12
Tengo
As regras do mundo estão se afrouxando

Após o café da manhã, Tengo tomou um banho de chuveiro. Lavou os cabelos e fez a barba. Vestiu as roupas que estavam lavadas e passadas. Depois, foi até a estação comprar o jornal matinal no na banca e, em seguida, entrou num bar nas redondezas para tomar um café.

Ao passar os olhos no jornal, nenhuma notícia lhe chamou atenção. O mundo era um local monótono e sem graça. O jornal era daquele dia, mas a impressão era de estar lendo o da semana passada. Assim que terminou, Tengo dobrou o jornal e olhou o relógio de pulso. Eram nove e meia da manhã, e o horário de visitas da casa de saúde começava às dez.

Arrumar as coisas para ir embora era uma tarefa simples. Não trouxera muito: algumas roupas, objetos de higiene pessoal, alguns livros, blocos de papel. Coisas que cabiam numa bolsa de lona. Ele carregou a bolsa no ombro, pagou a conta da pousada e foi à estação pegar um ônibus até a casa de saúde. Era início de inverno. Poucas pessoas iam para a praia logo pela manhã. Ele foi o único que desceu no ponto em frente à casa de saúde.

Como de costume, assim que chegou na recepção, ele anotou o nome e o horário no caderno de registro de visitas. No balcão havia uma mocinha que Tengo via de vez em quando. Seus braços e suas pernas eram exageradamente finos e longos e seus lábios esboçavam um permanente sorriso, como uma aranha bem comportada que orienta os caminhos da floresta. Normalmente, quem ficava na recepção era a enfermeira Tamura, de meia-idade e óculos, mas naquele dia ela não estava. O fato de ela não estar deixou Tengo aliviado. Ele temia que ela insinuasse algo sobre a noite anterior, por ele ter acompanhado Kumi Adachi até a casa dela. A enfermeira Ômura, que costumava espetar a caneta no coque, também não estava. Talvez elas tenham desaparecido, tragadas pela terra. Como as três feiticeiras em Macbeth.

Mas isso era impossível. No caso da Kumi Adachi, era o seu dia de folga, mas as outras duas disseram que viriam trabalhar normalmente. Elas provavelmente estariam em algum outro setor.

Tengo subiu as escadas e foi até o quarto de seu pai no primeiro andar. Deu duas batidas de leve na porta e entrou. Seu pai estava deitado na cama e dormia na mesma posição de sempre. No braço havia o soro e, na uretra, um cateter. Nenhuma mudança desde o dia anterior. A janela e as cortinas estavam fechadas. O ar do quarto estava denso e estagnado. Um misto de medicamentos, flores no vaso, respiração do paciente, excreções e demais cheiros que a vida exala estavam todos concentrados num odor único, indistinto. O fato de estar fraco, com a vida por um fio e inconsciente não alterava o funcionamento de seu metabolismo. O pai continuava do lado de cá da linha divisória que separa a vida da morte e, nesse caso, estar vivo era o mesmo que dizer que ele exalava vários cheiros.

A primeira coisa que Tengo fez ao entrar no quarto foi abrir as cortinas e as janelas. Era uma manhã agradável. Precisava arejar o quarto. O ar estava frio, mas não gelado. Os raios de sol adentravam o quarto e a brisa do mar balançava as cortinas. Uma gaivota, embalada pelo vento, com as pernas elegantemente dobradas, planava sobre os pinheiros. Um bando de pardais pousados em desalinho nos fios de eletricidade mudava constantemente de posição, como se estivesse reordenando notas musicais. Um corvo de bico grande pousou no topo de uma lâmpada de mercúrio e, olhando atentamente ao redor, parecia estar pensando no que faria a seguir. Alguns filamentos de nuvens flutuavam bem alto no céu. De tão distantes e altas davam a impressão de serem elementos abstratos, alheios à vida dos homens.

De costas para o paciente, Tengo observava essa paisagem. Coisas que possuem vida e coisas que não possuem vida. Coisas que se movem e coisas que não se movem. A paisagem que ele contemplava pela janela era a mesma de sempre. Não havia nada de novo. O mundo seguia adiante, pois era preciso avançar. Cumpria sofrivelmente a sua função predeterminada, como um despertador barato. Tengo observava ao acaso aquela paisagem apenas para protelar um pouco mais o momento de estar de frente para o seu pai e ter de encará-lo. Mas não podia protelar indefinidamente.

