27
Tengo
O mundo todo é insuficiente
Na quarta de manhã, quando o telefone tocou, Tengo estava em pleno sono. Ele só conseguira adormecer perto do amanhecer, e o uísque que havia tomado ainda circulava em seu corpo. Ele se levantou da cama e se surpreendeu ao ver o dia já totalmente claro.
— Tengo Kawana — disse o homem. Era uma voz desconhecida.
— Sim — disse Tengo. Ele achou que a ligação se devesse a algum detalhe administrativo relacionado à morte de seu pai. A voz do interlocutor soava calma e profissional. Mas o despertador indicava que era pouco antes das oito. Não era um horário normal para as repartições públicas ou a funerária telefonar.
— Desculpe-me incomodá-lo tão cedo, mas é que o assunto requer urgência.
Assunto urgente. — Do que se trata? — indagou Tengo, com a mente confusa.
— O senhor se lembra de uma pessoa chamada Aomame? — perguntou o interlocutor.
Aomame? Instantaneamente, a embriaguez e a sonolência desapareceram. A consciência rapidamente despertou, como a troca de cenário de uma peça teatral. Tengo apertou o fone.
— Lembro — respondeu Tengo.
— Não é um nome muito comum.
— Estudei na mesma classe que ela no primário — disse Tengo, com a voz voltando ao normal.
O homem fez uma pequena pausa. — O senhor teria algum interesse em conversar sobre ela neste momento?
Tengo achou que aquele homem tinha um jeito estranho de falar. Um jeito peculiar. Como se fosse a tradução de uma peça teatral de vanguarda.
— Se o senhor não estiver interessado, será uma perda de tempo para ambos. Nesse caso, desligarei imediatamente o telefone.
— Tenho interesse — disse Tengo apressadamente. — Mas posso saber com quem estou falando?
— Tenho uma mensagem de Aomame — disse o homem, sem se ater à pergunta de Tengo. — Ela gostaria de se encontrar com o senhor. E o senhor? Também gostaria de se encontrar com ela?
— Gostaria — disse Tengo, tossindo para limpar a garganta. — Há tempos que eu também desejava reencontrá-la.
— Ótimo. Ela quer encontrá-lo. E o senhor também.
Tengo de repente percebeu que o quarto estava frio. Pegou um cardigã que estava por perto e o vestiu sobre o pijama.
— E o que devo fazer? — indagou Tengo.
— Ao escurecer, o senhor poderia ir até o topo do escorregador? — disse o homem.
— Topo do escorregador? — disse Tengo, sem saber o que aquele homem queria dizer.
— Ela falou que, dizendo isso, o senhor entenderia. Ir até o topo do escorregador. Eu apenas estou transmitindo o recado conforme me foi dado.
Tengo instintivamente passou a mão no cabelo desalinhado, com algumas mechas endurecidas. Escorregador. Era o local de onde ele ficara observando as duas luas. Só podia ser aquele escorregador.
— Acho que eu sei — disse Tengo, com a voz seca.
— Ótimo. E mais uma coisa. Se tiver algo importante que queira levar, é para o senhor levar consigo. De modo que possa se mudar imediatamente, para longe.
— Algo importante que eu queira levar? — Tengo repetiu, surpreso.
— Coisas que não quer deixar para trás.
Tengo se pôs a pensar. — Acho que não estou entendendo direito; mudar para longe significa que não voltarei mais aqui?
— Isso eu não saberia responder — disse o homem. — Como eu disse há pouco, estou apenas transmitindo o que ela me disse.
Tengo pensou enquanto passava os dedos nos cabelos em desalinho. Mudar? E prosseguiu: — Talvez eu tenha de levar um volume considerável de papéis.
— Creio que isso não vai ser problema — disse o homem. — O senhor tem toda a liberdade de escolher o que quiser. Mas a bolsa deverá ser uma que deixe as mãos livres.
— Uma que deixe as mãos livres — disse Tengo. — Isso quer dizer que não pode ser uma mala, não é?
— Creio que sim.
