26
Aomame
Muito romântico

O telefone tocou um pouco depois do meio-dia da terça-feira. Aomame estava sentada sobre o colchonete com as pernas estendidas, alongando os músculos da cintura e do quadril. Apesar de não parecer, o exercício era árduo. A camiseta estava empapada de suor. Aomame interrompeu a ginástica e, enquanto enxugava o suor do rosto com a toalha, pegou o fone.

— O cabeção do boneco da felicidade não está mais no apartamento — disse Tamaru, como sempre, sem as preliminares. Não dizia sequer um alô.

— Não está?

— Não está mais. Ele foi persuadido.

— Foi persuadido — repetiu Aomame. O que Tamaru queria dizer era que o cabeção do boneco da felicidade fora forçado a se retirar.

— E a pessoa que mora naquele apartamento é o Tengo Kawana que você está procurando.

O mundo ao redor de Aomame se expandiu e se contraiu, como se fosse o seu próprio coração.

— Está me ouvindo? — perguntou Tamaru.

— Estou.

— Mas, no momento, ele não está lá. Precisou sair por alguns dias.

— Ele está bem?

— Ele não está em Tóquio, mas com certeza está bem. O cabeção do boneco da felicidade alugou um apartamento no térreo e estava aguardando você ir até lá se encontrar com ele. Estava com uma câmera escondida, vigiando a entrada.

— Ele tirou minha foto?

— Tirou três. Como era noite e você estava de boné, óculos e cachecol, não dá para ver os detalhes de seu rosto. Mas não há dúvidas de que é você. Se você voltasse lá, provavelmente teríamos um problema e tanto.

— Acho que fiz a escolha certa ao confiar em você, não é?

— Se é que existe algo que se possa chamar de escolha certa.

— Seja como for, não preciso mais me preocupar com ele — disse Aomame.

— Aquele homem não vai mais poder te fazer mal.

— Porque ele foi persuadido por você.

— Foi preciso fazer alguns ajustes, mas, no final, deu tudo certo — disse Tamaru. — Peguei todas as fotografias. O objetivo dele era esperar você aparecer, e Tengo Kawana era apenas uma isca. Por isso, não vejo motivos para que eles o prejudiquem.

— Que bom — disse Aomame.

— Tengo Kawana ensina matemática numa escola preparatória de Yoyogui. Ele é um excelente professor, mas, como só trabalha alguns dias da semana, o salário não deve ser tão alto. É solteiro, tem uma vida modesta e mora naquele humilde apartamento.

Ao fechar os olhos, Aomame conseguia escutar dentro de seus ouvidos as batidas do coração. Era difícil discernir a linha divisória entre ela e o mundo.

— Além de ser professor de matemática de uma escola preparatória, ele está escrevendo um romance. Um romance longo. Ser ghost-writer da Crisálida de ar foi apenas um trabalho temporário, uma vez que ele já possuía, desde muito antes, sua própria ambição literária. O que é muito bom. Uma certa quantidade de ambição faz a pessoa se desenvolver.

— Como você conseguiu descobrir isso?

— Como ele estava ausente, tomei a liberdade de entrar no apartamento. Estava trancado, mas era como se não estivesse. Sei que é errado violar a privacidade alheia, mas precisava obter algumas informações básicas. Para um homem que mora sozinho, até que o apartamento estava bem arrumado. O fogão estava limpo e brilhando. Dentro da geladeira também estava tudo limpo e organizado, sem um repolho apodrecendo no fundo. Havia indícios de que ele passa suas roupas. Seria um ótimo companheiro para você. Se ele não for gay, claro.

— O que mais você descobriu?

— Telefonei para a escola e perguntei os horários de suas aulas. Segundo a atendente, o pai de Tengo Kawana faleceu no domingo de madrugada em algum hospital da província de Chiba. Ele precisou ir para o funeral e, por isso, a aula de segunda foi cancelada. Ela não soube informar quando nem onde seria o funeral, mas, como a próxima aula dele é na quinta, até lá ela disse que ele estaria de volta.