Finalmente, criou coragem e sentou na cadeira ao lado da cama. Seu pai estava deitado com o rosto voltado para o teto e os olhos fechados. O acolchoado, que lhe cobria o corpo até o pescoço, continuava intacto. Os olhos estavam profundamente encovados. Era como se tivesse perdido uma peça e o globo ocular, não podendo ser sustentado pela órbita, acabasse por afundar dentro de uma cova profunda. Mesmo que seu pai abrisse os olhos, ele certamente só conseguiria ver o mundo como se estivesse no fundo de um buraco.

— Pai — Tengo dirigiu-lhe a palavra.

Seu pai não respondeu. O vento que entrava no quarto repentinamente parou de soprar e as cortinas penderam, como uma pessoa que, de súbito, interrompe o trabalho ao se lembrar de algo importante a fazer. Um tempo depois, como que voltando a si, o vento recomeçou a soprar suavemente.

— Vou voltar para Tóquio — disse Tengo. — Não posso ficar aqui para sempre. Não posso prolongar as férias. Minha vida não é grande coisa, mas tenho minhas coisas para fazer.

Havia uma barba rala nas bochechas de seu pai. Uma barba de dois ou três dias. A enfermeira o barbeava, mas não todos os dias. Fios brancos e pretos se mesclavam. Ele tinha apenas 64 anos, mas aparentava muito mais. Era como se alguém, por engano, avançasse o filme da vida daquele homem.

— Enquanto estive aqui, o senhor não acordou. Segundo o médico, a resistência do seu corpo não diminuiu e, por mais estranho que possa parecer, seu estado de saúde está muito próximo do normal.

Tengo fez uma pausa e aguardou um tempo para que suas palavras penetrassem em seu interlocutor.

— Não sei se o senhor consegue ouvir a minha voz. Mesmo que ela faça vibrar seu tímpano, pode ser que nesse ponto o circuito esteja interrompido. Ou pode ser que a minha voz alcance a sua consciência, mas o senhor não possa reagir. Isso é algo que jamais saberei dizer. Até agora, conversei com o senhor e li em voz alta porque acho que, de alguma maneira, o senhor pode me ouvir. Se eu não partisse desse princípio, não faria sentido eu ficar aqui conversando com o senhor e, se eu não pudesse ter essa conversa, não faria sentido eu estar aqui. Não sei explicar direito, mas tenho uma leve impressão de que o senhor está me ouvindo. Não digo que totalmente, mas ao menos captando os pontos mais importantes do que digo.

Não houve reação.

— O que vou dizer pode parecer bobagem, mas, como vou voltar para Tóquio e não sei quando retornarei, quero dizer o que penso. Se achar absurdo o que vou dizer, pode rir a vontade. É claro, se o senhor puder rir.

Tengo fez uma pausa e observou o rosto do pai. Continuava sem esboçar nada.

— O senhor está em coma. Perdeu a consciência e os sentidos e está sendo mantido vivo por meio de aparelhos. O médico disse que o senhor era como um cadáver vivo. Logicamente, ele disse isso de um modo indireto. Mas, em termos médicos, o estado em que o senhor se encontra pode ser descrito assim. Mas será que isso não é apenas um disfarce? Acho que a sua consciência pode não estar perdida de verdade. O senhor está deixando o seu corpo em coma e, enquanto isso, sua consciência está vivendo em outro lugar. Não é de hoje que penso nessa possibilidade. Mas isso não passa de um pressentimento.

Silêncio.

— Sei que isso tudo é um tremendo absurdo, talvez, fruto da imaginação. Sei que se eu disser isso para alguém, essa pessoa achará que estou tendo alucinações. Mas não consigo deixar de pensar nisso. O senhor, provavelmente, perdeu o interesse neste mundo. Ficou desiludido e decepcionado e perdeu a razão de viver. Por isso, abandonou seu corpo físico e resolveu viver em algum local diferente. Talvez em seu mundo interior.

Um silêncio ainda mais profundo.

