18
Tengo
Quando se espeta alguém com uma agulha, sangue vermelho é derramado
— Nada aconteceu durante os três dias seguintes — disse Komatsu. — Eu comia as refeições que me eram trazidas; dormia numa cama apertada quando anoitecia e acordava ao amanhecer; fazia as necessidades num banheiro pequeno que havia no fundo do cômodo, separado por uma porta, mas sem chave. O calor de verão continuava intenso; mas, como o sistema de ventilação era acoplado ao do ar-condicionado, não cheguei a sentir calor.
Tengo escutava Komatsu em silêncio.
— As refeições eram servidas três vezes ao dia. Não sei dizer em que horário. Como eles me tiraram o relógio de pulso e o quarto não tinha janela, não havia como distinguir o dia da noite. Mesmo tentando escutar atentamente algum som, não ouvia nada. Assim como o som do quarto possivelmente não podia ser ouvido. Não sabia onde eu estava, mas tinha uma vaga impressão de que o local devia ser afastado, longe de qualquer área habitada. Enfim, fiquei três dias nesse local sem que nada acontecesse. Para falar a verdade, não posso afirmar que foram três dias. A referência que tenho é que me serviram nove refeições que eu comi na ordem em que me foram trazidas. Apagaram a luz do quarto três vezes, e dormi três vezes. O meu sono sempre foi leve e irregular, mas, não sei como, consegui dormir profundamente, sem nenhuma dificuldade. Sei que isso tudo parece muito estranho. Você está me acompanhando?
Tengo se limitou a balançar a cabeça, num gesto afirmativo.
— Não conversei com ninguém durante três dias. Quem trazia as refeições era um rapaz jovem e magro, com boné de beisebol e uma máscara branca cobrindo-lhe a boca e o nariz. Usava um conjunto de agasalho esportivo e um tênis bem sujo. Ele trazia as refeições, dispostas numa bandeja e, assim que eu terminava, voltava para recolhê-la. Os recipientes eram descartáveis, de papel, e a faca, o garfo e a colher eram de material plástico, daqueles bem vagabundos e frágeis. As refeições eram simples e consistiam de pratos prontos, conservados à vácuo. Não eram exatamente saborosos, mas também não tão ruins a ponto de serem intragáveis. A quantidade servida não era grande. Com a fome que eu sentia, comia tudo. Isso também era algo muito raro, pois normalmente eu não tinha apetite e, às vezes, até me esquecia de comer. Como bebida, me davam somente leite e água mineral. Nada de café nem chá preto. Muito menos uísque ou chope. Fumar, então, nem pensar. Mas o jeito era ter paciência. Afinal, eu não estava num resort.
Ao dizer isso, Komatsu puxou um maço de Marlboro vermelho, como se acabasse de lembrar que agora podia fumar. Pegou um cigarro, levou-o à boca e o acendeu com um fósforo. Tragou a fumaça tranquilamente, soltou-a e franziu as sobrancelhas.
— O rapaz que trazia as refeições não falava nada. Provavelmente, por ordens superiores, fora expressamente instruído a não conversar comigo. Não há dúvidas de que ele era um tipo de ajudante, um subalterno dentro da organização. Mas, a contar por sua forma física, ele certamente conhecia algum tipo de arte marcial.
— Você não tentou conversar com ele?
— Não. Eu já imaginava que ele não responderia às minhas perguntas. Por isso, fiquei de boca fechada. Comia as refeições que ele trazia, bebia leite, dormia quando apagavam a luz e acordava quando a luz era novamente acesa. Logo pela manhã, o rapaz trazia um barbeador elétrico e uma escova de dentes. Eu fazia a barba, escovava os dentes e, assim que terminava, ele os recolhia. A única coisa que ficava no quarto, e que poderia ser chamado de objeto, era o rolo de papel higiênico. Não havia nada além disso. Não pude tomar banho nem trocar de roupa, mas confesso que essas coisas nem me passaram pela cabeça. Não havia espelho, mas isso também era o de menos. O que mais me incomodava era o tédio. Afinal, ficar sozinho, sem falar com ninguém, preso num cubículo branco dia e noite, só pode ser entediante. Sou uma pessoa viciada em letra impressa e só consigo me acalmar quando tenho alguma coisa escrita ao alcance das mãos. Qualquer coisa, até mesmo o cardápio do serviço de quarto. No entanto, não havia livros nem jornais, e tampouco revistas. Não havia televisão, rádio nem jogos. Nem alguém para conversar. A única coisa que eu podia fazer era ficar em silêncio, sentado na cama olhando o chão, as paredes e o teto. Era uma sensação muito estranha. Afinal, eu estava andando na rua quando, de repente, uns caras que nunca vi na vida me pegaram, me fizeram cheirar clorofórmio e me prenderam naquele quarto esquisito, pequeno e sem janelas. Era tudo muito estranho. E o tédio que eu sentia era tanto que achei que fosse enlouquecer.
Komatsu fitou comovido a fumaça do cigarro que segurava entre os dedos. Um tempo depois, bateu as cinzas no cinzeiro.
— Acho que me deixaram três dias naquele quarto com a intenção de me desestabilizar emocionalmente. Devem ser peritos nesse assunto. Sabem exatamente o que fazer para abalar os nervos de uma pessoa e torná-la vulnerável. No quarto dia, isto é, após o quarto café da manhã, apareceram dois homens. Desconfio que tenham sido eles que me abordaram e me raptaram naquele dia. Como me pegaram de surpresa e eu não sabia direito o que estava acontecendo, nem tive tempo de olhar para o rosto deles, mas, ao vê-los diante de mim, as recordações daquele dia começaram a surgir. Lembrei que fui empurrado para dentro do carro e que me torceram os braços com tamanha força que pensei que fossem arrancá-los. Depois me fizeram cheirar um pano embebido em algo. Enquanto faziam isso, os dois não disseram uma única palavra. Isso tudo aconteceu num piscar de olhos.
Ao se lembrar disso, Komatsu franziu levemente as sobrancelhas.
