquele mundo, Ayumi pode ainda estar viva e saudável, e os caras de Sakigake não estarão me perseguindo. Poderíamos ir novamente àquele pequeno restaurante de Nogizaka e tomar uma garrafa de Borgonha. Talvez.”

Subir a escada de emergência da Rodovia Metropolitana?

Aomame voltou o pensamento, como se rebobinasse uma fita-cassete. “Por que não pensei nisso antes? Minha intenção era descer novamente a escada de emergência, mas não consegui encontrá-la. A escada que deveria estar em frente ao outdoor da Esso havia desaparecido. Talvez, se eu tivesse feito o contrário, poderia ter dado certo. Em vez de descer, deveria ter subido. Deveria ter entrado naquela área embaixo da rodovia, que funcionava como depósito de materiais, e subir até a Rota 3. Devia ter feito o caminho inverso. Era isso que eu devia ter feito.”

Ao pensar nisso, Aomame teve ímpetos de sair imediatamente e ir até a Sangenjaya tentar essa possibilidade. Podia dar certo. Ou não. De qualquer forma, valia a pena tentar. Vestiria o mesmo conjunto de blazer e saia, os sapatos de salto alto e subiria as escadas cheias de teias de aranha.

Mas ela tratou de conter esse ímpeto.

“Não. Não posso fazer isso. Foi por eu estar aqui no mundo de 1Q84 que pude reencontrar Tengo e, provavelmente, estou grávida do filho dele. Não importa o que aconteça, preciso reencontrá-lo neste novo mundo. Quero ficar frente a frente com ele. Até lá não posso deixar este mundo. Aconteça o que acontecer.”

Na tarde do dia seguinte, Tamaru telefonou.

— É sobre o cobrador da NHK — disse Tamaru. — Liguei para a central administrativa da NHK atrás de informações. O encarregado pela cobrança da área de Kôenji diz que não se lembra de ter batido na porta do apartamento 303. Ele disse que já sabia que o pagamento da taxa de recepção era feito por débito automático e que viu o bilhete colado na porta. Disse também que jamais ficaria batendo na porta se existe campainha. E que bater só machucaria sua mão. No dia em que bateram na porta, ele estava fazendo a cobrança em outro distrito. Pela conversa que tivemos, creio que não deve ­estar mentindo. É um veterano que trabalha há quinze anos no setor, e tem a reputação de ser um homem paciente e gentil.

— Isso quer dizer que... — disse Aomame.

— Isso quer dizer que há uma grande probabilidade de a pessoa que esteve aí não ser um cobrador oficial. Alguém está fingindo ser cobrador da NHK e indo bater na sua porta. A pessoa que falou comigo pelo telefone também estava desconfiada. Se existe alguém se passando por cobrador, é um problema da empresa. O encarregado disse que gostaria de agendar uma visita e verificar o caso pessoalmente. Obviamente, recusei, alegando que, por não ter ocorrido nenhum prejuízo, preferia que o assunto não tomasse grandes proporções.

— Pode ser um psicopata, ou alguém que está me perseguindo.

— Não creio que seja alguém te perseguindo. Fazer aquilo não leva a nada. Muito pelo contrário, faria você se precaver ainda mais.

— Se for um psicopata, por que será que ele escolheu justamente esta porta? Há tantas outras. Estou tomando os devidos cuidados para que a luz, quando estiver acesa, não possa ser vista de fora, e evito fazer barulho. Mantenho as cortinas sempre fechadas e jamais penduro roupas do lado de fora. Ele parece saber que estou escondida aqui ou, pelo menos, faz questão de insistir que sabe que estou aqui. Faz de tudo para que eu abra a porta.

— Você acha que ele vai voltar?

— Não sei. Se a intenção dele é fazer com que eu abra a porta, creio que vai continuar vindo.

— Isso está te deixando emocionalmente abalada?

— Não estou abalada — disse Aomame. — Mas não é uma situação que me agrada.

— Eu também não estou gostando nem um pouco disso. Realmente, é muito desagradável. Mas o fato é que, mesmo que esse falso cobrador apareça novamente, não podemos chamar a NHK e tampouco a polícia. Mesmo que você consiga me avisar, até eu conseguir chegar aí pode ser que ele já tenha ido embora.

— Acho que consigo resolver isso sozinha — disse Aomame. — Por mais que ele me provoque, eu não pretendo abrir a porta.

— Ele vai usar vários subterfúgios para te provocar.

— Acho que sim — disse Aomame.

Tamaru deu uma leve tossida e mudou de assunto.

— Você recebeu os kits para teste?

— Estou grávida — respondeu Aomame sucintamente.

— Significa que você tinha razão.

— Isso mesmo. Fiz dois testes e os dois deram o mesmo resultado.

Houve um silêncio. Um silêncio como o de uma pedra litográfica em que as letras ainda não foram totalmente esculpidas.

— Não há margem para erros? — indagou Tamaru.

— Eu já sabia disso desde o começo. Os testes apenas comprovaram.

Durante um tempo, Tamaru acariciou a silenciosa pedra litográfica com a ponta dos dedos.

— Preciso perguntar uma coisa, sem rodeios — disse Tamaru. — Você pretende ter essa criança? Ou pretende se desfazer dela?

— Não pretendo me desfazer.

— Quer dizer que você vai ter essa criança.

— Se tudo correr bem, ela deve nascer entre junho e julho.

Tamaru calculou mentalmente. — Isso significa que precisamos tomar algumas providências.