Aomame sabia que o pai de Tengo era cobrador da NHK e que, aos domingos, costumavam fazer uma rota de cobranças. Ela chegou a vê-los andando pelas ruas da cidade de Ichi­kawa. Ela não conseguia se lembrar do rosto do pai dele, mas lembrava-se de que era baixo, magro e vestia o uniforme de cobrador. E que não se parecia nem um pouco com Tengo.

— Se o cabeção do boneco da felicidade não está mais lá, posso ir falar com Tengo?

— Acho melhor não — disse Tamaru, prontamente. — O cabeção foi totalmente persuadido, mas tive de entrar em contato com o grupo religioso para que eles resolvam uma outra parte desta questão. Havia uma certa mercadoria que eu não queria deixar para as autoridades judiciais. Se essa mercadoria for encontrada, o morador do apartamento será investigado a fundo e, nesse caso, o pente-fino poderá repercutir de modo a envolver o seu amigo. Além do mais, esse é um trabalho espinhoso para que eu possa resolver sozinho. Se alguma autoridade me pegar carregando sozinho essa mercadoria durante a madrugada e resolver me interrogar, não terei como me desvencilhar. Sakigake possui homens e meios para fazer esse tipo de serviço, e já estão acostumados a fazê-lo. Assim como fizeram com aquela outra mercadoria que transportaram do Hotel Ôkura. Você entende o que estou querendo dizer?

Aomame traduziu mentalmente as palavras de Tamaru para uma linguagem mais direta. — A persuasão parece ter sido bastante rude, não?

Tamaru soltou um suspiro. — Infelizmente, aquele homem sabia demais.

— O grupo religioso estava a par do que ele fazia no apartamento? — indagou Aomame.

— O cabeção do boneco da felicidade trabalhava para o grupo, mas estava agindo sozinho. Ele ainda não tinha reportado aos superiores o que estava fazendo. Sorte nossa.

— Mas agora eles já sabem que ele estava lá fazendo alguma coisa.

— Isso mesmo. Por isso, é melhor você não se aproximar daquele lugar. O nome e o endereço de Tengo Kawana devem constar na lista deles, pois é o escritor da Crisálida de ar. Eles ainda não devem saber que há uma ligação pessoal entre você e Tengo. Mas, se eles forem atrás do motivo de o cabeção estar naquele apartamento, certamente virá à tona que é por causa de Tengo Kawana. É apenas uma questão de tempo.

— Mas, se tudo der certo, até que descubram, temos uma margem de tempo. Descobrir uma ligação entre a morte do cabeção e Tengo não será fácil.

— Isso se tudo correr bem — disse Tamaru. — E se eles não forem tão cuidadosos como imagino que são. Mas eu não acredito em hipóteses do tipo “se tudo der certo”. É por isso que consegui sobreviver até hoje.

— Por isso eu não devo me aproximar daquele apartamento.

— Exatamente — disse Tamaru. — Escapamos por pouco. Nunca será demais sermos cuidadosos.

— Será que o cabeção do boneco da felicidade sabia que eu estava escondida neste apartamento?

— Se ele soubesse, você certamente estaria num local longe do meu alcance.

— Mas ele chegou bem perto.

— Chegou. Mas acho que foi conduzido até aí por puro acaso. Nada mais que isso.

— Isso explica por que ele subiu no escorregador e ficou exposto, indefeso.

— Tem razão. Ele realmente não sabia que você o estava observando. Sequer desconfiou. Foi isso que o conduziu à morte — disse Tamaru. — Não te disse, certa vez? O quão tênue é a linha que separa a vida da morte?

Um breve silêncio pairou sobre eles. Um silêncio pesaroso que a morte de uma pessoa, seja ela quem for, emana.

— O cabeção do boneco da felicidade não existe mais, mas o grupo religioso continua atrás de mim.