Era difícil imaginar a idade, a aparência e o porte físico daquele homem por meio de sua voz. Era uma voz desprovida de pistas concretas. Um tipo de voz que não se consegue mais guardar, assim que se desliga o telefone. Uma que não revela quaisquer indícios de personalidade ou de sentimentos, caso haja algum.
— O que eu precisava lhe transmitir era isso — disse o homem.
— Aomame está bem? — perguntou Tengo.
— Fisicamente está bem — respondeu o interlocutor, escolhendo cuidadosamente as palavras. — Mas, no momento, ela está numa situação um pouco tensa. Ela precisa estar constantemente atenta. Se houver um deslize, pode pôr tudo a perder.
— Tudo a perder — Tengo repetiu mecanicamente.
— Seria melhor não protelar — disse o homem. — Nesta situação, o tempo é um fator importante.
“O tempo é um fator importante”, Tengo repetiu mentalmente. “Será que este homem tem algum problema para escolher as palavras? Ou será que estou nervoso demais?”
— Acho que poderei estar no topo do escorregador às sete da noite — disse Tengo. — Se, por algum motivo, não for possível ir ao encontro, estarei lá, no mesmo horário, amanhã.
— Está bem. O senhor sabe exatamente de que escorregador se trata.
— Acho que sei.
Tengo olhou o relógio. Ainda faltavam onze horas até o horário combinado.
— A propósito, eu soube que seu pai faleceu no domingo. Aceite minhas condolências — disse o homem.
Tengo agradeceu mecanicamente, e pensou: “Como é que ele sabe disso?”
— Será que o senhor poderia me falar algo sobre Aomame? — disse Tengo. — Coisas como onde ela está e o que ela faz?
— Ela é solteira e trabalha como instrutora num clube esportivo de Hiroo. É uma excelente profissional, mas, devido a certas circunstâncias, no momento ela está afastada do trabalho. Por coincidência, há algum tempo, ela está morando bem perto de sua residência. Outras informações, acho melhor o senhor ouvir diretamente dela.
— Não poderia me dizer por que ela está passando por uma situação tensa?
O homem não respondeu. Ele deixava espontaneamente de responder coisas que não queria ou que não via a necessidade de dizer. Tengo não sabia o motivo, mas tinha ao seu redor muitas pessoas desse tipo.
— Então hoje, às sete horas, no topo do escorregador — disse o homem.
— Um momento — disse Tengo rapidamente. — Tenho uma pergunta. Uma pessoa me alertou que havia alguém me vigiando. E ela me disse que eu deveria tomar cuidado. Desculpe-me perguntar isso, mas será que, por acaso, esse alguém seria o senhor?
— Não. Não sou eu — o homem respondeu de imediato. — Quem o estava vigiando provavelmente era outra pessoa. De qualquer modo, é sempre bom tomar cuidado. Essa pessoa que o alertou está coberta de razão.
— O fato de eu estar sendo vigiado possui alguma relação com essa situação extremamente especial em que Aomame se encontra?
— Uma situação um pouco tensa — corrigiu o homem. — Sim. Possivelmente há uma ligação. Em algum ponto.
— É algo perigoso?
O homem fez uma pausa, como se estivesse separando diferentes tipos de feijão misturados e, escolhendo cuidadosamente as palavras, disse: — Se você considera perigoso o fato de não ver nunca mais Aomame, com certeza a situação pode ser chamada assim.
Tengo procurou traduzir mentalmente esse modo cifrado de o homem se expressar, para torná-lo mais compreensível. Ele não podia identificar as circunstâncias e saber dos acontecimentos, mas conseguia sentir uma atmosfera de nítida tensão.
— Se houver um deslize, é possível que nunca mais possamos nos encontrar.
— Exatamente.
— Entendi. Tomarei cuidado — disse Tengo.
— Desculpe tê-lo incomodado assim tão cedo. Parece que eu o acordei.
Assim que o homem disse isso, desligou imediatamente o telefone. Tengo ficou olhando durante um bom tempo o fone em sua mão. Assim como havia previsto, ele não conseguia mais se lembrar da voz daquele homem. Olhou novamente o relógio. Oito e dez. “O que vou fazer para passar o tempo até às sete da noite?”, pensou.