— Um deles não era muito alto, mas era robusto e tinha o cabelo cortado rente. Era bem bronzeado e as maçãs do rosto eram salientes. O outro era alto, com os braços e as pernas compridas, as bochechas chupadas, e mantinha os cabelos presos num rabo de cavalo. Os dois, lado a lado, pareciam uma dupla de comediantes. Um magricela e outro robusto, com cavanhaque. A impressão que eu tive era de que esses caras eram muito perigosos. Do tipo que, se fosse preciso, seriam capazes de fazer qualquer coisa, sem titubear. Mas suas ações não eram chamativas. O fato de eles serem discretos e calmos me deu muito mais medo. Os olhares eram extremamente frios. Ambos vestiam calças pretas de algodão e camisas brancas de manga curta. Aparentavam ter entre vinte e cinco e trinta anos. O de cabelo rente parecia ser o mais velho. Nenhum dos dois usava relógio.
Tengo aguardou em silêncio a continuação da história.
— Quem conversava comigo era o rapaz de cabelo rente. O rapaz magro, de rabo de cavalo, não abria a boca nem se mexia, ficava em pé diante da porta. Ele parecia estar prestando atenção na conversa, mas, ao mesmo tempo, era como se não escutasse nada. O rapaz de cabelo rente sentou-se na cadeira dobrável que trouxera consigo, bem à minha frente. Como não havia nenhuma outra cadeira, fiquei sentado na cama. Ele era uma pessoa inexpressiva. É claro que para falar comigo ele precisava mexer a boca, mas as outras partes de seu rosto ficavam totalmente imóveis. Parecia um boneco de ventríloquo.
A primeira coisa que o rapaz de cabelo rente perguntou para Komatsu foi:
— Você sabe por que foi trazido para cá, quem somos nós e onde você está?
Komatsu respondeu que não tinha ideia. O rapaz de cabelo rente o fitou por um tempo, com um olhar sem profundidade. Em seguida, indagou:
— Se você fosse obrigado a levantar uma hipótese, o que diria? — apesar de ele usar um vocabulário formal e educado, soava forçado, nada espontâneo. Sua voz era extremamente dura e fria, como uma régua de metal que ficou na geladeira durante muito tempo.
Komatsu hesitou um pouco diante da pergunta, mas, como estava sendo forçado a respondê-la, arriscou que estava ali por causa da Crisálida de ar. Em parte, era o que ele realmente achava e, além disso, não conseguia pensar em nenhuma outra razão. E Komatsu desconfiava de que aqueles rapazes pertenciam ao grupo religioso de Sakigake e que o local para onde o haviam levado era a sede deles. Uma hipótese que Komatsu formulou desde o início.
O rapaz de cabelo rente não confirmou nem negou a hipótese de Komatsu. Ele apenas fitou-o em silêncio. Komatsu se calou.
— Vamos então conversar com base nessa sua hipótese — disse o rapaz. — Está bem?
— Tudo bem. — respondeu Komatsu. Eles estavam tentando tocar indiretamente no assunto. Isso era um bom sinal. Se não tivessem a intenção de deixá-lo vivo, não teriam o trabalho de fazer esse tipo de abordagem.
— Você é um editor contratado por uma empresa e foi o responsável pela publicação do romance Crisálida de ar, de Eriko Fukada. Estou certo?
Komatsu confirmou a informação que, de certa forma, era de conhecimento público.
— É de nosso conhecimento que a Crisálida de ar ganhou o concurso de revelação de novos autores de uma revista literária, por meio de uma fraude. O original enviado para o concurso foi em grande parte alterado e reescrito por uma terceira pessoa sob o seu comando, antes de ser encaminhado para a comissão julgadora. O texto, sigilosamente reescrito, ganhou o prêmio, chamou a atenção do público, foi editado e tornou-se um best-seller. Estou certo?
— Isso depende do ponto de vista — replicou Komatsu. — Há casos em que o autor, por sugestão do editor, reescreve parte do texto...
O rapaz de cabelo rente ergueu a palma da mão na direção de Komatsu, para que se calasse. — Quando o autor mexe em seu próprio texto, por sugestão do editor, não é um ato ilícito. Você tem razão. Mas contratar uma terceira pessoa para reescrever uma obra, com o objetivo de ganhar um prêmio literário, é uma atitude que, de uma forma ou de outra, só pode ser considerada desonesta. Além disso, você abriu uma empresa fantasma para distribuir os lucros obtidos com as vendas do livro. Não sei como isso será interpretado pela lei, mas creio que, em termos sociais e morais, essa atitude será severamente censurada. Não há justificativas para o que vocês fizeram. Os jornais e as revistas vão tratar o assunto com tremendo alvoroço, e a sua empresa cairá em descrédito. Você deve estar ciente disso. Nós temos informações detalhadas e provas concretas sobre o fato e, a qualquer momento, podemos torná-las públicas. Por isso, acho melhor você não ficar tentando dar justificativas infundadas. Não pense que isso irá nos convencer. Será uma perda de tempo.
Komatsu concordou, balançando a cabeça.
— Se isso acontecer, certamente você não só terá de deixar a empresa como também será excluído do meio literário. Todas as portas irão se fechar. Pelo menos, nos meios legais.
— Acho que sim — concordou Komatsu.
— Mas por enquanto poucas pessoas sabem disso — disse o rapaz de cabelo rente. — Você, Eriko Fukada, o professor Ebisuno e Tengo Kawana, o responsável por reescrever a obra. Além de vocês, somente mais algumas pessoas.
Komatsu disse, escolhendo cuidadosamente as palavras:
— De acordo com a hipótese que estamos levando em consideração, essas poucas pessoas a que você se refere seriam, por acaso, pessoas que pertencem ao grupo religioso Sakigake?
O rapaz de cabelo rente acenou discretamente. — Se levarmos em consideração essa nossa hipótese, pode-se dizer que sim, mas isso não vem ao caso.
O rapaz fez uma breve pausa para aguardar que Komatsu assimilasse a informação. E prosseguiu:
— Se essa sua hipótese estiver correta, enquanto você estiver aqui, eles podem fazer o que quiserem com você. Podem tratá-lo como um hóspede ilustre, e deixá-lo preso neste quarto o tempo que quiserem. Para eles, isso não é algo que lhes dê muito trabalho. Por outro lado, se eles acharem melhor encurtar o tempo de sua estadia, certamente pensarão em outras saídas. Algumas delas certamente não são agradáveis. De qualquer modo, eles possuem poder e meios para fazer o que acharem melhor. Quanto a isso, creio que você já deve estar ciente.
— Acho que sim — respondeu Komatsu.
— Ótimo — disse o rapaz de cabelo rente.