— Tirei férias do serviço, vim até esta cidade, aluguei um quarto numa pousada e diariamente visitei e conversei com o senhor. Já faz quase duas semanas. Mas o objetivo de eu ter feito isso não foi apenas para visitá-lo ou cuidar do senhor. Houve uma época em que eu queria saber de onde eu vim e quem são os meus pais biológicos. Mas, hoje, isso não tem a mínima importância. Eu sou eu, independentemente de possuir ou não alguma relação de consanguinidade com alguém. É o senhor que considero ser o meu pai. E é assim que acho que deve ser. Não sei se posso chamar o que sinto como uma reconciliação. Talvez o mais certo seja dizer que eu me reconciliei comigo mesmo.

Tengo respirou fundo, e abaixou o tom de voz.

— No verão, o senhor ainda estava consciente. Ainda que de modo confuso, sua consciência cumpria a sua função. Naquela época, reencontrei uma menina neste quarto. Ela apareceu aqui enquanto o senhor estava na sala de exames. Creio que tenha sido o alter ego dela. Desta vez, o motivo de eu voltar para esta cidade e alongar a minha estadia foi porque achei que poderia reencontrá-la. Esse foi o meu verdadeiro motivo de estar aqui.

Tengo suspirou e colocou as mãos sobre o colo.

— Mas ela não apareceu. Ela foi transportada até aqui por uma coisa que se chama crisálida de ar, uma espécie de cápsula que a protege. Se eu for explicar isso, a conversa vai ficar longa, mas digamos que a crisálida de ar é um produto da imaginação, um objeto da ficção. Mas, agora, ela deixou de ser um objeto da ficção. A linha entre o mundo real e o da imaginação tornou-se imprecisa. Duas luas pairam no céu. E elas também foram trazidas do mundo da ficção.

Tengo olhou o rosto do pai. “Será que ele acompanhava o fio da conversa?”

— Seguindo essa linha de raciocínio, não seria nada estranho se sua consciência tivesse se separado do corpo e passasse a viver livremente em algum outro mundo. Em outras palavras, as regras do mundo que nos cerca estão se afrouxando. Como eu disse anteriormente, tenho um estranho pressentimento. Um pressentimento de que você realmente esteja fazendo isso. Como, por exemplo, ir até o meu apartamento em Kôenji e ficar batendo na minha porta. O senhor sabe o que digo, não? O senhor diz que é cobrador da NHK, bate insistentemente na porta, faz ameaças e fica berrando no corredor. Era o que o senhor costumava fazer na época em que fazíamos cobranças em Ichikawa.

Tengo sentiu uma leve alteração na pressão do ar no quarto. As janelas estavam totalmente abertas, mas, de fora, nada que pudesse ser reconhecido como som chegava até ali. A não ser o dos pardais que, vez por outra, pareciam se lembrar de trinar.

— Uma garota está morando no meu apartamento em Tóquio. Ela não é minha namorada ou coisa do gênero. Circunstâncias fizeram com que ela viesse morar temporariamente comigo. Dias atrás, ela me disse ao telefone sobre um cobrador da NHK. Ela contou que ele bateu na porta e ficou gritando no corredor. Fiquei surpreso em constatar que esse cobrador agia do mesmo jeito que o senhor. Ela ouviu exatamente as mesmas palavras de que eu ainda me lembro. São palavras que eu gostaria de esquecer para sempre. Sabe de uma coisa, acho que esse cobrador é o senhor. Estou errado?

Tengo ficou em silêncio durante trinta segundos e, nesse ínterim, seu pai não mexeu nem um cílio.

— A única coisa que lhe peço é que nunca mais bata na minha porta. Eu não tenho televisão em casa. Aqueles dias que saíamos juntos para fazer as cobranças das taxas de recepção terminaram, fazem parte de um passado remoto. Quanto a isso, creio que fizemos um acordo, na presença da professora, lembra? Não consigo me lembrar do nome dela, mas era uma professora baixinha, de óculos, responsável pela classe. Você deve se lembrar disso, não? Por isso, pare de bater na minha porta. Não só na minha como de qualquer outra. O senhor não é mais cobrador da NHK e, portanto, não tem mais o direito de incomodar as pessoas.

Tengo se levantou, foi até a janela e contemplou a paisagem. Um idoso vestindo um suéter grosso andava com sua bengala em frente à barreira de pinheiros. Devia estar caminhando. Os cabelos eram grisalhos, ele era alto e de boa postura. Mas seus passos eram desengonçados. Esforçava-se para dar um passo de cada vez, com muita dificuldade, como se tivesse esquecido como se anda. Tengo observou essa cena durante um bom tempo. O velho levou um tempão para atravessar o jardim e desapareceu ao contornar o edifício. Durante todo o trajeto ele parecia sentir muita dificuldade para se locomover. Tengo voltou-se para o pai.