Ele começou por tomar banho, lavou os cabelos e tentou desembaraçá-los o melhor que podia. Fez a barba diante do espelho. Escovou os dentes com capricho e até passou fio dental. Depois, tirou da geladeira um suco de tomate e o bebeu. Ferveu água, moeu grãos para preparar um café e fez uma torrada. Programou o timer para um ovo cozido. Ele se concentrou em fazer cada uma dessas atividades levando um tempo maior do que o habitual. Mesmo assim, ainda eram nove e meia.
Vou me encontrar com Aomame no topo do escorregador.
Quando pensava nisso, Tengo sentia como se seu corpo se desprendesse e se esparramasse por todos os lados. Os braços, as pernas e o rosto pareciam, cada qual, seguir uma direção diferente. Não conseguia atar um sentimento num só lugar por muito tempo. Quando tentava fazer algo, não conseguia se concentrar. Não conseguia ler um livro e, muito menos, escrever. Não conseguia ficar sentado e quieto por muito tempo. A única coisa que ele conseguia fazer era, quando muito, lavar as louças, roupas, organizar as gavetas das cômodas e arrumar a cama. Mas, seja lá o que se propusesse a fazer, a cada cinco minutos interrompia para dar uma olhada no relógio de parede. Quanto mais pensava no tempo, mais ele demorava a passar.
Aomame sabia.
Foi o que Tengo pensou enquanto estava na pia da cozinha amolando uma faca que não precisava ser necessariamente afiada. “Ela sabe que eu fui várias vezes ao escorregador do parque infantil. Deve ter me visto, sozinho, sentado no topo do escorregador e olhando o céu. Não há outra explicação.” Tengo tentou se imaginar no topo do escorregador sob a luz da lâmpada de mercúrio. Naquela ocasião, ele sequer poderia imaginar que estava sendo observado. De onde ela o fazia?
“Não importa de onde tenha sido”, pensou. “É o de menos. O importante é que, só de olhar para mim, ela me reconheceu.” Essa constatação o deixou profundamente feliz. “Assim como eu sempre estive pensando nela, ela também estava pensando em mim.” Isso, porém, era algo difícil de acreditar. Crer que, num mundo agitado e cheio de labirintos como este, os corações de duas pessoas — um menino e uma menina — pudessem se unir, sem mudanças, depois de vinte anos sem se ver.
“Mas por que Aomame não me chamou na hora em que me viu? Se tivesse feito isso, as coisas teriam sido bem mais fáceis. Como ela descobriu onde eu moro? Como foi que ela — ou aquele homem — descobriu o número do meu telefone?” Tengo não gostava de receber ligações, e o seu número não constava na lista telefônica; mesmo através do serviço de informações, era impossível obtê-lo.
Havia alguns fatos incompreensíveis. As linhas daquela história também estavam emaranhadas. Era difícil identificar os fios que se entrelaçavam e quais as relações de causa e efeito existentes entre eles. Pensando bem, desde que Fukaeri aparecera, ele tinha a impressão de estar sempre vivendo num lugar em que o normal era ter muitas perguntas e poucas respostas. Mas essa situação caótica parecia estar aos poucos chegando ao fim; essa era a impressão, ainda que vaga, que Tengo sentia.
“Seja como for, às sete da noite algumas dessas dúvidas poderão ser sanadas”, pensou Tengo. “Vamos nos encontrar no topo do escorregador. Não como duas crianças desamparadas de dez anos, mas como dois adultos, um homem e uma mulher, livres e independentes. Como um professor de matemática de uma escola preparatória e uma instrutora de um clube esportivo. O que será que vamos conversar? Não sei. Seja o que for, vamos ter de conversar. Precisamos preencher as lacunas e compartilhar o que sabemos. Tomando emprestado o modo estranho de aquele homem se expressar, nós vamos ter de nos mudar para algum lugar. Por isso, preciso juntar tudo o que for importante para mim e que não posso deixar para trás. E colocar numa bolsa que eu possa carregar deixando as mãos livres.
