Deus o abençoe: «Aqui não há estranhos»

EM TUSCALOOSA, ALABAMA, numa cálida manhã de domingo do início de outubro, sentei-me no meu carro no parque de estacionamento dum motel a consultar um mapa, tentando localizar uma certa igreja. Não estava à procura de mais religião ou de ser visualmente estimulado pela viagem. Ansiava por música e elevação, sacred steel e celebração, e talvez um amigo.

Sacudi o mapa com as costas da mão. Devo ter parecido atarantado.

— Está perdido, meu filho?

Tinha conduzido desde a minha casa na Nova Inglaterra, uma viagem de três dias por estrada até outro mundo, os calorentos estados verdes do Sul Profundo que ansiava visitar, onde «o passado nunca morre», como eloquentemente disse certo homem. «Nem chega a ser passado.» Dias depois, no mesmo mês, um barbeiro negro cortando-me o cabelo em Greensboro, falando da agitação racial nos nossos dias, riu-se e disse-me, numa espécie de paráfrase daquele escritor que ignorava e nunca lera: «Aqui a história está viva e bem presente.»

Uma igreja no Sul é o coração palpitante da comunidade, o centro social, a âncora da fé, o facho de luz, a arena da música, o local de reunião, oferecendo esperança, conselho, bem-estar, calor humano, amizade, melodia, harmonia e petiscos. Em algumas igrejas, lidar com serpentes, lava-pés e também glossolalia, balbuciar línguas como quem cospe e gargareja no chuveiro sob jatos de água.

A pobreza apresenta-se bem vestida nas igrejas, e toda a gente é abordável. Como um potente e revelador evento cultural, um ato litúrgico numa igreja do Sul pode equiparar-se a um jogo de futebol universitário ou a uma feira de armas, e são muitas as igrejas. As pessoas dizem: «Há uma igreja em cada esquina.» É por isso que, quando uma igreja é bombardeada — era o quinquagésimo aniversário do atentado à bomba na Igreja Batista da décima sexta rua, em Birmingham, em que foram assassinadas quatro meninas — o coração é arrancado a uma congregação, e a comunidade afunda-se em pura angústia.

— Perdeu-se?

O tom de voz foi tão suave que não percebi que se dirigia a mim. Uma mulher no carro a meu lado, um sedan desbotado com o para-choques traseiro amolgado. Estava a bebericar café duma chávena descartável, a porta do carro aberta para receber a brisa. Devia andar perto dos cinquenta anos, tinha olhos azul-acinzentados, e em contraste com o carro modesto estava belamente vestida de seda negra com mangas rendadas, uma grande flor presa ao ombro, envergando um chapéu branco com véu que erguia com o dorso da mão quando levava a chávena de café aos seus belos lábios, deixando a marca de um beijo de batom púrpura na borda.

Eu disse que era ali um estranho.

— Aqui não há estranhos, filho — disse ela, e brindou-me com um sorriso feliz. O Sul, iria eu descobrir, era dos poucos lugares do mundo onde podia usar a palavra «feliz» sem sarcasmo. — Chamo-me Lucille.

Disse-lhe o meu nome e onde queria ir, à Igreja Batista Cornerstone Full Gospel, em Brooksdale Drive.

Disse-me logo que essa não era a igreja dela, mas que a conhecia. Deu-me o nome do pastor, bispo Earnest Palmer, começou a indicar o caminho e, por fim, disse:

— É como lhe digo.

Sustendo o véu com uma mão, observou com atenção a borda da chávena. Fez uma pausa e bebeu o remanescente do café enquanto eu esperava outra palavra.

— C’os diabos, é mais fácil para mim levá-lo lá — disse ela. Depois, com a ponta da língua, retirou um resto de espuma do lábio superior. — Só vou ter de estar com a minha filha dentro de uma hora. Siga-me, Mr. Paul.

Eu segui o amolgado para-choques do seu pequeno carro por cerca de cinco quilómetros, fazendo inesperados desvios, entrando e saindo em quarteirões de pequenos bangalós que haviam sido tão afetados pelo tornado devastador no ano anterior que podiam ser descritos como escalavrados e torturados. No meio dessa paisagem erodida, numa rua suburbana, vi o campanário da igreja, e Lucille abrandou a marcha e apontou para ele, acenando-me.

Ao passar por ela para entrar no parque de estacionamento, agradeci-lhe, e ela retorquiu com um sorriso encantador, e, antes de prosseguir exclamou:

— Deus o abençoe.

Aquilo parecia ser o mote no Sul Profundo: gentileza, generosidade, boas-vindas. Tinha-as encontrado a cada passo na minha vida de viagens pelo largo mundo, mas deparei com tanto mais aqui que prossegui, porque a boa vontade era como um abraço. Sim, há um secreto substrato de escuridão na vida sulista, e embora ele palpite através de muitas interações, leva-se muito tempo a senti-lo, e mais ainda a entendê-lo.

Por vezes tinha dias cansativos, mas encontros como aquele com Lucille sempre me animavam e me empurravam mais para o Sul, até recônditas igrejas como a Cornerstone Full Gospel, e lugares tão obscuros, como caganitas de mosca no mapa, que eram descritos ao modo rural como «Tem de ir até lá para lá chegar».

Tendo circulado bastante pelo Sul Profundo, afeiçoei-me aos cumprimentos, o olá do transeunte no passeio e as casuais saudações, ser apodado de baby, honey, babe, buddy, dear, boss, e, a cada passo, sir. Eu gostava de «What’s going on, bubba?» e «How ya’ll doin’?». O bom acolhimento numa estação de correio ou numa loja. Era ainda por reflexo que alguns negros me tratavam por «Mr. Paul» quando eu me apresentava com o meu nome completo («um hábito da escravatura», dizia-se à laia de explicação). Isso diferia muito do Norte ou de qualquer outro lugar no mundo por onde viajei. Essa extrema amabilidade é por vezes designada «cortesia feroz», mas ainda assim é melhor que o olhar frio ou de soslaio ou o desdém calculado a que estava habituado na Nova Inglaterra.

«A suprema relação duma pessoa», notou algures Henry James a propósito de viajar na América, «era a relação dela com o seu próprio país». Com isto em mente, depois de visto o resto do mundo, tinha planeado fazer uma longa viagem pelo Sul no outono, antes da eleição presidencial de 2012, e escrever sobre isso. Mas quando a viagem terminou quis voltar, e assim fiz, calmamente no inverno, renovando conhecimentos. Isso não foi bastante. Voltei na primavera, e de novo no verão, e então percebi que o Sul me agarrara, ora num reconfortante abraço, ora num frenético e implacável apertão.

Wendell Turley

Uma semana ou mais antes de ter encontrado Lucille, passava das dez numa noite escura, tinha acabado de chegar a um minimercado com bombas de gasolina perto da cidade de Gadsen, no nordeste do Alabama.

— Posso ajudá-lo?… — perguntou um homem da janela duma carrinha. Tinha aquele modo de falar interrogativo do Sul Profundo, tão ponderoso, confuso para além do razoável, que já esperava vê-lo cair bêbado para a frente uma vez formulada a pergunta. Mas era amigável. Descendo da carrinha escura e mal pintada, e pondo-se de pé, mordeu o lábio inferior caído e húmido. E terminou a frase: — … nalguma coisa?

Respondi que procurava um lugar para pernoitar.

Ele levava na mão uma lata de cerveja, por abrir. Tinha olhos de carneiro mal morto, era piroso e, embora sóbrio, parecia cambaleante. Ignorou o meu apelo. Pensava eu em como de vez em quando os deuses do viajar parecem depor-nos nas mãos de um aparentemente simples estereótipo, implicando ter de observar com cautela, não vá ser este o caso — o cómico, indolente sulista, que gosta de falar por falar.

— Tenho de lhe explicar uma coisa — disse ele.

— Sim?

— Tenho de lhe explicar o Sul.

Em toda a minha vida de viajante, isto era uma novidade. Duma grande e esbatida distância, as pessoas por vezes dizem «Assim são as coisas em África», ou «A China está em marcha», e idênticas generalizações, mas nunca algo tão ambicioso como «Eu vou explicar-lhe toda esta região», prometendo detalhes.

— Só estou de passagem. Nunca estive aqui. Sou yankee, eh, eh.

— Já sabia, pelo seu jeito de falar — disse ele. — E pela matrícula do seu carro.

Disse-lhe o meu nome e ele estendeu a mão livre.

— Chamo-me Wendell Turley. Tenho um negócio aqui em Gadsen. Este veículo é o meu batedor. Feito por mim.

Referia-se à carcaça da sua velha carrinha verde-azeitona, toda estampada com folhas de ácer verdes e castanhas.

— Camuflagem — disse ele. — Sirvo-me disto para caçar veados.

— Há muitos veados por aqui?

— Muitos.

Aí notei que o bolso da camisa dele tinha bordado Roll Tide Roll, o lema da equipa de futebol da Universidade do Alabama, loucamente apoiada pelos alabamianos, alguns dos quais já tinha visto com a letra escarlate A tatuada no pescoço, em homenagem. Aquilo parecia um modo de reivindicar o verdadeiro sentido da palavra «fã», que é a abreviatura de «fanático».

— O que ia você dizer-me acerca do Sul, Wendell?

— Tenho de lho explicar.

Para um viajante, estranho nesta paisagem e especialmente se espera escrever sobre a viagem, um homem como Wendell é bem-vindo e bem-achado: paciente, amistoso, expansivo, hospitaleiro e bem-humorado a seu modo. O homem era uma bênção, sobretudo a altas horas da noite, numa estrada secundária.

— C’os diabos…

Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, um rebaixado e ferrugento Chevrolet pôs-se a nosso lado, com música hip-hop aos berros pelas janelas abertas, e decifrei a letra: «Have these niggas just waiting for a favor…»

Um homem de chapéu sebento com a pala de lado pôs as pernas de fora e ergueu-se, deixando o motor ligado e a porta aberta, pelo que a música era amplificada pela porta escancarada. Grossos tufos do recheio eram visíveis nos estofos rotos do assento do condutor.

Wendell arregalou os seus olhos mortiços e disse devagar, como que para me tranquilizar:

— Conheço aquele homem.

O homem tinha os olhos injetados e a barba crescida e parecia ameaçador, mas, ao ver Wendell, saudou-o desajeitadamente e mostrou as falhas nos dentes.

— Que se passa? — perguntou o homem, mas continuou a caminhar.

— Como vais? — perguntou Wendell, e calou-se.

— Tudo bem, irmão.

— Eu ouvi-te.

Esperámos, com o ruído que vinha do carro a envolver-nos, ecoando no negrume do arvoredo em torno do parque de estacionamento, e esperámos mais que o homem de boné à banda saísse do minimercado com uma grade de cerveja, se metesse no carro, regressasse ao negrume e levasse a gritaria com ele.

— O que é que estava a dizer, Wendell?

— Eu vou-lhe contar tudo — disse ele — sobre o Sul. — Inclinou-se para mim, falando-me junto à cara e muito devagar. — Somos boa gente. Não somos instruídos como vocês, gente do Norte. Mas somos boa gente. Somos tementes a Deus. — Piscou os olhos, pareceu buscar na memória um exemplo, e disse: — É preciso alguma educação para fazer perguntas como «Existe realmente Deus?».

— Suponho que sim. — E pensei: ele não disse edjumacation.

— Essa agora! Nós no Sul não fazemos perguntas dessas. Mas somos boa gente. — Compenetrou-se e soergueu-se para debitar outro pensamento, o que fez com deliberação. — Pessoa alguma no Sul, negro ou branco, o deixará ir-se embora de sua casa sem lhe oferecer alguma coisa para comer… Uma refeição, uma sanduíche, amendoins, seja o que for. — Devagar e vincando as palavras, disse: — Hão de dar-lhe de comer, senhor.

— Estou a ver.

— E porquê? — Diga-me.

— Porque é a única coisa certa a fazer.

— É hospitalidade — disse eu.

— É hospitalidade! E quando você voltar a Gadsen, há de vir ver-nos, a mim e à Sandy, e havemos de comer alguma coisa. — Pousou a mão livre no meu ombro. — Apenas trocámos umas palavras, mas posso garantir-lhe que sou um homem educado. Você é boa gente. Vou para casa e não deixarei de contar à Sandy.

Desaconselhou-me passar a noite em Gadsen, e disse-me que conduzisse até Fort Payne, onde encontraria um motel de melhor qualidade, mas quando eu voltasse, ele e Sandy teriam muito gosto em me hospedar.

— Em que direção fica Fort Payne?

Wendell ergueu a cabeça, virou a cara para a escuridão e para a rampa obscurecida, e apontou com os lábios.

«Fale do Sul. Como são lá as coisas. Que fazem por lá. Porque vivem lá. Porque vivem eles, simplesmente.»

O que Wendell dissera, e até o modo como pousara a mão no meu ombro, causara-me uma impressão, trouxera-me à lembrança as muito citadas linhas (é um canadiano, Shreve, que fala) de Absalão, Absalão!, de Faulkner — a quem este, o mestre da alusão velada numa longa fiada de livros, ensaia várias respostas. Mas senti que Wendell tinha uma resposta, e conduzi noite fora mais feliz.

Os pobres, tendo tão pouco, mantêm a sua cultura intacta como parte da sua vitalidade, muito depois de o bem-estar a ter descartado. Este foi um dos muitos encontros que me mostraram como um viajante chega e se insinua no ritmo dessa vida, no subtil acolhimento do Sul, uma força imersiva que tem algo de feitiço.

Doces de estrada: viajar na América

A maior parte das narrativas de viagem, talvez todas elas, mesmo as clássicas, descreve as misérias e os esplendores de ir de um lugar remoto para outro. A procura, a caminhada, as dificuldades da estrada constituem a história; a jornada e não a chegada é que conta, e quase sempre o viajante — o ânimo do viajante, sobretudo — é o tema dominante. Eu fiz carreira a partir dessa espécie de trabalho árduo e autorretrato, e assim fizeram muitos outros à velha maneira autodescritiva que informa a literatura de viagens. Como V.S. Naipaul astutamente explicou em A Turn in the South, o viajante é «um homem que se define a si mesmo num cenário estranho».

Mas viajar na América não é como viajar noutra parte qualquer da Terra. No início da minha viagem ao Sul Profundo, parei numa loja de conveniência duma pequena cidade do Alabama, para comprar um refrigerante. Mas de facto parei porque a loja assentava numa pequena laje de cimento, na berma da estrada, e era feita com pranchas velhas, com um ferrugento reclame da Coca-Cola fixado à parede. Na varanda coberta havia um banco onde podia sentar-me, beber e tomar notas. Uma loja com aquele ar acolhedor devia ser gerida por alguém amigo de conversar.

Um homem duns sessenta anos, de pé atrás do balcão, envergando um boné de basebol, saudou-me quando entrei. Saquei uma garrafa de soda do frigorífico e, ao pagar, vi que o balcão estava repleto de boiões de vidro — como aquários de peixes vermelhos — cheios de pequenos doces. Era um vislumbre da minha juventude: Sam’s Store, no cruzamento das ruas Webster e Fountain em Medford (cerca de 1949), o balcão repleto de boiões com guloseimas.

— Quando eu era rapaz… — disse eu, e o homem escutava gentilmente a minha história. Terminei a dizer: — Costumávamos chamar-lhes penny candy.

— Doces de estrada — disse ele. — Coma enquanto conduz.

Os doces de estrada pareciam-me condensar os prazeres de conduzir através do Sul Profundo. O que vi, o que experimentei, a liberdade da viagem, as pessoas que encontrei, as coisas que aprendi: os meus dias eram preenchidos com doces de estrada.

Deambular de lugar em lugar por estradas formidáveis parecia tão agradável, tão simples. No entanto, viajar assim comporta muitas ilusões — sobretudo essa, que as grandes estradas são uma prova de prosperidade e tornam a América fácil de conhecer. O paradoxo é que muitas estradas na América levam a becos sem saída. Chegar é o objetivo e o repto, a cada passo por ínvios caminhos, num país com uma cultura improvisada que teima em desprezar os regulamentos. Eu ia descobrir que a América é acessível, mas não os americanos, em geral; são mais avessos a relacionar-se do que qualquer outro povo que visitei.

A facilidade de viajar na América é tal que qualquer narrativa convencional não pode ser sobre a jornada, não sobre o transporte, o calvário de ir dum lugar para outro, que é quase sempre o âmago da narrativa de viagem. A estrada americana é tão bem feita e isenta de obstáculos que desaparece do relato do viajante, exceto quando é agradecida como um benefício, com a mesma gratidão do príncipe Hussain pelo seu tapete voador: «Desagradável à vista, mas com tais propriedades que quem nele se sentar e formular o desejo de visitar um país ou cidade, logo aí será transportado em conforto e segurança.» (Richard Burton, Supplemental Nights)

Uma estrada perigosa ou difícil pode ser o tema de uma jornada; o tapete voador, não. O clássico relato de viagens é uma narrativa de riscos, muitas vezes uma busca, uma nova versão da Odisseia em equipagem de explorador, e envolvendo as vicissitudes duma busca, e por fim o regresso ao ponto de partida. Um livro assim torna-se uma imitação de muitas lendas, mas em particular do viajante afligido por obstáculos — demónios, feiticeiras, bandidos, redemoinhos, as tentações das sereias, uma crónica de atrasos. «Caminhamos através de nós mesmos», diz Stephen Dedalus em Ulisses, resumindo a experiência de viajar, «encontrando gatunos, fantasmas, gigantes, velhos, jovens, esposas, viúvas, irmãos em amor. Mas sempre encontrando-nos a nós mesmos.» Os tormentos da caminhada constituem a história, e chegar ao destino é o tema da maior parte dos livros de viagens, desde O Caminho Estreito para o Longínquo Norte, de Bashō, no século XVII, e The Oregon Trail (1849) de Parkman aos grandes livros de viagens dos nossos dias: o vómito dos camelos em Pelos Desertos das Arábias de Thesiger, os caminhos lamacentos do Congo de Redmond O’Hanlon em No Mercy, o deambular e calcorrear de Bruce Chatwin pela Patagónia — e, devo acrescentar, em menor grau, quase tudo o que escrevi sobre viagens. O livro de viagens é, tipicamente, sobre a luta para chegar a um destino.

Mas na América a jornada é um piquenique: viajar seja para onde for, nomeadamente no domínio rodoviário, é tão fácil como é supérfluo escrever sobre isso. O facto decisivo é que, devido à nossa superior conectividade, não se pode escrever sobre os Estados Unidos como se poderia fazê-lo sobre qualquer outro país — seria certamente uma fraude pretender que existe qualquer tipo de provação logística.

«A terra era vasta e variada, em parte selvagem. Mas haviam-na tornado em quase toda a parte uniforme e acessível ao viajante», escreve V.S. Naipaul no seu livro de viagens sulistas. «Daí resultava que nenhum livro de viagens (a menos que o escritor escrevesse sobre si mesmo) pudesse tratar apenas de estradas e hotéis.» E prossegue afirmando que a América não é suficientemente estranha, o que é discutível: na sua viagem pelo Sul, Naipaul concentrou-se nas grandes cidades, e o tema que ele se propunha era o dos persistentes efeitos da escravatura (Slave States era o título provisório do livro). Num útil aparte acrescenta: «[A América] é demasiado conhecida, foi demasiado fotografada, escreveu-se muito sobre ela; e, sendo mais organizada e menos informal, não é tão aberta a uma observação casual.»

Ou seja, a menos que se criem deliberadamente obstáculos ou se nutram heroísmos de pacotilha, numa narrativa baseada no modelo vitoriano daquilo que é suposto os escritores de viagens fazerem — sofrer, ter medo, superar dificuldades, passar por privações e rituais bizarros, achar o Coração das Trevas, encontrar os Jumblies, conversar com paladinos de novas religiões e Homens de Barro, observar Antropófagos e Acéfalos, ser heroico e sobreviver para contar a história. Muitos assim fazem, até nesta ditosa terra. Deparo com os livros deles recheados de falsas provações.

A falsa provação

Algumas narrativas de viagens na América resultam em parte porque pretendem ser assustadoras, perigosas, arriscadas, aventuras de vida ou de morte — versão doméstica da luta contra o improvável, que é um lugar-comum nos livros de viagens exóticas. Essa postura, a tendência Walter Mitty, poderá ter começado com Henry David Thoreau, o qual, se bem que um reconhecido génio literário, viveu uma existência confinada com os pais, como muitos filhos-família hoje em dia; diplomado por Harvard, raramente se aventurou longe do lar familiar. Não gozou de saúde na maior parte da sua curta vida (morreu aos quarenta e quatro anos). E não era figura de estilo, hipérbole, o que escreveu no seu diário: «Sou um doentio feixe de nervos errando entre o tempo e a eternidade como uma folha seca.»

Tinha então vinte e seis anos e era achacado por bronquite crónica, humor inconstante e narcolepsia recorrente. Celebrava o ar livre, exaltava as caminhadas, mas faltava-lhe tudo para ser robusto. Na sua experiência de independência aos vinte e oito anos, erguendo uma pequena cabana na margem do lago Walden, ele pinta-se como uma testemunha solitária, levando uma existência de eremita na natureza selvagem. No entanto achava-se apenas a dois quilómetros da mãe, que lhe fazia tortas e lavava a roupa. Os verões em Walden passava-os a ler e escrever, ou a colher mirtilos.

Um dos livros que Thoreau leu em Walden foi o recém-publicado Typee, de Melville, com o subtítulo de A Peep at Polynesian Life. Esse tão colorido relato sobre o Havai e uma viagem de caça à baleia pelo Pacífico descreve o abandono do navio por Melville e outro membro da tripulação nas remotas Ilhas Marquesas e o seu idílico romance com Fayaway, bela como uma sílfide: «Fayaway e eu reclinados na proa da canoa, nos termos mais amáveis possíveis; a gentil ninfa levando de quando em vez o cachimbo aos lábios, exalando o suave fumo do tabaco, a que o seu hálito róseo acrescentava um perfume fresco.»

Henry, que era dois anos mais velho que Herman, podia não ter sabido que Melville dulcificou a sua experiência insular e exagerou a duração da sua estadia nas Marquesas, onde passara um mês — ele afirmava que tinham sido quatro. Forjou a sua reputação com esse livro, e a sua notoriedade e as suas exuberantes aventuras nessa distante, inexplorada e desconhecida porção do mundo (canibais, ninfas, nudez) causaram profunda impressão no celibatário, bronquítico de Walden (rejeitado alguns anos antes pela única mulher que amara) que, ao cabo de um ano, cedeu à pressão da claustrofobia.

Em parte como resposta a Typee, e por um ardente desejo de levar a cabo a sua própria aventura selvagem, algo original para escrever e palestrar, Thoreau embarcou numa complexa jornada em direção ao Maine: tomou um comboio até Boston, outro até Portland, um barco a vapor pelo rio Penobscot acima até Bangor, e aí encontrou o seu primo e dois madeireiros. Os quatro foram de diligência, aos abanões, até ao interior de Mattawamkeag. A partir daí, numa canoa ao longo de quarenta quilómetros, alcançando por fim North Twin Lake. A abundante floresta entusiasmou Thoreau, que a encontrou «selvagem e impenetrável», tal como deve ter aparecido aos «primeiros aventureiros». A região tinha «um toque primitivo que eu nunca antes tinha vislumbrado».

Mergulhando na autêntica vida selvagem, tinha por fim descoberto algo original primitivo e perigoso para rivalizar com as Marquesas de Melville. O grupo subiu através dos bosques até às encostas mais baixas do Mount Katahdin. Thoreau escalou a montanha sozinho, sentindo-se (disse ele) como Prometeu. A escalada do Katahdin inspirou-lhe uma brilhante descrição: «A natureza era aqui algo selvagem e terrível, mas belo. Olhei deslumbrado para o solo que pisava, para ver o que as potestades ali tinham feito, a forma, o tipo e o material da sua obra. Essa era a Terra de que ouvíramos falar, saída do Caos e da Noite Primeva. Aqui não havia terra arroteada, apenas o globo impenetrado. Não havia relva, nem pastos, nem prados, nem bosques, nem terra arável ou maninha. Era a fresca e natural superfície do planeta Terra, tal como foi feito para todo o sempre.»

Aquilo foi uma alegre excursão de duas semanas, quatro homens simplesmente passeando por um bosque. Thoreau fez disso uma jornada épica, uma viagem de descoberta. Mais tarde proclamou que a vida selvagem que encontrara no Maine era mais primitiva, de mais difícil acesso, do que tudo o que Melville experimentara nas remotas Marquesas, e continuou ilusoriamente crendo que aquilo fora uma provação.

Essa ocorrência da falsa provação tornou-se uma característica das narrativas de viagem na América que persistiu até aos nossos tempos. A seu favor, Henry James, que escreveu sobre as suas longas jornadas de comboio de Boston até San Diego, nunca se queixou de provações, mas somente do «perfil de almofada para alfinetes» de Nova Iorque, do «mau aspeto visual» de algumas cidades e da «confinada & sufocante continuidade» da carruagem Pullman. Ficou satisfeito por regressar a Londres.

«Acho impossível, totalmente impossível, para qualquer inglês, viver aqui e ser feliz», escreveu Charles Dickens após a viagem que evocou em American Notes (1842). A corroborar o julgamento de Dickens, seguem-se quatro viajantes ingleses que fizeram excursões de autocarro na América:

«O vasto terminal do porto de Nova Iorque é um aterrador lugar no qual de súbito nos achamos completamente sós e abandonados», lamenta a prolífica e imperturbável Ethel Mannin em American Journey (1967), sobre o arranque do seu trajeto de autocarro. E acrescenta: «Há que resistir à tentação de sentar-se e chorar.»

Mary Day Winn, em The Macadam Trail: Ten Thousand Miles by Motor Coach (1931), descreve o seu calvário no Arizona perante um homem armado que manda parar o luxuoso autocarro em que viajava. «Ao ver a pistola, a rapariga atrás do motorista — muito pintada — soltou um gritinho estridente.» Em vez os roubar, o pistoleiro transforma o assalto em farsa, insiste em beijar seis das mulheres que viajam no autocarro e, antes de abandonar os ansiosos vinte e sete passageiros, exclama: «Eu não podia passar outro dia sem ter beijado uma moça bonita.»

Uma trabalheira para o escritor inglês Ernest Young, em San Antonio, no Texas, é ter de acordar cedo e apanhar um autocarro, para a sua North American Excursion (1947): «O meu primeiro dia de jornada, de setecentos quilómetros, mais ou menos a distância de Berwick a Land’s End, obrigou a outro desses despertares matutinos, que sempre assumo com relutância. Um pequeno-almoço apressado numa cabana à beira da estrada, com chuva e nevoeiro cerrado lá fora, não foi o melhor princípio para uma longa viagem de autocarro.»

«Gentes de variadas raças que chegaram à América para enriquecer […] aqui ficaram a viver como animais sem entraves», escreveu James Morris em Coast to Coast (1956). E prossegue: «Em tal clima de existência, os preconceitos raciais prosperam, e pode-se a cada passo constatar um clima de ameaça num autocarro ou numa esquina — um negro bêbado amaldiçoando os brancos ao precipitar-se no assento, um branco arrogantemente forçando a passagem através dum grupo de mulheres negras.»

O livro de Morris patenteia sobretudo o seu bom coração e a sua generosidade, mas é também uma crónica de tímida reflexão. «A violência é um elemento sempre presente na vida americana», escreve ele. E depois, referindo temporais, cheias, o Rio Grande alteroso, e vento forte (ele chama-lhe «tufão») em Vicksburg, Mississippi: «A brutalidade ronda sempre por perto.»

«Podemos sentir a selvajaria subjacente, contida, é certo, mas presente, em muitos encontros de respeitáveis homens de negócios, [mesmo] entre os Elks ou os Kiwanis» é outra constatação de Morris. A viagem dele é tranquila; nenhuma selvajaria o atinge, embora ele note: «Noutras ocasiões, esses senhores ter-me-iam apertado com perguntas inquietantes.» Uma mudança de sexo uma dúzia de anos depois transformou James em Jan, e ela comprou um apartamento em Nova Iorque, a cidade que viria a louvar. «Jornalistas britânicos chamados Clive, Colin ou Fiona», comenta Charles Portis, «rabiscando notas e coligindo coisas erradas para os seus livros de viagem sobre a América real, esse velho e esquivo tema».

Convém dizer que nenhum desses viajantes está a escalar uma montanha ou a fazer corta-mato através duma floresta, ou a cruzar um deserto a pé. Eles deixam-se ir ao deus-dará por boas estradas em cómodos autocarros ou automóveis. Mas não se acham sós nos seus dramáticos exageros. Muitos escritores americanos sucumbiram a esse pseudocalvário, recriando a provação de viajar pelas estradas da América. «O Mojave é um grande deserto e assustador», escreve John Steinbeck em Viagens com o Charley (1962). E aqui está um exemplo desse perigo: «Cerca de cinquenta metros adiante dois coiotes pararam fitando-me… “Mata-os”, aconselhou-me a experiência.» Um jornalista, Bill Steigerwald, seguiu a jornada de Steinbeck e provou, em Dogging Steinbeck (2012), que o futuro vencedor do Prémio Nobel realmente não visitou metade dos lugares que descreveu, passou quase todo o tempo ostensivamente com a mulher em excelentes hotéis, e grande parte do que escreveu era absurdo, falso e ficcionado, e talvez não houvesse coiote nenhum.

Em Pesadelo de Ar Condicionado (1944) Henry Miller escreveu acerca da sua viagem por estrada (finais de 1940 e 1941) de Nova Iorque a Los Angeles. «Sentia necessidade de promover uma reconciliação com a minha terra natal», escreve ele no início, mas depois chama-lhe «esta lúgubre viagem através da América». O livro está repleto de queixas, o tédio de conduzir, a comida horrível (todo um capítulo indignado é dedicado à fraca qualidade do pão na América) e as terríveis cidades.

Para Miller, St. Louis é particularmente horrorosa: «As casas parecem ter sido decoradas com ferrugem, sangue, lágrimas, suor, bílis, reuma e bosta de elefante. Nada pode aterrar-me mais do que o pensamento de ser condenado a passar o resto dos meus dias em tal lugar.» A Califórnia não fica atrás: «A verdadeira Califórnia começava a fazer-se sentir. Queria vomitar. Mas é preciso autorização para vomitar em público.» Um ano após este calvário, Miller estabeleceu-se na Califórnia, começando por Big Sur; acabou os seus dias em Los Angeles, um homem feliz, como ele disse, «sempre feliz e brilhante».

Árdua América, sozinho frente aos elementos, é o tema de Desert Solitaire: A Season in the Wilderness, de Edward Abbey — enfrentando os sombrios elementos. «Um homem a pé, a cavalo ou de bicicleta verá mais, sentirá mais, fruirá mais num quilómetro do que os turistas motorizados numa centena de quilómetros», escreveu ele, mas esqueceu-se de referir que tinha um carro, e «Imensidão selvagem. A própria expressão é música». Na sua celebração da solidão e na sua comunhão solitária com a natureza no sulista Utah, Abbey não refere que por um período de cinco meses viveu numa caravana com a terceira mulher, Rita, e o jovem filho, não longe dos seus amigos dos copos e duma cidade com um saloon.

Em Old Glory: An American Voyage (1981), o meu bom amigo Jonathan Raban descreveu a sua viagem num pequeno barco a motor Mississippi abaixo. Um dos grandes narradores de viagens, arguto analista de costumes, revela-se perspicaz e divertido nesse livro e, como forasteiro, vê muito deste país que aos americanos escapa. Embora sejam raras as falsas provações no seu maravilhoso livro, a dada altura sente receio dum bando de pássaros. «No Illinois havia uma árvore morta que parecia funcionar como antro dum bando de grandes pássaros com cara de poucos amigos.» Os pássaros aterrorizam-no. «Tirei os óculos de sol da bolsa, com a ideia fixa de que a primeira coisa que eles debicariam seria os meus olhos.»

Embora pareçam ameaçadores, os pássaros não furam os olhos do viajante inglês. Ele passa por períodos de mau tempo, um caso amoroso falhado, e quase se afoga, mas chega a Nova Orleães incólume. Uma viajante, mais recente — mas mais preguiçosa, menos ambiciosa — navegando pelo Mississippi, Mary Morris, em River Queen, ridiculariza uma sua refeição. O barco não é do seu agrado, os arrais, Tom e Jerry, irritam-na. A comida enoja-a. A sua rejeição pode ser sintetizada num dos seus desabafos: «Odeio piza. Odeio essa coisa pastosa. Quero uma refeição, um duche, comodidades.»

Caminhar pelo Trilho dos Apalaches permite pensar que se trata de uma estimulante e grata experiência para um andarilho saudável. Muitos o fizeram. Bill Bryson, que errou por aí com um amigo para o seu livro Por Aqui e Por Ali (1998), refere uma clássica cena cómica e assustadora, o seu encontro com um urso quando acampou uma noite junto a uma torrente, na Virgínia. Um urso — talvez dois, tudo o que ele vê são os olhos — ronda por perto à procura de água. «Sentei-me. Instantaneamente todos os neurónios no meu cérebro despertaram e agitavam-se como formigas quando lhes pisam o formigueiro. Peguei instintivamente na minha faca.» Ele não tem faca, só tem um corta-unhas — a descoroçoante beleza deste episódio reside na sua autoironia. «Os ursos-negros raramente atacam», acrescenta ele. «Mas por vezes atacam mesmo… Se lhes apetecer matar-nos e comer-nos, podem fazê-lo, basta quererem.»

«Finalmente, como isto é a América», diz Bryson noutro trecho, «há uma permanente possibilidade de crime».

Os ursos deixam-no em paz, ele não é morto, e à parte os pés doridos, pouco é afetado no que é, por todas as suas cenas cómicas, um livro muito ameno.

«Chamem-me doido», escreve Elijah Wald no início de Riding with Strangers (2006). «Estou postado numa área de serviço de autoestrada à saída de Boston, debaixo de chuva, tentando apanhar a primeira boleia em mais uma travessia costa a costa.» Mas este livro de viagens à boleia é ultrapassado tanto em autoironia como em humor por John Waters, o qual, por capricho, viaja deprimido de Baltimore até São Francisco, do que resulta Car Sick (2014), repleto de provações simuladas, quase todas (como ele francamente admite) delírios do tremendo e febril cérebro dum abastado realizador gay de cinema que pode facilmente permitir-se voar em primeira classe, mas que anseia por uma desgraça, para dotar a sua laboriosa viagem com algum sórdido encanto.

Há muitos outros livros similares, centenas, talvez milhares, mas cada um, no seu modo peculiar e até revelador, é uma aproximação do viajar para destinos remotos, restando os Estados Unidos como uma estranha, hostil paisagem, fazendo da viagem um esforço arriscado, um desporto letal ou uma perigosa acrobacia.

Exageros à parte, alguns são livros meritórios, mas o que falta é o simples facto de os Estados Unidos porem muito poucos escolhos no caminho do viajante. A pé, de barco, à boleia, acampando, esses escritores de viagens procuram exagerar as dificuldades e chamar a atenção para eles, mas nada é mais fácil do que cruzar este país por estrada. A jornada de carro é celebrada em Roads: Driving America’s Great Highways (2000), de Larry McMurtry, uma meditação sobre a condução automóvel: «O que eu quero é tratar as grandes estradas como um rio, deixando-me levar por este, subindo aquele.» Esse gratificante ensaio sobre a condução rodoviária pelo país relata o gozo idiota dos solilóquios ao volante, o devaneio da estrada, recordando livros, velhos filmes, evocando o passado: «Guiar em branco, pensando o mínimo.»