— Não estou te censurando. O senhor tem todo o direito de levar a sua consciência para onde quiser. É a sua vida, a sua consciência. O senhor deve estar agindo conforme o que considera ser o certo, por isso, sei que não tenho o direito de reclamar. Mas o senhor não é mais cobrador da NHK. Por isso, pare de bancar o cobrador. Isso não lhe trará a remição.

Tengo sentou no peitoril da janela e tentou encontrar as palavras no pequeno espaço do quarto.

— Não sei como foi a sua vida; quais foram suas alegrias e tristezas. Mas, mesmo que não tenha conseguido realizar algo que gostaria de ter feito, não cabe ao senhor pleiteá-lo batendo na porta dos outros. Ainda que o local lhe seja familiar e que isso é o que de melhor o senhor saiba fazer, entendeu?

Tengo se calou e olhou para o rosto do pai.

— Não é para bater na porta de mais ninguém. É a única coisa que lhe peço. Eu preciso ir. Estive aqui diariamente conversando e lendo livros para o senhor, que está em coma. Creio que, de certa forma, conseguimos nos reconciliar. Isso foi algo que, de fato, aconteceu neste mundo real. Sei que isso não vai lhe agradar, mas acho melhor o senhor voltar novamente para o lado de cá. Aqui é o lugar a que você pertence.

Tengo colocou a bolsa no ombro. — Bem, estou indo.

Seu pai continuou com os olhos fechados, em silêncio, e não mexeu o corpo, nem milimetricamente. O mesmo estado de sempre. Mas dava a impressão de estar pensando em alguma coisa. Tengo conteve a respiração e se ateve a observá-lo. Quem sabe ele poderia abrir de repente os olhos e se levantar. Mas isso não aconteceu.

A enfermeira, que tinha os braços e as pernas compridas como as de uma aranha, continuava sentada no balcão de recepção. No peito havia um crachá plastificado escrito “Tamaki”.

— Vou voltar para Tóquio — disse Tengo para a enfermeira Tamaki.

— Sinto muito que seu pai não recobrou a consciência enquanto esteve aqui — disse ela, tentando reconfortá-lo. — Mas ele deve estar contente de você ter ficado tanto tempo com ele.

Tengo não conseguiu encontrar palavras adequadas para responder a esse comentário. — Por favor, mande lembranças para as demais enfermeiras e diga-lhes que sou muito grato.

Ele acabou não encontrando a enfermeira Tamura, que usava óculos, nem a enfermeira Ômura, de peitos grandes e que enfiava a caneta no coque. Isso o fez se sentir um pouco triste. Elas eram enfermeiras competentes e muito atenciosas com Tengo. Mas talvez tenha sido melhor assim. Afinal, ele estava fugindo sozinho da cidade dos gatos.

Quando o trem partiu da estação de Chikura, Tengo lembrou-se da noite em que passara no apartamento de Kumi Adachi. Havia acontecido apenas um dia antes. A luminária chamativa da Tiffany, o desconfortável sofá do tipo love chair e as risadas do programa humorístico do apartamento vizinho. O canto da coruja no bosque, a fumaça do haxixe, a camiseta estampada com o sorriso, o cobertor grosso colocado sobre suas pernas. Nem um dia se passara, mas parecia que essas coisas pertenciam a um longínquo passado. Ele não conseguia entender a perspectiva temporal de sua consciência. Como uma balança instável, as coisas não se acalmavam em nenhum canto de sua memória.

De repente, Tengo se inquietou e olhou ao redor. Será que este é o mundo real? Será que eu novamente embarquei numa realidade errada? Tengo perguntou para um passageiro próximo para se certificar de que aquele trem ia para Tateyama. Não havia erro, era o trem certo. Da estação Tateyama ele faria a baldeação para Tóquio, pegando o trem expresso. Estava deixando a cidade litorânea dos gatos.