— Aí esta um ponto que eu ainda não consegui entender — disse Tamaru. — No início, a intenção deles era capturar você e descobrir que tipo de organização estava por trás do plano de matar o Líder. Eles sabem que você, sozinha, não teria conseguido fazer isso, e querem saber quem está na retaguarda. Caso te achassem, não há dúvidas de que o interrogatório seria muito rigoroso.

— Por isso eu precisava da pistola — disse Aomame.

— O cabeção do boneco da felicidade também devia saber disso — prosseguiu Tamaru. — Ele sabia que o grupo estava atrás de você para interrogá-la e puni-la, mas me parece que as coisas mudaram de rumo no desenrolar dos acontecimentos. Após o cabeção sair de cena, conversei com um deles pelo telefone e ele me disse que o grupo não tem mais a intenção de causar danos a você. Ele pediu para te dizer isso. Pode ser uma armadilha. Mas, para mim, soou verdadeiro. Ele me explicou que a morte do Líder era algo que o próprio Líder desejava, e que não havia a necessidade de puni-la por algo que no fundo era uma espécie de suicídio.

— Foi isso mesmo — disse Aomame, com um tom de voz neutro — O Líder já sabia que eu estava lá para matá-lo e aprovava o meu intuito. Ele queria que eu o matasse naquela noite, na suíte do Hotel Ôkura.

— Os seguranças não conseguiram descobrir o seu objetivo, mas o Líder sim.

— Isso. Não sei como, mas ele sabia de tudo — disse Aomame. —Ele já estava me esperando.

Após um breve silêncio, Tamaru prosseguiu: — O que aconteceu?

— Fizemos um acordo.

— Eu não fiquei sabendo — disse Tamaru, num tom que denotava uma temerosa inquietação.

— Não tive oportunidade de falar sobre isso.

— Então me conte agora, que tipo de acordo vocês fizeram.

— Durante a sessão de alongamento, que durou uma hora, ele conversou comigo. Ele sabia sobre Tengo. Sabia também sobre a ligação que eu tinha com Tengo. E pediu para que eu o matasse. Queria se livrar o quanto antes do terrível e contínuo sofrimento físico. Ele disse que, se o matasse, em troca ele salvaria a vida de Tengo. Por isso, tomei a decisão de tirar-lhe a vida. Mesmo que eu não fizesse nada, ele certamente estava condenado a morrer e, ao pensar no que aquele homem vinha fazendo até então, a minha vontade era deixá-lo sofrer.

— Você não contou sobre esse acordo para a madame?

— Fui até lá para matá-lo e cumpri a missão — disse Aomame. — E, de certo modo, Tengo Kawana é um assunto pessoal.

— Tudo bem — disse Tamaru, em parte, conformado. — Devo admitir que você cumpriu perfeitamente a sua missão. Tengo Kawana é um assunto pessoal. Mas o fato é que, antes ou depois disso, você engravidou, e isso não pode passar despercebido.

— Não foi antes nem depois. Eu engravidei naquela noite de intensa chuva e trovoadas. Naquela noite em que eu resolvi a questão do Líder. Como eu já disse, não houve nenhuma relação sexual.

Tamaru suspirou. — Levando em consideração as circunstâncias envolvidas nesta questão, só tenho duas opções: acredito em você ou não. Até agora, eu sempre confiei em você e gostaria de continuar a confiar. Mas, neste assunto em particular, não consigo enxergar uma lógica. Sou uma pessoa que só consegue raciocinar de modo dedutivo.

Aomame permaneceu em silêncio.

Tamaru indagou: — Existe alguma relação de causa e efeito entre o assassinato do Líder e essa sua misteriosa gravidez?

— Não saberia dizer.

— Há alguma possibilidade de o feto que está no seu útero ser o filho do Líder? Não sei que tipo de método ele poderia ter usado para fazer isso, mas será que, naquela noite, ele não usou esse método para te engravidar? Aí sim posso entender por que o grupo quer te encontrar. Eles precisam do sucessor do Líder.