«A minha velha amiga, a 90», escreve McMurtry sobre uma autoestrada. E noutra viagem: «Encontro-me no Alabama dentro de uma hora», parecendo transportado por via aérea. Fala dum trajeto de mil e duzentos quilómetros, de Duluth até Wichita, notando: «Eu nunca tive de me afastar mais de cem metros da autoestrada por comida, gasolina ou descanso. E, bem podia ter acrescentado «um motel». O seu livro reflete fielmente o que eu sinto ao viajar na América — o trajeto solitário por estrada, que constitui em muitos aspetos uma experiência zen, entremeada com doces de estrada, indisponível para os motoristas de qualquer outro país da Terra.

Mas há obstáculos a viajar nos Estados Unidos, ou pelo menos obstáculos à penetração no país. Somos um povo naturalmente acolhedor, mas também com uma reação demasiado brusca a estranhos, as boas-vindas reduzem-se, encolhem, esfriam, levam sumiço e tornam-se temerosas e relutantes. Somos muito opiniosos, mas por temperamento inóspitos a pontos de vista opostos ou perguntas indiscretas — e o melhor viajante não tem senão perguntas. Os americanos são capazes de falar todo o dia, mas são maus ouvintes e avessos a perguntas ou curiosidade da parte de estranhos.

Os americanos partilham com os subalimentados aldeões das sociedades subdesenvolvidas do mundo uma profunda suspeita relativamente às perguntas pessoais. Dizemos que toleramos as divergências, mas a expressão dum ponto de vista radicalmente oposto pode tornar-nos indesejáveis, ou mesmo fazer de nós um inimigo. A diferença de opinião é muitas vezes entendida como um desafio. Isso não decorre necessariamente da nossa obsessiva autossatisfação e dos nossos arroubos de liberdade e autonomia. Os novos americanos, refugiados, gente fugindo dos horrores e tiranias dos seus países de origem, que vieram para os Estados Unidos pelas suas liberdades, são muitas vezes os mais tacanhos e preconceituosos. Só toleramos a diferença se não tivermos de encará-la ou ouvi-la, ou seja, se ela não tiver impacto nas nossas vidas.

O grande trunfo do nosso país é o seu tamanho e a sua relativa vacuidade, a liberdade de movimentos. Esse espaço autoriza a diferença e é muitas vezes erradamente tido por tolerância. Quem se atreve a violar esse espaço, esse é o verdadeiro viajante.

De novo viajante

Conduzindo em direção a sul, tornei-me de novo viajante, duma forma que já esquecera. Devido à saída sem esforço de minha casa para a estrada, a sensação de ser libertado, redescobri a alegria de viajar que conhecera nos tempos anteriores às barreiras, aos controlos, às afrontas nos aeroportos — as invasões e violações de privacidade que acossam quem viaja de avião. O desalento e a indignidade deste questionamento entenebrece qualquer experiência de viajar hoje em dia — e isto perante quaisquer progressos que possam ser feitos. Todas as viagens aéreas hoje em dia envolvem interrogatório, o mais das vezes por alguém fardado que nos é inferior.

Antigamente, passava-se despercebido, mostrava-se o bilhete, embarcava-se no avião, a bagagem e paz de espírito intactas; partia-se sem qualquer incómodo. Nos primórdios da minha vida de viagens, era essa a minha grande sorte.

Se já é tão incómodo viajar de avião, é intolerável que isso comece tão cedo, ainda antes de embarcar. Nos dias que correm, as experiências no aeroporto não só constituem um desagradável antegosto de todos os insultos a suportar na viagem, mas também um modo irritante de lembrar ao viajante potencial que ele ou ela é ali um forasteiro, e não só um estranho mas talvez alguém a recear, um possível perigo, um desordeiro, quando não um terrorista — apalpado, descalço, sem cinto, sem casaco, desnudado e simplificado e sujeito a devassa, os nervos à flor da pele, ansioso por se ir embora; tudo isto ainda antes da partida, controlado, sujeito a inspeção antes que possa pensar na viagem que o espera.

Um aeroporto é uma corrida de obstáculos, e por isso pode fazer da viagem um transe amargo. Gradualmente, ao longo de anos, a experiência do aeroporto tornou-se um exemplo extremo de um regime totalitário em ação, tornando-nos insignificantes e suspeitos, privando-nos de controlo. O questionamento dos motivos é tão tosco que a resposta habitual é como a espécie de raiva contida que era a emoção do viajante no leste europeu durante a era soviética, com as suas intimidantes polícias. Viajar era uma libertação; agora é o oposto — viajar de avião, entenda-se. Os jovens viajantes não têm ideia do que se perdeu.

A impressão de concordar com essa intromissão, de que se está a colaborar («É para meu bem»), é pior que humilhante; combina todas as desculpas e evasivas que contribuíram para criar as opressivas ditaduras e tiranias do passado. O despojar-se, em todos os aeroportos, da dignidade de viajante, forçando-o a sujeitar-se, é a antítese do que se procura viajando. Sim, vivemos tempos perigosos, mas se isso significa ceder todo o nosso direito à privacidade, então não compensa a trabalheira de sair de casa.

Há um remédio, mas é para os eleitos, os que vivem num vasto país como o nosso e têm a opção de evitar todos os aeroportos: aqueles que optam pela estrada. A mais reles carripana é melhor que um lugar de primeira classe num avião, porque para nos sentarmos neste temos de nos sujeitar às afrontas do escrutínio oficial e da revista corporal. Mas ninguém tem o direito de questionar sentar-se num carro e partir a grande velocidade. Não há prólogo, apenas o júbilo dum arranque súbito.

A duvidosa conquista de viajar hoje em dia consiste em aguentar o persistente incómodo duma sucessão de aeroportos a fim de chegar a um lugar distante para um breve interlúdio de exotismo, mantendo a ilusão de que isso é viajar. Isto equivale a ser avaliado como um projétil e disparado de um canhão, e é como a maior parte de nós se sente em tal estado, como uma bala humana, atordoada e confusa, na companhia de outras balas de canhão.

Há um caminho melhor, um caminho mais verdadeiro, o velho caminho — a orgulhosa autoestrada, a estrada rolante.

A caminho do Sul

Viajando sem destino específico, deixara a minha casa em Cape Cod, numa antemanhã outonal e húmida, conduzindo o meu carro para sul, desci passando por Nova Iorque e contornei Washington, D.C., prosseguindo até ao anoitecer, e conduzi até Front Royal, na Virgínia, já noite cerrada. Corria o mês de outubro. Dirigia-me ao Sul Profundo, pelo que ainda tinha uma boa parte do percurso por fazer. Mas já conhecia esse estado de transe induzido pela condução de longo curso, a manifestação da hipnose de autoestrada e da white line fever nas longas faixas vazias: o satori da estrada larga, a simples experiência de conduzir transformada em via espiritual.

Normalmente sinto um frémito de ansiedade antes de empreender uma longa viagem. Desta vez sentia apenas alegria, ânsia de partir, sem passaporte, sem inspeção de segurança, sem avião para apanhar, sem filas de espera. Senti um arrepio ao lançar uma navalha para a minha mochila. Enchi-a de livros; levava uma tenda e um saco-cama, nunca se sabe… Tinha esvaziado o frigorífico e levava um saco com comida — sumos e ovos cozidos, uma embalagem caseira com chili, queijo, fruta e garrafas de vinho.

Estava no Sul Profundo porque mal o conhecia, e pelo mero prazer de guiar o meu próprio carro, pela liberdade de não ter de fazer planos ulteriores, porque só na América se pode viajar confiadamente sem destino: a cidade mais modesta tem um lugar para pernoitar, provavelmente nos arredores, provavelmente um motel rasca; e um lugar para comer, na melhor das hipóteses um restaurante de soul food1 mas provavelmente um Hardee’s, um Arby’s, um Zaxby’s, um Lizard’s Thicket ou uma churrasqueira a tresandar a óleo queimado, mas com bom ambiente. Tipicamente, era uma pequena lanchonete com um balcão que expunha uma antologia de pratos fritos — peixe-gato, frango, hambúrgueres, batatas aos palitos ou empadas — comida rústica consumida por toda a gente. Uma funda travessa de quiabo, tão viscoso como coxinhas de rã, ao pé duma panela de couves encharcadas que pareciam notas de dólar cozidas. De oferta sempre um biscuit húmido, e muitas vezes uma bênção. Mantive-me afastado das grandes cidades e das aglomerações costeiras. Mantive-me na LowCountry, na Cintura Negra, no Delta, nos bosques interiores, nas pequenas cidades.

Nos debates presidenciais durante a campanha eleitoral de 2012, os candidatos referiram-se constantemente à classe média americana — como ela estava sitiada, sobrecarregada de impostos, de dívidas e de incerteza, e como cada candidato iria salvar a classe média — e apelavam ao voto. Pelo caminho, em Nova Jérsia, ouvi na rádio que cinquenta milhões de americanos viviam na pobreza, não muitos onde eu vivia, grande número onde eu me dirigia. Dezasseis por cento dos americanos eram classificados como pobres — vinte por cento no Sul, em lugares onde a disparidade de rendimentos era cada vez maior. Os candidatos presidenciais não aludiam ao resgate dos pobres.

— Eles evitam utilizar a palavra «pobres» — disse-me no início da viagem uma assistente social do Alabama, e precisou: — «Pobre» é um eufemismo para «preto».

Os pobres do Sul suscitavam a minha curiosidade. É impossível viajar pelas estradas rurais do Sul e não manter um contacto regular com as classes baixas da América. Eu estava a viajar pelas minhas habituais razões, por irrequietude e curiosidade, para observar lugares que eram novos para mim. Nós viajamos por prazer, para batermos com a porta e mudar de ares, para nos cultivarmos, pelo vulgar atrativo da distância, pela possibilidade de nos transformarmos, pela atitude romântica de se babar com o exótico.

«Você esteve em todo o lado», dizem-me, mas isso é piada. A minha lista de lugares a visitar não só é longa, mas em muitos casos tremendamente óbvia. Sim, estive na Patagónia e no Congo e no Siquim, mas eu — um americano — não estive nos mais espetaculares estados americanos, nunca no Alasca, Montana, Idaho, ou nos Dakotas, e só tive um vislumbre do Kansas e do Iowa. Não tinha viajado até ao Sul Profundo. Quero ver esses estados, não voando para lá mas viajando devagar por terra, percorrendo as estradas secundárias, e desafiando a regra geral de «Nunca comer num lugar chamado Mom’s, nunca jogar cartas com um homem chamado Doc».

Nada é para mim mais excitante do que a experiência de me erguer de manhã cedo em casa, meter-me no carro e conduzi-lo numa longa, sinuosa viagem através da América do Norte. Não há muito que possa superar essa sensação de liberdade — nada de revistas, de passaportes, de confusões em aeroportos, só acelerar o motor e «Come a minha poeira». A longa, improvisada viagem de carro é genuinamente americana e começou com os primeiros automóveis fiáveis, no início do século passado.

A primeira estrada de costa a costa, a Autoestrada Lincoln, foi inaugurada em 1913. Ligando Nova Iorque a São Francisco, essa via fictícia, formada por uma sucessão de estradas de leste a oeste, não foi projeto do Governo dos EUA, mas antes uma ideia concretizada por negociantes privados. Esses homens, todos ligados à indústria automóvel, eram supervisionados por Carl G. Fisher, que fabricava faróis em Indianápolis. (Foi ele que projetou a pista de Indianápolis.) Foi também aprovada pela mesma altura uma estrada norte-sul. Scott e Zelda Fitzgerald fizeram uma famosa viagem num Marmon Roadster de 1918, de Connecticut até ao Alabama, em 1920, três meses após o seu casamento. Scott escreveu o seu divertido relato em A Viagem da Velha Sucata, uma das primeiras narrativas de viagens de carro pelos Estados Unidos.

Seguiram-se muitos outros livros da estrada: os de Henry Miller, Kerouac, Steinbeck, e Heat-Moon’s Blue Highways, de William Least, foram os mais notáveis. Das viagens por estrada que Nabokov levou a cabo por toda a América com a mulher ao volante, buscando borboletas, resultou Lolita, um romance que é também acessoriamente uma viagem por estrada. The Dog of the South, de Charles Portis, é um dos grandes romances de viagem por estrada, começando no Arkansas e terminando nas Honduras, jornada selvagem, divertida e repleta de sabedoria: «O carro carburava bem e eu resplandecia no júbilo do voo solitário. Era quase um estado de graça.»

Desde o advento do automóvel que as viagens por estrada foram sendo transformadas em narrativas, tanto na América como na Europa. Rudyard Kipling foi um dos primeiros; comprou um Rolls-Royce em 1910, e o seu chofer conduziu-o pela Inglaterra enquanto ele ia tomando notas. Edith Wharton era uma entusiasta automobilista; fez a sua primeira viagem em 1902, comprou um Panhard-Levassor em 1904, e depois um Pope-Hartford preto. Wharton escreveu A Motor-Flight Through France (1908), cuja primeira frase é: «A viatura motorizada ressuscitou o romance de viagens.» Tal como Kipling, ela tinha chofer, e o amigo Henry James era muitas vezes o passageiro. James gostava dos carros dela e chamou ao último o «veículo da Paixão».

«James cresceu em admiração por ela e entusiasmo pela sua energia», escreveu Colm Tóibín em Vogue of the Master. «Durante uma vaga de calor numa das suas estadas em The Mount» — a propriedade de Wharton no Massachusetts — «o único alívio que James encontrava o de “conduzir sem cessar”. Eles conduziram, escreveu Wharton, “diariamente, incessantemente, quilómetros e quilómetros de brilhante paisagem que jazia inerte sob o bafo do calor. Conforme íamos desfilando, ele sentia-se fresco e feliz, o seu moral subia.”»

Embora as estradas na América sejam todas idênticas, e previsivelmente amenas, os lugares e as gentes da América são muito diversos e põem outros problemas. As estradas em geral representam prazer sem esforço e normalizado, apesar do trânsito, do qual ninguém quer ouvir falar. Isso torna as chegadas e os encontros abruptos uma coisa surrealista — no mesmo dia, conduzindo da minha casa em Cape Cod, tão familiar, e na mesma estrada, ao anoitecer, dando por mim numa paisagem completamente diversa, no meio de gente que, embora cordial, era avessa ao relacionamento.

Em África, na China, na Índia e na Patagónia, os habitantes locais parecem gratos por serem visitados por um estrangeiro. Esse é o drama, a cor, o encontro no familiar livro de viagens. Mas, nos Estados Unidos, a visita de outro cidadão não é ocasião para ensaiar a tradicional hospitalidade ou para articular a fórmula árabe «Salam aleikum ya dayf al-Rahman! A paz seja contigo, hóspede do Misericordioso!», ou a versão Hindi: «Bem-vindo! Atithi devo Bhava! O hóspede é Deus!»

O mais das vezes é-se saudado com desconfiança, hostilidade ou indiferença. Nesse particular, os americanos podem ser mais desafiadores, mais difíceis de intimar, mais fechados e desconfiados e em muitos aspetos mais estranhos do que qualquer outro povo que conheci.

Os vinte por cento submersos

Viajando num espírito inquiridor, achava-me no Sul porque quase nunca lá fora e sabia muito pouco acerca dele. Toda a gente sabe que em arrogantes bolsas do Sul há riqueza e requinte e boa vida — propriedades, coudelarias, boa mesa, cidades impecáveis, subúrbios chiques, alguns dos melhores imóveis da América.

Mas isso é o Old Magnolia South, e longe disso, embora não tanto, há fome e imundície e grande pobreza. As partes mais pobres da América podem também ser encontradas nesses estados soalheiros, nas mais belas partes do Sul, as áreas rurais: as terras baixas da Carolina do Sul, a Cintura Negra do Alabama, o Delta do Mississippi, os Ozarks do Arkansas. Essa pobre gente é a seu modo mais pobre (como eu iria constatar) e menos capaz e mais desesperançada do que muitos povos por entre os quais viajei nas partes mais recônditas da África e da Ásia. Vivendo no interior mais profundo, em comunidades desamparadas e cidades moribundas e à margem, existem na obscuridade.

Os americanos pobres, que possuem muito pouco, ainda têm a sua privacidade — em muitos aspetos é o seu derradeiro bem, e resistem a perdê-la. Isso é um desafio para um viajante que tem curiosidade de saber: que fazem as pessoas quando parecem não fazer nada?

O viajante, ao eleger determinada estrada, inventa o país, mas o viajante sincero não pode inventar experiências, e essas experiências são a matéria da narrativa. Muitos livros foram escritos sobre as evidências excitantes do Sul, mas eu tenho por hábito evitar as cidades febris e os óbvios prazeres, dando preferência aos lugares recônditos e às cidades mais modestas, para encontrar os vinte por cento submersos.

Pontos indianos

Numa estrada que sai de Front Royal («Ain’t got but one») e por um desvio («Cain’t miss it») ao longo da Skyline Drive através do Parque Florestal de Shenandoah, espetacularmente belo nesse soalheiro dia de outono, as frágeis folhas rutilantes de vermelhos e amarelos, agitando-se e revolteando como farrapos pela estreita estrada sinuosa ao longo da cumeada, o vale lá em baixo visto de mil metros de altitude, lembrei-me do Grande Vale do Rift, em África.

Um americano não pode viajar pelo mundo sem voltar ao seu país e fazer comparações. As paisagens da África Oriental afloravam à minha mente ao longo do dia conforme ia passando por New Market e Harrisonburg e Wytheville, lembrando-me das árvores retorcidas, das terras altas e das aldeias e lojas de indianos que se tinham instalado por toda a África Oriental como lojistas e comerciantes, conhecidos por dukawallahs. O Grande Vale do Rift, arruinado por recentes massacres tribais e repleto de aldeias de refugiados, não aguentava a comparação com esta majestosa paisagem.

Guiei todo o dia encantado com essas colinas douradas, as folhas caindo e o cheiro a estrume entrando pela janela.

Ao cair da noite em Bristol, no extremo sudeste da Virgínia, no sopé dos Apalaches, entrei na receção dum motel barato e fui bafejado com o forte aroma de incenso que em parte eliminava o cheiro a caril, cheiro de qualquer interior na Índia, de cada duka indiana em África.

— Sim?

Um homem pequeno, carrancudo, assomou do reposteiro de contas da porta das traseiras, outra característica indiana, trazendo mais aromas consigo, cheiros que sugeriam todas as nuances duma narrativa, pauzinhos de incenso fumegando em tributo aos deuses por trás da cortina, mascarando outros odores, um perfume que faz comichão nos olhos.

Numa paisagem de brancos e negros, a pessoa mais conspícua que eu vi foi esse homem, o meu primeiro indiano no Sul, proprietário-gerente dum motel, ponto indiano, o sinal na testa em vez da pena do índio… Motéis, bombas de gasolina, lojas de conveniência: controlavam esses negócios, e o primeiro foi o protótipo de todos os que se seguiram. Consta no Sul que os brancos cederam esses negócios a indianos num ato de desafio, a fim de evitar que caíssem em mãos de negros. Encontrei centenas de outros indianos, quase todos eles do estado de Guzerate, no oeste da Índia, quase todos imigrantes recentes.

O nome dele era Mr. Hardeep Patel, de Surat, no Guzerate. Os guzerates, vistos com sobranceria pelos do Punjab, são indianos modestos e simples: lojistas na África Central e Oriental, armazenistas e funcionários dos correios na Grã-Bretanha, proprietários de motéis no Sul dos EUA. Mr. Patel tinha imigrado para o Canadá, passara aí alguns anos, depois cruzara a fronteira para se estabelecer nos Estados Unidos. A primeira coisa que ocorre é esta: um pobre homem labutando sozinho no seu negócio! Mas eles são os primeiros a revelar que se relacionam com todos os outros guzerates da cidade ou do distrito, os Patels e Desais e Shahs.

— Eu conhecia algumas pessoas — outros indianos, donos de motéis. Eles ajudaram-me.

— Há outros indianos em Bristol?

— Quinze famílias.

Interessante: ele falou de famílias, a unidade social indiana, e não de indivíduos.

Pela manhã, já desocupados os sete ou oito quartos do Budget Inn, foi Mr. Hardeep Patel que vi empurrando um cesto de roupa suja de quarto em quarto, enchendo-o com roupa de cama e toalhas sujas. Ao cabo de quase quarenta anos, parecia ser ainda ele que limpava os quartos e, nessa manhã pelo menos, não tinha criados ou empregadas para o ajudar. Indicava isso que o negócio era fraco e Mr. Patel se achava em dificuldades? Não, talvez a explicação residisse no novo Lexus estacionado defronte do motel.

Há outra categoria de imigrantes indianos no Sul. Há bastantes anos que os médicos indianos têm acesso facilitado ao visto se aceitarem exercer nas regiões mais pobres (designadas «áreas carentes») da América. Agora esse programa chama-se National Interest Waiver.

A partir dos anos 90, milhares de vistos foram passados ao abrigo deste programa preferencial. Mas a subsequente história do bem-sucedido candidato ao visto nunca era verificada. Muitos desses vistos foram passados pelo consulado dos EUA em Madrasta a médicos do estado Tamil Nadu, e aos de Hyderabad no adjacente Andhra Pradesh, sendo suposto que o beneficiário exerceria durante vários anos em certas áreas carenciadas, nos Apalaches em particular.

Pouco tempo após a implementação deste programa, surgiu um tipo característico de vistos falsos: muitos desses médicos indianos inscreviam-se, através do Serviço de Imigração e Naturalização, como «ajudantes de médico» para entrar nos Estados Unidos como trabalhadores temporários (H-1B) e montar os seus consultórios. Eram invariavelmente médicos que desejavam obter cidadania americana. As autoridades aperceberam-se de informações falsas no processo de inscrição, o que levou à descoberta duma fraude organizada.

Nem o volume de trabalho nem os rendimentos dos médicos nos Apalaches justificavam a necessidade desses «assistentes». Tratava-se obviamente de um estratagema para os médicos chegarem aos Estados Unidos e aí arranjarem meio de se instalarem. Muitos dos médicos indianos (sobretudo do Hyderabad, grande parte deles envolvida na obtenção fraudulenta de vistos) foram parar aos Apalaches, pelo menos durante vários anos, e então passaram a práticas mais lucrativas em áreas urbanas, quer legalmente, quer clandestinamente.

Embora tivesse recebido boa formação, Mr. Patel não era um desses médicos. O seu desejo sempre fora deixar a Índia e estabelecer-se na América. Enquanto conversávamos, ouvi uma mulher idosa ao telefone por detrás duma cortina, talvez Mrs. Patel. Esse homem e a mulher viviam no motel tal como as famílias indianas da África Oriental viviam nos fundos das suas lojas. Os Patels tinham três filhas, todas casadas.

— Você arranjou os casamentos?

— Casaram-se por amor — disse ele, sacudindo a cabeça. — À americana.

Não havia retratos das filhas na parede onde figuravam retratos de família — isso teria parecido algo indecente. Viam-se os netos, a maior foto era a do filho de dezasseis anos, que Mr. Hardeep Patel descreveu orgulhosamente em três palavras: «Ele joga golfe.»

Big Stone Gap

Ouvi pela primeira vez o nome Big Stone Gap há quarenta e tal anos, em Charlottesville, Virgínia. Essa foi a minha segunda incursão no Sul.

Da primeira vez tinha onze anos, passei o verão com meu tio, médico militar, em Fort Lee, Virgínia, adjacente a Hopewell, no rio Appomattox. A vizinha cidade de Petersburg era famosa pela Batalha da Cratera, perdida pela União, e pelos subsequentes oito meses de cerco da cidade pelos soldados da União, que levaram à rendição. Do verão de 1952, recordo-me das visitas ao campo de batalha, dos pequenos letreiros nas portadas de restaurantes onde estava inscrito BRANCOS (explicava num sussurro o meu tio), as estradas de terra vermelha, um passeio num carrinho de mão num caminho de ferro rural, e uma visão que nunca me saiu da cabeça: uma enorme e estridente calíope num vagão, órgão dourado com ornatos pintados de vermelho, alta chaminé fumegante e tubos borbotando vapor e oscilando ao rodar, conduzida por um branco ostensivamente sentado à frente, de chapéu alto e sobrecasaca. E quando a variegada frente da calíope passava por nós, a vista da parte traseira: um negro de fato-macaco andrajoso, as pernas escarranchadas numa plataforma, a cara perlada de suor, lançando pazadas de carvão na ardente fornalha da caldeira. Já então, ainda rapaz, eu vira nessa calíope uma profunda metáfora social.

Em Charlottesville, vinte anos depois, aquando da minha segunda estada no Sul, lecionei escrita criativa durante um semestre. Substituía o escritor-residente, Peter Taylor, que estava de férias. Taylor era um razoável contista, amistoso e simpático professor. As suas raízes estavam no Tennessee, onde o avô fora governador e mais tarde senador. Peter Taylor era respeitável e, como não tardou em assinalar, membro da fidalguia sulista, e essa elevada ancestralidade trazia consigo um arrogante provincianismo retrógrado que me fez sorrir. Em conversa, esse aliás simpático e subtil homem tinha todas as convencionais presunções do Sul: uma visão afetada da Guerra Civil, dissimulada troça dos Yankees, uma postura defensiva sobre os obscuros caprichos sulistas, profunda suspeita das ruturas do movimento dos direitos civis e uma inocente ou crédula noção (comum no Sul) de que os sulistas brancos entendiam os negros de um modo muito subtil, inacessível aos Yankees. Não podia vê-lo senão como um convicto sulista, receoso dos forasteiros.

A diferença de idades poderá também ter sido um facto. Eu era um jovem rebelde cujos livros se iam vendendo; ele era vinte anos mais velho do que eu, membro da academia, com as obras esgotadas, e recebia um ordenado de professor. Parecia encarar-me com irónico divertimento, como certos sulistas costumavam fazer, como um arrivista de outro país, o frio, férreo Norte.

Para meu grande espanto, alguns membros da faculdade troçavam maliciosamente de William Faulkner, outro forasteiro, que fora escritor residente em Charlottesville dez anos antes e cuja derradeira paixão na Virgínia (só lhe restavam alguns anos de vida) era cavalgar — à caça da raposa. Pintaram-lhe o retrato, Faulkner parece um inglês empertigado, no fato de montar do Farmington Hunt Club. Mas a troça era invejosa, o tom dos académicos, amargo, e isso foi notado por um dos meus colegas, Joe Blotner, que mais tarde o referiu na sua biografia de Faulkner. Blotner escreveu: «Algumas pessoas em Charlottesville, estetas e intelectuais, zombavam do que para eles eram afetações indignas de um grande escritor.»

Por acaso, na sala de espera de um hospital em Charlottesville, encontrei um casal desamparado, muito pobre, que fora ali procurar tratamento para o filho. Viviam, disseram eles, em Big Stone Gap. Esqueci-me dos nomes deles, mas ficou-me o nome da cidade, e tornou-se um daqueles nomes evocativos de lugares que me ficaram na cabeça e destinei para procurar algum dia — nomes tentadores, como Zanzibar e Patagónia, do tipo que acena ao viajante.

Big Stone Gap fica na Virgínia, no seu extremo, na convergência montanhosa do Kentucky e do Tennessee, e a Carolina do Norte fica só a trinta e cinco quilómetros. Fui até lá desde Bristol por uma estrada que ziguezagueava por abruptas colinas e atalhava através dum vale fluvial — as escarpas florestadas tão belas, as cidades pelo caminho tão pobres, muitas delas acampamentos de caravanas e desmazelados bangalós à berma da estrada e lojas: «Thrift Store», «Discount Store», «Family Dollar Store», «Budget Store», «Affordable Stone Monuments». Aqui e além entre as caravanas e o que restava de velhas casas agrícolas de madeira erguiam-se algumas solitárias mansões de arenito vermelho e granito, quase todas pomposas residências de barões do carvão. O carvão aí é a indústria, e tabuletas em letras de forma presas aos postes telefónicos anunciavam: APOIE O CARVÃO.

Big Stone Gap surgiu ao cabo da estrada plana, algumas ruas perpendiculares dispostas num súbito vale, envolto por duas bifurcações do rio Powell, a maior parte das suas lojas defuntas ou moribundas ao sol do meio-dia.

Uma frontaria de estabelecimento anunciava-se como loja de artesanato, olaria e joalharia artesanal e quadros para venda. Parei lá porque não via quaisquer outras lojas. Era gerida por Mrs. Moore, que fazia joias. Perguntei-lhe pelas minas de carvão.

Mrs. Moore, que tinha vivido vinte e quatro anos em Big Stone Gap, disse:

— Não sei onde ficam: são todas privadas.

Na luminosa e vazia cidade, as fachadas de tijolo das lojas estavam encerradas, embora Mrs. Moore dissesse que no fim de semana o Mountain Empire Community College organizaria um Dia do Artesanato. «Haverá leitura de histórias e música bluegrass

O centro da atividade social em Big Stone Gap era o Mutual Drugstore em East Wood Street, um local que era não só farmácia e loja de conveniência mas também cafeteria, com a ementa traçada a giz numa lousa. «Almoço Especial — Peito de frango — Puré, feijão-verde, torta de maçã, torta de natas.» Era também um local de encontro, gente em roupa de trabalho a cirandar pelo meio dos escaparates, «Que fazeis?» e «Se soubesse que vinham fazia-me convidar para o almoço. Eh, eh.»

Apesar da aparente vacuidade da cidade, havia um ar de satisfação, à mistura com resignação, um lento e compassado modo de caminhar, inclinado para a frente como fazem as pessoas gordas, pressionadas pela barriga inchada, ou as magras e saltitantes, lançando uma perna atrás da outra.

Perguntei por médicos indianos.

— Há alguns médicos hindus por aqui.

Dois em Big Stone Gap, Dr. Karakattu (um nome kerala) e Dr. Gupta, e um na cidade de Apalaches, Dr. Tarandeep Kaur. De tantos milhares que tinham recebido vistos através do National Interest Waiver, a maior parte parecia ter-se desinteressado.

Não vi qualquer rosto negro em Big Stone Gap, nenhum na cidade, nenhum no caminho, nenhum em Weber City, na linha de demarcação do Tennessee, que cruzei. Não sabia então o que vim a saber depois, a geografia racial do Sul: as cidades e vilas nas montanhas e colinas são sobretudo brancas, e nas terras baixas, a grande extensão de terra arável plana onde se cultivava algodão e tabaco, são sobretudo negras — a persistência da história.

Loja de armas

Parei numa loja de armas no meu trajeto a caminho da Carolina do Norte. Era, como a maior parte dos outros armeiros que vi, também uma loja de penhores, já que o mais valioso e penhorável item numa casa da região montanhosa é uma arma de fogo. As lojas de penhores revelavam muito das posses em meio rural — pude constatar as coisas que as pessoas empenhavam ou vendiam, armas sobretudo, mas também televisores, gravadores de vídeo, computadores, obscuros acessórios para automóveis, relógios de pulso, mas pouca joalharia. Em muitas lojas de penhores havia um mostruário de lembranças da Guerra Civil, ou pontas de flechas exumadas localmente, ou facas. Uma extensa, ferrugenta e sebosa categoria era constituída por materiais de construção — berbequins, roldanas, gadanhas, chaves-inglesas, martelos, indicadores de pressão, ajustadores de tubos, pistolas de pregos e serras de fita, tudo usado e em bom estado, instrumentos da arte de homens que já não trabalhavam.

Como eram compradores e vendedores, os armeiros/penhoristas eram geralmente conversadores, o que jogava a meu favor. Sempre que parava num desses locais, mostrava-me interessado na compra de uma arma, explicando que era yankee, estava longe de casa e não tinha residência no Sul.

O vendedor inevitavelmente mostrava-se pesaroso perante a ideia de alguém como eu a viajar pelo Sul sem uma arma.

— Não posso vender-lhe uma pistola — disse o homem da loja. — Mas posso vender-lhe uma arma de cano longo; qualquer uma das que estão à vista, munições também. Uma AK-47, se tivesse alguma.

Aquilo pareceu-me absurdo, mas alguns meses depois, no Mississippi, vi à venda numa feira de armas duas AK-47 fabricadas na Roménia.

Para pressioná-lo, disse:

— Esperava comprar uma pistola, talvez uma Glock?

— Não posso. Aliás, só os escarumbas as têm.

Desafiar a descriminação racial dele? Não, deixá-lo falar. Disse:

— É estranho, não tenho visto muitos pretos por estes lados.

— Pois. Ainda bem, hã?

Ouvindo isto, num balcão ao lado, uma jovem vendedora — uma branca gorda — e um polícia igualmente gordo fungaram e taparam as bocas, contendo o riso com as mãos.

Encorajado por essa reação, o homem disse:

— Eu estive em Columbus, Ohio. Um lugar cheio de escarumbas. Mas lá em Ohio eles disseram-me: «Você é um pacóvio. Você tem uma perna mais curta de tanto escalar os montes.»

Ele demonstrou isso erguendo uma perna e adiantando o corpo de lado e saltando um pouco, como a escalar uma abrupta escarpa.

— Aguentei aquilo enquanto pude — disse ele, referindo-se ao termo «pacóvio», que não é o convencional e divertido aparte do humor televisivo mas desdenhoso e amargo nas comunidades das colinas dos Apalaches, insinuando pobreza e ignorância. — Por fim, não aguentei mais. Disse a esses rapazes do Ohio: «Vocês também têm uma perna mais curta que outra, de caminhar com uma perna no passeio e outra na valeta.» — E demonstrou isso com as pernas — «Para deixarem os pretos passar.»

Asheville: «Nós chamamos-lhe o Quarteirão»

Deixei Big Stone Gap e passei pela loja de armas no sentido da Carolina do Norte, de estrada em estrada, a caminho de Asheville, onde queria verificar algo que não me saía da cabeça. O meu falecido amigo e conhecido pintor americano Kenneth Noland nasceu em Asheville, e aí viveu de 1924 até 1942, quando se alistou no exército. Desmobilizado, regressou para frequentar o liberal e experimental Black Mountain College, que ficava a vinte e tal quilómetros de sua casa.

Entretanto, Noland integrou o movimento Color Field, da vanguarda dos anos 60, pintores de cores puras em manchas ao acaso, ou formas geométricas — muitas pinturas de Noland, do tamanho duma porta de garagem, parecem alvos de tiro ao arco, ou símbolos para dragonas de gigantes. Os pintores Color Field viam os artistas figurativos como botas de elástico. «Picasso é merda», costumava Ken Noland murmurar para mim com um sorriso, e acreditava piamente que a missão da pintura moderna era aspergir a tela com cores brilhantes, eliminar o significado e a emoção afogando-os numa estúpida pintura sem sentido. Em muitas obras Noland recorria a um rolo de pintura de trinta centímetros preso a uma haste, e trabalhava sobre a tela estendida no chão, como um homem impermeabilizando um convés. Nunca o vi pegar num pincel. Ele disse-me que nem sabia desenhar um coelho. Curiosamente, Noland tornou-se o menino bonito dos decoradores de interiores, que enfeitavam quartos para clientes ricos servindo-se das suas pinturas como pretexto, a condizer com as cores das suas chitas; no arrevesado jargão deles, as cores primárias das telas simples dele «iam bem com o papel de parede».