“Abandonar este lugar não me deixa particularmente triste. Morei neste apartamento durante sete anos e, três vezes por semana, dei aulas na escola preparatória, mas nunca senti, sequer uma vez, que esse era o lugar da minha vida. Aqui era apenas um local temporário, como uma ilha flutuante que surge no meio da corrente de água. Minha namorada mais velha, que se encontrava secretamente comigo uma vez por semana, desapareceu. Fukaeri, que morou comigo durante um tempo, também se foi.” Tengo não sabia para onde elas foram e o que estariam fazendo. De qualquer modo, desapareceram silenciosamente de sua vida. Quanto às aulas, se ele deixasse o emprego, certamente alguém o substituiria. O mundo continuaria a existir, mesmo sem Tengo. Se Aomame quer se mudar para outro lugar, ele poderia acompanhá-la sem hesitar.
Quais seriam as coisas importantes que ele levaria consigo? Uns cinquenta mil ienes em dinheiro e um cartão de débito bancário. Isso era tudo o que ele podia chamar de bens. Em sua conta corrente havia cerca de um milhão de ienes. Não. Havia mais. Havia o dinheiro dos royalties de Crisálida de ar. A intenção era devolver o dinheiro para Komatsu, mas ele ainda não o fizera. Fora isso, havia as folhas impressas de uma parte do seu romance em andamento. Isso ele não podia deixar para trás. Não possuía um valor público, mas, para Tengo, era algo muito importante. Colocou os originais num envelope e o guardou numa bolsa castanho avermelhada de náilon resistente, que costumava usar para ir à escola. Com isso, a bolsa ficou cheia e pesada. O disquete, ele guardou no bolso da jaqueta de couro. Como não convinha levar o processador de texto, acrescentou cadernos e a caneta-tinteiro na bagagem. “O que mais?”, pensou.
Ele se lembrou do envelope que o advogado lhe entregara em Chikura. Nele havia a caderneta de poupança, o carimbo registrado, o registro civil e a misteriosa foto (que parecia ser) de família. Talvez fosse melhor levá-lo consigo. A caderneta escolar do primário e o diploma de reconhecimento da NHK, obviamente, não seriam levados. Resolveu também não levar roupas para troca, nem objetos de toalete. Isso tudo não caberia dentro da bolsa, e poderia comprá-los de novo.
Após colocar as coisas na bolsa, Tengo não tinha mais nada a fazer. Não tinha louças para lavar, nem camisas para passar. Ele olhou novamente o relógio de parede. Dez e meia. Pensou em telefonar para o amigo e pedir que ele o substituísse nas aulas, mas lembrou-se de que ele costumava ficar mal-humorado quando Tengo ligava antes do almoço.
Tengo deitou-se na cama e pensou em várias possibilidades. A última vez em que viu Aomame, ele tinham dez anos. Agora, estão com trinta. Durante esse período, ambos tiveram muitas experiências. Experiências boas e experiências não tão boas (possivelmente estas últimas em maior número). “A nossa aparência, o tipo de personalidade e o ambiente em que vivemos devem ser bem diferentes”, pensou Tengo. “Não somos mais um menino e uma menina. Será que a Aomame que está lá é realmente a que eu estava procurando? Será que eu sou realmente o Tengo Kawana que ela procura?” Tengo imaginou a cena dos dois se encontrando no escorregador naquela noite e, ao ficarem de frente um para o outro, se decepcionarem. Talvez não tivessem nada para conversar. Era algo perfeitamente possível de acontecer. Aliás, o fato de não acontecer isso é que seria estranho.
“O certo talvez fosse não nos encontrarmos”, pensou Tengo, olhando para o teto. “Talvez fosse melhor ficarmos separados um do outro guardando, com carinho, o desejo de um dia nos reencontrarmos. Poderíamos viver para sempre com esse desejo em nossos corações. Um desejo a acalentar o âmago de nossos seres, mantendo acesa uma singela mas importante fonte de calor. Uma pequena chama que as palmas das mãos cuidadosamente protegem da ação do vento. Que, ao receber os ventos violentos da realidade, poderia facilmente se extinguir.”