Ao fazer a baldeação e se acomodar no trem expresso, o sono se apoderou dele, como se já estivesse à espreita. Tengo caiu num sono profundo, como se tivesse pisado em falso em um abismo escuro. As pálpebras fecharam-se naturalmente e sua consciência rapidamente se desligou. Quando despertou, o trem já havia passado a estação Makuhari. Não estava muito quente dentro do trem, mas suas axilas e costas estavam molhadas de suor. Sentiu um gosto desagradável na boca. Um odor parecido com o daquele ar estagnado que ele sentia no quarto de seu pai. Tirou do bolso um chiclete e mascou-o.

“Não voltarei mais àquela cidade”, pensou Tengo. “Pelo menos enquanto meu pai estiver vivo. Mas neste mundo não se pode afirmar nada com total segurança. Pelo menos sei que não há mais nada a fazer naquela cidade litorânea.”

Quando retornou ao apartamento, Fukaeri não estava mais lá. Ele bateu três vezes na porta, aguardou um tempo, e bateu mais duas. Só depois é que virou a chave e abriu a porta. O apartamento estava silencioso e surpreendentemente limpo. As louças estavam guardadas no armário, as mesas e as prateleiras estavam impecavelmente arrumadas e o lixo devidamente recolhido. Havia indícios de que o chão fora aspirado. A cama estava arrumada e não se via nenhum livro ou disco fora do lugar. As roupas lavadas e secas estavam dobradas sobre a cama.

A bolsa grande de Fukaeri também não estava mais lá. Aparentemente, ela não deixara o local às pressas, para resolver algum imprevisto. Tampouco parecia ter dado uma saída momentânea. Ela resolvera ir embora e, sem se afobar, limpou e arrumou o apartamento com capricho antes de partir. Tengo imaginou Fukaeri sozinha, passando aspirador de pó e limpando os móveis com um pano. Uma cena tão inusitada que era difícil de associar com a imagem que ele fazia dela.

Ao abrir a caixa de correio do hall, encontrou a cópia da chave do apartamento. A contar pelo volume da correspondência, ela havia partido um ou dois dia antes. Fazia dois dias que ele telefonara pela última vez. Fora no período da manhã, e ela ainda estava no apartamento. Na noite anterior ele jantou com as enfermeiras e, depois, aceitou o convite de passar a noite no apartamento de Kumi Adachi. Acabara não telefonando para Fukaeri.

Ele esperava que Fukaeri tivesse deixado alguma mensagem escrita com sua peculiar letra cuneiforme. Mas Tengo não encontrou nada. Ela simplesmente se fora, sem dizer nada. No entanto, ele não ficou surpreso ou chateado com essa atitude. Afinal, ninguém seria capaz de prever seus pensamentos ou ações. Se ela queria vir, vinha, se quisesse ir embora, ia. Era como um gato caprichoso e com forte senso de independência, que age conforme os seus instintos. O que se devia estranhar era o fato de ela permanecer tanto tempo num mesmo lugar.

Na geladeira havia muito mais comida do que ele esperava. Alguns dias antes, ela devia ter saído para fazer compras. Havia um monte de couve-flor cozida. Aparentemente, não fazia muito tempo que havia sido feita. Será que ela sabia que, dentro de um ou dois dias, ele estaria de volta a Tóquio? Tengo sentiu fome e preparou um ovo frito para acompanhar a couve-flor. Tostou o pão, fez um café e tomou duas xícaras.

Em seguida, telefonou para o amigo que assumira as aulas durante sua ausência e lhe disse que as retomaria a partir do início da semana seguinte. O amigo informou-lhe até onde avançara na apostila.

— Você me ajudou muito. Estou te devendo essa — agradeceu Tengo.

— Até que gosto de ensinar. Às vezes até me divirto. Mas, quando ensinamos por muito tempo, a gente começa a se sentir um completo estranho para si mesmo.

Isso era algo que o próprio Tengo sentia, ainda que vagamente.

— Enquanto estive fora, aconteceu algo de diferente?

— Nada de mais. Ah! recebi uma carta para ser entregue a você e a deixei dentro da sua gaveta.

— Carta? — indagou Tengo. — De quem?

— Era uma garota magra, de cabelos lisos e retos na altura do ombro. Ela me procurou e pediu para te entregar a carta. O jeito de ela falar era meio estranho. Acho que é estrangeira.

— Ela estava com uma bolsa grande?

— Estava. Uma bolsa verde. E bem cheia.

Fukaeri ficou com receio de deixar a carta no apartamento. Alguém podia lê-la. Ou roubá-la. Por isso, foi até a escola e a entregou nas mãos do amigo de Tengo.