Muitas das pinturas de Noland e das suas teorias pareciam-me fogo de vista, mas o homem era um rabugento encantador, e fomos muitas vezes pescar juntos no Maine, onde ele vivia. Nos momentos tranquilos evocava o Sul. Um dia, bebendo, falando-me da sua juventude em Asheville, disse-me:

— Sabes que mais? Eu distribuía jornais. Ia para todo o lado, até distribuí jornais em Niggertown.

Para puxar por ele, eu disse:

— Quem vivia lá, Ken?

— Quem julgas que lá vivia? Negros.

— Como chamavam eles a essa parte da cidade?

Ele franziu o cenho, confuso, e pôs-se a resmungar. Ele não fazia ideia, mas logo viu o absurdo duma pessoa negra em Asheville identificando assim esse bairro. Ele usava a palavra a cada passo, mas não era racista. Crescera na segregada Asheville. Intitulava-se um pacóvio, mas, ainda assim, indignava-se ao contar-me histórias de como os negros em Asheville eram condenados a sentar-se na galeria do cinema da baixa. «E nunca verás nenhum num restaurante ou sequer a caminhar pelo passeio da rua principal — não se atreveriam.»

Ele falava dos anos 30 e 40, e em 1950 (quando as relações entre as raças continuavam a ser muito más e apoiadas por leis que preconizavam a segregação racial) deixou definitivamente Asheville e passou o resto da vida no Norte.

Mas quando ele se referia à terra de origem, falando da sua juventude, caía por vezes na linguagem do passado, e a essa distância não via negros, via niggers, a viver em Niggertown.

Asheville, que prosperou como cidade de spa, imersa nos saudáveis ares das montanhas Blue Ridge, dispõe de dez faculdades e ainda mais hospitais e bares de sushi. Para a população que vive num raio de centenas de quilómetros constitui um centro cultural. A cidade é sem dúvida o tema obsessivo de Thomas Wolfe, que aí nasceu e aí está sepultado. Nas minhas viagens, ela foi, ou assim me pareceu, uma das mais felizes, mais acolhedoras e obviamente mais bem cuidadas cidades das que vi no Sul.

Eu visava o Sul Profundo, mas tinha algo em mente que queria esclarecer quando chegasse a Asheville. Meti conversa com um homem no museu da cidade e perguntei-lhe onde vivera historicamente a população negra — onde Ken Noland fora um jovem ardina nos anos 30.

— Vire à direita — disse ele, apontando da frontaria do museu —, e de novo à direita. E siga em frente.

Segui as indicações dele, atravessando a praça principal, depois descendo, até ao que era obviamente, ao cabo de dez minutos de percurso, a zona negra de Asheville. «Ele veio devagar tendo passado o quartel dos bombeiros e a Câmara Municipal. Na esquina de Gant, a praceta estreitava-se até Niggertown, como se tivesse sido dobrada nas margens», escreve Wolfe em Look Homeward, Angel. «Niggertown», um proibido e sufocante aspeto do submundo de Asheville, figura a cada passo na narrativa. Um dos dramas no romance é o de Eugene Gant, vendedor de jornais em Niggertown, onde também Thomas Wolfe vendia jornais. Que coincidência! Ocorreu-me que ao proclamar ter feito distribuição de jornais nessa parte de Asheville, Ken Noland — habitual contador de histórias mirabolantes, assumindo a cada passo experiências de outros artistas — podia estar a apropriar-se um pouco da história pessoal Wolfe.

Seguindo para baixo, mergulhei dum recinto de edifícios de granito numa ensolarada praça que dava para ruas arborizadas com humildes casas de madeira, caminhando pela sombra. Vendo-me aproximar, um homem acenou-me recuando da imagem que estava a pintar numa parede da cidade, um grande retrato de um jogador de basquetebol no uniforme com estrelas e listras dos Harlem Globetrotters. Chamava-se Ernie Mapp.

— Bela imagem — disse eu.

— Bennie Lake — disse Ernie Mapp. E, indicando o uniforme do atleta acrescentou: — Nascido em Asheville. Foi Globetrotter. E era uma boa alma.

Vendo-nos a conversar, um homem veio ter connosco. Era Tim Burdine, robusto e barbudo, de gorro e enfiado num pesado casacão, de braço ao peito.

— Parti-o — explicou ele.

Tim andava pelos sessenta, Ernie era muito mais novo.

— Eu aqui sou um estranho e estou algo perdido — disse eu, após uns momentos de conversa. — Como chamam a esta parte da cidade?

— A isto nós chamamos o Quarteirão — disse Tim.

— Ou East End — observou Ernie. — Descendo Eagle Street em direção a Valley Street.

A pintura de Ernie no muro ao fundo de Market Street fazia parte de um projeto de arte urbana, o Triangle Park Mural Project, em memória de gente local, quase todos negros, painéis de eventos históricos com dois metros de alto. O site do Triangle Park Mural Project descrevia-o como «um mural coletivo que comemora a história do Quarteirão, a histórica zona comercial dos negros de Asheville». Os pintores e organizadores eram todos locais também, tanto negros como brancos, imbuídos de orgulho cívico.

— Aquela é imagem de Nina Simone — disse Tim, levando-me até outra parte do mural.

A cantora estava pintada com o cabelo repuxado no seu icónico perfil de Nefertiti, e rodeada pelos músicos.

— Aqueles tipos a tocar são do grupo Bite, Chew e Spit — disse Tim. — Deve ter ouvido falar deles. A banda que deu origem aos Orange Peel. O Kit-Kat Club era aqui ao pé, em Market Street.

Nesse fresco fim de tarde, outros pintores estavam absorvidos a trabalhar em diversos painéis separados do mural.

— Quem acha que é este fulano? — perguntou-me Tim Burdine, apontando para um esguio jovem negro com uns óculos escuros cheios de estilo, um vistoso gorro na cabeça, fazendo pose, em tamanho natural, num dos murais. Tim aproximou-se e apoiou-se na figura pintada.

— Sou eu! Grandes óculos; estava mais magro, e tinha estilo. Dezoito anos. Um rapaz do liceu.

Passou um carro, música estridente — Get Up Offa That Thing, de James Brown — e, estacionando, saiu dele uma mulher avantajada, deixando a música a tocar.

— Esta é a Bubbles — disse Tim, abraçando-a com o seu braço válido. — Ela também é artista.

— Faço por isso — disse Bubbles, acompanhando a cadência de James Brown. Ela sorria, uma presença maternal, da idade de Tim; e, passeando-se por Triangle Park, essa grande mulher, avantajada no seu pesado casacão, parecia dominar tudo.

— Ela é presidente do nosso clube, não é, rapariga? — disse Tim, seguindo-a.

— Que clube é esse?

— Nós chamámos-lhe Just Folks Club.

Sentámo-nos a uma mesa de piquenique, Tim, Bubbles e eu, enquanto Ernie tornava ao seu mural armado com um longo pincel.

— Sim, pois, pois, nós assistíamos aos filmes sentados na galeria — disse Tim, respondendo a uma das minhas perguntas —, e isso durou muito tempo. A segregação não terminou em 1964 com a Lei dos Direitos Civis. Durou até aos anos 70.

— E mais — disse Bubbles.

— Acabou-se — disse Tim. — Ninguém se zanga. Não há ressentimento. Todos se dão bem.

Quando me levantei para partir, Tim disse:

— Volte daqui a alguns meses, este projeto estará terminado. Estamos a preparar uma cerimónia de inauguração. Você será bem-vindo.

«Quem sou eu?»

Deixando Asheville no dia seguinte, por estradas secundárias com renques de cânfora, onde nas cercas de algumas casas as videiras vetustas exibiam cachos de uvas, e através de Flat Rock (onde Carl Sandburg viveu os últimos vinte e dois anos da sua vida no seu rancho de cabras, Connemara) e da vila de Zirconia, e pela linha de demarcação do estado até à Carolina do Sul e Greenville, ia escutando no rádio «Ramblin’ Man», dos Allman Brothers.

Comecei a ruminar sobre como se pode ir vagueando pelo resto do mundo, mas há sempre obstáculos, e por vezes sérios riscos, e muitos impasses. Na América é-se livre de viajar sem destino, simplesmente circulando. Isso convinha ao meu feitio inquieto e ao meu gosto pela estrada, e era um alívio da incerteza e do suspense que sentira em viagens anteriores — a mais recente, em África, por exemplo. E até nas zonas mais pobres da América, onde há barracos e caravanas ferrugentas, as estradas são magníficas.

Passei a noite em Greenville, Carolina do Sul, jovial e fervilhante de atividade nessa noite de sábado, com a baixa repleta de restaurantes e bares. Há menos de cinquenta anos era fortemente policiada e reservada a brancos, as ruas principais vedadas aos negros, a quem era negado o acesso à biblioteca pública ou comer em qualquer dos restaurantes ou pernoitar em qualquer dos hotéis. Na minha geração, e de muitos naturais de Greenville, as restrições raciais foram levantadas e as leis revogadas. Eu estava a viajar no quinquagésimo aniversário do movimento dos direitos civis, geralmente citado como uma luta, mas a mim parecia — e a alguns dos negros com quem falei — antes uma guerra, com muitas batalhas e muitas bombas e muitas mortes. Mas nada lembrava isso nas festivas ruas de Greenville dos dias de hoje.

Pela manhã, fui de carro até Columbia, contornando a cidade, procurando um local para almoçar. Optei por uma refeição sulista no Lizard’s Thicket. O seu lema era «Real Country Cooking», e da ementa constava frango e empadas, fígados fritos de frango, fígado de cebolada, churrasco de porco, rolo de carne, biscuits e molho de carne.

Quando ia a sair do carro, um homem robusto abeirou-se do carro junto ao meu, vindo do restaurante. Ele arvorava o ar sonolento, satisfeito, moroso, de alguém que acabou de comer um lauto almoço.

— Viva. Como vai?

— Estou bem — disse eu. — Embora com fome.

— Opte pelo fígado de cebolada — disse ele. — É delicioso. É o prato do dia.

— Obrigado pela sugestão. Estou de passagem. Sou do Massachusetts.

— A que igreja pertence?

Nunca um estranho me perguntara isso, nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte do mundo. Isso aconteceu-me com tanta frequência no Sul que me despertou a curiosidade sobre as crenças místicas daquela gente. A pergunta era quase sempre assim formulada: «A que igreja pertence?» As pessoas perguntavam isso sem mais nem menos e, como eu não tinha uma resposta pronta, preencheriam o silêncio com «Eu sou da Hope Chapel», ou «Nós somos AME» — a Igreja Metodista Episcopal Africana, fundada havia mais de duzentos anos pelos negros libertos na Pensilvânia. Ou «Shubach Deliverance World Ministries». Ou alguém faria preceder a sua apresentação com: «Nós somos membros de Heaven on Hah.»

A pergunta levou-me a olhar mais detalhadamente para o homem. Era pálido e anafado e com falta de ar, cabelo ralo, levemente sardento, envergando camisa de manga curta, gravata às riscas. Suava e arrotava, piscando os olhos para mim sob o sol brilhante. Parecia pouco saudável, tinha um ar clerical, levava três canetas no bolso da camisa, mas aparentava ser hospitaleiro. Pareceu-me que o surpreendera a minha hesitação perante a pergunta dele sobre a minha religião.

— Eu sou um batista não praticante — disse ele, como para me encorajar. — Você parece-me um professor, alguém que lida com livros ou o ensino. Chamo-me Al McCandless, prazer em conhecê-lo. Trabalhei em seguros, ainda dedico algum tempo a isso, mas, é curioso, sempre escrevi poesia. Ocorre-me uma ideia e transformo-a num poema. Quando eu tinha quarenta anos descobri que tinha sido adotado. A minha avó contou-mo por acaso. Estávamos um dia a conversar, algo a respeito do meu irmão, que se portava mal, acho eu, e a velha senhora disse: «Bom, sabes, tu foste adotado, como o teu irmão.» Eu sabia que ele fora adotado, mas pensava que eu era um filho natural. Perguntei aos meus familiares, mas tudo o que eles disseram foi: «C’os diabos, quem te disse isso?» Não era uma resposta, por isso insisti, e eles disseram: «Tu és dos nossos, sais a nós, sempre foste nosso.» Mas eu percebi onde eles queriam chegar e, depois de eles terem falecido, encontrei a minha verdadeira mãe. Ela tinha oitenta anos, vivia a poucos quilómetros do lugar onde eu nascera. Frequentara apenas o ensino básico. Tinha mais alguns filhos; assim eu tinha uma irmã e duas meias-irmãs. Vivi três anos com ela, até ela morrer. Mas eu também pensava na minha outra mãe, no meu irmão, o adotado, e no lugar onde cresci. Eu não sabia que mais fazer, e escrevi um poema a respeito disso.

Entretanto ele arfava, esfregando o rosto perlado de suor, piscando os olhos para mim — olhos húmidos e sobrancelhas pálidas. Tinha uma grande boca quadrada e uma língua preguiçosa, mas a sua expressão sofrida podia ser efeito do sol, da reverberação e do calor.

— Intitulei o poema «Quem sou eu?».

— Grande pergunta — disse eu.

Escancarou a boca, que se fez quadrada.

— Quem sou eu? — E acrescentou: — Você vai gostar do fígado de cebolada.

Do interior do Lizard’s Thicket, um negro de cabelo grisalho com um boné na cabeça ia a sair e dizia:

— Vim eu deixar aqui o meu dinheiro para vocês. — Depois tirou o boné e disse: — Vim para vos ver, mandar-vos para o diabo a todos, fazer-me sentir melhor.

«Nu man, yanna weep-dee, we dan-ya»

Eu estava a descobrir que ao longo do Sul era possível encontrar muita gente por casualidade, e que um mero olá podia provocar uma torrente de reminiscências, como o lamento de Al McCandless. Mas algumas pessoas eram difíceis de descortinar e relutantes em se abrirem, sobretudo se a subsistência delas era problemática e vivessem abaixo do limiar da pobreza, no silêncio e na sombra.

O que inspirou a minha viagem através do Sul Profundo foi a noção de que como viajante as pessoas que fora encontrando em África e Índia e noutros lados me iam sendo cada vez mais familiares. Não me refiro à sua comum humanidade, mas às suas circunstâncias. Muitos americanos eram tão pobres como muitos africanos, ou tão confinados em comunidades rurais como muitos indianos; estavam bem longe de ter alguém que cuidasse deles, também, sem acesso a alojamento condigno ou assistência médica; e havia porções da América, sobretudo no Sul rural, que evocavam o que muitas vezes se pensa do Terceiro Mundo.

O nome Bernie Mazyck foi-me indicado como o de um homem que poderia proporcionar uma apresentação. Bernie era o fundador e CEO da Associação de Corporações de Desenvolvimento Comunitário da Carolina do Sul, que despertava a minha curiosidade, mas também me intrigava pelo seu nome. Bernie Mazyck era amigo de um amigo. Eu tinha ido até Columbia para o encontrar e procurar o seu apoio.

A Associação de Corporações de Desenvolvimento Comunitário da Carolina do Sul descreve-se a si mesma como «uma associação não lucrativa, baseada no desenvolvimento comunitário de corporações no seio das comunidades economicamente deficitárias», acrescentando: «A ACDCCS dedica-se sobretudo à promoção do desenvolvimento em comunidades à margem da economia dominante, sobretudo comunidades minoritárias.»

A sua missão era «promover a qualidade de vida das famílias de baixos rendimentos», e havia muitas na Carolina do Sul. Numa das zonas mais pobres dos Estados Unidos, a palavra «pobres» nunca era usada pelos burocratas, talvez porque parecia humilhante ou um estigma. A mim parecia-me uma palavra poderosa que era estudadamente evitada. A organização ajudava as «famílias menos favorecidas» emprestando dinheiro, oferecendo aconselhamento e orientando as pessoas no preenchimento da papelada. Encorajava também os pobres passivos a instruírem-se e a tornarem-se líderes. Numa entrevista anterior, Bernie Mazyck tinha dito: «Na Carolina do Sul, a liderança é muitas vezes vista como propriedade dum certo grupo seleto de gente»; e esperava alterar esse estado de coisas. «Grupo seleto», quando dito no Sul, é um eufemismo para «branco».

Bernie, vestindo formalmente camisa branca e gravata de seda, esperava por mim no extremo duma luzidia mesa de reuniões com seis metros de comprido. Ele observava-me do cimo dum monte de jornais, e se ficou surpreendido com a minha roupa informal — calças de ganga e um polo de mangas compridas — nada deixou transparecer. Ele parecia em sua casa na sala da direção; eu parecia um porteiro. Pareceu-me ser um indivíduo na casa dos cinquenta, intenso, sério, compenetrado homem que passava a vida de reunião de direção em reunião de direção. Manuseava os jornais com parcos gestos, e tinha modos contidos, quase como um funcionário que se acha muitas vezes em situação de ter de explicar o seu trabalho a pessoas que não têm ideia alguma do que está em jogo. Não fiquei surpreendido quando ele me disse mais tarde que estava a preparar um mestrado em teologia («com destaque para o desenvolvimento urbano»).

— Nós assumimos uma abordagem baseada na comunidade, para criar uma economia permanente — disse-me ele. — Neste novo modelo de desenvolvimento há recursos para serem aproveitados…

Prosseguiu nessa veia abstrata, descrevendo a recuperação económica, enfatizando a importância do alojamento dando às pessoas um sentido de confiança e participação na comunidade. As casas velhas podiam ser «reabilitadas e modernizadas» e tornadas mais eficazes do ponto de vista energético. Falou acerca de «justiça económica», de «parcerias» e «desenvolvimento de recursos».

Este era o tipo de jargão burocrático sobre política e desenvolvimento que eu ouvira em África, quantas vezes em mesas de reuniões bem equipadas, em salões atapetados, com confortáveis poltronas, enquanto lá fora — algures — gente pobre carente de ajuda vivia sem abrigo, a vasculhar o lixo.

Eu admirava a sinceridade de Bernie Mazyck, a sua atitude séria, e até a opaca linguagem da sua missão me fascinava, porque pouco podia entender disso. Estava sobretudo intrigado por outra coisa, e após termos conversado um pouco disse-lho:

— Posso interrogá-lo acerca do seu nome?

Ele sorriu, relaxou, tirou os óculos, acariciou o bigode com a polpa de um dedo, e afastou a cadeira para ficar mais confortável. Durante os quarenta e cinco minutos seguintes falou do seu nome, da história da sua família, dos parentes, da mãe, da igreja.

Era uma forma sulista de apresentação, a afirmação do enraizamento e da experiência local. Embora nos tivéssemos encontrado como estranhos, tínhamos um amigo em comum. Ele fora persuasivo ao falar dos planos de desenvolvimento, e era um homem otimista, cheio de ideias; mas o que realmente o animava e lhe conferia autoridade era o que ele me dizia da sua família, da sua vida na Carolina do Sul — era natural de Charleston — e do seu pouco usual nome.

Pronunciado mah-zeek, era um nome huguenote, disse ele. Um dos primeiros colonos em Charleston fora Isaac Mazyck, que chegara e fundara a primeira igreja huguenote na cidade portuária em finais do século XVII. Mais tarde verifiquei que o nome Mazyck era originário da Bélgica, da cidade de Maeseyck ou Maaseyek ou Maaseik, em todo o caso um nom de terre e provavelmente — embora Bernie não dissesse — o nome de um esclavagista, pois os escravos adotavam a cada passo o nome dos seus senhores.

Falámos acerca da sua família alargada, das suas raízes, do seu entendimento da identidade africana, o seu orgulho de ser descendente do povo Akan, do que é agora o Gana, mas historicamente um dos grandes impérios da costa ocidental de África, o reino dos Ashanti. Bernie notava semelhanças aos Akans nas relações familiares, na linhagem matrilinear em que eram criados, até em certas práticas religiosas que tinham persistido nas igrejas cristãs do Sul. E disse sentidamente:

— Você precisa de ter Deus do seu lado. A igreja é o centro da minha vida.

E comecei a entender um pouco melhor como no Sul o passado ainda contava, em parte porque ele projeta uma longa sombra, mas também porque havia tanta frustração no presente. O passado era mais fácil de entender, mais coerente, e ajudava a explicar o presente.

O gullah, por exemplo. Muitas pessoas na Carolina do Sul aludiam a essa cultura negra que manteve nas regiões costeiras a sua língua crioula e as suas tradições. Mas Bernie sabia citar a língua. Kumbayah — como na canção — era uma expressão gullah, que significava «Anda cá». Ele disse-me como a sua mãe usava expressões gullah para o ensinar. O gullah permeava tudo, como uma linguagem privada, uma cultura duradoura.

— A minha mãe costumava dizer «Nu man, yanna weep-dee we dan-ya!», que significava «Agora, homem, tu estás aí em cima e eu cá em baixo», um modo de enfatizar distinções de classe, alta e baixa.

O nome da mãe dele era Seypio, que era uma versão do nome do avô, e o dele era Cipião, como Cipião, o Africano, o grande general romano, vencedor de Aníbal na batalha de Zama (daí o seu cognome, o Africano).

Falar de escravatura e sacrifício levou Bernie a explicar as visões conflituosas do passado. Para exemplificar, falou-me do Monumento à História Afro-Americana perto dali, na Columbia, na base do capitólio — de como levou anos a planear, e que em todas as discussões preliminares parecia impossível para todos achar um consenso sobre como haveria de ser registada nos painéis de bronze a experiência negra da Carolina do Sul. A proposta de um painel mostrando o Ku Klux Klan linchando negros foi arquivada. Seguiu-se grande disputa a propósito da imagem da bandeira dos Confederados. E havia a questão do que fazer com a excitante figura de Denmark Vesey, um escravo que, tendo ganhado a lotaria, comprara a sua própria liberdade e em 1822 liderou uma revolta de escravos no estado. Foi a maior insurreição jamais organizada em nome dos escravos nos Estados Unidos, envolvendo milhares de conspiradores, muito maior do que a de Nat Turner na Virgínia. Mas o plano foi traído, e Vesey foi enforcado, com muitos outros em Charleston. Para os negros da Carolina do Sul, e para os historiadores em geral, Vesey era um homem à frente do seu tempo, nos moldes do revolucionário do Haiti Toussaint L’Ouverture (que Vesey admirava): uma duradoura imagem de rebelião, um herói e uma inspiração.

— Isso foi há quase duzentos anos — disse Bernie. — Mas não representariam o rosto dele no monumento. — Sorriu e disse… — Vê, ainda há muito por fazer aqui.

Falámos acerca da próxima eleição presidencial, a controversa questão da odiosa lei do cartão de eleitor. Essa lei restritiva, que suscitava sérios obstáculos aos votantes, era defendida pela governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley, filha de imigrantes siques. Tendo emigrado para o Canadá, os Randhawas tinham-se infiltrado pela fronteira de Vancouver e tinham trabalhado como professores primários na pequena vilória de Bamberg (três mil seiscentos e quatro habitantes), a mesma área que Pandori Ran Singh Village (três mil seiscentos e vinte e quatro habitantes), nas imediações de Amritsar, no Punjab, de onde os Randhawas eram originários. Em Bamberg tinham criado uma bem-sucedida firma de roupas, a Exotica International, que cessou a atividade em 2008. Menos de dois anos depois, Nikki (entretanto casada com um branco sulista e convertida ao metodismo) era governadora, e os seus pais viviam luxuosamente em Hilton Head.

— Estranho — disse eu —, uma indiana americana de segunda geração eleita governadora deste Estado.

— Muita gente não sabia que ela era uma pessoa de cor — disse Bernie. — Ela parecia branca nos cartazes da campanha. Não tem nome indiano. É cristã. É republicana de direita, do Tea Party. Detesta os sindicatos. E soube manter os costumes dos familiares no esquecimento. O turbante do pai dela constituiria um problema para uma quantidade de eleitores brancos daqui.

— Tem piada.

— Mas é triste — disse Bernie. — Em que posso ajudá-lo?

— Gostaria de visitar alguns dos lugares em que prestam ajuda ao desenvolvimento.

— Alguns em especial?

— Os mais pobres.

Ele assentiu e marcou alguns números no telefone.

Route 301: «Ninguém lá vai»

Vá até Allendale passando por Orangeburg, dissera Bernie. Mas comecei tarde, porque queria ver as histórias afro-americanas no Monumento junto ao capitólio que Bernie referira e a bandeira confederada ainda disposta no solo (foi removida da cúpula do Capitólio ao cabo de décadas de objeções). Por sinuosas estradas ao longo de campos repletos de ramos tufados de branco, os bolbos de algodão brilhando nos esguios galhos, cheguei à cidade de Walterboro e vi uma cabina com uma tabuleta que dizia INFORMAÇÕES.

Embora dispondo de um mapa de Allendale, perguntei por endereços, um pretexto para falar com a mulher que supervisionava a cabina e distribuía panfletos sobre os pontos de interesse: a casa Verdler, a plantação Bonnie Doone, os museus e as galerias, o parque de diversões Frankie. Ou o serviço Wally’s Tow:

NEGROS OU BRANCOS

DIA E NOITE

VOCÊ LIGA

NÓS LEVAMOS

— Trabalhei aqui doze anos e nunca ninguém me perguntou o caminho para Allendale — disse ela.

— Parece estranho.

— Não — disse ela. — Ninguém lá vai.

E uma vez achada a estrada certa, Route 301, o que ela dissera parecia verdade. Era uma estrada fantomática, duma espantosa decrepitude — era estranho vê-la, chocante pensar nela.

Numa vida inteira de viagens, tinha visto muito poucos lugares comparáveis a Allendale na sua estranheza, e abeirar-se da cidade não era menos bizarro. A estrada, a maior parte dela, era uma autoestrada partida ao meio, duas largas estradas lado a lado correspondentes a uma antiga via rápida, divididas por um separador relvado, muito mais largo que bastantes troços da grande interestadual, Route 95, que mais parece um túnel do que uma estrada pelo modo como leva de enxurrada os carros em ambos os sentidos a grande velocidade.

Mas essa orgulhosa autoestrada por onde eu seguia, uma substancial via dupla traçada ao longo de pequenas colinas carecas, não tinha trânsito: uma estrada mestra por entre a verde paisagem e herdades tão abatidas e abandonadas que mais pareciam meros esboços das anteriores habitações. A grande estrada deslizante era como uma estrada para nenhures. Nenhuns carros nesse dia, nem cidades à vista, nem bombas de gasolina, motéis, ou lojas, como uma estrada desembocando no fim do mundo.

Dos anos 30 até ao final dos anos 60, esta autoestrada foi a mais importante via através do Sul. Uma via com bastante circulação, a Route 301 era em tempos o caminho de Delaware para a Florida, uma autoestrada que os primeiros condutores nortenhos desciam para encontrar sol e lazer, e que os sulistas subiam em busca de trabalho, duma vida melhor, no Norte.

É comum ao viajar pelo mundo desenvolvido encontrar estradas em construção — estradas largas, estradas estreitas, autoestradas, estradas com portagem, e a estridente maquinaria, escavadoras com lagartas e bulldozers, esgravatando o solo e desfigurando a terra. É raro nesses lugares (eu penso em África e na Índia) encontrar estradas concluídas, em bom estado, sem manutenção alguma ou inutilizadas. Mas ao longo do Sul rural havia dessas estradas, grandes autoestradas reluzentes que pareciam levar a nenhures, e esta, Route 301, nesta pobre zona central da Carolina do Sul, era uma delas — surpreendente na sua estranheza.

Ao aproximar-me dos arredores de Allendale, tive uma visão apocalíptica, uma dessas visões que tornam válido o esforço de viajar e que me provou que a minha opção pelo Sul fora uma decisão inspirada. Não tinha a menor ideia de que iria encontrar o que vi nesse dia de céu azul e sol, com uma suave brisa nos pinhais.

Foi uma visão de ruína, de decadência, de total vazio, e isso era óbvio nas mais simples, mais evidentes estruturas — motéis, bombas de gasolina, restaurantes, lojas, até um cinema, todos eles votados à podridão, alguns tão exaustivamente degradados que tudo o que restava era a grande laje de cimento dos alicerces, manchada com óleo ou tinta, repleta de fragmentos do edifício derruído, a tabuleta ferrugenta por terra. Alguns eram revestidos a tijolo, outros com blocos de cimento, mas nenhum era bem construído, e assim a impressão que tive foi de impressionante decrepitude, como se uma recente guerra tivesse arrasado aquele lugar, destruído os edifícios e matado toda a gente.

Ali estava o cadáver dum motel, o Elite — a tabuleta ainda legível —, edifícios em ruínas por entre ervas daninhas; e mais adiante na estrada, o Sands e o Presidential Inn, derrocados, vazios; e os restaurantes vazios também, um deles sem dúvida com o telhado curvo e a inconfundível cúpula dum restaurante Howard Johnson, outro uma perfeita ruína mas com uma gigantesca tabuleta, a tinta a descascar prometendo LAGOSTA. E outro local abandonado com uma piscina rachada e janelas arrombadas, uma ferrugenta tabuleta, CRESENT MOTEL, mais patética pelo seu erro de ortografia.

A maior parte das lojas estavam fechadas, as únicas abertas pertenciam a indianos. O cinema Art Déco, em tempos o Carolina Theater, estava entaipado. A ampla estrada principal, repleta de entulho. As ruas laterais, franqueadas por barracões e casas abandonadas, pareciam assombradas. Eu nunca vira nada assim, uma cidade-fantasma numa autoestrada-fantasma. Sentia-me satisfeito por ter vindo.

A presença de lojistas indianos, o calor, as grandes árvores poeirentas, a visão dos campos lavrados, os arruinados motéis e os restaurantes abandonados, a inatividade, a sonolência pairando sobre a cidade como um flagelo — até o brilho intenso do sol era como um sinistro aspeto desse mesmo flagelo — tudo isso fazia lembrar uma cidade no Zimbabué. Era como se os colonizadores se tivessem ido, os fazendeiros tivessem desertado, a maior parte da população local tivesse fugido, e aquele lugar tivesse caído em desgraça. Abeirando-me da loja de Mr. Patel, vi uma sucessão de clientes negros comprando latas de cerveja e saindo para se sentar debaixo duma árvore e beber.

Tudo isto era uma primeira impressão, mas poderosa. Depois, nas imediações de Allendale propriamente dita, vi o campus da Universidade da Carolina do Sul-Salkehatchie, com oitocentos estudantes, e a velha rua principal, e o elegante tribunal, e uma pequena subdivisão de bangalós bem cuidados. Mas sobretudo, e mais importante, Allendale, a julgar pela Route 301, era uma ruína — pobre, desmazelada, desesperançada, um vívido fracasso.

O condado vivo de Allendale

Numa estrada secundária da soalheira, triste Allendale, num gabinete enfiado numa unidade móvel, que mais parecia uma caravana ali estacionada e assinalada ALLENDALE CONDADO VIVO, encontrei Wilbur Cave. Bernie Mazyck tinha-me indicado esse nome como o de alguém envolvido na revitalização do condado, aconselhamento geral e fomento da habitação.

Tendo-nos cumprimentado com um aperto de mão, referi a extraordinária estranheza da Route 301.

— Essa foi uma famosa estrada em tempos, o ponto médio em direção à Florida ou vice-versa — disse Wilbur. — Toda a gente parava aqui. E esta era uma das cidades mais ativas. Quando eu era jovem, mal podíamos atravessar a estrada. Lembro-me de que não a podíamos atravessar sem um adulto. Todos os motéis tinham letreiros onde se lia «Esgotado». Havia uma quantidade de lojas — quem passava por ali precisava de comprar comida ou roupa. Muitas garagens e oficinas. A cidade estava em expansão!

Mas hoje não havia carros, só uns quantos.

— Que aconteceu?

— Aconteceu a Route 95.

E Wilbur explicou que em finais dos anos 60, quando a estrada interestadual foi planeada, esta passava sessenta quilómetros a leste de Allendale, e como muitas outras cidades na Route 301, Allendale arruinou-se. Mas tal como o irromper de novas cidades no deserto constitui uma imagem da prosperidade americana, uma cidade-fantasma como Allendale é também característica da nossa paisagem. Talvez a mais americana transformação urbana seja essa visão — todas as cidades-fantasmas foram alguma vez cidades em expansão.

— Hoje em dia, isto é a terra que se pode arranjar — disse Wilbur.

«Terra» era um modo de dizer. Outra poderia ter sido «Isto é o que o mundo há de parecer quando acabar».

A proximidade da pobre Allendale relativamente às cidades prósperas era outro aspeto surrealista (mas também isso era uma característica americana). No mais pequeno condado da Carolina do Sul (também chamado Allendale, com doze mil habitantes), no rio Savannah e junto à fronteira estadual da Geórgia, a cidade ficava a menos de duas horas das mansões e restaurantes gourmet de Charleston; à mesma distância situava-se a salubre Augusta, na Geórgia, e a cerca de uma hora e meia Hilton Head, onde por mais de trinta anos os estrategos, os sábios, os bem instalados e os sentenciosos se congregavam cada ano no fim de semana Renaissance para declamar animadoras mensagens e debater o futuro do mundo. O que todos esses luminares e sábios precisavam realmente de fazer era passar alguns dias no condado de Allendale e talvez então entendessem que as teorias de Hilton Head negavam as realidades daqui: todos os problemas de desenvolvimento que eu tinha testemunhado em cinquenta anos de viajar pelo mundo existiam em Allendale sob a forma duma persistente agonia.

Mas tal como me dissera a mulher na cabina de informações, ninguém vai a Allendale. E foi por isso que Wilbur Cave, vendo a sua cidade natal cair em ruínas — os seus alicerces reduzidos a pó — decidiu fazer algo para a recuperar. Wilbur batera muitos recordes na escola secundária, e depois da licenciatura na Universidade da Carolina do Sul, em Columbia, trabalhou localmente e aí concorreu ao lugar de representante do estado nesse distrito. Foi eleito e exerceu funções durante seis anos. Tornou-se especialista em planeamento estratégico, e com essa experiência integrou e deu novo alento à Alive, empresa não lucrativa do condado de Allendale, que se propunha contribuir para dotar os residentes locais com moradias decentes. A cidade tinha quatro mil e quinhentos habitantes, três quartos deles negros, tal como o condado.

— Não é só esta cidade que precisa de ajuda — disse Wilbur. — Todo o condado está em más condições. Segundo o censo de 2010, nós somos o décimo condado mais pobre dos Estados Unidos. E, sabe, quase todos os restantes são reservas índias.

O financiamento era mínimo, um orçamento de duzentos e cinquenta mil dólares anuais no início, mas que fora diminuindo ao longo dos anos devido a cortes e poupanças e falta de doadores. Comparado com os programas de alojamento que eu vira em África e na América do Sul, era uma quantia insignificante. Era, indubitavelmente, uma operação em pequena escala que dependia mais do engenho, da inovação e da boa vontade que do dinheiro.

— Em 2003, eu era o novo xerife da cidade — disse Wilbur. — Julguei que isso podia ser um trampolim para a reforma. Como eu estava enganado! — E sorriu. — Mas mantemo-nos firmes.

Wilbur Cave tinha sessenta e um anos, mas aparentava ser dez anos mais jovem, maciço, musculoso, ainda com o arcaboiço dum running back, e enérgico, cheio de planos. Trajava informalmente, camisa desportiva e calças de ganga. Nas paredes do seu pequeno gabinete na pequena unidade que lhe servia de quartel-general, havia fotos de família, slogans otimistas e gráficos que mostravam um aumento constante da propriedade urbana no condado.