O rapaz de cabelo rente levantou um dedo sem dizer nada, e no mesmo instante o de rabo de cavalo deixou o quarto. Pouco depois, voltou com um aparelho telefônico. Conectou o cabo no ponto localizado no chão e entregou o fone para Komatsu. O rapaz de cabelo rente pediu para Komatsu ligar para a editora.
— Diga que você está muito gripado e que esteve de cama, com febre. Avise que, por enquanto, você não vai poder trabalhar. Em seguida, desligue o telefone.
Komatsu mandou chamar um colega, transmitiu rapidamente o que precisava dizer e, sem responder às perguntas, desligou o telefone. Ao sinal de aprovação do rapaz de cabelo rente, o de rabo de cavalo desconectou o telefone e saiu, levando consigo o aparelho. O de cabelo rente observou-o durante um tempo, como se estivesse examinando o dorso de suas próprias mãos. Em seguida, voltou-se para Komatsu e disse:
— Por hoje, é só — sua voz, agora, denotava um tom um pouco mais cordial. — Vamos continuar num outro dia. Enquanto isso, reflita sobre a nossa conversa de hoje.
Os dois saíram do quarto. Nos próximos dez dias, Komatsu permaneceu sozinho e em silêncio naquele quarto apertado. Três vezes ao dia, o mesmo jovem, com a máscara, trazia-lhe as refeições não muito apetitosas. No quarto dia, trouxeram-lhe um conjunto de pijama de algodão para se trocar, mas só o deixaram tomar banho no último dia. Durante o período em que esteve lá, Komatsu lavava o rosto na pequena pia do banheiro. A noção do tempo foi ficando cada vez mais incerta.
Komatsu tinha a impressão de que estava na sede do grupo Sakigake, em Yamanashi. Ele havia visto a imagem do local num noticiário da TV. Era totalmente cercado por muros, no meio das montanhas, como se fosse um reino independente. Seria impossível fugir ou pedir socorro. Se ele fosse morto (esse seria provavelmente o significado da saída não muito agradável, mencionada pelo rapaz de cabelo rente), jamais encontrariam seu corpo. Era a primeira vez na vida que Komatsu sentia a morte tão real, tão próxima.
Dez dias depois de ele telefonar para a empresa (provavelmente foram dez dias, mas ele não tinha certeza), finalmente os dois reapareceram. O rapaz de cabelo rente parecia um pouco mais magro que da vez anterior e, por isso, seus maxilares estavam ainda mais proeminentes. Os olhos, gélidos, agora estavam vermelhos. Ele sentou-se na cadeira dobrável que trazia consigo, como da vez anterior, e ficou de frente para Komatsu, com a mesa entre eles. Durante um bom tempo, não disse nada. Apenas fitava Komatsu com aqueles olhos vermelhos.
A aparência do rapaz de rabo de cavalo não havia mudado. Como da vez anterior, ele ficou em pé, com as costas eretas, perto da porta e, com o olhar inexpressivo, observava atentamente um ponto no espaço vazio. Ambos vestiam calças pretas e camisas brancas. Provavelmente, era o uniforme deles.
— Vamos continuar a nossa conversa — disse o rapaz de cabelo rente. — Ela foi interrompida depois de falarmos que eles podiam fazer o que quisessem com você enquanto estiver aqui, não é?
Komatsu concordou. — E que poderiam pensar em uma saída que, certamente, não seria agradável.
— Você tem uma ótima memória — disse o rapaz de cabelo rente. — Isso mesmo. Não descartamos a possibilidade de escolher uma saída não muito agradável.
Komatsu manteve-se em silêncio. O rapaz de cabelo rente prosseguiu:
— Mas isso é uma solução estritamente teórica. Na prática, eles não querem optar por essa alternativa tão extremista. Se você sumir, de repente, a situação ficará inevitavelmente mais complexa. Foi o que aconteceu com o desaparecimento de Eriko Fukada. Não haveria muitas pessoas tristes caso você desaparecesse, mas você é muito respeitado como editor, e muito conhecido nos meios literários. E, certamente, sua ex-mulher não vai ficar quieta se você deixar de pagar a pensão alimentícia. Esse tipo de desdobramento não é muito agradável para eles.
Depois de uma tosse seca, Komatsu engoliu a saliva.
— Saiba que a intenção deles não é criticá-lo ou puni-lo. Eles sabem que a publicação da Crisálida de ar não foi planejada para atacar um grupo religioso específico. No começo, vocês sequer sabiam que existia uma relação entre a Crisálida de ar e o grupo religioso. Desde o início, você planejou essa fraude meio que por brincadeira, meio que por ambição. Com o tempo, o plano passou a envolver uma considerável soma de dinheiro. Para um simples assalariado, e divorciado, não deve ser fácil pagar a pensão das crianças. Ainda por cima, você envolveu nesse plano um professor de uma escola preparatória e aspirante a escritor, que desconhecia totalmente o quadro geral. O plano em si era simples e divertido, mas a escolha da obra e da parceria é que foi infeliz. Por isso, seu plano inicial tomou uma proporção muito maior do que você imaginava. Vocês são como os civis que, por engano, ficam na linha de frente e acabam entrando num campo minado. Não conseguem seguir adiante nem retroceder. Não é isso, senhor Komatsu?
— Será que é isso mesmo? — respondeu Komatsu, de modo ambíguo.
— Pelo visto, você ainda não sabe de muitas coisas — disse o rapaz de cabelo rente, estreitando sutilmente os olhos que fitavam Komatsu. — Se soubesse, não falaria desse modo leviano, como se isso não lhe dissesse respeito. Vamos deixar a situação bem clara. Saiba que você está realmente num campo minado.
Komatsu concordou, sem dizer nada.
O rapaz de cabelo rente fechou os olhos por alguns instantes e os abriu novamente. — Vocês estão em apuros, mas eles também estão enfrentando graves problemas.
Komatsu resolveu tomar coragem: — Posso fazer uma pergunta?
— Se eu puder responder.
— Ao publicar a Crisálida de ar, nós causamos alguns problemas a esse grupo religioso. É isso?
— Não foram poucos os problemas — disse o rapaz de cabelo rente, contorcendo levemente o rosto. — A voz deixou de falar com eles. Você entende o que isso significa?
— Não — disse Komatsu, com o tom de voz seco.
— Não faz mal, eu também não pretendo entrar em detalhes e creio que seja melhor que você não saiba. O que posso dizer é que a voz deixou de falar com eles. — O rapaz de cabelo rente fez uma pausa e prosseguiu: — Essa situação desagradável ocorreu quando a Crisálida de ar foi publicada.