Aomame apertou o fone e balançou a cabeça num gesto negativo. — Isso é impossível. Estou grávida de Tengo. Eu sei disso.

— Quanto a isso, só me resta acreditar em você ou não.

— Eu não sei como explicar.

Tamaru novamente suspirou. — Tudo bem. A princípio, vou aceitar essa sua explicação de que o filho é seu e de Tengo. Você parece ter certeza. Mesmo assim, não consigo enxergar uma lógica nesse seu argumento. De início, o grupo queria te capturar e aplicar uma tremenda punição. A partir de certo ponto, algo aconteceu. Ou algo foi esclarecido. Desde então, eles passaram a necessitar de você. Eles garantem a sua segurança e, segundo eles, existe algo que eles podem lhe oferecer. É sobre isso que eles querem conversar com você. O que aconteceu?

— O que eles querem não sou eu — disse Aomame. — O que eu acho que eles querem é a criança no meu ventre. Em algum momento, eles descobriram isso.

— Ho, ho — disse, de algum lugar, o ritmista do Povo Pequenino.

— A história está se desenrolando rápido demais para mim — disse Tamaru, emitindo novamente um pequeno grunhido no fundo da garganta. — Ainda não consigo enxergar algo de coerente.

“Falta coerência porque existem duas luas. Elas é que roubam a coerência de todas as coisas”, pensou Aomame. Mas isso ela não podia falar.

— Ho, ho — disseram os outros seis homenzinhos em uníssono.

— Eles precisam de alguém que ouça a voz. Foi o que disse o homem com quem conversei ao telefone. Se eles perderem a voz, o grupo religioso poderá desaparecer. Não sei exatamente o que significa ouvir a voz, mas, seja o que for, é o que ele disse. A criança que está no seu ventre não seria a pessoa que poderia escutar essa voz?

Aomame colocou a mão delicadamente sobre o ventre. “Maza e dohta”, pensou, sem ousar dizê-lo em voz alta. As luas não podem ouvir isso.

— Eu não sei — disse Aomame, escolhendo cuidadosamente as palavras. — Mas não consigo pensar em nenhum outro motivo para que eles precisem de mim.

— Mas por que uma criança sua e de Tengo Kawana possuiria uma capacidade tão especial?

— Não sei — disse Aomame.

“Talvez, em troca de sua vida, o Líder tenha confiado a mim o seu sucessor”, cogitou Aomame um tempo depois. “Naquela noite do temporal, o Líder abriu temporariamente um circuito de ligação com outro mundo para eu me unir a Tengo.”

Tamaru prosseguiu: — Independentemente de quem seja o pai dessa criança e de que tipo de capacidade essa criança possua, você não tem a intenção de negociar com o grupo. É isso? Você não quer saber o que eles querem dar em troca, mesmo que isso possa desvendar inúmeros mistérios.

— Não importa o que aconteça — disse Aomame.

— Apesar de suas intenções, eles vão tentar pegá-la à força, não importa como — disse Tamaru. — Você tem um ponto fraco chamado Tengo Kawana. Ele é o seu único ponto fraco. Mas, apesar de ser o único, é enorme. Se eles souberem disso, com certeza o foco da atenção se voltará para ele a fim de te atingir.

Tamaru estava com razão. Além de Tengo Kawana ser o motivo de ela viver, era fatalmente o seu ponto fraco.

— Agora não existe mais nenhum lugar seguro neste mundo — disse Aomame.

Tamaru ponderou e, um tempo depois, disse calmamente: — Vamos ouvir o que eles querem nos dizer.

— Antes, preciso me encontrar com Tengo. Enquanto não falar com ele, não posso deixar este local. Não importa o quão perigoso seja.

— O que você pretende fazer quando encontrá-lo?

— Sei exatamente o que devo fazer.

Tamaru fez um breve silêncio: — Não há sombra de dúvida?

— Não sei se isso vai dar certo. Mas sei exatamente o que devo fazer. Está bem claro, sem sombra de dúvida.

— Você não pretende me dizer o que vai fazer.