A família de Wilbur habitava na região há muitas gerações. A mãe fora professora primária na Escola Normal do condado de Allendale.

— A escola dos negros — explicou Wilbur. — A dos brancos era a Escola Elementar de Allendale.

As escolas de Allendale foram finalmente integradas em 1972. Sempre que alguém no Sul mencionava uma data, eu tentava recordar onde estava nessa altura. Invariavelmente via-me num lugar distante, encantado com todo aquele exotismo. Em 1972, quando Allendale lutava por emergir das noções novecentistas de segregação e desenvolvimento separado, estava eu em Inglaterra, planeando a minha viagem do Grande Bazar Ferroviário, em busca de diferenças mais marcantes.

Fiz-lhe notar que só recentemente a transformação social tinha chegado ao Sul.

— Temos de saber de onde vimos — disse Wilbur. — É difícil seja para quem for entender o Sul, a menos que se entenda a História; e quando digo História refiro-me à escravatura. A História teve mais impacto aqui.

Sem se dar conta, apenas sorrindo e batendo com a esferográfica no mata-borrão da secretária, ele soava como uma dessas vozes sulistas admonitórias em Faulkner, lembrando ao nortenho o complexo passado.

— Veja a família da minha mãe. Eles foram plantadores de algodão durante gerações, aqui mesmo, no condado de Allendale. Tinham cerca de quarenta hectares. A colheita do algodão era uma atividade familiar, que incluía os filhos, os netos. Era uma ocupação pós-escolar normal. Eu assim fiz, claro — todos o fizemos.

As pequenas explorações de algodão, como as que pertenciam à família de Wilbur, acabaram por ser vendidas a plantadores mais ricos, que introduziram a colheita mecanizada. Isso foi outra razão para o desemprego e declínio da população. Mas a agricultura predominava ainda no condado de Allendale, onde quarenta por cento da população vivia abaixo do limiar da pobreza.

— Quais são os problemas? — perguntou ele, respondendo à minha óbvia pergunta seguinte. — Drogas; crack, sobretudo. Problemas de saúde, crime, armas e abandono escolar, quase cinquenta por cento.

Quase não havia trabalho. Já não recebiam visitantes, como no passado. Antes houvera fábricas têxteis em Allendale, confecionavam roupa e tapetes. Fecharam, a produção passou para a China, embora uma nova fábrica têxtil estivesse prevista para dali a um ano, disse ele. A indústria local era a madeira, mas as serrações — havia duas em Allendale, fabricando pranchas e postes — não empregavam muita gente.

Eu iria ouvir esta história por todo o Sul rural, nas cidades arruinadas que tinham sido centros fabris, baseados na confeção de mobiliário, eletrodomésticos, materiais para cobertura ou produtos de plástico, empregos a tempo inteiro que mantinham a cidade em funcionamento. As companhias tinham vindo para o Sul porque havia mão de obra disponível e capaz, os salários eram baixos, a terra era barata e os sindicatos inexistentes. E assim uma medida de progresso oferecia a promessa de coisas melhores, talvez prosperidade. Em lugar nenhum dos Estados Unidos podia a indústria ficar tão barata. E assim foi até que esses fabricantes descobriram que, por muito barato que fosse produzir nos laboriosos estados do Sul, ficava ainda mais barato nas fabriquetas da China. A contração e o empobrecimento do Sul tem muito a ver com a subcontratação do trabalho para a China e para a Índia. Até os viveiros de peixe-gato — uma importante fonte de receita espalhada por todo o Sul rural — foram suplantados pelas importações desse peixe provenientes do Vietname.

O renhido debate em curso na legislatura do estado não era sobre emprego ou subcontratação, mas sobre o direito de voto: a criação do cartão de eleitor da Carolina do Sul, uma lei restritiva que só permitia votar mostrando o cartão com fotografia, mesmo que o nome figurasse na lista dos eleitores. Na ausência de carta de condução, era necessário uma certidão de nascimento para obter o dito cartão — nada fácil no caso de ter nascido noutro condado ou noutro estado.

— Parece que estamos de volta aos anos 60 — disse Wilbur. — O que me parece é que ser obrigado a provar a identidade é um obstáculo, uma maneira de impedir a pessoa de votar. A desculpa é «preservar a integridade do sistema», não é? Mas uma tia minha com noventa e seis anos tem dificuldade em obter uma cópia da certidão de nascimento, e ela nasceu aqui mesmo, em Allendale.

Wilbur prosseguiu dizendo que uma das chaves para o desenvolvimento (e já ouvira isso a Bernie Mazyck) era ser proprietário do alojamento. Ter uma casa era uma forma de fixar as pessoas, pressionando-as no bom sentido e impondo responsabilidades que as ajudavam a crescer; isso induzia mudanças visíveis e por vezes atraía investimento de fora.

— A instrução pública carece de fundos — disse ele. — Mas não se pode ganhar dinheiro melhorando a educação ou os cuidados de saúde — essas não são fontes de rendimento. Venha daí, vamos dar uma volta.

Conduziu-me através das ruas secundárias de Allendale, dizendo «A habitação é importante», cruzando ruas secundárias, passagens, caminhos escusos onde se erguiam casas de duas assoalhadas, algumas recuperadas e pintadas, outras que não passavam de casebres de madeira como se podem ver em qualquer país do Terceiro Mundo, e alguns barracos que eram a emblemática arquitetura da pobreza sulista.

— É um dos nossos — disse Wilbur do bangaló branco de madeira numa esquina. — Era uma propriedade abandonada que nós restaurámos, e agora faz parte do nosso inventário de rendas. É receita para restaurarmos outras casas.

As pessoas habilitavam-se a uma reabilitação se o seu rendimento fosse inferior a oitenta por cento do rendimento médio da Carolina do Sul. Era designado como pobre o agregado familiar de uma pessoa com rendimento inferior a vinte e sete mil dólares, o de três pessoas com menos de trinta e quatro mil dólares, ou o de quatro pessoas com menos de trinta e oito mil dólares. Embora fossem montantes que mal chegavam para subsistir, metade das pessoas subsistia com muito menos. Mas com a casa reabilitada melhorava a qualidade de vida e surgiam melhores perspetivas.

— Também temos um programa de educação para os proprietários — disse Wilbur. — Ensinamos as minudências de comprar casa e de ser proprietário. Em seguida podemos proporcionar um adiantamento, e a casa poderá custar entre vinte e cinco e setenta e cinco mil dólares.

Para atrair negócios e criar um clima propício ao investimento, a aparência da cidade e do condado tinha de ser melhorada, que era outra razão para a imperativa urgência de recuperar os barracos.

— Eu acho é que, se a Carolina do Sul houver de mudar, teremos de mudar o pior — disse Wilbur ao passarmos por uma pequena casa comida pelo tempo de tábuas tisnadas pelo sol e telha francesa, uma relíquia irrecuperável. Mas vivera ali um homem até seis meses antes, sem eletricidade, aquecimento ou água canalizada.

Perguntei se podia ver o interior daquela, ou talvez da próxima, que era um barraco com um buraco no teto, onde vivia uma família de oito pessoas (quatro gerações).

— Precisaremos de autorização — disse Wilbur. — Pode levar algum tempo. Terá de voltar noutro dia.

Eu disse que queria voltar.

— Está com fome?

Eu disse que sim, e ele levou-me num pequeno trajeto até aos limites da cidade, na Autoestrada de Barnwell, para um jantar típico, O Taste and See, apreciado pela soul food, frango assado e peixe-gato, biscuits, arroz e molho de carne, tortas de fruta, e amizade. A dona, Mrs. Cathy Nixon, com uma criança no regaço, explicou: «Vem na Bíblia.» E citou: «Oh, provai e vede que o Senhor é bom; bem-aventurado o homem que nele confia.» A existência de boa comida nessa pobre cidade parecia estranha, mas constatei que era uma característica do Sul: até a mais desolada cidade tinha em geral um restaurante de soul food, um local familiar, muitas vezes uma pequena sala numa estrada secundária, cozinha simples e um acolhimento caloroso. Mrs. Nixon tinha setenta e três anos e sete bisnetos.

— Você é um viajante — disse Wilbur, depois da ação de graças, outro ritual, estritamente observado no jantar afro-americano.

— Oh, sim.

Ele não lera nada do que eu tinha escrito. Se o meu nome evocava alguma coisa, era o de Henry David Thoreau — outro yankee, não era? A maior parte dos sulistas que encontrei só conheciam os livros de vista, e isso conferia-lhes um exagerado respeito pelos autores ou total indiferença. Quando havia uma exceção, e encontrei algumas, nos mais improváveis locais, o leitor era apaixonado, com a casa cheia de livros, como o solitário verme dum livro num conto de Tchékhov.

Não ser reconhecido como escritor era claramente uma vantagem. Eu era mais facilmente catalogado como um tipo idoso do Norte, provavelmente reformado, que tinha conduzido até ali, cheio de perguntas. Eu não tinha história, nem reputação, nem aura, nem alter ego, nem novidades, nada apegado a mim. E agradava-me ser o estranho Mr. Paul com aquele apelido difícil de pronunciar — o estrangeiro — porque assim era visto pelas pessoas por entre as quais viajava nesses lugares pouco habituais, sendo algumas partes do Sul tão singulares e dignas de nota como outras que vira na minha vida de viagens.

Quando Wilbur aludiu às minhas viagens, aproveitei a oportunidade para dizer que tinha estado em África havia pouco, e que na Namíbia descobrira que o governo dos EUA concedera trezentos e sessenta milhões de dólares para desenvolver os setores da educação, da energia e do turismo. Cerca de sessenta e sete milhões de dólares haviam sido destinados ao turismo, embora fossem sobretudo europeus, e não americanos, os turistas que visitavam a Namíbia. Referi isso porque as áreas rurais, subdesenvolvidas do condado de Allendale se assemelhavam a certas áreas da África rural, subdesenvolvida. E até Allendale — sonolenta, decadente, abandonada, com motéis encerrados, lojas indianas — me lembrava uma cidade de província no Quénia que fora de mal a pior. E o Quénia também obteve centenas de milhões de ajuda ao desenvolvimento da parte dos EUA.

— O dinheiro não é tudo, mas é a palhinha que sorve a bebida — disse Wilbur. — Eu não quero centenas de milhões. Dêem-me a milésima parte disso e eu poderei mudar radicalmente o ensino público no condado de Allendale.

O seu orçamento era de cem mil dólares, e a sua organização era autossuficiente graças à receita das casas alugadas que tinham recuperado.

Wilbur disse que não censurava a ajuda a África, mas acrescentou:

— Se a minha organização tivesse acesso a esse dinheiro, poderíamos realmente mudar as coisas.

— Que fariam vocês?

— Poderíamos concentrar a nossa energia e deixarmos de nos preocupar com financiamento. Poderíamos ser mais criativos e conseguir levar os projetos a cabo. — Sorriu. — Não teríamos de nos preocupar com a fatura da luz.

O massacre de Orangeburg

Sem ter onde ficar na tórrida, desolada Allendale — todos os motéis abandonados ou destruídos — optei pela Route 301, agora às moscas, em tempos famosa, por mais setenta quilómetros, até Orangeburg. Era uma pequena cidade, a rua principal era um conjunto de lojas tristonhas, armazéns fechados e igrejas sombrias, mas os arredores ficavam bastante perto da interestadual (a autoestrada para Charleston) para dispor de motéis e restaurantes. Os motéis mais pobres e os restaurantes modestos eram na cidade, um resto puído, mas ainda com vida.

A cidade mantinha-se buliçosa graças às suas escolas e faculdades, bem conhecidas, entre elas a Universidade Claflin (fundada em 1869) e a Universidade Estatal da Carolina do Sul, ambas historicamente negras (e frequentadas ainda sobretudo por estudantes negros). E havia mais: uma faculdade metodista, uma escola técnica, academias privadas e escolas públicas.

Caminhando pela rua principal no dia seguinte à minha chegada a Orangeburg, pus-me a par dum homem, dizendo-lhe olá. E recebi umas radiantes boas-vindas sulistas. Ele trajava um fato preto e levava na mão uma pasta. Disse que era advogado e deu-me o seu cartão de visita, Virgin Johnson Jr. Advogado. Perguntei pela cidade, uma pergunta genérica, e recebi uma resposta surpreendente.

Ele disse:

— Bem, houve o massacre.

«Massacre» é uma palavra que chama a atenção. Esse sangrento evento era novidade para mim, por isso pedi detalhes. Virgin Johnson contou-me que apesar de em 1968 a Lei dos Direitos Civis vigorar há quatro anos, Orangeburg era ainda segregada. A pista de bowling na rua principal (All Star Bowling Lanes) recusara a admissão de estudantes negros — e era a única pista de bowling em Orangeburg.

Um dia, em fevereiro de 1968, protestando contra a discriminação na pista de bowling e noutros locais, várias centenas de estudantes fizeram uma manifestação no campus da universidade da Carolina do Sul, no outro lado da cidade. Os ânimos estavam exaltados, mas os estudantes iam desarmados, frente aos agentes da Patrulha da Autoestrada da Carolina do Sul, que levavam pistolas, carabinas e espingardas. Alarmado com a pressão dos estudantes, um polícia disparou a arma para o ar — tiros de aviso, disse ele depois. Ouvindo os disparos, outros polícias começaram a disparar diretamente sobre os manifestantes, que deram meia-volta e se puseram em fuga. Como os estudantes iam a fugir, eram atingidos nas costas. Três jovens foram mortos, Samuel Hammond, Delano Middleton e Henry Smith; vinte e oito foram feridos, alguns com gravidade; todos estudantes, alvejados pelas costas.

— Que pensou você daquilo? — perguntei a Virgin Johnson.

— Eu tinha doze anos — disse ele com o sotaque local, twell. — Não pensei grande coisa. Depois, as pessoas falavam daquilo.

— Que dizem as pessoas hoje em dia?

— Não é um assunto recorrente — disse ele. — Há um serviço fúnebre todos os anos, mas quanto à questão propriamente dita, ignoro até que ponto ultrapassa o âmbito do campus.

A maior parte dos americanos sabe dos assassínios em Kent State, Ohio, que tiveram lugar em 1970 — quatro estudantes assassinados durante uma manifestação contra a guerra. «Kent State» é uma expressão cheia de implicações: manifestantes inocentes baleados por homens da Guarda Nacional em pânico. O Massacre de Boston de 1770 é bem conhecido — cinco colonos mortos por tropas britânicas em King Street; o meu pai costumava mostrar-nos o memorial do massacre no Boston Common. Nós conhecíamos o curioso nome de uma das vítimas, Crispus Attucks, um mestiço de negro e wampanoag residente em Boston, talvez marinheiro. O assassinato desses homens alimentou a paixão revolucionária; quase duzentos e cinquenta anos depois, os seus túmulos, no Granary Burying Ground, estão floridos e eles são solenemente contemplados como mártires e heróis.

Para quem não for de Orangeburg, o nome da cidade não evoca imagens de repressão ou da efusão de sangue inocente. Os oito polícias que dispararam sobre a multidão foram julgados por causarem as mortes, mas absolvidos, e a única pessoa que foi parar à prisão foi um dos manifestantes, Cleveland L. Sellers, que foi condenado por concentração desordeira. Condenado a um ano, cumpriu sete meses, com redução de pena por bom comportamento. Alguns desses factos soube-os não por Virgin Johnson, mas depois, através dum pormenorizado relato do incidente, The Orangeburg Massacre, por Jack Bass e Jack Nelson, publicado em 2003. Embora fosse afro-americano e residente em Orangeburg, Johnson não podia fornecer muitos pormenores, dizendo que era muito jovem para entender, e «isso foi há muito tempo». Outra explicação para a sua amnésia foi o Massacre de Orangeburg ter sido secundarizado pelas atrocidades de 1968, ano de violentos incidentes — os assassinatos do Dr. Martin Luther King e de Robert F. Kennedy, a Ofensiva do Tet no Vietname, revoltas em Washington, Baltimore, Chicago e outros lugares — um ano de morte e caos.

Eu referi Kent State a Johnson, que toda a gente conhecia esse nome.

Ele sorriu. E disse:

— Mas você sabe que esses rapazes que morreram eram brancos.

A profissão de Virgin Johnson como advogado surpreendeu-me, por ele parecer tão vago acerca do massacre. Eu esperava dum advogado, sobretudo tratando-se dum homem da terra, que conhecesse mais factos, e no entanto ele foi colaborante e útil acerca desse episódio esquecido.

— Posso apresentá-lo a algumas pessoas que estiveram lá — disse ele. E recomendou o livro de Bass e Nelson, que depois li.

Agradeci-lhe a sua ajuda e, antes de prosseguir, disse-lhe quão estranho era para mim ter aquela conversa com alguém que encontrara por acaso, simplesmente perguntando por um endereço em plena rua. Acrescentei que no lugar de onde vinha tal encontro casual teria carecido de calor humano e informação. Sentia-me grato por ele ter perdido o seu tempo com um estranho com tantas perguntas.

— A gente daqui sabe o que é precisar de ajuda — disse ele. Referia-se aos negros; e a si mesmo. Acrescentou: — Ser descurado. — E prosseguiu: — É este o ambiente; não é fácil evitá-lo. Eles suportam-no a cada passo. Por isso podem simpatizar e relacionar-se.

— Você sente o mesmo?

— Claro que sim — disse ele. E tocou no cartão de visita que eu segurava na mão. — Você dir-me-á se se quer encontrar com certas pessoas que sabem mais do que eu. Porque não vai à minha igreja no domingo? Eu serei o pregador.

— O seu cartão de visita diz que é advogado.

— Sou também pregador. Pastores do Apocalipse, em Fairfax. Bom, em Sycamore, de facto. Isto é o Sul, há uma igreja em cada esquina. Venha ver-nos.

— Onde fica Sycamore?

— Perto de Allendale. Conhece Allendale, Mr. Paul?

Charleston: feira de armas

Dispondo de alguns dias para matar o tempo, fui até Charleston. Comprimida na sua estreita fatia de terra, banhada pelo seu plácido porto, confinada nas suas minúsculas ilhas, Charleston é uma cidade com uma rica história cultural e cheia de maravilhas arquitetónicas — velhas mansões decoradas, igrejas e fortes — a baixa repleta de restaurantes gourmet, tudo atributos metropolitanos sem qualquer interesse para mim.

Os turistas visitam Charleston para apreciar as vistas (Fort Sumter, plantações), para comer e para escutar histórias da Guerra Civil e contos do folclore gullah e geechee. Achei a cidade, como a maior parte das cidades turísticas, bastante agradável, mas reluzente e impenetrável, consciente e orgulhosa da sua classe e talvez justificadamente presunçosa. Eu fora ali para visitar uma feira de armas.

Uma das boas refeições gourmet que comi durante as minhas viagens pelo Sul foi em Charleston, mas de facto não foi muito melhor do que muitas outras em restaurantes soul food ou churrasqueiras que encontrei em quase todas as pequenas cidades, nada comparável ao acolhimento e boa comida no recatado Taste and See em Allendale ou Dukes em Orangeburg ou Lottie’s em Marion, Alabama; não como no Doe’s Eat Place em Greenville, Mississippi, ou o bufete de frango frito e peixe-gato no Granny’s Family Restaurant em West Monroe, Luisiana, onde uma tabuleta prevenia: «Leve o que quiser, mas coma tudo o que levar.» Quanto aos museus, igrejas, mansões e lojas de lembranças de Charleston: nada para mim.

O evento cultural que atraía a minha atenção era a Exposição de Armas Brancas e de Fogo que vira anunciada na semana anterior e teria lugar no Charleston Area Convention Center, em Charleston Norte. Parti de Orangeburg num fim de semana chuvoso — as feiras de armas decorrem em geral durante dois dias — e surpreendi-me ao ver o tamanho da arena, equivalente a meio campo de futebol, com uma longa fila de gente à espera de entrar e o enorme parque de estacionamento a abarrotar com carros. Mal cheguei fiquei impressionado com a ordem e delicadeza de toda a gente — organizadores, comerciantes, frequentadores, vendedores de cachorros quentes e pipocas — e uma vibração, também, expectativa, ânsia, prazer.

Entrar era um lento processo que consistia em pagar um bilhete de oito dólares e, tendo uma arma de fogo, mostrá-la. Muitos dos que entravam iam armados — a pistola num coldre, a espingarda ao ombro —, mas as armas pessoais tinham de ser descarregadas e registadas na receção. Ao cabo de todas essas formalidades e inspeções, aos visitantes era aposto uma espécie de bracelete de identidade de plástico idêntico ao das urgências dos hospitais e finalmente passava-se pelos porteiros e carrinhos de comida, permanecendo em linha, só alguns murmúrios, tudo em ordem.

A seguir ao átrio, a enorme arena estava repleta de mesas, cabines e bancas, quase todas propondo armas, algumas vendendo facas, outras repletas de munições. Aquela visão parecia fazer os participantes sorrir e salivar, trémulos de alegria, como se a exibição de todas aquelas armas nuas, pistolas e espingardas, tivesse algo de pornográfico. Nunca tinha visto tantas armas, grandes e pequenas, amontoadas num local, e suponho que a ideia de serem todas para venda, ali expostas à espera que pegassem nelas e as manejassem, farejassem e apontassem, suscitava uma emoção.

«Desculpe, senhor.»

«De nada, ora essa.»

«Muito obrigado.»

Ninguém neste mundo — ninguém que eu tivesse visto — é mais cortês que alguém numa feira de armas; mais disposto a sorrir, mais acomodatício, menos capaz de nos pisar os calos. No meio de tantas armas não há insultos; apenas paciência, doçura e piadas ocasionais. Num local onde toda a gente anda armada, as boas maneiras são úteis, talvez essenciais. Mas essa conduta não parecia forçada: toda a gente estava contente por se achar ali. Felicidade e arrebatamento era o ânimo dominante dos visitantes — bom humor e modos requintados.

Gritos abafados de «Olha aquela» e muitas perguntas corteses. Algo mais me despertou a atenção: a multidão a falar sem rodeios e a vestir sem requinte, mas muito informada. Esses homens eram a prova viva das palavras de Cristo em Lucas 22:36, um versículo que muitos deles poderiam certamente citar: «Quem não tem, venda a capa compre uma espada.» Um homem que parecia à deriva e perdido, boné de camuflado maltrapilho, barbudo, blusão sebento e botas cambadas, perguntou a um vendedor com um expositor de espingardas de assalto vintage:

— Essa AK-47 de coronha rebatível é a variante Zastava?

— Não, esta é WASR, anterior ao embargo. Com tapa-chamas. Com todos os elementos correntes.

— Que tipo de carregador?

— Tenho um sortido que posso mostrar-lhe. E inclui a baioneta. Está a ver o carregador?

O curioso cofiou a sua barba crespa com as costas da mão.

— Ouvi dizer que os carregadores a granel são um problema.

— Com esta não. Já a disparei imensas vezes.

— Quanto custa essa AK ? — perguntei eu, para dizer alguma coisa.

— Mil e quinhentos.

— Podia comprá-la?

— Se tiver o dinheiro. Líquido. Venda privada.

Apesar desse conhecimento das armas próprio de peritos, a maior parte dos visitantes limitava-se a observar, de mãos nos bolsos, deambulando, acotovelando-se — apreciando, deslumbrados pelas armas, como se tivessem ido ali para admirar, partilhar histórias, encontrar velhos amigos, beber café e passear-se por entre as mesas como as pessoas fazem nos mercados de rua. E aquilo assemelhava-se bastante a um mercado de rua, mas cheirando a lubrificante e verniz, limalha de aço e pólvora. Encontravam-se ali, adultos e jovens, menos para comprar do que para se confortarem com o poder de fogo.

Mas havia algo mais na atmosfera, um tipo de disposição que eu não conseguia definir enquanto ia passeando por entre as armas; era uma atitude, uma vibração, um burburinho. Conforme passeava e escutava, e registava o pulsar do ambiente e as posturas dos homens, essa sensação ia-se tornando mais evidente. A princípio não consegui perceber o que sentia.

— Muito obrigado.

— Não tem de quê.

— Força, senhor, leve essa peça Bad Boy.

As longas mesas de facas eram as menos visitadas, mas exibiam todo o tipo de lâminas, dos canivetes mais requintados aos machetes para iron hackers, algumas delas gravadas, com cabos de osso e marfim — e espadas e baionetas também. Noutras mesas, memorabilia militares, armas brancas nazis. «É um punhal de Ernst Röhm», tinha gravado num das faces da lâmina Alles für Deutschland, o lema das Sturmabteilung (SAs) que Röhm fundou com Hitler, como o vendedor me explicou. Röhm foi depois acusado de traição por Hitler, na Noite das Facas Longas, em 1934, e executado. A inscrição In Herzlicher Kameradschaft Ernst Röhm fora obliterada com pedra de amolar das lâminas dos punhais que tinha distribuído aos seus camisas castanhas.

— Está a ver? Eles livraram-se do Röhm. Quem tivesse um punhal com inscrição corria grande risco. Isto é uma bela peça de coleção.

Máscaras de gás, capacetes, cinturões, arneses, emblemas, bandeiras, tudo com suásticas, e muitas Lugers de nove milímetros.

— Essa arma funciona. Pode-se disparar com ela. Mas aqui não dê tiros em seco.

Parafernália da Guerra Civil — polvorinhos, espingardas Harpers Ferry, bonés de pala, insígnias, dinheiro confederado e pistolas — algumas mesas estavam repletas dessas relíquias da história. Quase todas dos Confederados. Autocolantes também, um dizia: The Civil War — America’s Holocaust. Outro: Eh Liberal, Tu És a Razão Por Que Temos a 2.ª Emenda, e muitos denunciando o presidente Obama: NObama, Obummer, Obamanation, e Defensores do Controlo de Armas: Hitler, Estaline, Castro, Idi Amin, Pol Pot, Obama.

— O meu tio tem um desses polvorinhos.

— Se tem a espiche pronta a funcionar, o teu tio é um sortudo.

Muitas das espingardas e pistolas nas outras mesas eram velhas armas de carregar pela boca, de percussão, ou grandes e terríveis revólveres que usavam munições de pólvora negra. Como eram antiguidades, e teoricamente não funcionavam, podiam ser vendidas a qualquer um. E as munições de pólvora negra, embora raras, arranjavam-se, e qualquer daquelas velhas armas podia ainda abrir um buraco fatal num homem ou num animal.

— Esta peça é digna de um museu — disse o vendedor dum mosquete com o cano gravado e a coronha belamente entalhada. Tive a impressão de que muita dessa gente tinha trazido as suas melhores armas para se vangloriar, numa onda infantil, orgulhosa, exibicionista, própria de colecionadores, e por coisa nenhuma se separariam delas.

Mas muitos comerciantes pareciam em dificuldades e desesperados para vender o stock de armas usadas e velhas revistas e acessórios alinhados diante deles. Numa dessas mesas, junto a uma Glock em plástico e a uma espingarda de tiro ao alvo calibre .22, vi uma peça alemã da Segunda Guerra Mundial — uma pistola Mauser calibre .32. Peguei nela e sopesei-a.

— Trezentos e cinquenta e é sua. Tenho carregadores para ela.

— Eu sou de fora do estado.

— Não tem importância. Venda privada. Ok, fica por trezentos.

Nem todas as vendas eram privadas. Meia dúzia de lugares eram de comerciantes autorizados, e no interior da zona reservada viam-se homens sentados a mesas pequenas, preenchendo formulários para verificação de antecedentes, enquanto membros da organização passavam cartões de crédito pelas máquinas. Ali as armas eram registadas, de melhor qualidade, em maior quantidade. A verificação de antecedentes fazia-se em menos de trinta minutos, disseram-me.

Alguns eram recriadores: um homem no uniforme dos confederados, outro vestido à cowboy, com ar de xerife vingativo, chapéu preto, botas altas e pistolas com cabo de madrepérola. Ele viu-me a olhar.

— Olá, parceiro.

Uma das mesas parecia um expositor de museu de armas e uniformes da Primeira Guerra Mundial, além de mapas, livros, bilhetes-postais e fotos a preto-e-branco de lamacentos campos de batalha. Era uma exposição comemorativa montada por Dane Coffman, que viera de Leesburg, que ficava a cento e sessenta quilómetros, e alugara oito mesas para montar um memorial ao seu avô, Ralph Coffman, que combatera na Grande Guerra. Dane, que devia andar pelos sessenta anos, envergava um velho uniforme de infantaria, chapéu de aba larga e grevas de couro, a farda do doughboy da Grande Guerra. Nada daquilo era para venda. Dane era colecionador, historiador militar e recriador; o objetivo dele era mostrar a sua coleção de cinturões e coldres, kits de sobrevivência, cantis, cortadores de arame, utensílios para escavar e o que ele designava com orgulho e gáudio, uma metralhadora montada num tripé.

— Estou aqui pelo meu avô — disse ele. — Estou aqui para dar uma lição de história.

Por toda a feira de armas, vi um misto de negócio privado e comercial, sobretudo homens pobres ou que pareciam desempregados, de botas cambadas e chapéus desbotados, mas havia também alguns compradores prósperos, óbvios excêntricos e vadios. Algumas pessoas vendiam bandeiras, símbolos patrióticos e avisos cómicos: Cuidado — Sou Um Amador de Armas Amargo Apegado à Minha Religião, que era um eco do que Barack Obama dissera na sua campanha para presidente; Proibida a Passagem — Os Violadores Serão Abatidos — Os Sobreviventes Também; e O Controlo de Armas É Capaz de Atingir o Teu Alvo.

— E digo-lhe mais — exclamou um homem apoiado numa grossa espingarda de assalto. — Se essa votação tiver lugar, é o nosso fim.

— Pois é. Eles vão alterar todo este negócio — acrescentou outro homem. — Você bem pode despedir-se da sua AR.

Isto deixou o primeiro homem indignado:

— Bem gostava de ver alguém tirar-me a arma e levá-la. Ah, isso é que gostava.

Outros discutiam pausadamente, mas não muitos, porque não havia desacordo no salão. Eram todos gente ligada às armas, possuidores de armas, apologistas das armas — homens e mulheres, famílias inteiras — todos do mesmo lado. Foi a minha primeira impressão dum grande encontro de sulistas brancos, e alguns observadores comentaram que os brancos do Sul são como um grupo étnico, similar aos irlandeses ou italianos — «um grupo culturalmente distinto».

História do reverendo Johnson

— Eu não passo de um rapaz do campo da casta mais baixa, nado e criado em Estill, condado de Hampton — disse-me Virgin Johnson uma semana depois, saboreando o prato do dia no Ruby Tuesday, na estrada para Orangeburg, onde vivia. Estill eram os arbustos, disse ele, campo a perder de vista, plantações de algodão. Paciência. Ele sorriu; tinha um modo de exibir dois proeminentes incisivos quando sorria, como para demonstrar que estava a ser irónico. Então, com um suspiro trocista e resignado, disse: — Pobres negros.

Ainda envergando o fato preto, sorveu o iced tea e contou-me a sua vida. Este era outro homem a falar, não o pregador de Sycamore, não o arguto advogado de Orangeburg, mas um tranquilo, ponderado cidadão comum num restaurante à beira da estrada, evocando a sua vida de solitário. Disse-lhe que tinha estado numa feira de armas em Charleston.

— Eu tenho armas — disse ele, ansioso. — De todos os tipos. Tenho uma AK-47 e outras mais. Os possuidores de armas legítimas não são os causadores das mortes — são os possuidores de armas ilegais que constituem o problema, os criminosos. É como lhe digo, preciso de proteção. Este pode ser um lugar perigoso.

— Dê-me um exemplo — disse eu.

— O meu pai concorreu em 1968 a um lugar no conselho do condado, em Hampton. Virgin Johnson Senior; foi pedreiro, depois professor e conselheiro do condado. O meu avô escolheu o nome, tinha algo de especial; Virgem Maria, solo virgem, alguma coisa virgem. O meu filho é o terceiro Virgin. — Virgin Johnson inclinou-se para mim e bateu na mesa. — Sessenta e oito não era bom ano para um homem negro concorrer fosse ao que fosse. Deixaram-lhe uma mensagem na caixa do correio. Dizia: «Se ganhas, matamos-te.»

— Ele abandonou a corrida?

— Não desistiu — disse Virgin Johnson. — Mas sabe porque perdeu ele? Porque as pessoas sabiam da mensagem, e os que gostavam dele — e eram muitos — votaram contra. Não queriam que ele morresse. Tornou a concorrer, anos depois, e ganhou. O meu pai esteve hoje no meu serviço religioso. Está doente, mas nunca falta. É um homem popular por estes lados.

»Eu nasci em 1954. Em 1966, ano do que eles chamaram «integração voluntária», eu era o único estudante negro na Escola Básica de Estill. Passou-se assim. Havia dois autocarros que passavam por nossa casa todas as manhãs. Eu tinha dito ao meu pai: «Quero apanhar o primeiro autocarro.» Era o autocarro dos brancos. Ele disse: «Tens a certeza, rapaz?» Eu disse: «Tenho.»

Era tão estranho estar ali, num restaurante — brancos e negros juntos nas cabinas e mesas — quase cinquenta anos depois, enquanto Virgin Johnson evocava esse episódio que deixara tão grande marca na sua vida, a história dum estudante negro num autocarro de brancos.

— No dia em que apanhei aquele autocarro, tudo mudou. Sexto ano — mudou a minha vida. Perdi todos os meus amigos, negros e brancos. Não falavam comigo, nem um. Até os brancos amigos lá de casa. Eu sabia que eles queriam falar comigo, mas estavam sob pressão, tal como eu. Sentei-me na traseira do autocarro. Quando me aproximei da longa mesa para almoçar, trinta rapazes ergueram-se e foram-se embora.

Sorveu o chá, assentiu, e sorriu condoído. O empregado de mesa do Ruby Tuesday levava jantares provavelmente para uma cabina lá atrás, e os três olharam para aquele homem bem vestido — o único homem no restaurante envergando fato e gravata.

— Eu tinha doze anos — disse ele. — O mais divertido é que éramos amistosos, negros e brancos. O meu avô era adorado por todos. Chamavam-lhe Tio Henry; Henry Frazier. Brincávamos juntos ali e nos arredores. Colhíamos algodão. O meu pai e o meu tio tinham quarenta hectares de algodão. O tio Clayton ainda cultiva algodão, milho, melancia. Eu colhia cinquenta ou sessenta quilos por dia com a minha família e os meus amigos. Mas quando entrei no autocarro, acabou-se. Estava sozinho, só podia contar comigo.

»Quando fui para a escola percebi que havia uma diferença. Não havia lá nenhum outro afro-americano — nenhum professor negro, nenhum aluno negro, nem um no ensino básico. Salvo os contínuos. Os contínuos eram assim como uns anjos da guarda para mim. Eles eram negros, e não falavam para mim — não era preciso. Acenavam para mim como quem diz: «Aguenta, filho. Aguenta.»

»Assim perdi todos os meus amigos, e aprendi sendo ainda pequeno que só podemos contar connosco. Isso deu-me um espírito lutador. Sempre o fui desde criança. É o destino. Que sucede quando deixamos outros decidir por nós? Tornamo-nos incapazes de assumir as nossas próprias decisões. Nem sempre foram maus dias. Nesse tempo tínhamos de impor respeito. Hoje em dia ninguém quer saber de respeitabilidade. É como o espetáculo da política.