Komatsu indagou: — Eriko Fukada e o professor Ebisuno previam essa situação desagradável quando resolveram publicar a Crisálida de ar?
O rapaz de cabelo rente balançou a cabeça num gesto negativo. — Não. Creio que o professor Ebisuno não sabia dessas implicações. Quanto a Eriko Fukada, desconhecemos o que ela planejava. Mas achamos que essa ação não foi intencional. Caso tenha havido algum plano, não deve ter sido dela.
— As pessoas acham que a Crisálida de ar é apenas uma história de fantasia — disse Komatsu. — Fantasia inocente, escrita por uma garota do colegial. Para falar a verdade, alguns a criticaram, dizendo que a história era surreal demais. Ninguém desconfiou que o livro ocultava algum segredo importante ou revelava alguma informação concreta em suas páginas.
— Você tem razão — disse o rapaz de cabelo rente. — A maioria não percebeu nada. Mas a questão não é essa. Esse segredo não poderia ser revelado publicamente sob forma nenhuma.
O rapaz de rabo de cavalo mantinha-se, como sempre, diante da porta, olhando a parede à frente, como se pudesse enxergar uma paisagem além dela, que ninguém mais era capaz de ver.
— O que eles querem é trazer de volta aquela voz — disse o rapaz de cabelo rente, escolhendo as palavras. — O veio de água não secou. Apenas está oculto num local profundo, que não podemos ver. Fazer com que esse veio ressurja não é tarefa fácil, mas também não é algo impossível.
O rapaz de cabelo rente fixou seus olhos nos de Komatsu. Parecia estar medindo a profundidade de alguma coisa dentro deles. Como se medisse um móvel para ver se caberia num determinado espaço do quarto.
— Como eu já lhe disse antes, vocês estão no meio de um campo minado. Não podem prosseguir nem retroceder. A única coisa que eles podem fazer por vocês é ajudá-los a sair desse lugar com segurança. Eles podem ensinar o caminho. Só assim vocês poderão sair desse lugar com vida, e eles podem se livrar pacificamente dos incômodos intrusos.
O rapaz de cabelo rente cruzou os braços.
— Gostaríamos que aceitasse essa nossa proposta. Para eles, tanto faz se vocês vão explodir em mil pedaços ou não, mas provocar um estrondo nesse momento trará muitos incômodos para eles. Por isso, senhor Komatsu, vamos lhe ensinar o caminho de fuga. Ficaremos na retaguarda e os conduziremos até um local seguro. Em troca, o que queremos de você é que pare de publicar a Crisálida de ar. Não faça mais reimpressões ou edições de bolso. É claro que isso inclui não veicular novos anúncios. De agora em diante, vai cortar as relações com Eriko Fukada. O que me diz? Creio que isso é algo que você pode fazer.
— Não vai ser fácil, mas posso tentar. Talvez eu consiga — disse Komatsu.
— Senhor Komatsu, nós não o trouxemos até aqui para que a conversa fique no nível do talvez — os olhos do rapaz de cabelo rente ficaram ainda mais vermelhos, e o olhar ainda mais penetrante. — Não estamos pedindo para que retire todos os livros que estão em circulação. Se fizer isso, a mídia certamente vai se alvoroçar. Também sabemos que você não tem tanto poder a ponto de conseguir fazer isso. O que estamos pedindo é que tente resolver as coisas discretamente. O que já foi feito não tem jeito. Uma coisa danificada nunca mais volta a ser como antes. O que eles desejam é que o livro não chame mais a atenção do público. Está me entendendo?
Komatsu assentiu, demonstrando que havia entendido.
— Como eu já lhe disse anteriormente, senhor Komatsu, vocês também possuem alguns fatos que, caso sejam revelados ao público, trarão inúmeras repercussões. Se eles forem divulgados, todos os envolvidos serão punidos pela sociedade. Por isso, para o bem de todos, propomos firmar um tratado de paz. Eles não vão responsabilizá-los sobre o que ocorrer a partir daqui. Garantimos a segurança de todos. E vocês, por outro lado, não vão mais se envolver com assuntos relacionados à Crisálida de ar. Não é um acordo tão ruim, é?
Komatsu pensou a respeito: — Está bem. Quanto à publicação da Crisálida de ar, assumo o compromisso de interrompê-la. Vou precisar de um tempo, mas sei que vou achar uma maneira de suspender as impressões. E, por mim, posso esquecer completamente o assunto. Creio que Tengo Kawana fará o mesmo. Desde o início, ele não queria participar disso. Eu é que o forcei. O trabalho dele já está concluído. Quanto a Eriko Fukada, creio que também não haverá nenhum problema. Ela mesma disse que não tinha nenhuma intenção de continuar a escrever. Só não posso dizer o mesmo em relação ao professor Ebisuno. O que ele realmente quer saber é se o amigo dele, Tamotsu Fukada, está bem, onde está e o que está fazendo. Não importa o que eu diga, ele vai continuar buscando essas informações.
— O senhor Tamotsu Fukada faleceu — disse o rapaz de cabelo rente. A voz dele era desprovida de emoção e o tom era sereno, mas continha algo de pesaroso.
— Faleceu? — indagou Komatsu.
— Aconteceu recentemente — respondeu o rapaz de cabelo rente. Depois, respirou fundo e soltou lentamente o ar. — Ele sofreu um ataque do coração. Uma morte instantânea que, aparentemente, não o fez sofrer. Devido a certas circunstâncias, o registro de óbito ainda não foi emitido, e o funeral foi realizado secretamente na sede. Por motivos religiosos, o corpo foi cremado, e os ossos triturados foram espalhados nas montanhas. Legalmente falando, trata-se de um crime contra o respeito aos mortos, mas creio que seja difícil instaurar um processo judicial contra nós. Mas essa é a verdade. Jamais mentimos sobre assuntos que envolvem a vida e a morte de uma pessoa. Por favor, informe o ocorrido ao professor Ebisuno.
— Foi uma morte natural?
O rapaz de cabelo rente assentiu, balançando veementemente a cabeça. — O senhor Fukada era uma pessoa extremamente importante para nós. Não; falar que era extremamente importante é pouco para se referir a um ser tão grandioso. Poucas pessoas sabem de sua morte, e todas lamentam, e muito, o ocorrido. A esposa dele, isto é, a mãe de Eriko Fukada, morreu de câncer de estômago alguns anos atrás. Ela faleceu no ambulatório da sede, recusando-se a fazer quimioterapia. O marido dela, o senhor Tamotsu, foi quem cuidou dela até seu falecimento.