Tengo permaneceu por cerca de uma hora olhando o teto, oscilando entre dois sentimentos contraditórios. O que ele mais queria era encontrar Aomame. Ao mesmo tempo, estava com muito medo de ficar diante dela. A decepção desalentadora e o silêncio constrangedor que poderiam surgir no momento em que se encontrassem o deixava abalado. Parecia que seu corpo se racharia em duas partes. Fisicamente, ele era grande e forte, mas sabia o quão fraco se tornava diante dessa força movida pelo sentimento. Mas ele precisava se encontrar com ela. Era algo que o seu coração desejara fortemente durante esses vinte anos. Não cabia a ele dar as costas e fugir, mesmo que o resultado fosse decepcionante.
Cansado de olhar para o teto, ele acabou dormindo na cama deitado de costas. Um sono tranquilo, sem sonhos, que durou de quarenta a quarenta e cinco minutos. Era um sono profundo e acalentador, depois de ficar mentalmente cansado de tanto se concentrar em seus pensamentos. Nos últimos dias, ele só havia dormido de modo irregular e fragmentado. Até o anoitecer, era preciso eliminar a fadiga acumulada no corpo para, quando deixasse o apartamento e se dirigisse até o parque infantil, estar com o corpo saudável e o sentimento renovado. Ele sabia instintivamente que seu corpo necessitava de um repouso reparador.
Quando estava começando a dormir, Tengo ouviu a voz de Kumi Adachi. Ou achou que tinha ouvido a voz dela. Ao amanhecer, você deve ir embora. Antes de a saída se fechar.
Era a voz de Kumi Adachi e, ao mesmo tempo, era a voz da coruja da noite. Na mente de Tengo as duas vozes se mesclaram e se tornaram difíceis de distinguir. O que ele mais precisava naquele momento era sabedoria. A sabedoria da noite, com suas raízes grossas que avançam profundamente no solo. Uma sabedoria que ele só conseguiria obter nas profundezas do sono.
Às seis e meia, Tengo colocou a bolsa a tiracolo e deixou o apartamento. Ele usava a mesma roupa da vez em que esteve no escorregador. Uma capa cinza, uma jaqueta de couro velha, calça jeans e sapatos marrons. Eram roupas gastas, mas estavam bem moldadas ao corpo. Pareciam fazer parte dele. “Talvez eu não volte mais aqui”, pensou. Por precaução, retirou o cartão com o seu nome da porta e da caixa de correio. Os desdobramentos disso, ele deixaria para pensar depois.
Ele parou em frente ao prédio e olhou atentamente ao redor. Se Fukaeri estiver certa, alguém deveria estar vigiando de algum lugar. Mas, como da outra vez, ele não viu nada de estranho. O que ele via era a mesma paisagem de sempre. Após o anoitecer, não havia muitos pedestres. Ele andou calmamente em direção à estação. De vez em quando, olhava para trás para se certificar de que não estava sendo seguido. Dobrou em algumas ruas estreitas sem necessidade e parou para observar se não havia ninguém a segui-lo. Aquele homem havia lhe dito que era preciso tomar cuidado. O cuidado deveria ser tanto para ele quanto para Aomame, que se encontrava numa situação tensa.
Mas será que aquele homem que lhe telefonou realmente conhecia Aomame? De repente, isso lhe veio à mente. “Não poderia ser uma armadilha muito bem arquitetada?” Ao pensar nessa possibilidade, Tengo começou a ficar inseguro. Se for uma armadilha, certamente o grupo Sakigake deve estar por trás disso. Tengo talvez (não, com certeza) deve estar na lista negra deles por ter desempenhado a função de ghost-writer da Crisálida de ar. Foi por isso que aquele homem esquisito chamado Ushikawa se aproximou dele, como representante do grupo, com aquela história de ajuda financeira de origem suspeita. Ainda por cima, Tengo — não por vontade própria — acolheu durante três meses Fukaeri em seu apartamento. Havia motivos suficientes para que o grupo o considerasse uma pessoa indesejável.