Continuámos a comer, e ele a falar, relembrando. Era um homem pensativo, fazendo pausas entre um e outro pensamentos, pontuando as frases com silêncios, pelo que era fácil para mim tomar notas e ir comendo.

— Quando tinha treze anos fui ajudante dum agrimensor, ajudava-o com a fita métrica. Ele era branco. Eu gostava daquele trabalho. Era no verão, nos anos 60. Fazíamos o levantamento topográfico de uma fazenda, esse homem e eu. Fomos até à propriedade e começámos a trabalhar.

»Então ouvi uma voz: «Não quero esse rapaz na propriedade!» O dono da propriedade, está a ver? Ele pegou na espingarda e disparou para o ar. Eu tinha treze anos! E assim nos fomos, o agrimensor branco e eu. Isso era no condado de Hampton, e o pai desse homem pertencia ao Klan. Mas todos eles tinham essa mentalidade por causa dele.

»Fui o primeiro afro-americano a ir para a faculdade de Direito do meu lado do condado. A Universidade da Carolina do Sul, em Columbia. Estava numa turma de cem — isso foi nos anos 80. Eu era o único negro. Passei o exame da Ordem em 1988. Obtive autorização para pregar.

»Para mim não há contradição. Sinto-me feliz fazendo ambas as coisas. Queria apenas que a economia fosse melhor. Esta zona é tão pobre. Eles não têm nada — precisam de esperança. Se a puder transmitir, já é uma boa coisa. Jesus disse: «Devemos amar o próximo.»

Nos silêncios que se seguiram perguntei por Orangeburg e Sycamore e Fairfax, e sobretudo por Allendale, que me parecia tão votada ao infortúnio.

— Esses são lugares amigáveis; boa gente. Bons valores. Pessoal decente. Da próxima vez que voltar aqui, faça uma visita à nossa igreja, Pastores do Apocalipse. Prometa-me que o fará.

— Prometo — disse eu; a ideia de voltar agradava-me.

— Nós temos problemas. Crianças que têm filhos, por exemplo, por vezes quatro gerações de crianças com filhos. Mas há tão pouco avanço. Isso deixa-me perplexo, a situação deste lugar. Falta alguma coisa. Que será?

E fez um gesto brusco, soerguendo a mão, e ergueu a voz num tom que lembrava o pregador.

— Levem as crianças daqui e elas brilharão!

Estrada Atómica

Vi pelo mapa que a estreita estrada secundária através dos fragrantes bosques de pinheiros amarelos se chamava Estrada Atómica. Uma estrada secundária, ramificava-se como Route 125 da pobre, delapidada Allendale e da ominosa Route 301 com os seus arruinados motéis, e acompanhava o curso do rio Savannah, que era a linha de demarcação da Carolina do Sul com a Geórgia, até Augusta. «Estrada Atómica» era um nome demasiado tentador para deixar passar em branco. Vendo uma grande vedação e uma guarita de sentinela, parei para perguntar o que havia por detrás da barreira.

— Faça inversão de marcha e siga em frente.

— Queria apenas fazer algumas perguntas.

— Ouviu o que eu disse?

Era demasiado tarde para parar na cidade mais próxima, Aiken, para inquirir, mas pensei: da próxima vez virei por aqui — quando visitar os Pastores do Apocalipse — e hei de observar mais de perto. Mas sabia que a vedação circundava a instalação do rio Savannah, uma central nuclear conhecida localmente por Fábrica da Bomba.

Havia outra coisa que distinguia esta viagem de outras que tinha feito na minha vida. Em África ou na China eu nunca dissera, voltarei daqui a uns meses e continuarei. Em vez disso, seguia até ao meu destino para depois regressar a casa e escrever sobre isso. Mas no Sul viajava em círculos excêntricos, dentro e fora da quarta dimensão, sempre esperançado, fazendo planos para regressar, e dizendo para mim mesmo, como fiz nesse dia na Estrada Atómica: hei de voltar.

Fiéis em motas

No caminho através da Geórgia para Tuscaloosa, encontrei Kelly Wiggly numa área de descanso do Alabama. Estava com a mulher, a fazer uma pausa. Vi que ele levava uma bela Harley-Davidson de três rodas no seu atrelado, e perguntei-lhe por ela. Homem corpulento de cabelos brancos, na casa dos sessenta, de fato-macaco e botas, era motociclista, mas amável, tão tranquilo que parecia beatífico.

— Vamos a caminho de casa vindos de Hatfield, Arkansas, na linha de demarcação do estado de Oklahoma, onde tivemos um encontro da Associação dos Motociclistas Cristãos — disse ele. — Nós viajamos pelo Filho; o Filho de Deus. Juntámos ali três mil motociclistas de todo o país, de outros lugares do mundo também. Um deles motociclista da África do Sul. Congregamo-nos todos os anos, para dar testemunho, benzer motos e rezar.

— Veem Hell’s Angels?

Ele riu-se e disse:

— Nós damos as boas-vindas aos Hell’s Angels, aos Banditos, seja a quem for. Não importa que sejam porcos ou violentos; temos as motos em comum. Nós dizemos: «Venham daí tomar um café. Quatro da manhã? Fixe.» Qualquer altura é boa, tudo bem. Aí falamos-lhes acerca de Jesus, e talvez leiamos um pouco a Bíblia, rezamos, confraternizamos, sem pressão.

— Vocês operam muitas conversões?

— Eles são bastante brutos, mas podem ser salvos. Sabe, alguns deles são ex-reclusos. Tudo o que eles têm de fazer é ouvir e dar testemunho. Eu sei que os podemos trazer ao redil. O que é preciso é um Plano de Viagem. Primeiro passo: faz-te à estrada. Segundo passo: considera o teu destino — todos nós errámos caminho. O terceiro passo é: realiza o teu dilema — qualquer viagem espiritual vai dar ao Canyon do Pecado e Morte. Mas Deus dispôs uma ponte sobre ele, e eis o quarto passo: cruza hoje a ponte — decide cruzar essa ponte, com a ajuda de Deus.

— Que tal foi o vosso fim de semana?

— Foi belo. Todos lá acampados, em Hatfield. Acampámos e demos testemunho. E sabe que mais? Este movimento de Fiéis em Motas começou com um homem, alguns anos atrás. E cresceu imenso. Oiça, eu estou para me reformar, e quando o fizer, eu e a minha mulher vamos conduzir esta Harley por todo o país, acampando e dando testemunho. — Parou um momento a pensar. — Talvez também pelo estrangeiro. Sabe qual é o país onde o cristianismo cresce mais em todo o mundo? É a China.

— Imagino porquê.

— Porque eles querem ser salvos. E com esta me vou, até Scottsboro. Deus o abençoe, irmão.

Tuscaloosa: a importância do futebol

Segui até Tuscaloosa, Alabama, para me reorientar, ir mais para sul, até aos condados de Hale e de Greene.

Tuscaloosa é uma cidade universitária — mais de metade da cidade é o campus da Universidade do Alabama, célebre por ter a melhor equipa de futebol do país e os treinadores mais bem pagos. É a terra do Crimson Tide, da letra escarlate, do A de Alabama nos carros e nas roupas e a cada passo em tatuagem vermelhas.

Cheguei numa sexta-feira à noite, e no dia seguinte Tuscaloosa estava possuída por algo mais intenso que um carnaval. Uma espécie de rito tribal tumultuoso possuía toda a cidade, devido ao jogo de futebol da Universidade do Alabama a ter lugar nesse dia num estádio com capacidade para mais de cem mil pessoas. Notei que toda a gente em Tuscaloosa era adepta. Um homem disse-me:

— Esta é uma cidade que bebe por um problema de futebol — e piscou o olho para mostrar que estava a gozar.

Esse reparo implícito tem sido feito a muitas cidades universitárias, mas será o futebol um problema em Tuscaloosa? Pareceu-me uma condição crónica, talvez não um problema mas uma solução. A cidade é absorvida pelo desporto. Baseia-se no futebol, e prospera. O futebol é a identidade da cidade, e o jogo torna os seus cidadãos felizes — resolve-lhes os conflitos, unifica-os, ajuda-os a esquecer os seus males, dá-lhes um sentimento de partilha no culto dos vencedores — e isso torna-os uns colossais, monocórdicos e peguilhentos chatos.

— O futebol aqui é uma religião — dizem também alguns tuscaloosanos, e sorriem a desculpar-se; é um cliché, mas não estão longe dessa definição, e talvez nem se apercebam disso. Até a mais básica análise psicológica pode explicar a justeza dessa fórmula. Não qualquer velha religião, nem tampouco o suave, privado orar íntimo, o credo de Deus-é-amor que informa as decisões e insufla paz. A religião do futebol do Crimson Tide está repleta de fúria, algo como o cristianismo dos cruzados, que assentava na sede de sangue, com as suas cargas de sabre e as suas conquistas, ou como os fanáticos do Islão, sobretudo no jihadismo, a fé cega, sem compromisso e votada ao martírio; um grupo fechado unido pelo desporto para demonizar e vencer um grupo de fora. Em Tuscaloosa é uma paixão pública, um sistema de crenças ritualizadas, toda uma persona. Por isso no Alabama alguns homens têm o A tatuado no pescoço, e algumas mulheres no ombro: uma declaração pública, uma assunção para a vida, uma modificação corporal como prova de lealdade e diferenciação cultural, como uma marca de casta hindu ou uma tatuagem maori ou as incisões faciais dum dinka sudanês.

Muitas cidades orgulham-se justificadamente das suas equipas desportivas — uma equipa triunfadora melhora sempre o estado de ânimo de um lugar —, mas a multidão de sábado em Tuscaloosa, as procissões de automóveis arvorando bandeirolas, os uivos dos fãs e os trajes (e cada lugar no enorme estádio o testemunhava) convenceram-me de que esse grupo exclusivo era aqui mais importante do que noutros lugares onde estivera. O seu mais próximo equivalente em termos de tatuagens, adornos e cânticos era a cerimónia tradicional adotada por um povo que outrora fora colonizado, fazendo valer a sua identidade tribal.

No futebol do Alabama, a lealdade dos adeptos reforça a autoestima, não só dos estudantes mas de quase todo o estado. Esse comportamento de grupo é explicado pela «teoria da identidade social», uma proposta englobante do psicólogo britânico Henri Tajfel, que descreveu as simpatias e reações de pessoas que optam por integrar uma classe social, uma família ou um clube — ou uma equipa de futebol — e se tornam membros dum grupo exclusivo. Os grupos aos quais as pessoas pertencem são, escreve Tajfel, «uma importante fonte de orgulho e autoestima. Os grupos conferem-nos um sentido de identidade social: um sentido de pertença ao mundo social».

O adepto desportivo é alguém para quem, aderindo ao grupo, a associação e filiação passam a contar tanto que se pode dizer que lhes conferem um fito na vida. Cria-se uma adesão ao grupo identificando-se com a equipa e participando no «favoritismo de grupo». Essa filiação constrói autoconfiança e autoestima; é-se incumbido de torcer por uma equipa e fazê-la subir. É-se mais que um membro passivo; é-se um incentivador ativo, contribuindo para tornar a equipa maior e mais forte. E é bom também para se fazer estimar. Segundo Tajfel, «para promovermos a nossa própria imagem, promovemos a situação do grupo ao qual pertencemos».

Dizer que quando a tua equipa ganha te sentes um campeão é uma boa definição do apelo que representa ser adepto. As pessoas muitas vezes ironizam a propósito da lealdade para com a equipa, o orgulho no seu sucesso, mas no Alabama, onde o fervor dos adeptos é multiplicado por mil, ninguém se ri. Não há nada de divertido em entoar o refrão «Roll Tide, roll!» — a devoção é tremendamente séria, e por vezes (assim me pareceu) desafiante, hostil, a tender para o patológico.

O motor de qualquer equipa é o treinador. No folclore do Alabama é Paul Bryant, alcunhado «Bear» porque quando jovem no Arkansas terá aceite o desafio de lutar com um urso cativo, açaimado (e foi espancado).

Os três maiores funerais na história de Alabama definem as disputadas fidelidades do estado, disseram-me: George Wallace, Martin Luther King e Bear Bryant.

Como treinador, Bear Bryant foi um gigante, estatisticamente o mais bem-sucedido na história do futebol universitário, que treinou Alabama durante vinte e cinco anos e cujo perfil bicudo e o divertido chapéu pied de poule são emblemáticos. O seu nome figura em ruas e edifícios de Tuscaloosa e no vasto estádio. Carismático, notado pelo abuso do álcool e pela sua tenacidade (jogou com uma perna partida num encontro universitário no Tennessee), era conhecido como grande motivador. Evitou recrutar jogadores negros durante anos, mas em 1971 introduziu o primeiro, Wilbur Jackson, oferecendo-lhe uma bolsa de estudo. Desde então a equipa abriu uma via para a carreira dos atletas negros e tornou-se um lugar de convergência das raças.

Entre outras proezas, Bryant venceu seis campeonatos nacionais por Alabama. Mas o atual treinador, Nick Saban, em apenas quatro épocas ganhou três campeonatos nacionais, e o contrato dele vigora até 2018. Saban, que é adorado pelas suas vitórias e as suas relações com os jogadores, ganha atualmente 6,9 milhões de dólares por época, o mais bem pago treinador duma equipa universitária de futebol da nação.

É natural para um incréu resmungar por causa do dinheiro, mas o desporto universitário é um negócio — as universidades precisam dessa atenção nacional para criar fluxo financeiro. Doadores, antigos alunos e clubes de apoiantes contribuem com dinheiro para aumentar os salários; a venda de bilhetes é uma importante fonte de receita. E há o merchandising. Muita parafernália do logo é tradicional — inúmeros estilos de bonés, T-shirts, flâmulas e bandeiras; mas grande parte é culturalmente específica do Alabama: lonas para atrelados do Crimson Tide, tampas das válvulas de pneus, ligas de seda muito sexy com laço a dizer «Roll Tide», pantufas de bebé, cadeiras de jardim, mascotes de peluche, capas de super-heróis para crianças, grandes bandeiras piratas, carregadores de bateria Crimson Tide, casacos para cães, cubos Rubik, jogos, relógios, roupa, sacos, gnomos de jardim, candeeiros de mesa, roupa de cama, copos, coberturas para fornos, equipamento de golfe, acessórios de automóvel, escovas de dentes, e resguardos de barcos em vinil, tudo exibindo o logotipo Roll Tide ou um A maiúsculo inequívoco.

Tudo isso contribui para uma substancial receita baseada no futebol, que em 2012 era de cento e vinte e quatro milhões de dólares, e desses quarenta e cinco milhões eram lucro. Acresce a melhoria de estatuto da própria universidade, resultando em maior contratação, melhores salários para os professores e um campus mais extenso. A eminência de Alabama como universidade de campeões de futebol atrai estudantes não residentes: mais de metade dos estudantes são de fora do estado, pagando propinas três vezes mais caras.

O retorno financeiro é indiscutível. O benefício em autoestima é mais difícil de avaliar, mas é palpável. E talvez seja previsível — o simples bem-estar inevitável de se identificar com a equipa e o elaborado guarda-roupa e a imagética que acentuam essa identificação — que isso afete todo um estilo de vida. Tal tipo de conduta social tem a sua contrapartida no fechamento do grupo para o mundo, sobretudo nas culturas ancestrais, sintetizado no glorioso e agressivo sing-sing que se pode ver nas terras altas ocidentais da Nova Guiné: o Goroka Show, a convergência dos Homens de Barro Asaro e guerreiros da selva armados de presas de javali e com ossos vazando-lhes o nariz, os seus extravagantes adornos, penteados, armas, colares, penas, pinturas faciais, saracoteando-se, agitando as lanças, simulando cargas, percutindo tambores e gritando.

Pensando no Crimson Tide, deixei por completo de o ver como futebol, exceto num sentido superficial; parecia muito mais outra reação sulista perante um sentimento de derrota, com alguma da emoção contida que notara nas feiras de armas. Num estado com tantas dificuldades, com um dos mais elevados índices de pobreza da nação, com a sua história de conflito racial, e com tão pouco para apregoar embora gostasse de se afirmar, era natural que uma equipa ganhadora — campeã nacional — atraísse gente precisada de sentido e autoestima nas suas vidas, e se tornasse a base dum clássico grupo fechado. O Tide é uma robusta prova da teoria da identidade social.

A irmã Cynthia

— Assine, por favor — disse a mulher de vestido amarelo-claro, e a seguir olhou mais de perto para mim e deu-me o seu mais cálido sorriso. — Eu conheço-o. Você é Mr. Paul.

— Como sabe, irmã?

— Você ontem estava no nosso serviço religioso.

Isso era verdade. Eu era o pecador sentado entre os publicanos, bem atrás dos filisteus, num banco recuado. Eu não era habitual frequentador de igrejas, mas o que dava o sentido ao domingo no Sul era um serviço religioso, uma feira de armas ou um jogo de futebol.

— Em que posso ser-lhe útil?

— Vim aqui para ver Miss Burton.

— Vou dizer-lhe que está aqui. Por favor assine o livro dos visitantes.

Junto dos nomes no livro dos visitantes, numa coluna com o cabeçalho Motivo da Visita, vi «Comida» e «Roupa» e «Água» e «Conta de luz» — gente procurando ajuda com desesperados rabiscos de tinta. Assinei o meu nome e escrevi «Miss Cynthia Burton».

Ela recebeu-me dali a pouco, uma mulher imponente mas de ar triste, aparentando sessenta anos, caminhando insegura mas determinada nos seus joelhos fracos, apoiada numa bengala. Era a diretora-executiva do Serviço Comunitário de Programas do West Alabama. Avançando devagar, empurrando a bengala, mostrou-me um espaçoso quarto com paredes nuas onde uma mesa vazia dominava o espaço.

Começámos por falar do jogo de futebol que tinha animado o fim de semana em Tuscaloosa.

— O futebol aqui é tudo; loucura do futebol, doença do futebol — disse ela. — Eu entendo que o futebol é um mecanismo económico, mas absolutamente tudo gira à volta disso. Há coisas muito mais importantes na vida do que ganhar um campeonato de futebol.

— Eu acho que se trata de algo mais que futebol — disse eu, mas resisti a explicar por que motivo achava que ele criava uma identidade social.

— Alguns atletas lucram com isso — disse ela. — Tiram partido da atenção do treinador, sobretudo. Devido à falta de chefes de família masculinos, perdemos duas gerações. Drogas; a mãe exercia dois trabalhos e morria de cansaço. Vê-se que alguém ganha dinheiro vendendo drogas, e então entra-se e fica-se agarrado. Uma quantidade desses miúdos precisa dum treinador. — Aí ela sorriu e perguntou: — Como deu comigo?

Eu disse que um amigo comum me indicara o nome dela quando eu referira que planeava viajar pelo Sul. Cynthia Burton estava envolvida no desenvolvimento comunitário, dissera ele, e acrescentara: «Ela conhece toda a gente.»

— A sua rececionista reconheceu-me — disse eu. — Foi ótimo. Ela tinha-me visto no serviço religioso da igreja batista em Cornerstone.

— Isso é agradável, mas eu sou católica — disse Miss Burton. Estava a preparar-se, tomando notas num espesso livro de marcações. — É uma história interessante a razão por que sou católica.

— Conte-me, por favor.

— Eu nasci em Gadsden — disse ela. — Os meus pais eram pobres mas muito trabalhadores. E pessoas decentes. O meu pai trabalhava na Goodyear Tire Company. A minha mãe era enfermeira. Ela tinha pouca instrução, mas ganhou experiência no hospital, e aprendeu enfermagem trabalhando.

Miss Burton suspirou e debruçou-se para a frente, e vendo que eu escrevia num bloco, bateu com o dedo ao pé do bloco de notas e falou enfaticamente.

— A minha mãe não queria que eu frequentasse escolas segregadas, como sucedera com ela, pelo que ela e o meu pai pouparam dinheiro para me arranjarem uma escola melhor. Aconselharam-se no seu meio. As freiras locais, Filhas do Espírito Santo, sugeriram que ela me enviasse para o Norte, Connecticut, para frequentar a Academia Católica de Putnam. Isso foi em 1961. Segregação.

Deixou aquilo cair. Eu disse:

— Os seus pais parecem incríveis.

— Oiça, os meus pais eram muito atrasados para a sua geração. O meu pai só chegou ao quarto ano, a minha mãe ao sexto ano. Mas desejavam o melhor para os filhos e estavam dispostos a fazer sacrifícios. A minha escola secundária, Gadsden High, só foi integrada em 1968.

E eu pensei: quatro anos após a Lei dos Direitos Civis…

— Eles juntaram todo o seu dinheiro e eu fui para o Norte, Putnam. Era a única estudante negra na academia. Mas havia cinco famílias de negros na cidade de Putnam. Eles adotaram-me, por assim dizer. Cuidaram de mim. Não era uma educação normal. Aquelas pequenas raparigas ricas ensinaram-me. Um dia, em assembleia, as dez melhores estudantes foram apresentadas às restantes. Eu era uma delas: a segunda, muito orgulhosa.

Miss Burton soltou um riso abafado, ao lembrar-se daquilo, e tornou a bater com o dedo junto do meu bloco de notas.

— A mãe da rapariga que ficou em terceiro ligou às freiras e contestou a minha nota. Eu estava muito preocupada. Liguei à minha mãe. Ela disse: «Mantém a tua postura: — não posso ir aí, tu é que terás de aguentar. Mas não te esqueças de trabalhar e estudar. Cynthia, deves ficar sempre à frente dessa rapariga.» E eu estudei, e mantive-me no topo.

— Isso parecia ser uma escola privada muito seleta — disse eu. — Como se deu com as colegas?

— Muito bem. Aquelas raparigas eram tão ricas. Iam buscá-las de Rolls-Royces e Bentleys para as levar de volta a casa. E eram muito delicadas e amistosas comigo, faziam tudo por mim. Eu era a única estudante negra. Era para elas como uma mascote! Eles convidavam-me para casa delas: casas grandes, mansões. Lembro-me da altura em que fomos para Filadélfia. Cinco das nossas raparigas foram na limusina. Estávamos todas cheias de fome quando lá chegámos, e a rapariga que era de lá chamou-nos à cozinha para comer. «Conseguiste algo para nós?» Descemos, aos poucos, e havia lá três criadas a confecionar-nos a refeição.

— Sentiu-se tentada a ficar no Norte? Muitos sulistas encontram lá mais oportunidades.

— Eu gostava do Norte — disse ela. — Tornei-me católica. Fui para a Universidade Loyola, em Chicago, mas tive de voltar para o Alabama. A minha mãe precisava de mim. E mais, sentia que era bafejada com tanta coisa, que tinha de partilhar. Decidi ser impactante com um grande grupo de pessoas. Estou à frente desta agência há nove anos. Temos dezoito milhões de dólares de orçamento para oito condados — talvez um milhão de pessoas. A maior parte são fundos federais, outros provêm de bolsas. Dispomos de quinhentas unidades — habitação acessível, tanto a nível de rendas como de propriedade. E temos ajudado as pessoas por outros meios.

— Que tal é o trabalho? — perguntei.

— Há muito conservadorismo social por aqui. Eu creio firmemente na autossuficiência. Algumas pessoas precisam de mais ajuda do que outras, mas as pessoas também precisam de ajudar-se a si mesmas.

— Como é que a sua agência ajuda?

— Com alojamento, aquisição de casa própria, rendas, todos os meios — disse ela. — Quer ouvir uma coisa estranha? Alguma da nossa gente tem grandes propriedades; uma quantidade de hectares. Eles não querem fragmentar os seus domínios. São ricos em terra e pobres em propriedade. Não é raro alguém com grande quantidade de terra viver num barraco e recorrer ao banco alimentar e a apoio energético.

— Encontra-se com eles?

— Eles vêm cá — disse ela, erguendo a voz. — Podem vir por comida. Ou à procura de ajuda para pagar a conta da eletricidade. A repartição é a Low-Income Heating Energy Assistance, a que chamamos LIHEAP. É preciso ter um rendimento compatível. Obtêm apoio para o aquecimento. Existe também um programa de climatização, para impermeabilizar a casa. A porção maior que conheço tem cerca de oitenta hectares, e as pessoas são pobres. Não há tantos assim nessa situação, mas alguns.

— Pobres, com tal quantidade de terra?

— Sim, senhor. Eles não venderão a terra. Nas comunidades afro-americanas o objetivo é possuir em vez de ser possuído. E, porque a agricultura se tornou um negócio, é difícil para essa gente competir. Alguns praticam culturas comercializáveis. Mas outros cultivam milho ou hortaliças (pimentos, couves, abóboras) e feno. Criam gado. A terra passa de geração em geração. Ou então deixam-na assim, inculta, preferindo não cultivar.

Ou ainda, tendo a terra sido transmitida na família, a propriedade vai sendo fracionada (para usar o termo legal), com tantos proprietários de parcelas que se torna invendável. A chamada «terra índia» sofre as mesmas consequências; em seis gerações, uma parcela de terreno pode vir a ser possuída ou partilhada por mais de duzentas pessoas.

— É um tremendo dilema, como diz

— Muita gente aqui acha-se em grande risco.

— Gostaria de me encontrar com alguns.

— Pô-lo-ei em contacto com eles — disse ela. — E com pessoas que estão a tentar melhorar as coisas.

A Igreja Batista Cornerstone Full Gospel

— A igreja sempre foi o elemento central do Sul rural — disse o bispo Palmer. Ele era alguém que a irmã Cynthia dissera que eu deveria ver. — Eu sou de Birmingham, mas fui à escola aqui no Stillman College, historicamente negro, mas que agora tem alguns estudantes brancos.

Era um homem alto, com um arcaboiço impressionante, barrigudo, de cabelos brancos, com umas barbas brancas presas numa pera à Van Dyke, uma figura poderosa, um patriarca com olhos ternos e um riso franco. Isso era quando trajava o fato às riscas, antes de o ver nas suas vestes púrpuras de bispo; no seu púlpito, tamborilando o texto com a sua manápula de urso, parecia um profeta do Velho Testamento.

Fomos no carro dele até Stillman e contornámos o campus murado, errando por entre asseados edifícios e terrenos desportivos.

— Lá vai um. Lá vai outro.

Estudantes brancos, passando apressados. O bispo Palmer passou a mão pelas barbas contra o seu grande maxilar e bateu no queixo. Tinha uma aparência de juiz e eu pensava em como alguns homens, fisicamente, parecem nascidos para mandar.

— Você tem o nome perfeito para um pregador. Earnest Palmer.

— Um homem de fé, levando uma palma — disse ele.

— Eu penso em palmer como um peregrino, trazendo uma palma da Terra Santa. Como no verso de Chaucer.

Ele abrandou o carro e olhou-me de relance.

Eu disse:

Contos de Cantuária. «Palmers for to seken straunge strondes.»

Ele sorriu como fazem por vezes as pessoas ao ouvir uma linguagem ininteligível insolentemente falada, ou um cão com um ladrar estranho.

— «To ferne halwes, couthe in sondry londes» — recitei. — «Palmers: romeiros em busca.»

Riu-se. Parecia novidade para ele. Deixou o campus e mudou de assunto.

— Quando andava aqui fizemos uma manifestação no Ed’s, um restaurante além. Ao cimo daquela rua. Não deixavam os negros lá comer. Homem, esses rapazes brancos espancavam-nos.

— Era pior aqui que em outros lugares?

— Tuscaloosa era o quartel-general do Klan no Alabama — disse ele. — O chefe, Robert Shelton, tinha um escritório em Union Boulevard. Era também tipógrafo. Quando eu era estudante, fui lá uma vez para imprimir umas coisas. Os meus amigos disseram: «Aonde é que foste?»

Robert Shelton, tido por «um homem francamente mau», também operário fabril e comerciante de pneus e Mago Imperial dos Cavaleiros do Ku Klux Klan do Alabama quando Earnest Palmer era estudante em Stillman, acabou por falir e foi interdito por uma condenação em resultado dum linchamento pelo Klan em Mobile. Shelton morreu de ataque cardíaco em 2003, com setenta e três anos.

O encontro com o bispo Palmer levou-me a querer visitar a sua igreja, e assim fiz no domingo seguinte. Foi na manhã em que encontrei Lucille, que conduziu à minha frente até à igreja para me indicar o caminho. Lucille, que me tinha dito docemente, «abençoado seja».

A Igreja Batista Cornerstone Full Gospel era maior do que me parecera ao aproximar-me. Jazia ao fundo dum pobre aglomerado de pequenas casas perto dum pequeno riacho, Cribbs Mill Creek.

«Os negros sulistas encontram nas suas igrejas um centro unificador e uma alternativa à hostil (ou estranha) cultura maioritária», escreve John Shelton Reed em The Enduring South (1978), acrescentando: «Tal como sucede com os imigrantes de outros grupos étnicos.» A congregação do bispo Palmer assemelhava-se de facto a um grupo étnico, com o mesmo ideal, procurando consolo. Os calorosos suplicantes entregavam-se sem reserva àquela mulher de voz profunda que consolava os fiéis, todos congregados, formalmente vestidos, mulheres de chapéu e luvas, homens trajando fato. Duas mulheres sentaram-se à minha frente, tão belas que os meus olhos ficaram presos delas, e mesmo quando não as fitava a fragância do seu perfume fazia-me corar e sorrir, como se lhes respirasse a beleza.

— Hoje de manhã o demónio é um mentiroso! — proclamou a pregadora do seu púlpito perante o salão, lembrando-me que pecava no meu íntimo. — Invocai o nome de Jesus! Ele é grande! É o ser supremo! Contemplai o triunfo de Sião…! — Ela cantava, entoava um cântico, enchia a igreja com a sua voz.

Vinte minutos desta exortação e então o coro dispôs-se no palco, quinze homens e mulheres e um conjunto de sete instrumentistas, entoando um hino.

«Reina o Nosso Senhor!

Ele reina!»

Mais música, agitando a congregação, que agora ocupava todos os bancos da igreja. Mas estavam todos de pé, balouçando-se, sorrindo, agora entoando um terceiro hino.

«Vós sois o amparo

Dos desesperados e alquebrados…»

E então sentámo-nos e escutámos os anúncios de eventos. Essa ordem tornou-se familiar para mim em outras igrejas que frequentei: o murmúrio, os hinos, os anúncios: notícias das escolas, das aulas, o «Retiro das Mulheres — Restaurando o Corpo, Mente e Espírito», e o seminário intitulado «Como viver?».

Um homem adiantou-se, voz suave, reconfortante, um diácono de fato às riscas.

— Havia dois homens numa ilha deserta — disse ele. E ergueu a mão, indicando que devíamos escutar com atenção. — Um dos homens mostrava-se agitado. «Estamos perdidos, irmão! Que faremos?» Estava fora de si, numa lástima. — A mão a chamar a atenção ergueu-se de novo. — O outro homem estava muito calmo, pronto para tudo, sorrindo, sem se preocupar, embora a ilha ficasse muito longe e parecesse não haver esperança. O primeiro homem, o homem inquieto, diz: «Então?» «Então digo eu», disse o homem tranquilo. «Eu pago o dízimo. Ganho dez mil dólares por semana. Não me preocupo. O meu pastor há de encontrar-me.»

Soaram risos e as sonantes notas de um órgão — a maior parte da pregação era acompanhada com música. Uma procissão de acólitos surgiu nas laterais da igreja, e trazia baldes.

— Que horas são? É a hora da coleta!

Os baldes foram cheios, com notas amachucadas, com rígidos envelopes brancos, e foram passados para trás aos acólitos.

E então a música cessou, e nesse silêncio o bispo Palmer surgiu do lado, envolto numa túnica carmim e ouro, trazendo a sua Bíblia. Alto como era, parecia ainda maior na sua túnica, e embora se movesse devagar e como um estadista, e eu esperasse dele uma voz possante, a suas primeiras palavras foram suaves e reconfortantes.

— Bom dia, irmãos e irmãs — começou ele. E depois, após uma longa pausa: — Deus quer-vos de volta.

Era esse o seu tema, um retorno à fé, um renovar da crença no amor e na compaixão de Deus, e mal começou captou a atenção de toda a gente.

— No tempo da escravatura, uma das coisas dominantes era a canção; as canções exaltavam a glória de Deus — disse ele. — Vocês sabem-no. Eles precisavam disso. Alguns achavam-se tão em baixo que tinham de olhar para cima para ver o caminho. Onde viviam eles? No outro lado da trilha. Mas que fará Deus? Deus construirá uma ponte para eu passar!

Era um sermão subordinado ao tema que os tempos são árduos, mas não há que desesperar. Tende fé — as coisas irão melhorar. Se estais indecisos, lembrai-vos de que Deus vos quer de volta. O bispo pregava a esperança e o perdão e o reconhecimento de que toda a gente passa provações. A Bíblia está cheia de provações, e abençoada pela salvação.

— Lá porque a vossa carteira está vazia isso não quer dizer que vos faltará a bênção. E lembrai-vos, não chove só para vós: chove para toda a gente. Vede Isaías 43, versículos um a seis. «Se caminhares pelo fogo, não te queimarás, e as chamas não te consumirão.» Não temais.

Tornou à escravatura para encontrar consolo, para comparar, para demonstrar que os tempos difíceis acabam sempre. Apelando para nos lembrarmos disso.

— O plano de Deus nunca foi manter-nos na servidão de alguém ou de coisa alguma — disse ele com voz reconfortante, como o médico diz ao paciente que irá melhorar. — Vós sereis libertados.

Alguém soltou um apelo de graças e outros imitaram-no.

— Meus amigos, meus santos companheiros — disse o bispo Palmer —, Deus quer-me de volta; e Deus quer-vos também de volta. — E apontou, a manga da sua túnica varrendo o ar como uma bandeirola. — Deus sabe onde estais. Ele sabe pelo que vós passais. Considerai o Salmo 37, versículo 25. «Fui jovem e agora sou velho; mas nunca vi o justo abandonado, nem os seus filhos a mendigar pão.» Que significa isto?

Deu um passo atrás e endireitou o seu vulto, a túnica ondulante nos braços, o grosso dedo espetado na Bíblia.

— Significa isto — e exclamou —: podeis agora só comer sanduíches, mas depois tereis costeletas! — Ouviram-se risos. — E agora, Hebreus 13, versículo 5: «Vivei sem avareza, contentando-vos com o que possuís.»

Prosseguiu nessa linha, aconselhando moderação, fé e paciência, e transmitindo uma mensagem de esperança, quase sempre num tom de voz razoável, mas de vez em quando com tonitruante convicção.

— Para, Palmer — disse ele por fim, falando baixinho para si mesmo. E replicou: — Sim, Senhor.

Erguemo-nos e cantámos, e as duas encantadoras mulheres à minha frente estavam radiantes, as cabeças lançadas para trás, a cantar nos seus véus, os corpos gingando com prazer nos vestidos sedosos, e tive de me lembrar de que estava numa igreja.

Por fim, após outros hinos, o bispo Palmer convidou toda a gente a chegar-se e beber sumo, e a servir-se de fruta duma pilha de laranjas, maçãs e uvas dispostas na mesa.

— O Senhor ordenou, «fruta da videira».

O bispo Palmer parecia exausto quando me despedi, mas — não era ilusão da minha parte — a congregação parecia fortalecida, encorajada, de bom humor, abraçando-se, todos reconfortados, de volta às suas vidas com um pouco mais de esperança. Era tocante ver como algumas referências sérias às Escrituras podiam elevar os espíritos das pessoas.