— Nesse caso, o registro de óbito também não foi emitido? — indagou Komatsu.
Não houve resposta.
— E o senhor Tamotsu Fukada morreu recentemente.
— Isso mesmo — disse o rapaz de cabelo rente.
— Ele morreu depois da Crisálida de ar ser publicada?
O rapaz de cabelo rente olhou para a mesa e, ao erguer o rosto, fitou novamente Komatsu. — Isso mesmo. O senhor Fukada morreu após a publicação da Crisálida de ar.
— Há alguma relação de causa e efeito entre esses fatos? — perguntou Komatsu, sem titubear.
O rapaz de cabelo rente manteve-se em silêncio durante um tempo. Parecia organizar os pensamentos para responder à pergunta. Um tempo depois, disse com determinação: — Tudo bem. Para convencer o professor Ebisuno, acho melhor esclarecer os fatos. Para falar a verdade, Tamotsu Fukada era o Líder do grupo religioso (e aquele que escutava as vozes). Quando sua filha, Eriko Fukada, publicou a Crisálida de ar, as vozes deixaram de falar com ele. Por isso, o senhor Fukada resolveu pôr um fim a sua própria vida. E essa morte foi natural. O correto seria dizer que ele pôs fim à vida de modo espontâneo.
— Eriko Fukada é a filha do Líder — disse Komatsu, num murmúrio.
O rapaz balançou a cabeça de modo rápido e breve, num gesto afirmativo.
— Quer dizer que Eriko Fukada levou o pai à morte — prosseguiu Komatsu.
O rapaz concordou novamente — Isso mesmo.
— Mas o grupo religioso ainda existe.
— O grupo religioso existe — respondeu o rapaz de cabelo rente, com olhos que pareciam pequenas pedras antigas congeladas nas profundezas de uma geleira.
— A publicação da Crisálida de ar trouxe muitos infortúnios ao grupo. Mas eles não pretendem castigá-los por isso. Em parte, porque castigá-los não trará nenhuma vantagem. Eles possuem uma missão a cumprir e, para isso, é preciso que haja um isolamento silencioso.
— É por isso que vocês estão nos propondo voltar atrás e esquecer tudo o que aconteceu.
— Dito de modo simples, é isso.
— Mas vocês precisavam me raptar para dizer isso?
Pela primeira vez, o rapaz de cabelo rente esboçou no rosto algo que lembrava uma expressão. Uma sutil expressão que denotava um sentimento intermediário entre humor e simpatia. — O motivo de nos darmos ao trabalho de trazê-lo até aqui foi para lhe transmitir o quanto eles estavam levando esse assunto a sério. Não queríamos agir de modo tão drástico, mas, quando a situação exige, não hesitamos em fazê-lo. Queríamos que você sentisse isso na pele. Se vocês quebrarem o acordo, poderão acontecer coisas não muito agradáveis. Creio que você já entendeu, certo?
— Entendi — disse Komatsu.
— Para falar a verdade, vocês tiveram sorte. A intensa névoa cobria-lhes a visão a ponto de vocês não conseguirem enxergar direito o entorno, mas, na verdade, vocês estavam a um passo do precipício. Acho melhor não se esquecerem disso. Como subordinado, posso assegurá-lo de que eles não estão com tempo de se ocuparem com vocês. Eles precisam resolver alguns problemas muito mais importantes. Nesse sentido, vocês também tiveram sorte. Por isso, faça com que essa sorte continue ao seu lado.
Após dizer isso, o rapaz virou as palmas para cima, como se estivesse verificando se chovia. Komatsu aguardou a continuação da conversa. Em vão. Uma expressão de exaustão esboçou-se no rosto do rapaz de cabelo rente. Ele levantou-se da cadeira, dobrou-a, colocou-a debaixo do braço e, sem se voltar para trás, deixou o cubículo. A porta pesada se fechou e o barulho da tranca reverberou no quarto. Komatsu ficou sozinho.
— Fiquei mais quatro dias preso naquele cubículo. O que havia de importante para conversarmos, já havia sido dito. O assunto foi tratado e firmamos um acordo. O que eu não conseguia entender era por que eu continuava preso. Aqueles dois rapazes nunca mais apareceram e o jovem continuou trazendo as refeições, sem abrir a boca. Continuei a comer aquela comida sem graça, a fazer a barba com o barbeador elétrico e olhar o teto e as paredes para passar o tempo. Quando apagavam a luz eu dormia e, quando a acendiam, eu acordava. Fiquei ruminando o que o rapaz de cabelo rente me disse. O que mais me tocou foi o fato de ele me dizer que nós tivemos sorte. Ele tinha razão. Eles são capazes de fazer o que quiserem. Uma vez decidido, eles podem agir de modo extremamente cruel. É isso que senti enquanto estive preso. O objetivo deles, certamente, deve ter sido esse. Por isso é que, após a conversa que tivemos, eles fizeram questão de me deixar mais quatro dias preso naquele lugar. É um pessoal muito meticuloso.
Komatsu pegou o copo e bebeu seu uísque com soda.
— Me fizeram cheirar novamente o clorofórmio e, quando acordei, amanhecia. Eu estava dormindo no banco do jardim do Santuário Meiji Jingu. Como estávamos em meados de setembro, as manhãs eram relativamente frias. Não é para menos que fiquei realmente gripado. Creio que isso não foi intencional, mas nos três dias seguintes tive febre e fiquei de cama. Mas devo considerar que tive sorte de só pegar uma gripe.
A história de Komatsu parecia ter terminado e foi então que Tengo indagou: — Você contou essa história para o professor Ebisuno?
— Sim. Após ser libertado e dias depois de minha febre baixar, fui até a casa dele no alto da montanha. Contei ao professor mais ou menos a mesma história que acabei de lhe contar.
— O que ele disse?
Komatsu bebeu o último gole de uísque e pediu mais um. Recomendou a Tengo que também pedisse outro, mas este recusou, balançando a cabeça.