“Mas, se for isso”, pensou Tengo, “por que precisariam ter todo esse trabalho de usar Aomame como isca para me atrair para fora do apartamento?”. Eles sabiam onde ele morava. Ele não estava se escondendo. Se tinham alguma coisa a tratar com Tengo, era só procurá-lo. Não precisavam gastar tempo nem ter o trabalho de conduzi-lo até o escorregador do parquinho. Mas a coisa mudaria de figura se fosse o contrário; se ele fosse a isca para fazer Aomame sair do esconderijo.
Mas por que precisam atrair Aomame para fora do esconderijo?
“Não vejo motivo para isso. Será que há alguma ligação entre Sakigake e Aomame?” Tengo não conseguia deduzir nada mais além disso. O único jeito era perguntar diretamente a Aomame. Isso se eles realmente se encontrassem.
Seja como for, era como aquele homem lhe dissera: nunca é demais tomar cuidado. Por precaução, Tengo fez um caminho mais longo e averiguou se não era seguido. Em seguida, andou apressado em direção ao parque infantil.
Tengo chegou ao local faltando sete minutos para as sete. Já havia escurecido, e somente a luz da lâmpada de mercúrio iluminava o parquinho, de ponta a ponta. À tarde, o tempo estivera quente e agradável, mas, ao anoitecer, a temperatura havia esfriado rapidamente, acompanhada de ventos gelados. Os sucessivos dias ensolarados e quentes do outono estavam cedendo definitivamente lugar para o inverno. As extremidades dos galhos da zelkova balançavam como os dedos de um ancião a dar uma advertência, emitindo um som seco.
Algumas janelas dos edifícios ao redor estavam com as luzes acesas, mas o parque estava vazio. O coração de Tengo sob a jaqueta de couro batia num ritmo lento, mas forte. Ele esfregou várias vezes as mãos para se certificar de que conseguia senti-las. “Está tudo bem, estou preparado. Não há nada a temer”, pensou Tengo e, decidido, subiu os degraus do escorregador.
Ao chegar ao topo, sentou-se como da outra vez. O piso do escorregador estava gelado e levemente úmido. Com as mãos nos bolsos da jaqueta, encostou-se no corrimão e olhou o céu. Nuvens pairavam em profusão. Havia uma mistura de tamanhos; algumas grandes e outras pequenas. Tengo estreitou os olhos e procurou as luas. Naquele momento, estavam escondidas por trás das nuvens, nem densas nem pesadas, mas leves e brancas. Mas eram espessas o suficiente para esconder as luas. Movimentavam-se de norte a sul com lentidão. Os ventos no alto não pareciam fortes. Ou talvez as nuvens estivessem bem mais altas do que pareciam. De qualquer modo, não estavam com pressa.
Tengo olhou o relógio de pulso. Os ponteiros indicavam sete horas e três minutos, e o ponteiro dos segundos continuava a marcar de modo preciso a passagem do tempo. Aomame ainda não havia chegado. Durante alguns minutos, Tengo observou o ponteiro dos segundos como se visse algo interessante. Um tempo depois, fechou os olhos. Assim como as nuvens levadas pelo vento, ele não tinha pressa. Não havia nenhum problema se Aomame demorasse. Ele parou de pensar e decidiu se deixar levar pelo tempo. Naquele momento, o mais importante era deixar o tempo fluir naturalmente.
Ainda mantendo os olhos fechados, Tengo prestou atenção aos sons do mundo ao seu redor, como se sintonizasse uma estação de rádio. A primeira coisa que conseguiu captar foi o som intermitente dos carros passando pelo anel viário 7. Era um som que lembrava o bramido do Pacífico, que ele costumava escutar na casa de saúde de Chikura. Um bramido que sutilmente se mesclava ao canto estridente das gaivotas. Escutou, também, o som curto e repetitivo do sinalizador de ré de um caminhão de grande porte e um breve e agudo latido de advertência de um cachorro grande. Em algum lugar distante uma pessoa chamava alguém pelo nome em voz alta. Tengo não conseguia discernir de onde vinham aqueles sons. Ao permanecer durante muito tempo com os olhos fechados, perdera a noção de direção e distância. De vez em quando, soprava um vento gelado, mas ele não sentia frio. Temporariamente, Tengo havia esquecido não só de reagir ao frio como também de sentir e reagir a todos os demais estímulos e sensações.