A Cintura Negra

Tuscaloosa é uma desorganizada ilha urbana num grande e tranquilo mar rural: a enganadora e serena superfície do Sul — pequenas colinas, depressões relvadas, campos de algodão e feijão, pântanos infestados de moscas, bosques abandonados. Mas a cidade não é invulgar. Ela exemplificava o padrão sulista de povoamento, onde a maior parte das cidades e vilas são ilhas. Asheville e Greenville, Columbia e Charleston, Augusta e Atlanta, Birmingham e Tuscaloosa — todas eram insulares, com um certo nível de prosperidade, uma identidade partilhada, uma zona próspera e outra pobre, lugares onde «o outro lado da trilha» não é uma metáfora abstrata mas um lugar específico, uma condição e uma classe social.

No entanto as cidades não se relacionam entre si e em nada se assemelham ao espaço rural envolvente. Foi sustentado (entre outros, por John Shelton Reed em The Enduring South) que as cidades do Sul contemporâneo «nada têm de caracteristicamente sulista». Há que sair delas para conhecer as verdadeiras tensões da região. As últimas casas nos limites da cidade nesses locais que assemelhavam a ilhas pareciam definir os contornos duma linha de costa, e depois disso tudo caía. Lá atrás, a paisagem era como um oceano, com um simples e habitualmente vazio horizonte, gente vivendo dispersa a vários títulos — cada vez mais pobres e muitas das vezes falando uma língua diferente, ou assim me parecia, forasteiro tanto na confusão da ilha urbana como no vazio verde mar das regiões interiores.

Greensboro, apenas quarenta e cinco quilómetros a sul de Tuscaloosa, jaz sob o horizonte nesse verde mar, uma pequena, bonita, algo decadente cidade, muita da sua elegância estrangulada pela pobreza. Na estrada de Greensboro, perto de Moundville, ficam as pequenas explorações agrícolas e ainda precárias casas onde James Agee e Walker Evans passaram o verão de 1936 recolhendo material. No início, esse trabalho estava previsto ser o perfil, para a revista Fortune, de três pobres famílias de rendeiros brancos. A narrativa de vinte mil palavras era longa, intrincada e depressiva; as fotografias, melancólicas; era também demasiado sincera para sair numa revista de negócios; e o projeto acabou por ser rejeitado. Mas Agee era do Tennessee. Ele conhecia o Sul e, apaixonado pelo seu tema, acrescentou o texto ao longo de vários anos e fez dele um livro substancial e de certo modo experimental. Publicado com o título Let Us Now Praise Famous Men, em 1941, vendeu apenas seiscentos exemplares. Esse fracasso comercial contribuiu para o alcoolismo e morte prematura de Agee, aos quarenta e cinco anos.

O livro fora inspirado, e finalmente ofuscado, por You Have Seen Their Faces (1937), um livro mais curto e mais direto com texto de Erskine Caldwell e fotografias de Margaret Bourke-White. Mas esse livro, a seu tempo um texto seminal dos americanos radicais por causa do seu retrato da pobreza sulista, esteve esgotado durante muito tempo. Na edição acontecem coisas estranhas. Vinte anos após a primeira edição de Let Us Now Praise Famous Men, este foi reeditado, e nos princípios da década de 60, mais consciente socialmente, encontrou muito mais leitores e admiradores, que entenderam as suas inovações. Foi apreciado pela sua densidade, ambiguidade e poéticas descrições — capítulos inteiros sobre velhas roupagens, por exemplo; páginas sobre telhados arruinados; minuciosas descrições das texturas das tábuas e ardósias, de remendos e baldes de desperdícios.

Enquanto estudante universitário, eu possuía um exemplar, e doía-me pensar que tinha tanta dificuldade em lê-lo. Só conseguia lê-lo em voz alta, como uma pessoa obtusa por falta de instrução. Achava a narrativa exagerada e dum lirismo forçado e queria (isto era em 1963, ano do conflito sulista) que ela me esclarecesse mais sobre o conflito racial. As fotografias eram torturadas e inesquecíveis imagens clássicas de pobreza, mas o texto tinha demasiado Agee e pouca luta. O autor em primeiro plano, isso era o máximo nos afirmativos anos 60. Os negros eram praticamente invisíveis no texto, e pouco aludidos. O manuscrito da obra rejeitada de Agee era um relato tão concentrado da pobreza rural que é fácil de ver porque não saiu como artigo de revista.

Cherokee City, no livro, é Tuscaloosa, e Centerboro é Greensboro, cinquenta quilómetros a sul, tema de algumas fotografias de Evans e onde eu acabaria por ir. O livro de Agee tinha-me levado ali, ao meio do Alabama.

Agee e Evans tinham passado o seu tempo nos condados de Hale e Greene, na Cintura Negra. A região do algodão.

«Negra pelo solo fértil, negra pelo povo», tinha-me dito Cynthia Burton. «Quanto mais fazendas havia, mais escravos eram precisos — essa é a razão para a elevada percentagem de negros na área que começa a sul de Tuscaloosa e se estende ao longo do estado.»

O passado não morrera, não passara. Ela mesma era negra, e explicava a demografia da Cintura Negra nos nossos dias reportando-se à escravatura, uma memória ainda visível devido à persistência dos seus efeitos.

«Vou comprar pipocas, sentar-me e assistir ao espetáculo»

Avançando para sul a partir de Tuscaloosa, passando por Moundville e Havana, tinha a ideia de ver algumas pessoas em Eutaw a breve prazo. Liguei-lhes e disse-lhes que me encontraria com elas a certa hora da tarde, dali a uma hora, e aí permiti-me ser enfeitiçado por estradas secundárias com nomes encantadores — Raspberry Road, Finches Ferry Road — e uma sucessão de pequenos cemitérios, hortas e terrenos vagos ensolarados nas margens do rio Black Warrior, assim chamado em lembrança do grande chefe Tuscaloosa.

E a cidade de Eutaw era também bela, um lugar diminuto numa malha cerrada de ruas com uma modesta Câmara Municipal e o tribunal do condado. A cidade era assim chamada pela batalha de Eutaw Springs na Carolina do Sul, comandada pelo general Nathaniel Greene, cujo nome fora dado a esse condado, condado de Greene. As frontarias das lojas das velhas ruas de Eutaw estavam tranquilas ou abandonadas, e raros passantes projetavam as suas sombras nessa tarde calorenta, exceto alguns compradores dirigindo-se ao supermercado Piggly Wiggly. Conduzi em círculos, aquilatando o local, pensando em como o sol fazia a quase abandonada cidade parecer mais melancólica.

Parei na Câmara Municipal. Cynthia Burton insistira em que eu me encontrasse com o mayor, cujo nome era Raymond Steele. Era o primeiro mayor negro de Eutaw, eleito em 2000. Cumprira três mandatos e esperara ser de novo eleito.

— Mas perdi a última eleição — disse-me o mayor Steele. Envergava um boné de basebol e um blusão. — Deixo isto dentro de umas semanas, ao cabo de doze anos. Não importa. Tenho um negócio de lavandaria a seco. Mr. Paul, fui militar durante vinte anos. Estive na primeira Guerra do Golfo, em ação. Vi muita coisa. Conquistei uma Estrela de Bronze.

Sugeriu que déssemos uma volta de carro. Iria mostrar-me cidade e os planos que tinha para um novo aeroporto, para um parque, para um novo estádio. Ninguém se interessara pelos seus planos. Doze anos como mayor: os votantes sentiram que ele ultrapassara o seu limite.

— Esta cidade de Eutaw fica na Cintura Negra. Terra negra, povo negro — oitenta por cento de negros. Solo rico, mais gente escravizada, por isso mesmo. O meu adversário era negro, pertencia ao conselho municipal. Veja só o que eu fiz. Ampliei aquele parque. Eles nunca tinham tido um parque. Instalei iluminação no campo de basebol. Prossegui o projeto de alojamento em 2007 e 2008. As primeiras casas novas desde 1974. Rendas baixas, com opção de compra.

Percorremos nos dois sentidos as ruas secundárias de Eutaw.

— Rosie Carpenter Haven: trinta e três novas casas — disse o mayor Steele. — Carver Circle: trinta casas.

As casas eram bem construídas e bem tratadas, com pequenos jardins fronteiros, mais vistosas que a própria cidade.

— O negócio não é famoso — disse ele. — Conseguimos a fábrica de embalagens, RockTenn. Temos um fabricante de telhados. Temos peixe-gato, o peixe-gato SouthFresh. Há peixe-gato por todo o condado de Greene.

— Mas ouvi dizer que o peixe-gato está em declínio.

— Está a ir por água abaixo — disse o mayor Steele. — Disso não há dúvida. Nós perdemos cidadãos todos os dias. Somos agora nove mil, e éramos doze mil. Esse foi um dos problemas na eleição. A nossa população tem regredido. Mas havia outros problemas.

— Como por exemplo?

— Como por exemplo o facto de a eleição ser suja. — Ele disse que o seu opositor afixara cartazes MAYOR $TEELE HAS CASHED IN, e o S era o símbolo do dólar. — Como se eu tivesse feito batota. E não fiz, está claro.

— Agora pode dedicar-se ao seu negócio de lavandaria e deixar outro resolver os problemas de Eutaw.

— Precisamente. Vou comprar pipocas, sentar-me e assistir ao espetáculo.

«Privilégio de brancos»

Eu tinha mais uma visita a fazer em Eutaw. Após o encontro com o mayor Steele, que se revelou de imediato caloroso e disponível, tinha a sensação de ir para outra entrevista amistosa. Estava enganado. Mas esse erro, como muitos erros que cometi no Sul, revelou-se esclarecedor.

Quando bati à porta do pequeno escritório fronteiro ao passeio, e entrei, senti uma escuridão intimidante cair sobre mim. Parecia-me que caíra num buraco ou talvez já estivesse metido num.

Duas jovens sentadas diante de secretárias, olhando fixamente para computadores com ar alarmado, sugerindo que estavam demasiado assustadas para olhar para cima. Disse olá e, contrariamente ao que seria de esperar — estávamos na pequena, amável, recomendável Eutaw —, não houve resposta.

— Quem é você?

Ouvi a pergunta antes de ver quem a formulara, e era uma velha mulher carrancuda sob uma massa de selvagens caracóis em forma de saca-rolhas, ar feroz, envergando óculos que lhe deformavam os olhos. A postura dela era de alguém que repele uma ameaça, o tom de voz ligeiramente estridente, e o aspeto geral elétrico e ameaçador.

Disse o meu nome, referi que tinha marcado encontro, sublinhando que agradecia por ela me ter atendido rapidamente — e, olhando em volta, vi um homem que só podia ser o marido que me fora descrito, sentado em silêncio a uma secretária a um canto.

— Está atrasado — disse a mulher. — Por que motivo chegou atrasado?

Comecei a louvar as estradas secundárias, os renques de árvores, os campos dourados, o algodão em flor, mas não adiantei muito com essas apreciações.

— Podia ter ligado — disse ela secamente, com um tom de ameaça na voz.

— E liguei… para marcar encontro.

— Não ligou a dizer que chegaria atrasado.

— Estou quinze minutos atrasado — disse eu, meio a rir perante o absurdo daquilo, apelando para o pessoal na sala: as mulheres aos computadores, o homem lá atrás. (Estava a trabalhar, ou escondido?)

Eu estava de pé no meio do aposento, a temível mulher diante de mim, agora a barafustar para mim, descompondo-me duma forma que eu não me lembrava de ter aguentado antes — talvez no quarto ano, na Washington School, com Miss Cook, por sussurrar enquanto ela recitava o Salmo 23 («Ainda que ande por vales tenebrosos…»). Naquele escritório em Eutaw, a meio da tarde, eu estava a receber uma descompostura escaldante, e estava tão surpreendido que agravei o meu erro continuando a sorrir.

— Acha que eu vou ficar aqui e esperar que você apareça quando lhe der na gana? — disse ela. E abriu a boca mostrando todos os seus dentes.

O meu atraso não parecia justificar um pedido de desculpas nem ser tão sério que merecesse as incessantes reprimendas daquela mulher diante de mim.

Então eu disse:

— Nesse caso vou-me embora. Deixe lá.

Não era isso que ela queria. Queria continuar. Os rezingões nunca querem que nos vamos embora.

— Eu chamo a isso «privilégio de brancos» — disse ela, com a voz esganiçada, e a gritaria e os selvagens caracóis do cabelo davam-lhe um aspeto de górgona.

Saquei o meu pequeno bloco de notas do bolso da camisa e aprontei a caneta.

— Privilégio de brancos — disse eu, escrevendo devagar. — Hum.

— Eu sou sensível aos privilégios dos brancos. Sabe o que quero dizer com isso?

— Diga lá — disse eu, de caneta em punho.

— Quero dizer que chegou tarde e deveria ter-me avisado atempadamente. Mas preferiu não o fazer, porque partiu do princípio de que eu estaria disponível — comecei a protestar, mas ela interrompeu-me — porque sou negra.

Não era negra. Podia ser mestiça, podia ser siciliana, até podia ser — provavelmente era — em parte cherokee ou choctaw. «Eu sou negra» parecia tanto um protesto, como uma exibição.

— Quem é você, afinal?

Eu repeti o meu pouco vulgar nome, e soletrei-o.

— Paul Theroux nada significa para mim. Eu não sei quem você é. Nunca ouvi falar de si.

— É por isso que estou aqui, para fazer a minha apresentação — disse eu, contendo outro sorriso perante as explosões dela, que pareciam dirigidas tanto a mim como às aterrorizadas datilógrafas e ao homem que estava à secretária, que parecia esconder-se. Notava a apreensão dele: tinha uma grande maçã na mão, como os médiuns seguram a bola de cristal. Ele limitava-se a estudá-la, perscrutá-la, parecendo discernir uma terrível visão, sem se decidir a comê-la.

— Paul Theroux! — disse a mulher pondo um ar assustado, tratando o meu nome como uma substância venenosa. — Você podia ser membro do Ku Klux Klan. Como saber que não é?

Afetando horror e nojo, ela apenas conseguia parecer truculenta e infeliz.

— Você podia ler um dos meus livros, qualquer um deles — disse eu — e acho que não tardaria a descobrir que não sou membro do Klan.

— Tenho mais que fazer! — disse ela. — Tenho de me manter vigilante. Atenta. A minha liberdade individual não está garantida.

— Sim, está, pela Constituição.

— Não passa de um documento.

— É legislação — disse eu. — E aliás, como disse, sou escritor. Importa-se se eu escrever o que está a dizer?

— Força! — O tom dela era «faça o que lhe der na gana», embora assumisse um ar de inevitável melancolia que as pessoas furiosas muitas vezes assumem. — A Constituição não passa de um pedaço de papel. Onde é que está a proteção? Nós temos de nos identificar onde quer que vamos. A minha filha mostrou a um polícia a carta de condução. O homem disse: «Como sei eu que essa é você?»

— Estou a tomar nota disso — disse eu, a escrever no bloco de notas, passando páginas, porque ela falava depressa.

— Todos esses jornais, todas essas perguntas, toda esta burocracia…. para nos rebaixar. — Ela agitava o dedo na minha cara. — Por isso continuamos pobres!

— Por isso continuam pobres — disse eu, a ler à medida que escrevia, e quando terminei encerrei o bloco de notas ostensivamente.

— O benefício dos brancos, é tudo o que obtemos. Diga lá o que quer?

Dei um passo atrás e disse:

— Acho que já me disse tudo o que eu precisava de saber.

O homem da maçã ergueu-se da secretária e abeirou-se, sorrateiro.

— Este é o meu marido — disse a mulher.

O homem encolheu-se mas não disse nada. Ele executou então um extraordinário ato — a meu ver, pelo menos. Perante mim, ergueu a maçã, deu uma grande dentada e mastigou-a, com pedaços de maçã e sumo a brilharem-lhe na boca. Esse ato de comer exibicionista — o barulho a mastigar, o triturar dos dentes, o ruído a engolir — parecia muito mais hostil do que os berros da mulher, a mulher dele. Não me lembro de ter visto alguém a comer assim na minha presença, a desafiar-me mastigando com tamanho barulho, os lábios cheios de saliva.

Ambos pareceram um pouco aliviados quando disse que me ia embora, mas antes de sair chamei-lhes a atenção para o que se passara.

— Suponho que isso seja uma diferença cultural — disse eu. — No Norte é considerado má educação repreender alguém, sobretudo um estranho inofensivo, diante duma sala cheia de gente. — Assinalei as secretárias. — E é realmente um insulto comer diante dum visitante sem perguntar se ele é servido.

— Eu também escrevi um livro — disse a mulher, mas em tom mais suave, tentando chamar a minha atenção, mas eu já estava de saída e ainda a sacudir cabeça. Estava bem na vida, bem vestida, instruída, era uma pessoa eficaz e bem organizada. Tudo devia correr-lhe lindamente. «Por isso continuamos pobres» não se aplicava a ela, embora pudesse ser verdade em relação àquelas retraídas secretárias. Mas eu não podia condená-la. Suponho que ela estava a dar-me a provar os dissabores e faltas de respeito que sofrera na vida.

Falámos um pouco, mas em vão. A mulher estava ofendida. O que eu tomara pela boa onda do Sul desiludira-me. Nunca me ocorreu que se atribuísse o meu atraso ao facto de ser branco. Mas também tinha a impressão de que ela quisera apagar aquele sorriso da minha cara intrusiva, tomando-me por um remanescente dos anos 60, um período que para ela persistira em toda a sua injustiça até ao presente.

— Ela é paranoica: odeia os brancos — disse-me depois alguém que a conhecia bem. — Só quer discutir. Mas eu não lhe dou trela.

De qualquer modo, foi uma boa lição para mim, pois algumas das velhas feridas continuavam abertas. E ela era um bom exemplo das deformadas influências do Sul.

Mary Hodge: o incêndio

Algumas feridas eram recentes.

Em Greensboro encontrei Mary Hodge, que me mostrou o centro — a biblioteca, a Câmara Municipal, as igrejas. Mary era uma mulher radiosa com cerca de sessenta anos, bem vestida, vestido vermelho e blusa branca, orgulhosa da filha recentemente formada em Direito, ansiosa por me fazer entender Greensboro, mas a menção do Klan lançou uma sombra na nossa conversa, e ela sacudiu a cabeça devagar.

— Eles não se foram — disse ela, quase num murmúrio. — A nossa igreja foi incendiada pelo Ku Klux Klan em 1996. A polícia começou por dizer que o fogo foi acidental, mas nós sabíamos que era fogo posto. E, de facto, o fito era a igreja de Mrs. Singleton, não a nossa, a igreja batista Estrela da Manhã. A de Mrs. Singleton é a William Chapel, e é um local que as pessoas influentes visitam a cada passo. E algumas pessoas não apreciam isso, uma igreja que é visitada por pessoas influentes. Não, não gostam.

— O incêndio foi investigado? — perguntei.

— A polícia disse que tinha sido a instalação elétrica, mas não podia ser. O incêndio declarou-se às duas da manhã. Ninguém lá estava. Como podia ser da eletricidade? Constatou-se depois que o Klan estava envolvido, mas que tinham contratado outras pessoas para o fazer. Um dos camionistas do peixe disse que os tinha visto ir-se dali.

— Isso é terrível; deve ter sido muito desmoralizador — disse eu. O ato parecia tão diabólico que só me ocorriam lugares-comuns.

— De modo algum — disse Mary Hodge, e sorriu. — Vieram voluntários de toda a parte para ajudar-nos a reconstruir a igreja — da cidade, do estado, do Norte. Eles ficaram em minha casa por muito tempo. Fizeram um grande trabalho. Eram boa gente. Continuo a ter notícias deles.

Perguntei se alguém fora detido por atear o fogo.

— A polícia nunca esclareceu a verdadeira origem de tudo isso — disse Mary. — O meu marido era diácono da igreja. Ele disse que não fora acidente.

E essa foi, disse ela, a nona igreja do Alabama a ser incendiada ou vandalizada nesse ano. «Há essa ideia de que [os incêndios de igrejas são] uma coisa que sucedeu há muito, algo que ocorria durante as batalhas pelos direitos civis», disse o ativista Tim McCarthy na Harvard Magazine em 2008. «Mas continuou. Há, em média, várias dúzias de igrejas incendiadas por ano.» O incêndio duma igreja destroça o coração duma comunidade, porque a igreja é tradicionalmente um local de encontro, uma fonte de alegria e bem-estar, de eventos sociais e aconselhamento, de esperança. Pôr fogo a uma igreja é um ato de violência que um nortenho dificilmente pode entender, embora muitas organizações no Norte acudam em ajuda dessas congregações tão afetadas.

Apanhando nozes

Passando por algumas grandes árvores na berma dum prado, Mary Hodge e eu vimos uma mulher curvada na erva sob aquelas árvores. Não parecia em apuros, pelo que saí da estrada e chamei por ela.

Estava sentada no chão mas inclinada para a frente, e aí vi que ela acariciava devagar a erva, as pernas abertas, como alguém a reencarnar uma versão sulista de Christina’s World de Andrew Wyeth, ao fundo da grande e aparentemente inatingível casa distante. Tinha o chapéu de palha torto. Parecia indefesa, penteando sem fito a erva com os dedos. Uma mulher branca idosa sentada estranhamente num grande campo não era habitual em Greensboro.

— Espero que ela esteja bem — disse Mary.

— Olá, vocês aí! — disse a velha mulher, e começámos a conversar. Era Doris Torbert, apanhando nozes caídas ao chão, com ambas as mãos, aos solavancos, e aí vi o balde que ela ia enchendo.

— Passei aqui toda a manhã — disse ela. — Plantámos estas árvores há cerca de quarenta anos. Não tive ninguém para me ajudar, mas não preciso de ajuda. Isto até me diverte. E posso vendê-las no mercado a setenta e cinco cêntimos a libra.

— Eles têm aqueles apanhadores de nozes — sugeriu Mary, e fez um gesto com a mão, como que para ser mais explícita.

— Não preciso disso para nada. Fred tem um na loja de ferragens. Diz ele que as apanha mais depressa, mas já tive dois e não gostei deles. Prefiro apanhá-las deste modo, com as minhas mãos. E, depois, esses apanhadores de metal custam quarenta dólares.

Ela continuou a esgravatar e a escavar, erguendo de vez em quando uma mão para ajeitar o chapéu de sol.

— Partam algumas e comam-nas. Verão que são mesmo saborosas. São umas nogueiras encantadoras.

Mrs. Torbert era amistosa — via-se a sua imponente casa à distância, um edifício branco com uma fila de altas colunas brancas suportando o amplo pórtico.

— É um bom pedaço de terra — disse ela. — Nós possuímos cerca de quarenta hectares. — Mas a terra e a prosperidade não tinham evitado que ela trabalhasse no duro e gatinhasse na erva, apanhando nozes.

Greensboro: o mayor Johnnie B. Washington

Atrás da secretária, no seu pequeno gabinete sem janelas, envergando um boné de basebol e um blusão — parecia o uniforme dum mayor sulista rural — e com mais ar de treinador de basebol que de político, sentava-se o primeiro mayor negro de Greensboro, Johnnie B. Washington, conhecido na cidade como «JB». Convidou-me a sentar e perguntou o que pretendia eu saber.

Já ouvira falar dele na cidade. Tornara-se mayor em 2004, e desempenhara o cargo por pouco tempo, pois ao cabo de muita agitação — acusações de fraude eleitoral, já que o exame dos votos por correspondência revelara assinaturas falsas e carimbos de correio duvidosos — foi demitido em consequência da peritagem das assinaturas. Concorrendo de novo em 2008, ganhou sem problemas. Já com mais de setenta anos, era alto, esguio, com os traços de cherokee do avô, e sacudia a cabeça perante muitas das minhas perguntas, como quem se diverte com uma piada. Ganhara a vida como dono duma bem-sucedida funerária de Greensboro, a Washington and Page Mortuary, nas margens dos bosques a nordeste da cidade, na Autoestrada 25. Acessível, mas com uma suave cortesia — os seus modos reconfortantes de agente funerário —, deu-me uma perspetiva da cidade

— Esta é a Cintura Negra. A cidade e o condado de Hale contêm sessenta e oito por cento de negros — disse ele. — A cidade está dividida em três grupos. — Enunciou-os contando pelos dedos. — Greensboro negro. Greensboro branco. E brancos da velha guarda. — Sorriu, pousou a mão e prosseguiu. — A velha guarda quer uma cidade bed-and-breakfast, e sempre que eu pretendi algo para incentivar a economia, como um centro comercial ou um Walmart ou qualquer outra grande loja, houve obstrução. Eles não querem.

— Você acha que um Walmart é a resposta? — perguntei.

— Eles trouxeram empregos — disse ele.

— Deve haver outra solução — disse eu, porque o Walmart tinha destruído, em vez de ajudar, muitas pequenas cidades no Sul. Eu vira isso em Brent, um exemplo do flagelo Walmart. Nessa cidade de quatro mil habitantes no condado de Bibb, cerca de cinquenta quilómetros a norte de Greensboro, o enorme e informe Walmart, que esmagara a maior parte dos outros comércios locais, fechara, tornando-se um vasto edifício cinzento em ruínas numa cidade-fantasma, vazia. A pouco mais de um quilómetro dali, abrira um muito maior Walmart Super Center, sugando o que restava de vida em Brent, e na sua fealdade parecia a origem dum venenoso vírus, o que de certo modo fora. Agora, à parte o outro Walmart de aspeto soviético, a única alternativa de emprego em Brent era a prisão estadual, a penitenciária do condado de Bibb. Uma coisa era crer que um Walmart podia resolver os problemas, mas de facto era um monstro que esmagava todas as outras empresas. E por vezes o impensável acontecia: depois de o Walmart ter destruído o comércio da cidade, o próprio Walmart fechou, e a cidade acabou-se.

Sugeri isso ao mayor Washington. Ele assentiu com a cabeça.

— Claro, ainda há alguma agricultura por aqui: algodão, soja. Está a ver a cisterna da água? — A cisterna de Greensboro tinha a seguinte inscrição: CAPITAL DO PEIXE-GATO DO ALABAMA. — Mas o peixe-gato vai-se abaixo, porque os vietnamitas exportam peixe para os EUA. Nós não podemos competir. É peixe-gato de viveiro, e há uma fábrica de processamento aqui e em Heartland, desde 1969. Também tivemos galinhas. A empresa Massengale faliu nos anos 70. A fábrica de carne embalada, Golden-Rod Broilers, fechou alguns anos atrás. Não se consegue competir com os grandes criadores de frangos.

Tudo isso eram más notícias, disse eu.

— A cidade está polarizada, embora muitos brancos me apoiem, mas secretamente — não querem que os outros saibam. Nós tínhamos escolas para negros e escolas para brancos. O East Campus de Greensboro High era negro, o West Campus era branco. Eles associaram as escolas. Isso fez com que os brancos fugissem, os miúdos brancos vão para a escola de Moundville, que é mais branca.

— Quando foi isso?

— Quatro ou cinco anos atrás, quando eles integraram.

— O vosso principal problema é económico? — perguntei eu.

— O nosso principal problema? — disse o mayor Washington com um sorriso gentil. — De quanto tempo dispõe? Um dia ou dois, para escutar? É falta de receita, é resistência à mudança, são tantas coisas. Mas digo-lhe, esta é uma boa cidade.

A mim parecia-me uma bela cidade. Mesmo mumificadas e degradadas, as casas eram belas, muitas delas mansões anteriores à guerra, como quase todas no Sul, de tremendas e supérfluas dimensões e frívolas amplitudes. As igrejas eram numerosas e iam da igreja episcopal em tijolo no centro da cidade às modestas mas bem cuidadas capelas em madeira nas ruas secundárias. A tranquila e antiquada rua principal ainda tinha uma loja de ferragens, uma loja de móveis e algumas lojas de roupas, mas muitas estavam vazias, em ruínas ou a precisar de reforma.

Bem-intencionados

Algumas lojas de Greensboro estavam a ser reparadas, reabilitadas por uma organização não lucrativa chamada HERO Project, o acrónimo de Hale Empowerment and Revitalization Organization. Embora pouco mudada arquitetonicamente desde a visita de Agee e Walker em 1934, e bela no seu ar solene e esquelético, Greensboro estava a lutar. As suas encantadoras ossadas, o seu aspeto deslocado no tempo, atraíam simpatizantes e voluntários, muita gente ligada ao desenvolvimento comunitário (incluindo ativistas do alojamento de Cynthia Burton), ao Auburn Rural Studio (alojamento económico) e ao Project Horseshoe Farm («programas de ensino, orientação e enriquecimento»), com um clube numa loja restaurada na rua principal. A HERO era maior do que qualquer dos restantes grupos, e era mais difícil de definir porque estava envolvida em muitas áreas da vida de Greensboro. Mas a finalidade de todos esses grupos — os principais a mudar-se recentemente para Greensboro — era a do melhoramento.

«Você deve falar com Pam Dorr», disseram-me várias pessoas em Greensboro. «Ela dirige a HERO. Essa gente conta muito aqui.»

Mas Pam Dorr não estava — ninguém sabia onde fora.

Percorri a rua principal, onde algumas das velhas lojas estavam a ser recuperadas, uma delas de artigos usados, outra uma oficina que fazia bicicletas de bambu obtido localmente, e uma terceira, equipada como uma sala de aula, com vinte ou mais jovens, e alguns adultos — alguns dos jovens a atuar, talvez a recitar, talvez a interpretar uma peça de teatro.

— Que se passa aqui? — perguntei a uma funcionária da HERO, jovem circunspecta que ia entrar no espaço abandonado da loja para dar uma aula vespertina. Metade das crianças estava de pé, algumas pareciam ler em voz alta umas folhas impressas; as outras estavam sentadas em cadeiras e no soalho. Elas estavam claramente envolvidas nalguma espécie de lição.

— Estes são os miúdos do programa pós-escolar — disse a educadora. — Talvez não seja boa ideia interromper. Quando tenciona voltar?

Era sempre assumido que eu estava meramente a deambular, e suponho que em certo sentido estava, mas não «meramente».

— Daqui a uns meses, presumo.

— Talvez então se possa encontrar com a Pam.

Eu sorri perante o «talvez».

Esse pressuposto — de que certamente voltaria — era recorrente e levou-me a pensar que o viajante no Sul, seja ele quem for, nunca se vai de vez, mas volta sempre, girando de um lugar para outro. Era uma assunção polémica, talvez produto do ressentido sentimento sulista de o Sul ser um lugar à parte, tido como indigno, fraco, mal interpretado, difícil de explicar, mas orgulhoso. O Sul não era um destino convencional, não era um lugar onde um forasteiro se integrasse ou ao qual um viajante aderisse. O Sul era estático, mas dava uma aparência de fluxo, oferecendo um conjunto de ocasiões para satisfazer a curiosidade dos andarilhos, e embora o viajante pudesse circular de volta, era impensável que alguém ali fixasse raízes. Nós nunca entenderíamos a sua complexidade. Estávamos, todos nós, apenas de passagem, espreitando através de janelas.

O ATL Horseshoe Farm
Tabela do programa de competições

Espreitando pela janela da renovada montra na rua principal, tomei nota dos nomes no quadro, indicando as crianças no programa, e pareceu-me um cântico.

DE KEVION

JADEN

KEYONNA

QUA-DARIUS

JAIMESA

ANTONETTA

KIMBERLY

COURTNEY

JAKIRA

JAMIKHAEL

RASLYN

DEMARKUS

DEMAIS

TYRESHA

TRINITY

CURTIS

LOGAN

JONATHAN

TRAYMON

DAJUAN

JOLANDRIA

DAVID

TASHANTI

DEVONTAE

TREVION

KEONTAE

DE TYRICK

NEKENDRICK

KESHAWN

ARIANNA

SKILAH

ALEXIA

KIAJIAN

URIYAH

RONELL

TIMIYAH

TITIANA

QUINTARIO

JADA

SELENA

SONIJA

JARMEL

Repetindo para mim à janela a litania de nomes, lembrei-me do que dizia a professora primária do narrador em The Black Book, de Lawrence Durrell: «Ofuscante, no clarão da razão desse último momento, questionei-me ansiosamente. Será isto amusia, afasia, agrafia, alexia, abulia? É vida.»

«O nosso Matlock»

Há dias, descendo eu a rua principal em Greensboro com Mary Hodge, ela viu um homem a atravessar a rua e disse:

— Aí vem o nosso Matlock.

Um homem despenteado, com um maço de jornais debaixo do braço, dirigia-se para o tribunal de Greensboro, um edifício imponente, com colunatas, como vi por todo o Sul, geralmente o único edifício na cidade com pretensões a majestoso, todavia — para situar tal majestade no contexto — quase sempre representando uma história de injustiça.

O homem parou para saudar-nos. Conversámos um pouco.

— Como corre o negócio? — perguntei, e obtive uma resposta inesperadamente longa.

— O negócio corre bem — disse ele. — Não me preocupa o dinheiro. Só penso nele quando tenho uma dívida. Pago-a e a vida continua. Senão, que fazer com o dinheiro? Um tipo vem ter comigo e diz: «Arranjei um negócio para si! Você põe algum dinheiro e eu trato do resto, e tenho a certeza de que vai resultar. Que me diz, conselheiro?» «Você não vai gostar do que tenho para lhe dizer», disse-lhe eu. «A única coisa pior que perder esse dinheiro seria ganhá-lo e ter um grande lucro. Que faria eu com ele? Tê-lo-ia dado.» Ele não gostou do que eu disse. Quando o meu filho morreu, recebi o seguro de vida dele. A companhia de seguros deu-me o dinheiro. Uma grossa maquia. Eu não precisava dele. Não o queria. Dei-o. Está a ouvir? Dei-o.

Com essa, ele atravessou o relvado que levava ao tribunal, coçando a cabeça e parecendo refletir maduramente.

— Foi triste — disse Mary. — Um acidente de barco.

O reverendo Eugene Lyles, barbeiro

Ao virar a esquina da rua principal, enfiada num prédio de tijolo que ele financiara em pessoa, ficava Gene’s, a barbearia do reverendo Eugene Lyles. Embora tivesse setenta e nove anos, parecia muito mais jovem, e não só fisicamente forte mas também pela erudição. Estava sentado a uma pequena mesa perscrutando a sua Bíblia, aberta nos Atos do Apóstolos, enquanto aguardava o próximo cliente. Além da barbearia, o reverendo Lyles tinha o seu próprio templo, a Igreja Batista Mars Hill Missionary, no sul da cidade. Na porta ao lado da barbearia ficava o restaurante soul food do mesmo reverendo Lyles, sem outro nome além da simples tabuleta DINER na frontaria.

Pedi-lhe que me cortasse o cabelo. Marcando com uma velha fita a página da Bíblia e fechando-a, foi à prateleira sob o grande espelho e sacou o pente e a tesoura dum vaso de desinfetante. Subi para uma das duas cadeiras de barbeiro e ele passou-me uma toalha em redor do pescoço.

Em resposta à minha óbvia primeira pergunta, ele disse:

— Quando eu era rapaz comprei uma tesoura. Cortava o cabelo dos meus irmãos. Bom, tive dez irmãos e três irmãs — éramos catorze. Uma mãe. Continuei a cortar cabelo. Comecei este negócio há sessenta anos, sempre a cortar cabelo. E arranjei o restaurante, e a minha igreja. Sim, sou uma pessoa ativa.

— Fale-me um pouco de Greensboro — disse eu.

Ele suspirou, e inspirou profundamente antes de falar.