— O professor Ebisuno me fez contar a história várias vezes e me fez várias perguntas detalhadas. O que eu sabia, respondi. Quando necessário, eu conseguia repetir a mesma história várias vezes. Afinal, após conversar com o rapaz de cabelo rente, fiquei quatro dias sozinho, trancado naquele quarto. Não tinha ninguém com quem conversar, e tempo era o que eu tinha de sobra. Por isso, pude refletir sobre o que aquele rapaz me disse e, com isso, consigo me lembrar perfeitamente de todos os detalhes da conversa que tivemos. Isso sim é que é se tornar um gravador humano.
— Mas a morte dos pais da Fukaeri é apenas uma desculpa que eles inventaram, não é? — perguntou Tengo.
— Creio que sim. Isso é o que eles alegam, pois não temos como comprovar a veracidade dos fatos. Não foi emitido o atestado de óbito. Mas, do jeito que aquele rapaz de cabelo rente disse, tive a impressão de que ele não estava inventando aquilo. Ele próprio chegou a dizer que, para eles, questões relacionadas à vida e à morte são sagradas. Assim que contei a história, o professor Ebisuno ficou durante um bom tempo em silêncio, pensando. Ele é uma pessoa que realmente pensa nas coisas com tempo e profundidade. Depois, sem dizer nada, levantou-se e só retornou após muito tempo. De certa forma, tive a impressão de que o professor tentava se conformar com a morte dos dois. Talvez, no fundo, ele já previsse isso e, portanto, precisasse de um tempo para se conformar com o fato. Quando somos informados de que nossos amigos não estão mais neste mundo, isso certamente provoca uma grande ferida em nosso coração.
Tengo lembrou-se daquela sala grande e sem adornos, do frio intenso e do silêncio, do canto agudo dos pássaros que, de vez em quando, ecoava pela janela. — No final, resolvemos recuar e bater em retirada do campo minado? — indagou Tengo.
Uma nova dose de uísque com soda foi trazida. Komatsu umedeceu a boca com a bebida.
— O professor Ebisuno disse que precisava de um tempo para pensar e, de imediato, não quis comentar nada. Mas, afinal, que outra opção haveria a não ser fazer o que os caras disseram? Eu comecei a agir sem perder tempo. Na empresa, fiz de tudo para suspender a reimpressão da Crisálida de ar, fazendo com que a edição se esgotasse. A edição de bolso também foi suspensa. A quantidade de livros vendidos foi grande e a editora já havia faturado muito. A editora em si não teria nenhum prejuízo com a suspensão do título. É claro que a coisa não foi tão simples, pois tive de realizar reuniões e ter a aprovação do presidente. Mas, quando revelei que havia a possibilidade de vir a público que o livro foi redigido por um ghost-writer, e ressaltei o tremendo escândalo que isso provocaria, os meus superiores tremeram na base e acabaram cedendo. Desde então, passaram a seguir as minhas instruções. De agora em diante, sei que a empresa vai me tratar friamente, mas isso é o de menos; já estou acostumado com esse tipo de coisa.
— Quer dizer que o professor Ebisuno aceitou a informação de que os pais de Fukaeri morreram, sem contestar?
— Possivelmente — disse Komatsu. — Acho que ele precisava de um tempo para assimilar e aceitar a morte do casal como um fato real. Na minha opinião, aqueles caras não estão blefando. Acho que resolveram ceder um pouco para evitar problemas ainda mais graves. Isso explica por que agiram de modo tão violento ao me sequestrar. Eles queriam ter a certeza absoluta de que nós entenderíamos a mensagem. Para transmitir o recado, eles não precisariam revelar que os corpos do casal Fukada foram secretamente cremados dentro da propriedade do grupo religioso. Por mais que seja difícil levantar provas, a profanação de cadáver é crime. No entanto, eles fizeram questão de revelar isso. Certamente, colocaram as cartas na mesa com a intenção de exibir sua astúcia. É por isso que sou da opinião de que grande parte do que o rapaz de cabelo rente disse é verdade. Não tanto em relação aos detalhes, mas em termos gerais.
Tengo organizou mentalmente o que Komatsu lhe dissera. — O pai de Fukaeri era quem ouvia a voz. Ou seja, ele era uma espécie de profeta. Mas quando a filha dele, Fukaeri, escreveu a Crisálida de ar, e o livro se tornou um best-seller, a voz deixou de falar com ele e, em função disso, ele teve uma morte natural.
— Ou ele naturalmente quis pôr um fim a sua própria vida — disse Komatsu.
— Para o grupo religioso, encontrar um novo profeta tornou-se a missão mais importante a ser cumprida. Se a voz deixou de se pronunciar, o grupo perdeu a base de sua existência. É por isso que eles não têm mais interesse em nós. Em resumo, é isso, não?
— Provavelmente.
— Eles dizem que a Crisálida de ar contém inúmeras informações importantes e que, assim que a obra foi impressa e divulgada, a voz se silenciou e a fonte se ocultou nas profundezas da terra. Mas o que vem a ser exatamente essa tal informação importante?
— Nos últimos quatro dias em que estive preso, pensei muito a respeito disso — disse Komatsu. — A Crisálida de ar não é um livro muito volumoso. É a história de um mundo em que o Povo Pequenino aparece e desaparece. Uma menina de dez anos, a protagonista, vive numa comunidade isolada. O Povo Pequenino surge durante a noite e, secretamente, constrói uma crisálida de ar. No interior dessa crisálida surge o alter ego da menina e, a partir de então, nasce a relação maza e dohta. Nesse mundo, duas luas pairam no céu. Uma grande e outra pequena, ou seja, simbolicamente representam a maza e a dohta. Na história, a protagonista — que deve ser a própria Fukaeri — rejeita sua função como maza e foge da comunidade, deixando para trás a dohta. No romance, não sabemos o que aconteceu com a dohta.
Tengo ficou um bom tempo observando o gelo que derretia dentro do copo.
— “Quem escuta a voz” precisa da intermediação da dohta — disse Tengo. — É através da dohta que a pessoa consegue escutar a voz. Ou melhor, é a dohta que traduz a voz em palavras compreensíveis. Para interpretar corretamente a mensagem que essa voz transmite, é necessário que ambas estejam juntas. Se tomarmos emprestado as palavras de Fukaeri, o receptor e o perceptivo precisam estar juntos. E, para isso, a primeira coisa a fazer é a crisálida de ar, pois é através dela que nasce a dohta. E para fazer a dohta é necessário uma maza apropriada.
— Essa é a sua interpretação.