— Sinto muito.

— Não precisa se desculpar — disse Tamaru. — Toda mulher possui o direito de gerar o seu filho, e temos de garantir esse direito.

— Parece uma declaração universal dos direitos humanos — disse Aomame.

— Vou te perguntar novamente, para evitar quaisquer dúvidas. Você disse que não tem ideia de quem é o pai, certo?

— Desde junho, não tive nenhuma relação sexual.

— Então seria uma espécie de gravidez imaculada?

— Os religiosos vão ficar bravos se ouvirem isso.

— Se você fizer algo incomum, não importa o que seja, alguém sempre vai ficar bravo — disse Tamaru. — Mas, se você está grávida, deve ser examinada o quanto antes por um médico. Não vai poder ficar enfurnada nesse apartamento durante todo o período da gestação.

Aomame suspirou. — Me deixe ficar aqui até o final do ano. Prometo que não vou mais causar nenhum incômodo.

Tamaru fez um breve silêncio antes de prosseguir.

— Até o final do ano você pode ficar aí. Conforme o combinado. Mas, assim que virar o ano, vamos te transferir para um local menos perigoso, onde você poderá receber os tratamentos adequados. Estamos entendidos?

— Sim — disse Aomame. Mas ela ainda não tinha tanta certeza. Será que teria coragem de deixar aquele local, caso não conseguisse reencontrar Tengo?

— Eu já engravidei uma mulher — disse Tamaru.

Aomame ficou muda durante um tempo. — Você? Mas você é...

— Isso mesmo. Sou gay. Incontestavelmente gay. Desde sempre fui, ainda sou e creio que sempre serei.

— Mas você engravidou uma mulher.

— Todos nós erramos — disse Tamaru, sem nenhuma carga de humor. — Não vou entrar em detalhes, mas aconteceu quando eu ainda era jovem. Foi uma única vez, um tiro direto e certeiro.

— O que aconteceu com ela?

— Não sei — disse Tamaru.

— Não sabe?

— Acompanhei até o sexto mês de gravidez. Depois, não sei.

— Se ela estava com seis meses, não deve ter abortado.

— Também acho.

— Há uma grande possibilidade de a criança ter nascido.

— Provavelmente.

— Se a criança nasceu, gostaria de conhecê-la?

— Não faço questão — disse Tamaru, sem hesitar. — Não é o meu tipo de vida. E você? Ia querer conhecê-la?

Aomame pensou a respeito. — Eu também fui uma criança abandonada pelos meus pais, por isso não consigo imaginar como seria ter o meu próprio filho. Não tenho um modelo correto a seguir.

— Seja como for, você está pensando em trazer essa criança ao mundo. Neste mundo repleto de violência e contradições.

— É porque estou à procura do amor — disse Aomame. — Mas não é um amor entre mim e a criança. Ainda não estou nesse estágio.

— Mas a criança faz parte desse amor.

— Acho que sim. De certa forma.

— Mas se isso tudo for um engano e você descobrir que essa criança não pertence a esse amor, ela certamente vai se machucar. Como nós.

— Existe essa possibilidade. Mas sinto que não é isso. É uma intuição.

— Respeito a intuição — disse Tamaru. — Mas, quando o ego nasce neste mundo, ele tem de sustentar a moralidade. É bom estar ciente disso.

— Quem foi que disse isso?

— Wittgenstein.

— Vou me lembrar disso — disse Aomame. — Se a criança tiver nascido, quantos anos ela teria hoje?

Tamaru calculou mentalmente: — Dezessete.

— Dezessete anos? — Aomame imaginou uma garota de dezessete anos sustentando a moralidade.

— Vou levar o assunto para a Madame — disse Tamaru. — Ela quer falar diretamente com você. Mas, como sempre costumo dizer, sob o ponto de vista da segurança, não estou muito alegre com essa notícia. Estamos tomando todas as medidas técnicas cabíveis, mas, mesmo assim, o telefone é um meio de comunicação muito arriscado.

— Sei disso.

— Ela está muito apreensiva com o desenrolar dos fatos e se preocupa muito com você.

— Também sei disso. Sinto-me grata.

— Seja prudente. Confie nela e ouça o que ela tem a lhe dizer. Ela é uma pessoa extremamente sábia.

— Farei isso — respondeu Aomame.

“Mas, independentemente disso, preciso aguçar a minha consciência e me proteger”, pensou Aomame. “Não há dúvidas de que a velha senhora de Azabu é uma pessoa sábia. Ela realmente possui um poder imensurável. Entretanto, há coisas que ela não tem como saber. Possivelmente, ela não sabe como funcionam as regras de 1Q84. Ela ainda não deve ter notado que existem duas luas no céu.”

***

Após desligar o telefone, Aomame deitou-se no sofá e pegou no sono durante trinta minutos. Um sono curto e profundo. Sonhou, mas o sonho era um espaço vazio. Nesse vazio ela pensava sobre várias coisas. Era como estar diante de um caderno em branco escrevendo com tinta invisível. Ao despertar, sua mente guardava uma imagem vaga, e ao mesmo tempo estranhamente nítida: “Eu vou ter esta criança. Esse pequeno ser nascerá com segurança neste mundo.” Um mundo em que, segundo Tamaru, as pessoas devem sustentar a moralidade.

Aomame colocou a palma da mão no ventre e escutou atentamente. Ainda não conseguia escutar nada. Por enquanto.