— Há boa gente em Greensboro — disse ele. — Mas o núcleo branco enraíza no statu quo. E eles têm a sua maneira de doutrinar os filhos e netos e bisnetos. Deve ter ouvido as palavras «separados mas iguais»? Isso quer dizer separados, mas não iguais.

— Mas isso mudou, não?

— As escolas ainda são separadas — disse ele, cortando-me o cabelo. — Quando foi da integração, os brancos criaram uma escola privada, a Academia Sulista. São mais de cem, todos brancos. — Ele riu-se, pousou o pente e a tesoura e sacou os óculos para os limpar com um paninho. — Aqui a História está viva e em boa forma.

Sentou-se na outra cadeira e disse:

— Muito pouco trabalho aqui requer capacidades profissionais. Já não há agricultores. A opção militar é uma saída — muitos jovens daqui alistam-se no exército.

— Alguém na sua família se alistou no exército?

— O meu irmão Benny — disse ele. — Tenho três outros irmãos que frequentaram a escola dos brancos. Isso foi em finais da década de 70. Não havia mais estudantes negros. A lei estava do lado deles —, ninguém estava do lado deles —, mas a lei estava distante. Eles eram Amos, Daniel e Frank, os primeiros rapazes — e era muito difícil. Eles tinham brigas. Os rapazes brancos acossavam-nos. Atiravam-lhes pedras. Insultavam-nos. Os meus irmãos não se ficavam. Replicavam.

O reverendo Lyles suspirou, levantou-se da cadeira e começou a varrer as aparas de cabelo no chão a meus pés, continuando a falar.

— Havia pouco medo nessa altura e ninguém os ajudava. Nem a polícia. Nem os professores. Os professores estavam do lado dos atacantes.

— Foi igual para si?

— Eu era mais velho. Frequentei escolas segregadas. Cresci no campo, fora de Greensboro, a quinze quilómetros, Cedarville. Muito poucos brancos viviam na zona. Eu não conhecia nenhuns brancos. Os brancos dizem «Todos os negros se parecem». Eu achava que todos os brancos se pareciam. Não conheci brancos até aos anos 60, quando já ia na casa dos trinta.

Disse-lhe que havia muitos nortenhos, ainda hoje, que não tinham amigos negros e que não conheciam negro algum. Disse-me que isso era novidade para ele, e tornou à narrativa da sua infância.

— A maior parte da terra em Cedarville era dos negros — disse ele. Ao dizer isso referia-se aos anos 30 e 40. — Havia um homem, Tommy Ruffin, que possuía quatro mil hectares. Ele amanhava a terra, tinha mãos, como os brancos, cultivando algodão e milho.

— O seu pai era um desses?

— O meu pai era um veterano da Primeira Guerra Mundial — disse o reverendo Lyles, falando devagar à sua maneira metódica. — Passou-se assim: ele foi-se daqui em 1916; tinha uns vinte anos. Foi para a Virgínia. Alistou-se lá em 1917. Depois da guerra, trabalhou numa mina de carvão no oeste da Virgínia. Regressou e casou-se em 1930, mas continuou a trabalhar na mina, ia e vinha. Ele dava-nos dinheiro. Eu tinha sempre dinheiro no bolso. Por fim migrou para o condado de Hale. Comprou alguma terra. Foi aconselhado por um homem branco chamado Paul Cameron a não vender qualquer parcela de terra a um branco. Vende a negros, dissera ele, porque é o único meio de um negro se manter no meio rural.

Agora que o chão estava varrido e tanto o pente como a tesoura estavam arrumados, abeirou-se de mim e rodou a cadeira de barbeiro para eu ficar de frente para o espelho.

— Que tal?

Saímos para jantar num restaurante ali ao lado. Eu pedi frango cozido, repolho, arroz e molho. O reverendo Lyles pediu o mesmo. O irmão mais novo dele, Benny, juntou-se a nós.

— Senhor — começou o reverendo Lyles, as mãos postas, os olhos fechados, dando graças em tom implorativo. Eu pensei na sua dignidade, na nobreza da sua vida, na integridade da sua experiência.

Após o jantar, ele disse:

— Volte depressa. Nós esperaremos por si. Terei para si histórias que lhe custará acreditar.

O Klan em Filadélfia

Derivei para oeste através da Cintura Negra via Demopolis, Alabama e Meridian, Mississippi, a seguir a Collinsville, onde comprei uma bebida no Piggly Wiggly, observei Chunky Duffee Road e a encruzilhada na asseada Tucker, e segui para Filadélfia, um lugar que tinha em mente havia anos.

Em junho de 1964, perto desta pequena cidade agrícola, três militantes dos direitos civis foram assassinados por um pelotão de linchamento do Klan local. O troço da Autoestrada 19 por onde eu viajaria chamava-se Chaney, Goodman, and Schwerner Memorial Highway, em homenagem a esses ativistas mortos durante o Verão da Liberdade — uma estação de recenseamento eleitoral e protesto, de lutas e sangue derramado. Eu perdera essa época trágica. Conduzi por essa autoestrada quase cinquenta anos depois num espírito de atualizar um assunto pendente, com uma sugestão de penitência, porque nesse verão eu me achava tão longe, na Niassalândia, preparando-me para celebrar a independência do Malawi.

Filadélfia merecera outra nota de rodapé, mais tarde, na história política. Em agosto de 1980, o candidato presidencial Ronald Reagan voou até lá para pronunciar o primeiro discurso da sua campanha, na feira do condado de Neshoba, Filadélfia. Parece um lugar totalmente fora de mão para lançar uma campanha presidencial: uma pequena cidade do Mississippi referida nos livros de história por ter sido o cenário dum triplo assassinato levado a cabo por brancos racistas.

Mas por isso mesmo é que Reagan lá estava. Ele sabia o que fazia, pronunciando um discurso calculado, insinuante para uma grande multidão numa feira do condado, e para os votantes brancos sulistas em geral, fazendo-lhes ver qual era a sua postura na questão dos direitos civis. Ele situou-se inequivocamente com os bons velhos rapazes e com os homens do Klan.

Começou por troçar levemente do seu opositor, Jimmy Carter, depois falou de economia, e por fim abordou o ponto essencial. Disse: «Eu creio nos direitos dos estados, e creio nas pessoas que fazem quanto podem por elas próprias a nível comunitário e a nível privado.»

Em seguida denegriu o papel do Governo federal por promulgar leis que afetavam os cidadãos a nível estadual. Falando numa cidade que era o quartel-general do Ku Klux Klan no Mississippi, ele queria dizer: estou do vosso lado. A raça era um fator determinante na eleição de 1980, que Reagan ganhou.

Reagan estava «a falar em código», como escreveu o colunista do New York Times Bob Herbert muitos anos depois. Herbert acrescentou uma lista detalhada da oposição de Reagan às medidas dos direitos civis enquanto foi presidente: «Ele opunha-se à histórica Lei dos Direitos Civis de 1964, promulgada no mesmo ano em que Goodman, Schwerner e Chaney foram chacinados. Como presidente, tentou inclusive enfraquecer a Lei do Direito de Voto de 1965. Opôs-se à criação de um feriado nacional em homenagem ao Rev. Dr. Martin Luther King Jr. Tentou evitar o veto federal às isenções de impostos das escolas privadas que praticavam discriminação racial. E, em 1988, vetou um projeto de lei para alargar o alcance da legislação federal sobre direitos civis.»

Filadélfia, como muitas cidades no Mississippi, tinha um velho e decadente centro de poeirentas ruas e defuntos e pitorescos estabelecimentos, rodeados numa estrada adjacente por centros comerciais, lojas de fast food, o habitual Walmart, casas de penhores e armeiros retalhistas. Era a sede do condado, toda ela bastante sombria, ainda mais sombria e nua ao sol do meio-dia. No dia soalheiro que passei caminhando pelas suas ruas lembrei-me de que Filadélfia é ainda o quartel-general do Klan do Mississippi. Encontrei sem dificuldade a sede e as brochuras gratuitas.

«A originalmente Cavaleiros da América, Cavaleiros do Ku Klux Klan é uma organização ativista», explicava uma das brochuras. «Seguimos as pisadas dos nossos antepassados que se implicaram no processo político. Compete a cada homem do Klan registar-se como eleitor, fazer campanha, e votar pelos candidatos conservadores pró-brancos que ponham a América em primeiro lugar e defendam as fronteiras da nossa nação.» Noutra página: «Nós os do Ku Klux Klan vimos lutando pela Raça Branca Cristã há mais de 150 anos. Somos a mais antiga e muito respeitada organização de Direitos Civis dos Brancos da Terra. Nós não contemporizamos e é por isso que continuamos a ser uma organização temida.»

«Temida» era indiscutível, «muito respeitável» era questionável, mas era óbvio que o KKK era um grupo desafiador e, a julgar pelo pesado arsenal dos armeiros em Filadélfia, bem armado. Eu não me achava ali para converter ninguém, mas apenas para escutar.

«O Ku Klux Klan é […] mais do que a personificação duma tradição», escreveu Frank Tannenbaum numa precoce e subtil análise dos impulsos ocultos do Sul, Darker Phases of the South (1924). Tannenbaum era um criminologista de origem austríaca, sociólogo, professor na Universidade de Columbia e político radical que, como soldado no exército sediado no Sul, observou de perto o Klan. «[O Klan] exprime um hábito social profundamente enraizado — um hábito de pronta violência em defesa duma ordem social ameaçada.» Ele explicou a atração, a força, o perigo do Klan: «Ele aproveita-se da monotonia duma pequena cidade e proporciona-lhe um drama quotidiano. Apodera-se daquele que vivia uma vida sem chama, um ser comum, e faz dele alguém. Imprime-lhe um propósito; faz dele um soldado por uma causa. A própria existência do Ku Klux Klan é uma prova de infantilismo emocional. Ele não seria possível numa comunidade onde as pessoas vivessem vidas plenas, interessantes, variadas.»

O Klan originou-se em meados do século XIX, não entre os brancos pobres, mas na classe dos plantadores, que usavam o terror para manter os negros a trabalhar nos campos, para controlar a mão de obra, e para «perpetuar o sistema repressivo de plantação do Sul», segundo o historiador social Jonathan M. Wiener, em Social Origins of the New South (1978). Mas outros historiadores descreveram como, após um período de relativa inatividade, o Klan ressuscitou no final da Primeira Guerra Mundial, crescendo rapidamente desde 1920, espalhando-se para norte até Ilinóis e Iowa, devido à chegada de novos imigrantes, incluindo italianos e judeus, cujas religiões o Klan abominava.

O movimento do Klan — os seus membros eram tidos como uma força estabilizadora — permeava as classes dos brancos até se tornar uma forma de fantasia e «brincadeira» para os brancos mais pobres, que pouco mais tinham para os animar. Tannenbaum fala da dupla vida dum homem do Klan, simples trabalhador durante o dia e um cruzado pela noite, em segredo, com mantos e capuzes e uma cruz flamejante e rituais enigmáticos. «Então surge a oportunidade de se intrometer na vida de outras pessoas com se tal fosse um dever sagrado.»

Num dédalo de rios e riachos nos arredores florestados de Filadélfia, encontrei uma reserva choctaw de nativos americanos, assinalada por um grande casino e dois hotéis. Como o Pearl River Resort empregava muitos membros da tribo, fiz questão de procurar alguns choctaws para me falarem da terra que lhes fora atribuída ali, e de como o empreendimento do jogo a fizera progredir.

Sem se fazer rogar, um dos primeiros homens com quem falei referiu, com um riso nervoso, que a vizinha cidade de Filadélfia era «outra coisa».

— Outra coisa no bom sentido?

— Outra coisa no sentido do Klan — disse ele.

Era um espadaúdo choctaw duns trinta anos, com cabelos negros puxados atrás e a tez azeitonada. Pertencia ao quadro médio de um dos hotéis. Encontrava-se na receção, eu pedi-lhe algumas informações, e aí ele perguntou-me de onde eu era. Isto levou ao ambíguo comentário sobre Filadélfia. Olhando para as outras pessoas à nossa volta, levou-me para fora, ainda olhando para um e outro lado, mas sempre a sorrir. O sorriso nunca o largava, tornando-o mais franco à medida que falava, como para enganar alguém que o visse a falar comigo.

— Há uma quantidade deles por aqui — disse ele com o seu sorriso melancólico. — Andei na escola com eles. Comem aqui a cada passo.

— Então você sabe quem eles são.

— Toda a gente sabe quem são — disse ele. E calou-se. Três homens trajando a preceito passaram por nós, com as habituais saudações sulistas, gracejos e acenos.

— Eles? — perguntei eu.

— Talvez — disse ele. E, ainda sorrindo: — Não é divertido. — Estava a ficar nervoso; parecia alvoroçado, apreensivo. — Ouça, não posso dizer mais nada, mas creia no que lhe disse.

Últimos Dias em Gum Street

Larry Franey, um homem com cerca de sessenta anos, revólver niquelado. 38 com coronha de madrepérola num coldre à cintura, estava encostado a um poste dum alpendre em Gum Street, Filadélfia, preocupado. Passei por ele e disse olá. Falámos de armas durante um bocado. Por fim ele disse-me o que tinha em mente.

— Presumo que estejamos a montar o Apocalipse (o livro do Apocalipse) com esta eleição. — A eleição presidencial era dali a duas semanas. — E a última eleição, também. Que algo mau está para vir. Que Deus está por trás de Obama, que Deus o pôs lá para mostrar que o Fim está próximo. Estamos perante a Tribulação. Não se consegue ver, mas ela está lá; a maior parte oculta, como uma longa fila de dominós, e não tarda muito eles começam a cair aqui e continuarão a cair e veremos onde se acham, caindo de muito longe. Nós estamos à beira do Fim, como diz o Apocalipse. Pacificamente, a Marca da Besta, as Escrituras que dizem: «Haverá um mundo.» É para onde tudo caminha. A China exigirá o pagamento da nossa dívida, todo o dinheiro que lhe devemos, e aí será o fim, isso é certo. Seremos um país do Terceiro Mundo, sendo a China o único país de verdade no mundo, anunciado no Apocalipse. Será o nosso fim. Ponto final.

— A China é referida no Apocalipse, Larry?

Larry citou:

— «E prostraram-se em adoração diante do dragão, porque ele dera a autoridade à besta, e prostraram-se diante da besta, dizendo: “Quem é semelhante à besta? E quem consegue lutar com ela?”»

— O dragão é a China?

— Exatamente. — Ele apoiou a mão direita na pistola. — Sei de pessoas que estão a armazenar armas e víveres, ouro e água e tudo o mais. Mas de nada lhes servirá. Não teremos hipótese.

Desertos de bancos

Parei a fim de pernoitar no casino e hotel da reserva dos Choctaws, e no dia seguinte fui por Carthage até Jackson, a tempo de almoçar com algumas pessoas do projeto de apoio à habitação.

Em Jackson, uma cidade de paradoxos negros e arroubos brancos de grandeza, com um iniludível gueto na baixa e ruelas com belas casas, o pessoal da reabilitação imobiliária incentivou-me a olhar para o Delta, onde esperavam contribuir para criar alguma estabilidade financeira.

— Existem desertos de bancos no Delta, e em muitos outros lugares — disse-me Bill Bynum, o CEO da Hope Credit Union. — Comunidades sem instituições financeiras. Fecharam, faliram, mudaram-se. Nós compramos alguns deles e ajudamos a revitalizar a comunidade.

«Desertos de bancos» era uma expressão que nunca tinha ouvido antes, nem sequer no largo mundo de reconhecida miséria. Nas pequenas cidades do Uganda e do Quénia havia sempre um banco Barclays ou um National & Grindlays. Algumas das menos atraentes cidades da Índia tinham meia dúzia de bancos ou instituições de crédito. Tinha visto bancos nas imediações dos campos de cana-de-açúcar das ilhas Fiji e nas cidades rurais do Vietname e nas aldeias arrozeiras da Tailândia.

A ideia de haver comunidades nos Estados Unidos de onde os bancos tinham desertado e onde agora nenhum existia — nas zonas rurais do Mississippi, do Arkansas e do Luisiana — era para mim novidade.

Durante dezoito anos, a Hope Credit Union tentara melhorar uma situação em que muita gente carecia de acesso a uma instituição de crédito. O seu grande orçamento era financiado por um consórcio de agências privadas e governamentais. Mas isso era capital circulante. Precisavam de passar ao dobro para serem sustentáveis, e estavam agora a tentar obter vinte milhões de dólares.

— Veja só, eles precisam de crédito para um carro, e não o conseguem — disse Bynum. — Se não têm carro num lugar destes — Arkansas rural ou Delta — isso é um grande problema. Não podem deslocar-se, não podem trabalhar, permanecem pobres. É como lhe digo, algumas das comunidades daqui estão a morrer de exaustão.

Mississippi era número um nos Estados Unidos quanto a pessoas que não tinham conta bancária. Mesmo onde havia um banco, era uma coisa proibitiva.

— As pessoas; os pobres — disse ele — não se sentem bem num banco. Não estão habituados a entrar num banco. Sentem-se rejeitados e ficam muito intimidados.

— Então qual é a resposta? — perguntei.

— Nós tentamos superar isso com a Hope Credit Union — disse ele. — Em Utica um banco ia fechar. Tinha vinte e três agências. Nós comprámos essas agências e elas tornaram-se as Hope Credit Unions. O nosso objetivo é fomentar o comércio no Delta e a compra de primeira casa. Atribuímos uma média de duzentos créditos hipotecários por ano.

Acrescentou que trinta por cento das pessoas que abriam uma conta nunca tinham tido antes uma conta bancária.

Bynum disse:

— Levei o assistente do secretário do Tesouro Cyrus Amir-Mokri desde Memphis, passando por Tunica, Mound Bayou e Clarksdale, até Utica. Através do Delta. Ele sentou-se com ar abatido e disse custar-lhe a crer que semelhantes condições existissem nos Estados Unidos.

Outro participante do encontro falou a seguir.

— Não adianta dizer-lhe que trinta por cento das pessoas em Utica vive abaixo do limiar da pobreza — disse ele. — Você terá de ver por si mesmo.

Feira de armas de Natchez

Segui por estradas secundárias, passando pinhais, pântanos, barracos, as pequenas cidades de Lorman e Fayette, uma escola arvorando uma bandeira dos confederados, e por uma estrada abaixo onde ao longo de vários quilómetros havia tabuletas com intimidantes citações da Bíblia em grandes letras afixadas nas árvores à berma da estrada: «Prepara-te para chamares pelo teu Deus» (Amós 4:12) «Quem perseverar até ao fim, esse salvar-se-á» (Marcos 13:13), e «Arrepende-te» (Marcos 6:12). Finalmente cheguei à encantadora cidade de Natchez.

Natchez fica situada nas margens do Mississippi castanho, face aos campos de algodão na planície do Luisiana e à cidade de Vidalia, no outro extremo da ponte. Foi o meu primeiro vislumbre do rio nessa viagem. Embora o Mississippi já não seja a buliçosa via fluvial de outrora, é impossível para um americano ver esse grande, turvo, lento caudal e não ser abalado, como um indiano o é pelo Ganges, um chinês pelo Yangtze, um egípcio pelo Nilo, um africano pelo Zambeze, um oriundo da Nova Guiné pelo Sepik, um brasileiro pelo Amazonas, um inglês pelo Tamisa, um natural do Quebeque pelo São Lourenço, ou qualquer cidadão pelo rio que corre a seus pés.

Refiro estes rios porque os vi e escrevi sobre eles, mas como um alienígena, um mirone romântico. Um rio é história tornada visível, o sangue vivo duma nação.

Sinto uma mais profunda ligação aos meus rios, o Mystic River em Medford, fluindo misticamente em direção ao porto de Boston e ao mar, que enchia a minha cabeça com fantasias de viagens e me fez desejar deixar a minha cidade. O Mississippi significa tudo para mim, como símbolo, como fonte de descoberta e inspiração literária. Ele é o «possante deus castanho» do poema de T.S. Eliot «The Dry Salvages», o «grande rio estradal» que permitiu a Lewis e Clark viajarem para o noroeste; a via militar de acesso para os soldados da União que flanquearam os Confederados e puseram cerco às suas cidades; o rio de Huck Finn, que «se escapule para o Território antes do resto»; uma visão de libertação e a artéria central do nosso país; e um símbolo interiorizado, como Eliot, o poeta de St. Louis, declarou: «o rio está dentro de nós».

A história do rio é como uma metáfora para o Sul: o nível das águas baixou, o tráfego fluvial decresceu, o comércio nas margens caiu, e as cidades e vilas estão em dificuldades. Os hotéis de passe e os casinos flutuantes representam o último recurso do comércio, o jogo nos barcos fluviais que parecem incapazes de navegar e permanecem varados na lama em cidades do Mississippi tais como Natchez.

Natchez foi outrora uma fortaleza francesa, Fort Rosalie, erigida com o trabalho forçado dos índios Natchez, que os franceses tinham dominado em 1716. Mas quando, treze anos depois, os Natchez se reagruparam, sublevaram e apossaram do forte (e obviamente da sua própria terra), foram tão violentamente atacados pelos franceses e alguns choctaws leais que os Natchez como povo foram exterminados. Em meados do século XVIII o seu nome foi dado à cidade. Tudo o que restou desse povo foi essa palavra2.

Uma cidade pequena, encantadora, bem preservada (porque contrariamente à desafiadora, sitiada Vicksburg, Natchez se rendeu ao exército da União e não foi incendiada); uma cidade rica em história e tradição fluvial e maravilhas arquitetónicas — velhas mansões com ornatos, casas históricas, igrejas e pitorescas arcadas; a baixa repleta de restaurantes; nenhum desses atributos metropolitanos apresentava muito interesse para mim. Eis uma perspicaz observação de Charles Shelton Allen, escrevendo sobre a paisagem sulista e Faulkner: «Uma das mais grandiosas criações do Novo Sul foi a conceção mítica de um Velho Sul.» O que as pessoas tomam por uma época foi uma questão de umas poucas décadas de pretensão e de um exercício de nostalgia irracional.

Tal como em Charleston, Carolina do Sul, o evento cultural que captou a minha atenção foi a Gun and Knife Expo, que vira anunciada na semana anterior e que se realizaria no Natchez Convention Center, em plena cidade. Era o grande evento em Natchez naquele fim de semana, e a arena era maior que a de Charleston. As mesmas formalidades à entrada: oito dólares por adulto, um dólar as crianças de seis a dez anos, nada de armas carregadas no interior do recinto, mas que se podiam levar consigo, desde que seladas com uma tira de plástico.

— O Mississippi é o melhor Estado quanto a leis sobre armas — disse-me um homem pouco depois de eu entrar. Estávamos na tendinha do café e donuts. — Você pode sair de casa com uma arma carregada. Pode ter uma arma carregada no seu carro, neste Estado. Não é formidável?

— Já esteve no Arizona? — disse outro homem. Tinha a barba e o peitilho do fato-macaco polvilhados com açúcar em pó do donut que segurava junto à cara. — Eu estava num armeiro no Arizona. Diz o homem: «Está interessado numa arma?» Estava um polícia estadual ao pé do mostruário das armas. Diz o polícia: «Se não tem uma arma, eu compro-lhe uma.» Ah!

A feira de Natchez era quase idêntica à de Charleston e outras que me estavam reservadas em Southaven, em Laurel, em Jackson. Em quase todas as feiras encontrei a mesma gente: o avantajadíssimo homem que vendia munições sentado no meio das suas caixas e caixotes; o vendedor de facas artesanais de Hot Coffee; a tendinha dos tasers; o homem dos memorabilia nazis, um neozelandês a viver em pleno Mississippi; o velho de barbas a vender um sortido dos seus coldres de couro, o qual me disse numa feira que viajava sempre com quinze das suas armas favoritas («Esta é a minha espingarda de canos sobrepostos, esta é a minha Beretta de nove milímetros») e noutra feira disse: «É a minha fusca. Calibre .45. É para as cobras — há uma quantidade de cobras cottonmouths3 na região onde vivo.»

Alguns homens, demasiado pobres para ocuparem uma mesa, iam de um lado para outro, arvorando ostensivamente uma arma, pareciam caçadores, e de certo modo eram, à caça de comprador, ansiando por vender.

— Posso dar uma olhada?

— Com certeza. Aponte-a para ali. Cuidado. É de ação simples. Ouça, não a dispare descarregada.

Um vendedor privado tinha uma arma com trinta anos, de madeira e aço inoxidável, uma espingarda de assalto Sturm, Ruger calibre .223 Mini-14 com coronha retrátil, do género usado por atiradores especiais e conspiradores em golpes para derrubar ditaduras execrandas.

— Esta é a minha querida — disse o homem, passando-ma. — Detesto ter de vendê-la, mas tem de ser. É elegante, fácil de manejar, nunca encrava. E é anterior ao embargo. Já não as fabricam. Nunca mais.

— Parece muito bem concebida.

— É uma beleza. Não há por aqui nenhuma tão perfeita. É sua por mil e duzentos dólares em dinheiro. Venda privada. Cuide lá da minha querida.

Agarrei na arma. Ela reluzia nas minhas mãos como se fosse uma escultura. Não sou doente por armas, mas quando era escoteiro, Troop 24 em Medford, Mass., tinha uma Mossburg .22, e embora nunca tenha abatido um animal por desporto, ganhei aí alguma prática de tiro ao alvo com arma de fogo. Esta espingarda tentou-me a ponto de eu sentir que tinha de subir a parada com o vendedor.

— A propósito, eu sou de Massachusetts.

O semblante dele descaiu. Suspirou, tirou-me a arma com as suas mãos carnudas e dobrou a coronha, de modo que agora parecia um tipo superior de pistola.

— Preferia que não me tivesse dito isso.

— Oh, pronto.

— E como sei eu que você não está a tramar-me?

— Não estou a tentar tramá-lo.

— Você não é daqui.

— Pois não. Sou do Norte. Estou aqui em viagem…

— O Governo está em todo o lado! — Agora o homem falava para alguns circunstantes que me tinham visto a puxar a culatra e a segurar a espingarda. — Estão a tentar abater-nos!

Conforme me afastei, ouvi-o murmurar «Malditos», não para mim mas para os regulamentos em geral — autoridade, os verificadores de antecedentes e inspetores e papeladas, o Governo, Yankees.

Foi quando comecei a entender o clima da feira de armas. Não se tratava de armas. Nem de munições, nem de facas. Não se tratava de disparar chumbo sobre os potenciais inimigos. O ambiente caracterizava-se pelo modo como esses homens caminhavam e falavam: sentiam-se assediados, enfraquecidos, encostados à parede. De quando era esse sentimento? Era tão velho como o Sul, talvez, pois eles não falavam senão da Guerra Civil, e sentiam-se oprimidos por isso e por tudo o que sobreviera depois, a persistente lembrança da derrota.

Para os frequentadores de feiras de armas, as batalhas da Guerra Civil podiam ter sido ontem. Talvez seja assim com as derrotas, elas causam um mal profundo, a amargura da humilhação nunca mais passa. Uma pessoa humilhada na infância muitas vezes carrega esse fardo ao longo de toda a vida. O movimento dos direitos civis foi outra derrota para esses sulistas tão sensíveis aos intrusos e bisbilhoteiros e oportunistas, e mais ainda aos forasteiros que ignoravam as humilhações da Guerra Civil. O abandono das plantações foi outro fracasso, como o foram o surgimento de políticos oportunistas, a subcontratação das indústrias locais, o colapso dos viveiros de peixe-gato, o fracasso no setor fabril, e agora essa miserável economia em que havia tão pouco trabalho e tão pouca poupança que as pessoas iam às feiras de armas só para ver e almejar uma boa arma que nunca seriam capazes de comprar, uma ilusão de proteção, um símbolo de independência.

Sobre esta história de fracasso havia a carrancuda, punitiva sombra do Governo federal, pairando como um predador. «Eles estão a preparar-se para mudar todo este negócio», como dissera o homem na feira de armas em Charleston — banir o derradeiro vestígio da humanidade sulista. A atitude geral não era de desafio; o que senti foi o cenho carregado e a respiração fraca de gente que se sentia perdida e enganada. A feira de armas era o lugar onde eles podiam assumir-se, como um clube com admissão reservada e sem janelas. Mas a atmosfera era inconfundível: abafada, constrangida, pesarosa, vigilante e pobre. Mesmo mostrando uma cara valente, as pessoas daquela feira de armas transmitiam o sentimento de ao longo da sua história terem sido maltratadas por forasteiros e forçadas a conformar-se com leis sem precedente e que em metade dos casos causavam mais problemas e exigiam mais leis — o mundo deles virado do avesso.

Naquela feira de armas não se tratava realmente de armas e fãs de armas, mas da autoestima dos homens — sobretudo homens brancos, o grupo étnico dominante no Sul, animados pelo ressentimento («o coração da identidade sulista», segundo um sagaz historiador) — que se sentiam derrotados e ainda perseguidos, alvo de conspiração por forças hostis do exterior, constituindo um simbólico e derradeiro bastião.

Mrs. Robin Scott: «Para salvar os meus filhos»

Ouve-se falar de gente que foge do Sul, e alguns fazem-no. Mas achei em muitas circunstâncias o Sul como um refúgio. Encontrei uma quantidade de gente que tinha fugido do Norte para o Sul pela segurança, pela paz, pelos velhos hábitos, voltando à família, retirando-se. Um empregado de mesa, ao fazer uma pausa num restaurante do Mississippi, disse-me: «Eu sou de Detroit. O meu pai foi lá assassinado; tinha uma pequena loja de bebidas, The Pavilion. Surgiu um homem para o roubar. Quando o meu pai lhe deu o dinheiro, o homem deu-lhe um tiro na perna, na artéria femoral. Ainda tentou meter-se no carro, mas morreu da hemorragia a caminho do hospital. A minha mãe teve um esgotamento, por isso trouxe-a para cá; ela reencontrou alguns parentes. Está-se melhor aqui, mais seguro, mais feliz, e a minha mãe melhora de dia para dia. Não sei se alguma vez voltarei ao Norte.»

Escutei algo semelhante numa lavandaria em Natchez, lavando a roupa da semana. A eficaz e amistosa mulher em funções trocou algumas notas em moedas para as máquinas, vendeu-me uma vasilha de detergente em pó, e com um pequeno encorajamento contou-me a sua história.

Chamava-se Robin Scott, uma brava cinquentona com forte instinto maternal. Disse-me:

— Vim de Chicago para salvar os meus filhos de serem mortos pelos gangues. Muitos gangues de rua: os Latin Kings, La Raza, Latin Eagles, os Popes, os Folk Nation, e mais. A princípio, onde eu vivia, no setor de Garfield, não havia problemas. Depois, em finais dos anos 80, princípios de 90, o gangue dos Four Corner e os BGs (Black Gangsters) descobriram o crack, a cocaína e a heroína. Consumiam, vendiam, lutavam entre eles. Havia sempre tiroteio. Eu não queria lá ficar e enterrar ali os meus filhos. Disse cá para mim, tenho de sair daqui. Deixei o emprego, aluguei um U-Haul e vim para aqui, onde tinha alguma família. Sempre tive família no Sul. Embora criada em Chicago, costumávamos visitar a minha família na Carolina do Norte, um lugar no condado de Halifax perto de Rocky Mount.

Eu conhecia Rocky Mount das minhas recentes incursões, um sítio agradável a leste de Raleigh, junto à I-95, onde eu por vezes parava para comer. É também a terra natal de Thelonious Monk.

— Tinha boas recordações de Rocky Mount — disse Robin. — Era rural; tão diferente das ruas de Chicago. E a minha mãe tinha muita família aqui em Natchez. Então percebi que o Sul era onde eu podia salvar os meus filhos. Os meus primeiros empregos aqui foram de tudo um pouco. Trabalhei no casino com o blackjack, mas ao fim de algum tempo contraí artrite reumatoide. É uma doença autoimune. Afetou-me as mãos, as articulações e a marcha. Afetou o meu casamento. O meu marido disse «Não quero uma inválida», e deixou-me.

»Os antibióticos são terríveis para mim, afetam-me muito. Nem posso adoecer. Vou trabalhando, que remédio… Recuperei da artrite reumatoide, e criei os meus filhos. Tenho duas raparigas, Melody e Courtney. Courtney é gerente dum banco. Os rapazes são Anthony — o mais velho, é eletricista — e os gémeos, Robert e Joseph. Esses têm vinte e um anos, estudam na Universidade do Sul do Mississippi. Orgulho-me dos meus filhos. Os gémeos costumavam falar um com o outro durante o sono!

»Natchez é um lugar acolhedor. Estou muito satisfeita por ter vindo. Não foi fácil. Nem tampouco o é agora — a situação é difícil, mas eu cá me arranjo. O dono desta lavandaria é bom homem.

»Tenho muita família aqui. A minha avó era uma Christmas — Mary Christmas. O irmão era Joseph. Nós tratávamos a avó por Big Momma e o avô por Big Daddy. Até me ri quando vi o filme Big Momma’s House.

»Mary Christmas nasceu numa plantação perto de Sibley. Eles pertenciam a famílias de agricultores. O meu avô era Jesse James Christmas. Ele já faleceu, mas quando era vivo acontecia-lhe receber correio destinado a um homem em Vidalia, do outro lado do rio, por coincidência também chamado Jesse James Christmas. Ele guardava essa correspondência e atravessava o rio para entregar as cartas que lhe eram enviadas por engano. Esse outro Jesse James Christmas era branco.

Citei-lhe Luz em Agosto de Faulkner, e Joe Christmas, e disse-lhe que sempre achara o nome algo absurdo, carregado de simbolismo. Contei-lhe o entrecho do romance, e de como o misterioso Joe Christmas, órfão e contrabandista de ascendência negra, passa por branco.

No romance, o capataz da serração em Jefferson, falando do estranho, diz: «O nome dele é Christmas.»

«— Qual é o nome dele?

— O nome dele é Christmas.

— É estrangeiro?

— Já ouviu falar de algum homem branco chamado Christmas? — disse o capataz.

— Nunca ouvi falar de ninguém assim chamado — disse o outro.

E essa foi a primeira vez que Byron se lembrou de que sempre achara que o nome dum homem, suposto ser o som que lhe corresponde, pode ser de algum modo um augúrio do que ele fará, se outros homens souberem ir lendo o seu significado.»

Antes que eu pudesse continuar com a história de Lena Grove e do filho e o tema cristão, Robin interrompeu-me.

— Joe Christmas é meu tio — disse ela. — Tem noventa e dois anos. Vive num lar de idosos em Natchez. É um nome corrente nestas paragens.

O Delta: a Round Table

Na minha ignorância, eu julgara que o Delta fosse unicamente o estuário do rio Mississippi, em torno e a sul de Nova Orleães, o delta dos mapas. Mas isso não é tão simples. O Delta é toda a dispersão aluvial que se estende para norte desse lodo no Luisiana, a planície aluvial para além de Natchez, enfaticamente plana acima de Vicksburg, a quase totalidade do bojo do Mississippi oeste, e é limitado a leste pelo rio Yazoo, até Memphis. No fundo é igualmente uma estrada; é a Autoestrada 61.

Continuando a subir essa autoestrada, após Fayette e Lorman outra vez, meti por Port Gibson, uma cidade que se vangloria de pelo menos uma rua «lembrar bastante o que era em 1863», e alguns edifícios também — o general Grant poupou-a, dizendo que a cidade era «demasiado bela para arder». O mesmo não aconteceu a Vicksburg, pouco acima na estrada, tal como Natchez uma cidade num penhasco, mas ao contrário de Natchez foi cercada, bombardeada incessantemente do rio por batelões da União, num assalto que durou quarenta dias. E o cerco consumou-se numa óbvia derrota, numa humilhante rendição.