Tengo balançou a cabeça. — Não é bem uma interpretação. Apenas pensei nisso enquanto ouvia o resumo da história que você acabou de contar.
Tengo sempre tentou entender o significado de maza e dohta, não só enquanto reescrevia o romance, como também depois de terminada a tarefa, mas faltava-lhe a visão do conjunto. Enquanto conversava com Komatsu, as peças começaram a se encaixar, apesar de ainda restar uma dúvida: Por que apareceu uma crisálida de ar no leito hospitalar de seu pai e, dentro dela, a menina Aomame?
— Realmente, é um conjunto de elementos muito interessante — disse Komatsu. — Mas não seria um problema para a maza ficar longe de sua dohta?
— Sem a dohta, possivelmente a maza não se torna um ser completo. Assim como no caso da Fukaeri que nós conhecemos, é difícil determinar exatamente o que, mas sabemos que lhe falta algo. Ela parece uma pessoa que perdeu sua própria sombra. Eu não saberia dizer o que acontece com uma dohta que não possui a maza. Mas acho que ela também não é um ser completo, porque a dohta é apenas o alter ego da pessoa. Mas, no caso de Fukaeri, acho que a dohta conseguia cumprir sua função de médium mesmo sem a presença da maza.
Komatsu mantinha os lábios cerrados e levemente arqueados. Um tempo depois, indagou: — Tengo, por acaso você acha que tudo o que está escrito na Crisálida de ar realmente aconteceu?
— Não é isso. Estou apenas levantando uma hipótese. Imagino que aquilo realmente aconteceu e analiso os desdobramentos com base nessa suposição.
— Está bem — disse Komatsu. — Então quer dizer que o alter ego de Fukaeri cumpre a função de médium, apesar de estar distante de seu corpo.
— É por isso que o grupo religioso não faz questão de trazê-la de volta à força, mesmo sabendo onde ela está. No caso dela, a dohta cumpre sua função mesmo sem a maza por perto. Mesmo à distância, existe uma ligação muito forte entre elas.
— Realmente.
Tengo prosseguiu: — Acho que eles possuem várias dohtas. Na medida do possível, o Povo Pequenino deve criar várias crisálidas de ar. Ter apenas um elemento perceptivo deve deixá-los numa situação instável. Ou talvez as dohtas capazes de cumprir corretamente essa função perceptiva sejam de fato muito poucas. Pode ser que exista uma dohta central, mais forte, e as demais, não tão fortes, são apenas secundárias; razão pela qual elas devem trabalhar em conjunto.
— Está dizendo que a dohta que Fukaeri deixou na sede é a dohta central que cumpre corretamente essa função perceptiva?
— Acho que essa possibilidade é forte. Temos de reconhecer que Fukaeri sempre esteve no centro dos acontecimentos, como se fosse o olho do furacão.
Komatsu estreitou os olhos e entrelaçou os dedos sobre a mesa. Quando ele queria, era capaz de concatenar os pensamentos com perspicácia.
— Tengo, andei pensando numa hipótese. Será que a Fukaeri que conhecemos é a dohta, e quem ficou lá é a maza?
A questão de Komatsu deixou Tengo ressabiado. Ele nunca havia pensado nisso. Para Tengo, Fukaeri sempre foi um ser único. Mas a hipótese de Komatsu lhe pareceu pertinente. “Eu não tenho menstruação, por isso não há o perigo de engravidar”, foi o que ela lhe disse naquela noite, após a estranha relação sexual que tiveram. Se ela realmente é apenas o seu alter ego, aquilo que ela disse fazia sentido. O alter ego não pode se reproduzir. Somente a maza é capaz disso. No entanto, essa era uma hipótese que Tengo não conseguia aceitar: a possibilidade de ele ter mantido uma relação sexual com o alter ego de Fukaeri.
Tengo disse: — Fukaeri possui uma personalidade bem marcante. E um padrão de comportamento peculiar. O alter ego possivelmente não possui essas particularidades.
— Realmente — concordou Komatsu. — Você tem razão. Fukaeri possui uma personalidade e um padrão de comportamento próprios. Não tenho como negar.
Mesmo assim, Tengo tinha a impressão de que Fukaeri escondia algum segredo. Aquela linda garota possuía um código secreto muito importante, que ele precisava desvendar. Quem era a verdadeira Fukaeri, e quem era o alter ego? Seria um equívoco tentar separar aquelas duas Fukaeris? Ou será que, no caso de Fukaeri, ela podia manipular tanto o seu ser real quanto o alter ego?
— Há algumas coisas que ainda não consigo entender — disse Komatsu, abrindo as mãos sobre a mesa e pondo-se a observá-las. Para um homem de meia-idade, até que seus dedos eram finos e delicados. — Depois que a voz deixou de falar, a fonte do poço secou e o profeta morreu. Mas o que aconteceu com a dohta?
— Se não existe o receptor, a função do perceptor deixa de existir.
— Levando em consideração a sua hipótese — prosseguiu Komatsu —, será que Fukaeri escreveu a Crisálida de ar com a intenção de fazer isso? Aquele rapaz me disse que ela não deve ter feito isso intencionalmente. Pelo menos, o plano não teria sido dela. Mas como ele sabe?
— Ele não deve saber toda a verdade — disse Tengo. — Mas eu também não creio que Fukaeri tenha sido capaz de planejar a morte de seu próprio pai, independentemente das razões que ela pudesse ter. O pai dela talvez tenha optado pela morte por algum outro motivo não relacionado a ela. Talvez tenha sido por isso que ela fugiu. Talvez ela quisesse que o pai se libertasse daquela voz. Mas tudo não passa de uma suposição.
Komatsu passou um bom tempo pensando, franzindo o nariz. A seguir, suspirou e olhou ao redor.
— Realmente é um mundo estranho. Não se sabe até onde ele é uma hipótese e a partir de onde ele se torna real. Com o passar do tempo, é cada vez mais difícil discernir a fronteira que separa o mundo hipotético do mundo real. Me diga uma coisa, Tengo: como escritor, como você definiria o conceito de realidade?
— O mundo real é aquele em que, quando se espeta alguém com uma agulha, sangue vermelho é derramado — disse Tengo.
— Se é assim, não há dúvidas de que este mundo é real — disse Komatsu, esfregando vigorosamente o antebraço com a palma da mão. Veias azuladas destacavam-se na superfície da pele. Suas veias não pareciam muito sadias. Eram vasos sanguíneos danificados ao longo de vários anos de bebida e cigarros; uma vida desregrada, com inúmeras tramoias literárias. Komatsu tomou de um só gole o uísque e balançou ruidosamente o gelo do copo vazio.