— Sinto muito, mas, por enquanto, não posso lhe dizer. Nem a você nem a ninguém. Se eu disser o que pretendo fazer, no mesmo instante isso será revelado ao mundo.

As luas estavam com os ouvidos atentos. O Povo Pequenino também. O quarto também. Isso era algo que não poderia dar um passo para além do coração. Ela precisava proteger o seu coração, cercando-o com um muro bem espesso.

Do outro lado da linha, Tamaru batia a ponta da caneta na mesa. Aomame podia escutar o som seco e ritmado: toc-toc-toc. Um som solitário e sem eco.

— Está bem. Vou entrar em contato com Tengo Kawana. Mas, antes, preciso ter o consentimento da madame. Minha missão era levar você o quanto antes para um outro lugar. Mas você diz que não vai sair daí enquanto não falar com Tengo. Vai ser difícil explicar isso a ela. Você entende, não?

— Explicar algo ilógico de modo lógico é muito difícil.

— Isso mesmo. É tão difícil como encontrar uma pérola verdadeira numa barraca de ostras de Roppongi. Mas vou me esforçar.

— Obrigada — disse Aomame.

— As coisas que você afirma não fazem nenhum sentido para mim. Não há conexão lógica de causa e efeito. Mas, durante a nossa conversa, aos poucos comecei a sentir que, a princípio, posso aceitar a sua argumentação. Por que será?

Aomame permaneceu em silêncio.

— A madame confia em você — disse Tamaru. — Por isso, se você insiste que quer se encontrar com Tengo, creio que ela não terá argumentos para se opor. Acho que você e Tengo Kawana estão inabalavelmente unidos.

— Mais do que ninguém — disse Aomame.

Mais do que ninguém em qualquer mundo”, Aomame se corrigiu mentalmente.

— Caso eu diga — prosseguiu Tamaru — que encontrar Tengo é muito perigoso, e me recusar a entrar em contato com ele, você vai dar um jeito de ir até o apartamento dele, não vai?

— Com certeza, farei isso.

— Ninguém será capaz de te impedir.

— Acho que será em vão.

Tamaru fez uma pequena pausa antes de prosseguir: — Qual o recado que preciso passar para Tengo?

— Peça para ele vir até o topo do escorregador, após o anoitecer. Não importa a hora, desde que já tenha escurecido. Diga que estarei esperando. Ele vai entender.

— Entendi. Vou transmitir o recado: ir até o topo do escorregador, após o anoitecer.

— Diga também que, se ele possui algo importante que não quer deixar para trás, traga consigo. Mas as mãos devem estar livres.

— Para onde ele vai levar essa bagagem?

— Para longe — disse Aomame.

— O quão longe?

— Não sei — disse Aomame.

— Tudo bem. Vou transmitir o recado desde que a madame autorize. Vou me esforçar para garantir a sua segurança. Do meu jeito. Mesmo assim, o perigo estará sempre por perto. Eles estão desesperados. Isso significa que você precisa se proteger.

— Sei disso — disse Aomame, calmamente. Sua mão continuava apoiada no ventre. “Não somente eu”, pensou.

Após desligar o telefone, Aomame desabou no sofá. Fechou os olhos e pensou em Tengo. Não conseguiria pensar em mais nada. Sentia uma dor no peito, como se algo o estivesse espremendo. Mas era uma dor agradável. Uma dor suportável. Ele realmente morava muito perto dali. A uma distância de dez minutos a pé. Só de pensar nisso, sentia o centro de seu corpo se aquecer. Ele era solteiro e dava aulas de matemática numa escola preparatória. Morava num apartamento modesto e limpo, cozinhava, passava roupa e estava escrevendo um romance longo. Aomame sentiu inveja de Tamaru. Se pudesse, ela também gostaria de entrar no apartamento de Tengo, sem a presença dele. No interior do apartamento silencioso, ela tocaria em cada um dos objetos. Verificaria a ponta do lápis que ele usava para escrever, pegaria a xícara em que ele toma o café, sentiria o cheiro de suas roupas. Antes de encontrá-lo, queria poder fazer isso.