Tengo agradeceu novamente e desligou o telefone. Já era tarde e não se animou a tomar o trem até Yoyogi para pegar a carta. Faria isso no dia seguinte.

Um tempo depois, lembrou-se de que esquecera de perguntar ao amigo sobre a lua. Começou a discar o número, mas acabou desistindo. Ele já deve ter esquecido isso. No final das contas, Tengo é que deveria resolver isso, sozinho.

Tengo saiu para caminhar a esmo na cidade que anoitecia. O apartamento estava estranhamente quieto com a ausência de Fukaeri, e isso o deixava incomodado. Quando moravam juntos, ele não sentia sua presença. Ele mantinha sua rotina de sempre e ela seguia a dela. Mas o fato de ela não estar mais lá fez com que Tengo percebesse a existência de um vazio em forma humana.

Não significava que ele nutrisse uma atração por ela. Ela era uma garota bonita e encantadora, mas ele nunca sentiu um desejo sexual por ela. O fato de terem morado juntos durante vários dias não o excitava. Por quê? Será que havia algum motivo para ele não sentir desejo por ela? Naquela noite de trovoadas, Fukaeri tivera uma relação sexual com Tengo. Não que ele quisesse, mas ela sim.

O termo exato para descrever o ato que praticaram era “relação sexual”. Ela ficou em cima do corpo adormecido e imobilizado de Tengo e colocou o pênis enrijecido dentro dela. Fukaeri parecia estar fora de si, como uma fada possuída por um sonho obsceno.

Depois disso, continuaram a viver naquele pequeno apartamento como se nada tivesse acontecido. A chuva torrencial parou e, quando amanheceu, Fukaeri parecia ter esquecido o que havia ocorrido na noite anterior. Tengo também não fez questão de tocar no assunto. Ele achou que, caso ela houvesse esquecido, era melhor assim. Tengo também achou que deveria esquecer aquilo. Mas uma dúvida pairava em seu íntimo. Por que Fukaeri fez aquilo? Teria havido algum motivo? Ou foi um tipo de possessão diabólica temporária?

A única certeza de Tengo era que aquilo não fora um ato de amor. Fukaeri nutria um carinho espontâneo por Tengo, não havia dúvidas. Mas sentir amor ou desejo sexual era improvável. Ela não sentia desejo sexual por ninguém. Tengo não podia afirmar categoricamente, apenas com base em sua capacidade de observação, mas, mesmo assim, ele não conseguia nem imaginá-la ofegante, transando de forma ardente com um homem. Não. Não conseguia nem mesmo imaginá-la praticando um simples ato sexual. Era algo que não condizia com a natureza dela.

Tengo caminhou pelo bairro de Kôenji. O dia estava escurecendo e soprava um vento gelado, mas isso não o incomodava. Gostava de pensar enquanto caminhava. E então se sentar diante da mesa e dar forma a essas ideias. Fazia parte de sua rotina. Por isso, não se importava em caminhar na chuva ou no vento. Chegou em frente ao bar Muguiatama. Como não lhe ocorreu nada para fazer, resolveu entrar e pediu um chope Carlsberg. O bar tinha acabado de abrir, e não havia nenhum cliente. Tengo parou de pensar, esvaziou a mente e tomou tranquilamente a sua bebida.

Mas ficar com a mente vazia era um capricho que Tengo não conseguia manter por muito tempo. Esvaziar a mente era algo tão impossível quanto criar um vácuo na natureza. Ele não podia deixar de pensar em Fukaeri. Ela estava presente em sua consciência como um fragmento de sonho.

Pode ser que ela esteja bem perto. Um lugar que dá para ir andando.

Foram as palavras de Fukaeri. Por isso, naquele dia, ele resolveu sair pela cidade à procura de Aomame. E, naquele dia, ele também entrou neste mesmo bar. O que mais ela lhe disse?

Não precisa se preocupar. Se você não encontrá-la, ela é que vai te encontrar.

Assim como Tengo estava procurando Aomame, ela também o procurava. Tengo relutou em acreditar nisso. Ele estava aflito tentando encontrá-la e, por isso, nem lhe passou pela cabeça que ela também estaria à procura dele.

Eu percebo e você recebe.