— Voltando ao assunto, fale um pouco mais sobre as hipóteses que você levantou. A conversa está ficando interessante.
Tengo prosseguiu. — Eles devem estar procurando o sucessor dessa pessoa que escutava a voz. Não só o sucessor, como também um novo dohta, capaz de cumprir corretamente essa função. Para um novo receptor é preciso encontrar um novo perceptor.
— Quer dizer que eles precisam encontrar um novo maza. Isso significa que também precisam criar uma nova crisálida de ar. Uma tarefa e tanto, não?
— É por isso que estão levando esse assunto tão a sério.
— Sem dúvida.
— Mas não creio que tudo isso seja em vão — disse Tengo. — Eles já devem ter alguém em mente.
Komatsu concordou. — Eu também tive essa impressão, e é por isso que eles querem se livrar da gente o quanto antes. Em outras palavras, eles não querem que atrapalhemos o trabalho deles. Pelo jeito, estamos realmente incomodando.
— Por que será que nós incomodamos tanto?
Komatsu balançou a cabeça. Ele também não sabia a resposta.
— Que tipo de mensagem essa voz transmitia para eles? Que tipo de relação existe entre o Povo Pequenino e essa voz? — indagou Tengo.
Komatsu balançou novamente a cabeça, sem muito entusiasmo. Isso era algo que extrapolava a imaginação deles.
— Você já assistiu ao filme 2001: uma odisseia no espaço?
— Já — respondeu Tengo.
— Nós somos como aqueles macacos — disse Komatsu. — Aqueles com o pelo preto e comprido, que bradam coisas sem sentido enquanto giram em torno do monólito.
Duas pessoas que pareciam clientes habituais entraram no bar, se acomodaram no balcão e pediram coquetéis.
— Mas uma coisa é certa — disse Komatsu, para finalizar a conversa. — Sua hipótese é convincente e seus argumentos são plausíveis. É sempre muito divertido conversar com você. Mas nós vamos bater em retirada e deixar o campo minado. Provavelmente não vamos mais ver Fukaeri nem o professor Ebisuno. A Crisálida de ar será apenas um inocente romance de fantasia que não possui nenhuma informação concreta em seu texto. Não importa que tipo de mensagem ou como essa voz transmite a informação, nós não temos mais nada a ver com isso. Vamos deixar as coisas como estão.
— Vamos abandonar o barco e pisar em terra firme.
Komatsu concordou. — Isso mesmo. Vou trabalhar todos os dias na editora e procurar manuscritos que tanto faz publicar ou não na revista literária. Você vai continuar a lecionar matemática na escola preparatória para os promissores jovens e, nos dias em que não der aula, escreverá o seu romance. Vamos voltar para a nossa pacífica vida cotidiana. Sem fortes correntezas nem cachoeiras. O tempo vai passar e envelheceremos tranquilamente. Alguma objeção?
— Não temos outra escolha, temos?
Komatsu esticou as rugas das laterais do nariz com a ponta dos dedos. — Tem razão. Não temos escolha. Nunca mais quero ser raptado. A experiência de ficar preso num cubículo, para mim, foi o suficiente. Se houver uma próxima vez, possivelmente eu nunca mais verei a luz do dia. Mesmo que eu não seja raptado, só de pensar em reencontrar aqueles caras meu coração dispara. O olhar deles é suficiente para fazer uma pessoa sofrer um ataque fatal.
Komatsu olhou para o balcão, levantou o copo e pediu a sua terceira dose de uísque com soda. Levou um cigarro à boca.
— Por que você não me contou essa história antes? Já faz um bom tempo que te sequestraram, não? Mais de dois meses. Por que não me contou?
— Não sei dizer — disse Komatsu, inclinando levemente a cabeça. — Você tem razão. Eu queria contar, mas fui protelando, protelando. Por que será? Talvez não tenha te contado por me sentir culpado.
— Culpado? — indagou Tengo, surpreso. Ele nunca pensou em ouvir essas palavras da boca de Komatsu.
— Fique sabendo que eu também tenho sentimento de culpa — disse Komatsu.
— Em relação a quê?
Komatsu não respondeu. Em vez disso, estreitou os olhos e ficou um bom tempo com o cigarro apagado, rolando-o entre os lábios.
— Fukaeri sabe que os pais dela morreram? — perguntou Tengo.
— Creio que sim. Não sei quando, mas o professor Ebisuno deve ter contato.
Tengo assentiu. Ele tinha a impressão de que Fukaeri sabia havia muito tempo. O único que não sabia era ele.
— Vamos descer do barco e voltar para a nossa vida, em terra firme — disse Tengo.
— Isso mesmo. Vamos deixar o campo minado.
— Mas você acha mesmo que podemos voltar a ter a mesma vida de antes?
— O jeito é tentar — disse Komatsu. Em seguida, acendeu o cigarro com um fósforo. — Alguma coisa em particular o preocupa?
— Sinto que inúmeras coisas à nossa volta começaram a entrar num estranho padrão. Algumas, inclusive, já não possuem mais a mesma forma. Acho que não vai ser tão fácil voltar à vida de antes.
— Mesmo levando em consideração que a nossa preciosa vida está em jogo?
Tengo balançou a cabeça, hesitante. Sentia que, em algum momento, ele fora tragado por uma correnteza forte, e que ela o conduzia a um local desconhecido. Ele, porém, não conseguia explicar esse sentimento a Komatsu.
Tengo não revelou a Komatsu que o romance que ele estava escrevendo herdava o mundo descrito na Crisálida de ar. Komatsu, certamente, não receberia a notícia de bom grado. O grupo religioso Sakigake também não. Se não tivesse cuidado, Tengo corria o sério risco de entrar em outro campo minado. Ou colocar em risco as pessoas ao seu redor. Mas sua história possuía uma vida e um objetivo próprios, e se desenvolvia quase que espontaneamente. Ele próprio pertencia a esse mundo, à revelia. Para Tengo, a história deixara de pertencer ao mundo da ficção. Ela havia se tornado o mundo real. Uma realidade em que, se cortasse a pele com uma faca, o sangue vermelho iria escorrer de verdade. E, no céu desse mundo, pairavam duas luas, uma grande e outra pequena.