Quando se deu conta, alguém estava ao seu lado, segurando sua mão direita. A mão parecia um ser vivo pequenino que necessitava de calor, e segurava sua mão grande, dentro do bolso da jaqueta de couro. Como se o tempo tivesse hesitado em algum momento, quando sua consciência despertou tudo já havia acontecido. Sem preliminares, as coisas haviam avançado para a etapa seguinte. “Que estranho”, pensou Tengo, ainda com os olhos fechados. “Por que será que acontece isso?” Em determinado momento, o tempo flui insinuante e insuportavelmente devagar; em outro, ele passa rápido, pulando de uma só vez várias etapas.
Esse alguém apertou firmemente a mão larga de Tengo, num gesto que parecia querer confirmar que ali havia algo de verdadeiro. Eram dedos macios e longos, que continham força em seu núcleo.
“Aomame”, pensou Tengo, mantendo os olhos fechados, sem pronunciar o nome. Apenas retribuiu, segurando sua mão. Ele se lembrava daquela mão. Nesses vinte anos, ele jamais se esquecera da sensação daquele toque. Não era mais a mão de uma criança de dez anos. Era uma mão que nesses vinte anos tocou, pegou e segurou muitas coisas. Inúmeras coisas de diferentes formas. A força nela também se tornou maior. Mas Tengo percebeu de imediato que se tratava da mesma mão. O jeito de ela segurá-lo era o mesmo, e o sentimento que ela queria transmitir também.
Naquele momento, Tengo sentiu que os vinte anos instantaneamente se fundiram, formando um redemoinho. Ao se mesclarem, todas as cenas, as palavras, os valores formaram um único pilar grosso em seu coração, e o seu núcleo passou a girar como um torno. Sem dizer nada, Tengo contemplava essa cena como uma testemunha que presencia a destruição e o renascimento de um planeta.
Aomame também permanecia em silêncio. Os dois estavam sentados no topo do escorregador gelado de mãos dadas. Voltaram a ser um menino e uma menina de dez anos. Um menino solitário e uma menina solitária. A sala, após as aulas, no início da estação de inverno. Os dois não tinham forças nem conhecimento para saber o que deveriam oferecer ao outro e o que buscavam no outro. Nunca ninguém os amou de verdade, e nunca eles amaram alguém de verdade. Nunca abraçaram alguém e nunca ninguém os abraçou. Eles não sabiam para onde aquele acontecimento os conduziria. Naquele momento, haviam dado o primeiro passo dentro de um quarto sem portas. Não podiam mais sair dali. E, tampouco, alguém poderia entrar. Naquele momento, não sabiam que aquele era o único local de absoluta plenitude existente no mundo. Um local isolado, que não podia ser manchado pela solidão.
Quanto tempo havia se passado? Cinco minutos ou uma hora? Ou o dia inteiro? Ou o tempo havia parado? O que Tengo sabia sobre o tempo? A única coisa que ele sabia era que podiam ficar para sempre em silêncio no topo do escorregador do parque infantil, de mãos dadas. Foi o que sentira aos dez anos, e agora, vinte anos depois.
Ele sabia que precisava de tempo para assimilar esse novo mundo que surgia diante dele. Precisava adaptar e reaprender todas as coisas, uma por uma: a maneira de pensar, o modo de ver as coisas, selecionar as palavras, o jeito de respirar e de mover o corpo. Para isso, precisava juntar todo o tempo existente no mundo. Não — talvez o mundo todo fosse insuficiente.
— Tengo — Aomame sussurrou em seu ouvido. Sua voz não era baixa nem alta. Era a voz que continha uma promessa. — Abra os olhos.
Tengo abriu os olhos. O tempo recomeçou a fluir no mundo.
— Lá estão as luas — disse Aomame.