O cerco era ainda lembrado. Juntei-me a oito estranhos para almoçar numa típica Round Table, no Walnut Hills Restaurant, em Vicksburg. Qualquer pessoa podia sentar-se na Round Table, entre estranhos ou com amigos, e comer com eles. Esse bangaló numa rua lateral fora recomendado pela sua cozinha caseira. Apresentando-me, disse de onde vinha.

— Instale-se — disse um homem.

Mas uma mulher mais velha murmurou com ressentimento:

— Você sabe o que nos fez?

A lembrança tornara-se um insulto. Os outros comensais, todos locais, e na maior parte desconhecidos uns dos outros, embora tagarelando amavelmente, ficaram em silêncio, à espera da minha resposta. Eles sabiam que ela se referia ao longo cerco de Vicksburg pelo exército da União em 1864.

Eu tinha então visitado a cidade de Vicksburg, com as suas encantadoras casas anteriores à guerra e marcas da guerra; o campo de batalha alastrou-se a quase toda a cidade, e contaram-me os sofrimentos. «Esta cidade é toda ela um túmulo», escreve Natasha Trethewey no seu poema «Pilgrimage», a propósito duma visita ao lugar. Por isso não encarei a acusação da mulher com ligeireza. Disse, como a um menino rabugento:

— Eu pessoalmente não lhe fiz nada. O Sul provocou a secessão. O Norte respondeu. O que está feito, bem feito está.

— Mataram-nos à fome — disse a mulher. — Fizeram-nos comer ratos.

Este tipo de resposta — por vezes sentida, outras vezes um dito amargo, outras ainda dita com desafiante nostalgia — é tão comum no Sul, sempre dada por brancos, ao visitante do Norte, que aprendi, não a dizer «Isso foi há cento e cinquenta anos», antes a escutar com simpatia, porque as pessoas vencidas sentem-se indefesas, e a prova disso é a monotonia do seu queixume. O incómodo delas nesse ponto, antigo para mim mas fresco nas suas mentes, confere ao Norte — do qual eu era a encarnação nessa manhã — uma sinistra magnitude.

Por isso compadeci-me e fiz mais algumas perguntas. Por exemplo (sugeri), se o Sul tivesse ganhado a guerra, como se apresentariam as fronteiras da Confederação, e onde terminaria ela? Como seriam as nossas relações comerciais? Teria o Sul aguentado mantendo-se retrógrado, com escravos e uma aristocracia e um exército de uniforme cinzento? Qual teria sido a resposta desse exército aos eventos internacionais, como a guerra Hispano-Americana e a Grande Guerra? E, assumindo que o Havai se tornara um território da União, como teria o Sul Confederado reagido ao bombardeamento de Pearl Harbor?

Porém a lógica raramente se sobrepõe ao sentimento de profunda perda, ao orgulho ferido. Muito do Sul ainda magoa porque uma grande parte do Sul é ainda pobre; e o ar de derrota que senti intensamente nas feiras de armas era como uma lembrança da Guerra Civil — as perdas, as mortes, os incêndios gratuitos, a rendição. A noção, também, ou a ilusão, de que uma época dourada se fora com a guerra — de tranquilidade, mansões, escravatura — quando o que sucedera fora que o vigor do Sul se tinha exaurido na sua falhada tentativa de separação, virando-o de pernas para o ar e empobrecendo-o, tornando-o um amargo lugar de sepulturas, monumentos comemorativos e ruínas.

«O Sul foi criado pela necessidade de proteger uma peculiar instituição de ameaças provenientes de fora da região», escreve o historiador sulista Sheldon Hackney no seu ensaio «Southern Violence» (1969). Consequentemente, «a identidade sulista foi associada desde o princípio a uma mentalidade de cerco». Ser sulista, diz ele, «implica por vezes um sentimento de perseguição, e a impressão de ser um objeto passivo, insignificante, de forças estranhas ou externas». Dentre essas forças ele enumera os abolicionistas, o exército da União, os oportunistas, Wall Street, os agitadores dos direitos civis, o Governo federal, o feminismo, o socialismo, os sindicatos, o darwinismo, o comunismo, o ateísmo, o horário de verão, «e outros subprodutos da modernidade». E escritores como eu, subversivos por natureza.

Pensei muitas vezes que no coração de Thomaston, Maine, sob os altos plátanos e os frondosos carvalhos, um soldado da Guerra Civil se ergue meditando num bloco de granito, e sob ele, no plinto, se lê a inscrição «Em Memória dos Soldados e Marinheiros 1861-1865», e «Um País — Uma Bandeira». O 20.º Regimento do Maine, sob o comando do coronel Joshua Chamberlain, numa heroica e decisiva carga de baioneta colina abaixo contra milhares de confederados na batalha de Little Round Top, contribuiu para mudar o curso da batalha em Gettysburg. Há mais de cento e cinquenta desses monumentos da Guerra Civil em cidades do Maine, outros tantos no Massachusetts.

Virtualmente qualquer comunidade, grande ou pequena, na Nova Inglaterra tem um monumento aos mortos da guerra. Um dos mais antigos, erigido em 1866, é o austero obelisco que se ergue no relvado em Centerville, Cape Cod, os quatro lados da base registando os nomes dos soldados mortos — essa pequena vila marítima de pescadores, então apenas com algumas centenas de almas, perdeu trinta e um homens na Guerra Civil. A minha cidade de Sandwich, em Cape, com uma população de quatro mil e quinhentas pessoas em 1861, enviou duzentos e quarenta dos seus jovens para essa guerra. Cinquenta e quatro foram mortos e foram muitos os feridos. Um dos veteranos de Sandwich foi um negro, Joseph Wilson, escravo liberto, que combateu integrado no 54.º Regimento de Massachusetts (o primeiro com soldados negros) no cerco de Vicksburg, e conseguiu regressar a Cape Cod depois da guerra, para contar a história.

Mas é difícil deparar hoje com uma pessoa em Thomaston, Centerville, Sandwich ou algures na Nova Inglaterra que se refira a essa guerra, ou sequer dispense uma atenção de visitante aos monumentos comemorativos nos parques.

Depois de a mulher ter manifestado o que sentia, eu disse algo sobre isso e citei o sábio chinês Lie Zi: «A reputação de um general faz-se com os cadáveres de dez mil homens.»

Quando um mexicano no romance Gringos, de Charles Portis, lamenta que os Yanquis tomaram metade do seu país em 1848, o narrador, Jimmy Burns, diz: «Eles tomaram o meu na totalidade em 1865. Não podemos continuar a lamentar isso.»

Uma mulher mais jovem disse:

— Eu estive no Norte uma vez. Lá eles falam muito da guerra revolucionária. Nós aqui nunca falamos dela.

— A guerra é o inferno — disse eu, e tornei-me plenamente ciente do general que citara. Fiquei satisfeito quando a conversa passou para as comidas, as antiguidades e o tempo.

Comemos todos juntos. Isso era uma tradição do Walnut Hills Round Table. Havia lugar para uma dúzia de pessoas em torno da grande mesa. Qualquer pessoa podia sentar-se, e a comida era servida ao estilo buffet numa bandeja giratória: vasilhas de frango frito, vasilhas de guisado, e batatas, arroz e molho, travessas de peixe frito, tigelas de feijão e repolho verde. A bandeja giratória implicava um certo grau de consideração para com os restantes comensais.

E tal como aprendi nas minhas viagens por outros países, comer juntos é uma ocasião da qual os humanos fizeram um ritual de paz; partilhar comida é partilhar amizade, e assim o tema da guerra cessou, e falámos das novidades do dia.

O desemprego era um dos temas.

— Os empregos são escassos — disse alguém.

Um dos convivas era um homem cujo negócio consistira em vender máquinas agrícolas. Estava aposentado. Ele disse:

— A mecanização acabou com todas as tarefas. Eu vendia máquinas de colher algodão. As primeiras só colhiam uma fileira de cada vez, mas mesmo assim faziam o trabalho de quarenta homens. Hoje em dia elas colhem duas fileiras, essas máquinas. Algumas chegam a colher doze fileiras. Com seria possível a colheita manual competir com isto?

— E diz-lhes quanto custam — disse a mulher dele.

— Meio milhão de dólares, algumas delas. Outras ainda mais.

— Por isso não há trabalho aqui.

A mulher que dissera «Vocês fizeram-nos comer ratos» perguntou-me se eu viajara fora dos Estados Unidos. Eu disse que sim, e reconheci essa pergunta como uma dica para replicar, perguntando-lhe pelas viagens dela à Europa, porque uma pessoa — e sobretudo um viajante — formula uma pergunta para dar uma informação e formular uma opinião. «Já esteve no Butão?» significa «Eu estive no Butão e gostaria de lhe falar da minha viagem durante a próxima hora, mais ou menos.»

— Eu andei por aí — disse a mulher. — Paris. Londres.

— E que tal? — perguntou entusiasmada uma das mulheres mais jovens.

— Detestei. Não valia nada. — A mulher fez uma careta. — A América é muito melhor.

Outono no Delta

Quando disse a um lojista em Vicksburg que me dirigia à Autoestrada 61, ele disse-me: «Não se esqueça de encher bem o estômago e o depósito. Não pare sob pretexto algum»; o que me fez sorrir, porque era o género de coisa que sempre ouvira nas estradas secundárias da África Oriental e Central: siga sempre, é perigoso parar, há gente esfomeada nessa estrada, querem apossar-se do que você leva, e se atropelar alguém eles raptam-no e farão da sua vida um inferno. Mas neste caso tratava-se da autoestrada dos blues, a grande estrada ribeirinha.

«Dentro em pouco eles entrarão no Delta», assim começa o conto de Faulkner Outono no Delta, incluído em Desce Moisés. E prossegue: «A última colina, a cujo sopé a rica planura aluvial sem quebra começou como o mar começou na base das suas falésias.» Este conto, passado em 1940, é uma evocação da caça ao veado, o constatar do suceder das gerações, dos eventos presentes e da história passada — a realidade duma guerra na Europa, alusões a Hitler e às manifestações da modernidade, anúncios de néon, grandes algodoeiras, locomotivas, «um sem-número de automóveis coruscantes», a erosão e desaparecimento da vida selvagem, a redução dos territórios de caça, referência aos negros que trabalhavam a terra. Perto do remoto campo de caça, o velho Delta permanece em bosques profundos e no «alto tremendo planar do carvalho, da seringueira, do freixo e da nogueira que não cresceram para outro machado que não fosse o do caçador».

A par da meditação filosófica sobre a caça pelo patriarca Ike McCaslin, que é pessimista quanto ao futuro, há um impasse no centro do conto a propósito da raça, uma história de amor. Esta é a aliança entre um dos caçadores, Carothers («Roth»), e uma mulata cujo nome ignoramos, que é a mãe do filho dele. Ela vive perto do acampamento e aparece com a criança para o ver. Mas ele saiu cedo para caçar — para se esconder, ao que parece — e deixou com sentimento de culpa algum dinheiro a Ike para lhe entregar. Como quase sempre em Faulkner, há uma grande parte de genealogia e mistura de sangues por detrás desse encontro, mas na essência ele representa os dois ramos da família McCaslin, branco e negro, convergindo na história.

Ike dá o dinheiro à mulher e diz-lhe que case com «um homem da sua raça». Justamente indignada, porque ele não teve em conta a possibilidade de Roth e ela se amarem, ela profere a melhor a melhor frase da história. «Meu velho», diz ela, «viveste tantos anos e esqueceste tanto que já não te lembras de nada do que soubeste sobre o amor?»

Enquanto ela é levada — até Leland, para embarcar no comboio do Norte para uma nova vida — Ike lamenta a mudança no Delta, a destruição da vida selvagem: «Desatolada e desnudada e privada de zonas ribeirinhas em duas gerações para que os homens brancos pudessem possuir plantações.» E no presente declínio do Delta ele antevê um futuro muito pior: bancarrota, miscigenação, pessoas vivendo «como animais».

A ficção muitas vezes acentua a paisagem e sugere um futuro, mas a ficção pode ser enganadora. Uma boa razão para viajar é situar a ficção num contexto. Para Ike, o Delta estava a ser destruído pelas grandes fortunas, casamentos mistos e agricultura intensiva — numa palavra, pela cultura yankee, algo que Faulkner parece ter detestado. A deflorestação que Ike lamenta estava a ocorrer quando Faulkner escreveu a história, e o abate de árvores prosseguia, os campos de algodão derivando para as margens dos pântanos e águas paradas, tal como a paisagem se apresenta hoje. Ike (parecendo falar por Faulkner) prevê um conflito de raças, ambições e interesses comerciais. O que se passou foi mais simples e mais devastador: a mecanização expulsou os trabalhadores agrícolas da terra e deixou-os sem emprego.

— Quando eu era rapaz, em finais dos anos 40 e nos anos 50, costumávamos erguer-nos antes da alvorada — disse-me mais tarde um homem chamado Will Thompson, na Geórgia. — Era em Jackson. Uma grande carrinha recolhia-nos e levava-nos pela escuridão até ao Delta, e trabalhávamos todo o dia. Eu era um miúdo, tão jovem que a princípio não conseguia colher algodão nenhum. Eu era o aguadeiro, calcorreando as fileiras de cima a baixo com um balde e uma caneca. Ao anoitecer éramos levados de volta para Jackson.

Após a escola secundária, Will alistou-se no exército e serviu no Vietname.

— Um dos meus amigos foi morto, e mandaram-me de volta ao Mississippi para escoltar o corpo. Em 1968, esse terrível ano. Seguíamos ao longo dos campos de algodão de Memphis. Tudo me caiu de novo em cima. Assim que cheguei a Jackson, disse para comigo: «Nunca irei aceitar ser outra vez um cidadão de segunda.»

Muitos negros no Delta diziam a mesma coisa; era algo que Faulkner — e Ike McCaslin — não tinham previsto: a deserção.

Nesse outono da viagem, no Delta, a paisagem rural era bela — terras baixas a pender para o rio que pareciam húmidas e férteis, renques de carvalhos e seringueiras e ciprestes (Cypress Street era o antigo nome deste sulista troço da Autoestrada 61) — e eu podia pressentir o rio por detrás das árvores pelas nuvens de insetos sobre os riachos e mais pantanosas distâncias e pela qualidade da luz, que era mais suave e azulada, filtrada pelas plantações de folhosas e salgueiros.

Um pouco mais de sessenta anos após os eventos desse conto, a paisagem pouco mudara: nenhum trânsito, e apenas casas velhas ou arruinadas. Era como conduzir em direção ao passado. A estrada espalmou-se, estreitou-se conforme fui entrando no condado de Sharkey, região de algodão, e na cidade de Cary, onde havia uma debulhadora e menos de quinhentas pessoas. Egremont, mais adiante, tinha ainda menos. Tal como eu já vira na Carolina do Sul e no Alabama, os campos de algodão eram uma imensa e esfiapada brancura de arbustos ramosos, e nenhumas mãos camponesas, nenhuns apanhadores, nenhuns trabalhadores à vista. Flocos e restos de algodão, soprados dos campos, tinham-se enroscado nos ramos pela berma da estrada, dando a impressão dum imenso desleixo, como se parte do carregamento tivesse voado dum camião de tecidos que por ali passara.

De longe a longe via-se uma dessas gigantescas máquinas de colher algodão que o comerciante de Vicksburg tinha descrito, que custam meio milhão de dólares. Eram avantajadas, avultavam sobre a cabina que parecia um trono, e tinham uma larga mandíbula inferior sem dentes que abarcava seis fiadas e as despojava.

Nenhumas habitações, a seguir um montão delas, e quando vi que se tratava de caravanas decrépitas, barracos, velhos autocarros ferrugentos convertidos em habitações, percebi que esta era a região mais pobre dos Estados Unidos que vira na minha vida, mais pobre que Allendale na Carolina do Sul, mais pobre que a mais pobre vilória do Alabama, com as casas mais precárias, «cabanas de adobe e abrigos de pastor na berma da estrada» como proclama o Cidadão no Ulisses.

As autocaravanas, que pareciam decrépitas e abandonadas, estavam amontoadas em espaços improvisados sob as árvores. Aquilo não eram comunidades. Eram acampamentos na berma da estrada e à margem dos campos de algodão, e tudo levava a crer que não dispunham de sanitários. Eram à imagem dos acampamentos ciganos na Inglaterra: o amontoado de caravanas, os montes de lixo e detritos, os estendais de roupa a secar, as crianças ociosas esfarrapadas e, coisa estranha e tocante — porque estávamos ainda em outubro —, uma grinalda de Natal com uma fita vermelha pendurada na porta de um barraco, uma nota de cor.

Não pare, dissera o homem, mas parei mais abaixo, na cidade de Rolling Fork.

Ao grande, imponente, edifício em pedra lavrada do Tribunal do Condado de Sharkey, opunham-se lojas fechadas, ruas vazias e tabuletas vandalizadas. Mas havia um Sunflower Supermarket num lado da cidade e Sam Sing & Co, uma mercearia chinesa, no outro lado.

Passeando pela cidade encontrei Leroy, um empregado na Sam Sing, que estava a fazer uma pausa para fumar um cigarro. Ele disse-me o que muitos outros disseram, que o cantor de blues Muddy Waters nascera, com o nome McKinley Morganfield, em Rolling Fork. O próprio Muddy o proclamara, mas não fora confirmado — podia ter nascido num condado adjacente, e cresceu num barraco na plantação de Stovall em Clarksdale, a montante no Delta. Mas Rolling Fork tinha tão pouco para se vangloriar, que bem se lhe podia dar o benefício da dúvida na questão de Muddy.

— Essas lojas eram todas muito ativas — disse Leroy — e agora olhe-me para elas: foram-se. Mas ainda há agricultura, algodão, soja e milho.

Vendo Leroy a falar comigo, uma mulher aproximou-se. Chamava-se Ann Culpeper, ex-orientadora na escola básica de Rolling Fork. Conhecia Leroy da escola.

— Eles integraram a escola secundária em 1994 — disse Leroy, respondendo a uma das minhas perguntas.

— Deve ter sido antes — disse Ann.

Uma velha que por ali passava perguntou:

— Que quereis saber?

Quando Leroy lhe disse, disse ela:

— Eles não sabem nada. Rolling Fork High era branca. Quando a integraram e os negros foram para lá, começou uma escola privada para brancos.

Ambas as mulheres eram brancas. Leroy era negro. Eles argumentavam entre si sobre datas, e não chegavam a acordo; a história recente era nebulosa. Talvez um efeito da estagnação. Havia tão poucos eventos nessa cidade moribunda que nada restava para lembrar, nada para associar com um ano em particular. Numa coisa estavam de acordo: não havia trabalho, nem dinheiro, aparentemente nem sequer futuro.

Anguilla, a cerca de oito quilómetros pela autoestrada, era desolada, autocaravanas disseminadas nas imediações duma estrada e ladeando os campos lavrados — arruinadas, cabinas ferrugentas, jazendo ao deus-dará, com um ar de desordem e desespero, como um campo de refugiados, que o era, à sua maneira.

Pior ainda, mais deplorável e desolada, era Arcola, a um quilómetro e meio da autoestrada, cidade-fantasma, todas as lojas e algumas casas encerradas na rua principal (e essa rua principal era a primitiva, sinuosa Autoestrada 61, não a estrada retilínea de hoje em dia). Conseguia ler os nomes gastos nas tabuletas desses estabelecimentos condenados — Four-Way Grocery e Club Tropicana e Roger’s — tudo fechado, salvo a estação de correios de Arcola.

Os velhos trabalhos pesados tinham-se acabado, e os novos negócios faliam — viveiros de peixe-gato, mobiliário e a fábrica de bicicletas Schwinn, a trinta quilómetros em Greenville, que fechou em 1991, despedindo duzentos e cinquenta trabalhadores. Havia também sérios despedimentos na fábrica Viking Range em Greenwood.

Em decomposição, pitorescamente perdidas, olvidadas, essas cidades, todas elas com um regato ou uma torrente atravessando-as, eram subdesenvolvidas, literal e figuradamente. Eram como qualquer pequena, despojada cidade agrícola no Terceiro Mundo, onde a mecanização se impusera, onde os tratores e as máquinas tinham substituído a colheita manual nas plantações. Nesses lugares as pessoas lutavam e contentavam-se com o mínimo, agarradas às suas rotinas, aí a vida era precária, e tudo — casas, lojas, roupas, os brinquedos das crianças — parecia improvisado. Ali não havia riqueza, ou, se havia, estava oculta. As receitas das colheitas de algodão não pareciam enriquecer ninguém no Delta. Provavelmente alguém em Jackson ou Memphis vivia bem dessas colheitas.

Lembrei-me de Almeida Garrett, viajante e pensador português de meados do século XIX. Uma inspiração para mim, Garrett fizera uma viagem pelo seu próprio país, narrada em Viagens na Minha Terra, e constatando a pobreza, formulara uma questão: «E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico.»

«As coisas são piores do que parecem»

— O que o senhor vê no Delta não é o que as coisas são — disse-me uma funcionária num banco em Greenville.

— Mas elas não parecem bem — disse eu.

— As coisas são piores do que parecem — disse ela.

Fora criada em Hollandale, uma das sombrias cidades na Autoestrada 61 a sul de Greenville. Ela encolheu os ombros e perguntou-me o que queria eu conhecer. A colega Sue Evans, que devia andar pelos sessenta, sentou-se junto dela mas pouco disse, meramente assentiu. Sentámo-nos no gabinete dela num andar superior do banco, numa rua pouco central de Greenville numa tarde sombria, sob um céu espesso com grossas nuvens. Gotas avulsas de chuva fria manchavam os passeios e a rua esburacada. Eu tinha imaginado o Delta, malgrado tanta miséria, como pelo menos um lugar soalheiro, mas estava frio e vento, embora fosse apenas outubro. Para mim o clima, a atmosfera, era algo novo, algo inesperado e opressivo, logo digno de nota.

«As coisas são piores do que parecem» era uma das mais chocantes constatações que ouvira no Delta do Mississippi, porque tal como em Allendale, na Carolina do Sul, e nas vilórias das estradas secundárias do Alabama, esta parte do Delta parecia estar a implodir. A Bíblia é a cada passo o terreno de caça privilegiado das mentes perturbadas, mas era fácil (como achei entre os propensos à Bíblia no Sul) reportar-se ao Apocalipse, com os seus sinais e presságios, e discernir que em vez das vaporosas nuvens da salvação e das tonitruantes trombetas, nós vivíamos nos sulfurosos miasmas dos Últimos Dias.

— O imobiliário é o maior desafio — disse a funcionária do banco —, mas estamos presos por ter cão e presos por não ter: demasiado grande para ser pequena, demasiado pequena para ser grande. Com isto eu quero dizer que, sendo rurais, não beneficiamos dos fundos rurais, porque a população é superior a vinte e cinco mil habitantes.

— Fundos de quem?

— Fundos federais — disse ela. — E há que mentalizar-se. É um desafio. É pensar a curto prazo, um sistema de valores precário.

Eu disse:

— Refere-se às pessoas que vivem na pobreza?

— Sim, parte delas. Por exemplo, você vê belos carros diante de casas decrépitas. Vê gente no Walmart e nas manicuras a cuidar das unhas.

— Isso é pouco comum?

— Vivem da ajuda do Governo — disse ela, e sacudiu a cabeça. Sue Evans murmurou o seu assentimento. — Não quero dizer que eles não devessem cuidar da aparência, mas é gratificação imediata em vez de sacrifício.

— Que acha que eles deveriam fazer?

— Vou dizer-lhe o que eu fiz — disse ela. — Porque o meu sistema de valores é diferente. Eu cresci numa cidade afetada pela pobreza — e, tendo eu cruzado a cidade na véspera, sabia que não era um exagero: Hollandale parecia atingida por uma praga. — Os meus pais tiveram catorze filhos, e nunca houve menos de dez pessoas em casa, além dos meus pais. Apenas um quarto de banho. O mais interessante é que nunca tivemos qualquer apoio do Governo, a razão era que o meu pai trabalhava. O emprego dele era em Nicholson Files. E pescava, caçava, jardinava. As hortaliças dele eram mesmo boas. Abatia veados, coelhos, esquilos. A minha mãe fritava os esquilos ou fazia cozido de esquilo. — Ela riu-se e disse: — Eu nunca comi disso. Comia frango.

— Eu comi esquilo — disse Sue Evans, o seu primeiro contributo para a discussão.

— O que sucedeu à Nicholson Files? — Era uma companhia que fabricava limas de metal e ferramentas de qualidade, uma marca respeitada pelos construtores.

— Fechou. Foi para o México — disse a funcionária do banco. Essa era uma resposta que ouvia com frequência quando perguntava por indústrias no Delta. — Vi que não havia grande coisa para mim por aqui. Alistei-me nos Marines. Servi três anos mais três — três no ativo, três na reserva. Estava sediada em Oceanside, Califórnia, e posso dizer-lhe que além de me ter salvado foi a melhor decisão que tomei na minha vida. O serviço proporcionou-me uma perspetiva totalmente diversa. Ajudou-me a encarar as coisas de forma diferente.

— Já tenho ouvido falar disso — disse eu. — O serviço militar como saída e meio de subir.

— Mudou tudo para mim. Até então, tudo o que eu conhecia era o Delta. Fui para a Hollandale, uma escola pública típica no Delta. Foi integrada, acho eu, em 1969. A escola dos brancos ficava no outro lado da cidade, mas — miraculosamente, ah! — ardeu pouco depois. Claro, eles incendiaram-na, para não terem de se haver connosco. Ninguém se pode convencer do contrário. Após o incêndio, a Academia Deer Creek estabeleceu-se em Arcola — uma escola para brancos, ainda aí, ainda branca, ou pelo menos a noventa e nove por cento. Havia alguns brancos na minha escola, dois ou três. Embora a proporção entre negros e brancos no Delta seja de sessenta para quarenta, ainda há um desequilíbrio em Greenville. A Escola Básica e Secundária de O’Bannon é negra. Riverside High em Avon é sobretudo branca. Essa dinâmica afeta-nos como comunidade.

— Mas Greenville é uma grande cidade. — Eu ficara surpreso com a sua extensão, a expansão, a dimensão da baixa, as imediações com boas casas, algumas de vulto. E uma nova ponte fora construída — ainda por inaugurar — sobre o Mississippi, a oeste da cidade.

— Isto é uma cidade em declínio. O tráfego fluvial tem diminuído. Perdemos população, de cerca de cinquenta mil passámos a menos de quarenta mil. Isto era um lugar próspero. Tínhamos muitas fábricas — atrelados para camiões, roupa interior Fruit of the Loom para homem, bicicletas Schwinn, tapetes Axminster. Foram todos para o México, América do Sul, China. Havia aqui uma base da força aérea. Fechou.

— Que negócios ainda há aqui? — perguntei.

— Peixe-gato, mas já não é tão próspero. Temos arroz — Uncle Ben’s, muito bom. Conseguimos uma companhia que fabrica telhas, e a Leading Edge; aplica pintura nos aviões a jato. Mas não há empregos que cheguem. O desemprego é tremendo, mais de dezasseis por cento, o dobro da média nacional.

— As pessoas com quem falei disseram que há mais ajudas ao alojamento.

— É ótimo ter um lar, mas se não houver subsídios não se chega lá. Mas é assim que vive uma quantidade de gente.

— Vocês recuperam casas?

— Muito poucas casas são recuperadas. A maior parte acha-se em tão mau estado que fica mais barato demoli-las do que arranjá-las. Muitas estão abandonadas. Cada vez há mais quarteirões vagos.

— Se Greenville fosse uma cidade num país do Terceiro Mundo, haveria provavelmente muito dinheiro a entrar.

— Isto foi uma Zona de Autorização Federal — dez anos, dez milhões dólares injetados na economia.

— Dez milhões não é muito comparado com as centenas de milhões que vi na ajuda dos EUA a África — disse eu. — Um pequeno país como a Tanzânia ou o Gana podia conseguir setecentos milhões. Para escolas ou clínicas.

— Isso é uma novidade para nós — disse ela, e Sue Evans parecia igualmente surpreendida. — Nós fazemos o que podemos. As coisas têm vindo a melhorar. Existe o Greenville Education Center. Eles dispõem de aulas diurnas e noturnas para as pessoas estudarem.

Mais tarde, consultei o currículo da Universidade Comunitária do Delta do Mississippi, que fazia parte desse programa, e descobri que eles ofereciam cursos de aplicação de tijolos e telhas, mecânica de automóveis, condução de veículos comerciais, operações com equipamento pesado, eletrónica, peritagem de máquinas, soldadura, aquecimento e ar condicionado, burótica e muito mais. Mas há poucos empregos.

— As pessoas tiram cursos e vão-se embora — disse ela. — Há muita rotatividade de médicos e professores. Temos de nos juntar. Seja de que maneira for. Alguma melhoria haveremos de conseguir.

Dada a gravidade da situação, e o flagelo que se abatia sobre o Delta, pensei em voz alta porque persistira ela.

— Eu? Fui convocada para estar — disse ela.

Entretanto, Sue Evans ficara sentada em silêncio. Mas quando eu mudei de assunto e falei da história musical de Greenville, dos blues, dos clubes que tinham sido numerosos a montante e a jusante do Delta, Sue animou-se. O tema da música era-lhe caro, disse ela.

— A minha mãe teve um clube de jazz em Leland — disse Sue. Eu tinha passado por Leland, outra cidade agrícola na Autoestrada 61, conhecida pelo seu papel na história dos blues. — Ela era uma grande mulher, a minha mãe, Ruby, toda a gente a conhecia.

Havia ainda alguns clubes, disse ela. Havia um museu dos blues. Vinha gente de todo o mundo para visitar esses locais associados aos blues, e para ver os locais de origem e os pontos de referência — as fazendas, os riachos, as vias-férreas, os campos de algodão.

— Ouvi dizer que em Indianola há um museu B.B. King — disse eu.

Isto causou um profundo silêncio. As duas mulheres trocaram um olhar mas não disseram nada. Era uma espécie de silêncio provocado por uma alusão inesperada, ou grande confusão, como se eu tivesse falado numa língua estranha.

— Ele nasceu lá, compreendo — disse eu, algo desorientado e sentindo-me ali a mais.

Sue Evans exibia um olhar fixo e algo obstinado para longe de mim, enquanto a colega, sorrindo ligeiramente, ia falando.

— Berclair — disse ela. — Mas foi criado em Kilmichael. Do outro lado de Greenwood.

Parecia uma muito exata e obscura informação. Eu não sabia que mais dizer, e era óbvio que aquele assunto originara uma certa atmosfera na sala, uma vibração inexplicável, que me fazia sentir como um desajeitado forasteiro.

— Dizemos-lhe?

— Não sei — disse Sue.

— Diz-lhe tu.

— Anda lá — disse Sue.

Esta troca, uma espécie de provocação, tinha o efeito de aliviar a tensão, suscitar uma vibração.

— Sue foi casada com ele.

— Casada com B.B. King?

Sue disse:

— Sim, fui. Eu era então Sue Hall. A segunda e última mulher dele. Já foi há muito tempo.

Sue era branca e parecia uma bibliotecária escolar; a colega era negra e ainda tinha os modos bruscos dum sargento dos Marines, que fora. Mas agora, que o tema tinha aflorado, ambas as mulheres sorriam.

— Uma noite a minha mãe apanhou-o — disse Sue. — Ele olhou para mim. Eu era uma catraia. Tinha uma ideia do que passava pela cabeça dele, mas a minha mãe não deixaria passar nada em claro nem era para brincadeiras. Ele atuava muitas vezes no clube; era um grande músico. Esperou até eu completar dezoito anos; esperou porque não queria lidar com a minha mãe. Tinha medo dela.

Ela riu-se ao lembrar-se do caso. Eu disse:

— Isso terá sido quando?

— Há muito tempo — disse Sue. — Fomos casados durante dez anos.

— Você tratava-o por BB?

— O nome dele era Riley. Eu tratava-o por B.

Eu estava a anotar «Riley».

— Isso dava lugar a confusões — disse Sue. — Porque a mulher de Ray Charles chamava-se Beatrice. Nós também a tratávamos por B. A cada passo ficávamos baralhados com os dois B.

— Você viajava com ele? — perguntei.

— Sempre. B gostava de viajar. Gostava de tocar — era capaz de tocar toda a noite. Adorava o público, as pessoas, vivia para conversar. Mas eu ficava tão cansada. Ele dizia: «Tu não gostas de me ouvir», mas não era isso. Detestava era ficar acordada tantas horas. Ter de ficar no quarto do hotel à espera dele.

— Ainda estão em contacto?

— Conversamos a cada passo. Ele liga-me. E falamos. Ele ainda anda em digressões; imagine. Da última vez que falei com ele, disse que tinha alguns compromissos em Nova Iorque e Nova Jérsia. Ele ama a vida. Ainda aguenta firme.

E durante aqueles quinze ou vinte minutos não houve flagelo no Delta.

Foi uma animada reminiscência daquela década com B.B. King, o homem que glorificou o Delta e provou que isso era possível e podia acontecer outra vez.

«Jesus é o Senhor — compramos e vendemos armas»

A minha estação passada a conduzir estava a chegar ao fim. Prossegui pelo Delta acima, depois virei para leste e passei para o Alabama. Era como viajar no interior dum país estranho, a mesma solidão, a mesma pobreza, o mesmo canto do cuco, com surpresas e descobertas inesperadas, como na loja do Alabama por onde passei em cuja tabuleta amarela se lia, numas enormes letras negras: JESUS É O SENHORCOMPRAMOS E VENDEMOS ARMAS, que se tornara um dos temas imbricados da minha jornada. Inarticulado na explanação mas eloquente nas suas ações, o Sul nunca deixou de publicitar as suas obsessões em grandes cartazes. Eu tornara-me dependente da sua visibilidade.

Ao cabo da maior parte das viagens dizemos para nós mesmos: Basta, volto para casa e escrevo sobre isto. Esta viagem estava feita, mas a jornada não terminara, e os meus achados abriram-me o apetite por mais. Descobrira que a América tinha uma classe camponesa, tão esforçada e prazenteira e desesperada como qualquer outra das que fui vendo pelo mundo. Pensei em todas as pessoas que encontrara — o reverendo Virgin Johnson em Sycamore, Wilbur Cave na desesperada Allendale, Cynthia Burton em Tuscaloosa, o mayor Washington e o reverendo Lyles em Greensboro, o povo do Delta, a mãe Scott, a ex-Mrs. B.B. King, e outros. E todos aqueles que me tinham convidado a voltar. As paisagens de outono começavam a tornar-se frias e grisalhas. Como seria tudo aquilo no inverno, e que faria aquela gente? A minha casa ficava num extremo da estrada, o meu tema no outro extremo. Amando as longas extensões vazias, possuído pela febre da linha branca, o satori da estrada sem limites, guiei em direção a casa fazendo planos de regressar em breve.

1 Comida afro-americana do sul dos Estados Unidos. (N. do T.)

2 Que eles nunca usavam para se designarem a si mesmos. Eles autodesignavam-se Théocloel — o povo de Thé, nome do seu endeusado antepassado primevo.

3 Agkistrodon piscivorus, cobra venenosa do sul dos Estados Unidos. (N. do T.)