Sem essas preliminares, ela não saberia o que falar quando se visse diante dele, somente os dois. Só de imaginar esse momento, sua respiração ficava mais rápida, e sua mente, aérea. Havia muitas coisas para conversar e, ao mesmo tempo, ela tinha a impressão de que, na hora, não precisaria dizer nada. As coisas que ela queria falar, ao serem postas em palavras, pareciam perder totalmente o sentido.

A única coisa que Aomame poderia fazer naquele momento era esperar. Esperar calma e atentamente. Ela arrumou as coisas de modo que pudesse sair a qualquer momento, assim que avistasse Tengo. Colocou tudo o que precisava numa bolsa de couro preta bem grande. Não havia muito. Maço de dinheiro, roupas limpas e a Heckler & Koch carregada. Somente isso. Ela colocou a bolsa numa posição em que pudesse pegá-la rapidamente. Tirou o blazer da Junko Shimada do cabide no armário e, após verificar se não estava amassado, deixou-o pendurado na parede da sala. Separou a blusa branca que combinava com o blazer, as meias finas e seus sapatos de salto alto da Charles Jourdan. E o seu casaco bege. Eram as mesmas roupas que usava na primeira vez em que desceu as escadas de emergência da rodovia Metropolitana. O casaco era fino demais para uma noite de dezembro. Mas não havia opção.

Após arrumar suas coisas, Aomame foi para a varanda e, sentada na cadeira de jardim, observou o escorregador do parque por entre os vãos da grade da sacada. O pai de Tengo falecera na madrugada de domingo. Entre a morte e a cremação é necessário aguardar vinte e quatro horas. Aomame sabia de uma lei que estabelecia esse período. Significava que a cremação estaria liberada somente a partir da terça-feira. Hoje era terça. Após a cremação, Tengo sairá desse algum lugar e, mesmo saindo cedo, deverá chegar somente no final da tarde a Tóquio. Tamaru deve passar o recado só depois de ele chegar. Antes disso, Tengo não virá ao parque. E ainda estava claro.

“Ao morrer, o Líder deixou preparada esta coisa pequenina no meu útero”, essa era a hipótese ou a intuição de Aomame. “Se for isso, quer dizer que fui manipulada por aquele homem morto, e estou sendo conduzida a cumprir um objetivo determinado por ele?”

Aomame franziu as sobrancelhas. Não conseguia chegar a nenhuma conclusão. “Tamaru desconfiava de que eu estava grávida (daquele que ouve a voz), e que isso fazia parte de um plano arquitetado pelo Líder. Eu devo ser como uma crisálida de ar. Mas por que essa pessoa tem de ser justamente eu? Por que o meu parceiro tem de ser Tengo?” Essa era uma das coisas que Aomame também não conseguia entender.

“Inúmeras coisas aconteceram, e não entendo a relação entre elas. Não consigo avaliar o princípio nem o rumo que os acontecimentos estão tomando. No final das contas, praticamente fui envolvida nisso sem saber. Mas somente até agora”, Aomame decidiu, convicta.

Ela inclinou os lábios e fez uma tremenda careta.

A partir de agora será diferente. A partir de agora não vou mais ficar à mercê de alguém para ser manipulada a torto e a direito. A partir de agora vou seguir minhas próprias regras, vou agir conforme a minha vontade. Não importa o que aconteça, vou proteger esta coisa pequenina. Vou lutar com todas as minhas forças para protegê-la. Esta é a minha vida, e quem está aqui é a minha criança. Não importa o objetivo de quem planejou isso, o fato é que não há dúvidas de que essa criança é um fruto meu e de Tengo. Não vou entregá-la a ninguém. De agora em diante, eu decido o que é bom ou ruim e assumo a direção que devo seguir. Seja lá quem for, é bom que saiba disso.”

No dia seguinte, às duas da tarde de quarta-feira, o telefone tocou.