Foi o que Fukaeri lhe disse naquela ocasião. Ela possuía a sensibilidade de perceber as coisas e Tengo tinha a função de receptor. No entanto, Fukaeri contava o que percebia somente quando ela achava que devia. Tengo não sabia ao certo se isso era uma questão de regra ou mero capricho.

Tengo se lembrou novamente da relação sexual entre eles. Uma garota bonita de dezessete anos ficou sobre ele, tomou seu pênis ereto e o enfiou bem fundo dentro dela. Seus seios balançavam graciosamente, como um par de frutas maduras. Ela fechou os olhos em êxtase e suas narinas se dilataram excitadas. Seus lábios esboçavam algo que não chegava a se expressar em palavras. Vez por outra, entre seus dentes brancos despontava a ponta da língua rosada. Tengo lembrava com clareza dessa imagem. Seu corpo estava dormente, mas sua consciência, desperta. A ejaculação foi intensa.

Mas, a despeito de ele se lembrar claramente dessa cena, isso não o excitava. Não desejava fazer sexo com ela novamente. Depois daquilo, já haviam se passado três meses sem sexo. Nem ao menos havia ejaculado nesse período. Era algo realmente estranho de acontecer com ele. Era um homem saudável, de trinta anos, solteiro e sexualmente ativo, com desejos que acabavam sendo saciados de alguma forma.

Quando esteve no apartamento de Kumi Adachi e deitou-se na mesma cama que ela, mesmo sentindo os pelos pubianos roçando-lhe a perna, não sentiu desejo sexual. Seu pênis permaneceu mole o tempo todo. Talvez a culpa tenha sido do haxixe, mas, no fundo, sabia que não era isso. Naquela noite de trovoadas, quando ele e Fukaeri fizeram sexo, ela levou algo importante de seu coração. Era como se tivesse levado algum móvel do apartamento. Era a impressão que tinha.

Como o quê, por exemplo?

Tengo meneou a cabeça.

Após beber a cerveja, pediu uma dose do bourbon Four Roses e uma porção de castanhas. Como da outra vez.

A ereção daquela noite tempestuosa deve ter sido perfeita demais. Seu pênis estava muito mais duro e maior que o normal. Nem parecia ser o seu pênis de sempre. Era liso, brilhante e, mais que um pênis de verdade, parecia um símbolo conceitual. A ejaculação que se seguiu à ereção foi intensa, viril, e o sêmen jorrou abundante e denso. Com certeza aquele jato atingiu o âmago do útero dela. Talvez tenha atingido um local bem mais profundo. Uma ejaculação perfeita.

Mas, quando alguma coisa sai perfeita demais, sempre existe uma reação. A vida é assim. “Como me senti ao ejacular, após ter tido aquela experiência?” Tengo não conseguia se lembrar. Talvez não tenha ejaculado nenhuma vez desde então. O fato de não se lembrar significava que, caso tivesse ejaculado, teria sido algo de proporção bem menor. Seria como um curta-metragem que passa antes do filme principal. Não havia sentido em comentar uma ejaculação desse tipo. Talvez.

Tengo se perguntava se ele passaria o resto da vida tendo uma ereção de segunda categoria, ou se ainda teria alguma. Com certeza, sua vida seria triste como um longo anoitecer. Por outro lado, poderia ser algo inevitável. Bem, pelo menos ele tivera uma perfeita ereção e uma perfeita ejaculação. Como disse a escritora de E o vento levou: se você alguma vez realizou algo de grandioso, já é um bom motivo para festejar.

Após beber o uísque, Tengo pagou a conta e saiu novamente pelas ruas. O vento estava forte e o ar ainda mais frio. “Preciso encontrar Aomame antes que as regras do mundo se afrouxem e ele perca grande parte de sua lógica.” O que Tengo mais desejava naquele momento era reencontrá-la. “Se eu não conseguir, que valor teria a minha vida? Ela estava em algum lugar de Kôenji. Isso foi em setembro. Se a sorte ajudar, ela ainda deve estar no mesmo lugar.” Não havia nenhuma prova concreta. Mas, para Tengo, só lhe restava seguir essa possibilidade. Aomame devia estar em algum lugar perto dali. E também devia estar tentando encontrá-lo. Como uma moeda dividida em duas partes, cada qual buscando sua cara metade.

Tengo olhou para o céu, mas não viu as luas. “Preciso ir a algum lugar onde eu possa vê-las”, pensou.