— O recado foi dado — disse Tamaru, como sempre sem as preliminares. — Agora, ele está no apartamento. Telefonei para ele hoje de manhã. Ele disse que estará no escorregador hoje à noite às sete em ponto.

— Ele se lembra de mim?

— É claro que sim. E muito bem. Ele também estava à sua procura.

“Foi o que o Líder me disse. Que ele estava à minha procura. Só saber isso já é o bastante.” O coração de Aomame se encheu de felicidade. Nenhuma outra palavra do mundo fazia mais sentido para ela.

— Ele ficou de trazer as coisas mais importantes, como você pediu. Eu suponho que entre essas coisas ele deve trazer o romance que está escrevendo.

— Certamente — disse Aomame.

— Verifiquei as redondezas daquele modesto prédio e, aparentemente, estava tudo tranquilo. Não vi nenhum suspeito sondando a área. O apartamento do cabeção do boneco da felicidade também já estava vazio. Está tudo calmo, mas não tão tranquilo. Durante a madrugada, os caras sorrateiramente deram um jeito na mercadoria e resolveram não ficar muito tempo no local. Eu observei atentamente toda a ação à minha maneira e, pelo que constatei, acho que não houve falhas por parte deles.

— Que bom.

— Mas ressalto que existe apenas uma probabilidade de, por enquanto, não ter havido falhas. A situação pode mudar a qualquer instante. Eu, obviamente, não sou perfeito. Posso ter deixado escapar alguma coisa importante. Há a possibilidade de eles serem melhores do que eu.

— No final das contas, significa que cabe a mim cuidar de mim mesma.

— É o que eu já disse.

— Muito obrigada por tudo. Sou grata.

— Não sei para onde você vai nem o que pretende fazer de agora em diante — disse Tamaru. — Mas, se você pretende ir para bem longe, e eu não te ver mais, vou ficar um pouco triste. Você é uma pessoa especial, e é muito raro eu me deparar com alguém assim.

Aomame abriu um sorriso diante do telefone. — Eu penso o mesmo de você.

— A madame precisava de alguém como você. Não em relação ao trabalho, mas em nível pessoal, como uma amiga. Por isso, ela está muito triste de se separar de você. Ela não está em condições de conversar por telefone. Espero que você a compreenda.

— Eu entendo — disse Aomame. — Creio que eu também teria muita dificuldade de falar com ela.

— Você disse que vai para longe — disse Tamaru. — O quão longe?

— Uma distância que não pode ser medida em números.

— Como a distância que separa o coração de cada um.

Aomame fechou os olhos e respirou profundamente. As lágrimas estavam para transbordar. Mas conseguiu contê-las.

— Vou rezar para que tudo corra bem — disse Tamaru com a voz serena.

— Sinto muito, mas acho que não vou devolver a Heckler & Koch — disse Aomame.

— Tudo bem. Aceite-a como um presente. Se ela se tornar um incômodo, jogue-a na baía de Tóquio. O mundo dará um pequeno passo na direção do desarmamento.

— Acho que, no final, não vai ser preciso usar a pistola. Isso parece ir contra o princípio de Tchekhov.

— Não importa. O fato de você conseguir superar os obstáculos sem ter de usá-la é ótimo. Estamos bem perto do final do século XX. Hoje, as coisas são muito diferentes da época de Tchekhov. Não há mais carruagens nas ruas nem mulheres de espartilho. O mundo conseguiu de algum modo sobreviver ao nazismo, à bomba atômica e à música moderna. Durante esse período, ocorreu uma mudança radical no modo de escrever romances. Portanto, não se preocupe — disse Tamaru. — Mas tenho uma pergunta a lhe fazer. Você ficou de se encontrar com Tengo hoje à noite, às sete horas.

— Se tudo der certo — disse Aomame.

— Caso vocês se encontrem, o que irão fazer no topo do escorregador?

— Vamos ver a lua.

— Muito romântico — disse Tamaru, em tom de admiração.