O texto a seguir é a apresentação histórica de dois livros da Obra Completa de Adolpho Lutz: Entomologia -Tabanídeos (v.II, livro 2) e Entomologia (v.II, livro 4).
The following text is the historical introduction to two books from the Complete Works of Adolpho Lutz: Entomology -Tabanidae (v.II, book 2) and Entomology (v.II, book 4)
Megarhinus haemorrhoidalis
Adolpho Lutz e a entomologia médica no Brasil
A primeira especulação de Adolpho Lutz sobre o papel dos hematófagos na transmissão de doenças encontra-se nos “Estudos sobre a lepra,” escritos em 1885-1886 e publicados no ano seguinte em Monatshefte für Praktische Dermatologie. A revista editada por Paul Gerson Unna, Oscar Lassar e Hans Hebra (atual Dermatologische Wochenschrift) era a mais importante caixa de ressonância internacional daquela especialidade médica em formação, cujos integrantes lideravam as pesquisas bacteriológicas, histológicas e anatomopatológicas sobre a lepra. Lutz tornou-se uma das maiores autoridades no Brasil nessa doença que investigaria até o fim de sua vida. Morreu convencido de que era transmitida por mosquitos.1
Iniciou os estudos sobre essa e outras patologias ao estabelecer-se em 1882 em Limeira, próspero centro cafeeiro e cerealífero do interior de São Paulo. Três anos depois, viajou a Hamburgo para trabalhar, por cerca de um ano, na clínica fundada por Paul Gerson Unna (1850-1929), e sob sua orientação ocupou-se da morfologia de germes relacionados a várias doenças dermatológicas. Os bacteriologistas esforçavam-se, então, por obter culturas puras do bacilo de Hansen. Lutz tentou fazê-lo, mas não teve sucesso. Tampouco conseguiu transplantá-lo do homem para animais, de maneira a induzir nestes uma doença ‘típica’. Em trabalho publicado em 1886, procurou demonstrar que os ‘esquizomicetos’ da lepra não pertenciam à categoria dos bacilos legítimos. Análise comparativa com o da tuberculose, recém-descoberto por Koch, levou Adolpho Lutz a propor que este bacilo e o de Hansen passassem ao gênero Coccothrix. Sua proposta seria suplantada pela de Karl B. Lehmann e R. O. Neumann que, dez anos depois (1896), incluiriam os agentes da lepra e da tuberculose no gênero Mycobacterium.2
Ao descrever as lesões primárias da lepra nervosa, que poderiam representar “a porta de entrada da infecção,” Lutz considerou “um fato impressionante que a primeira localização … se efetue quase sempre nas partes do corpo que se mantêm descobertas e expostas às picadas de insetos e outros traumatismos” (1887, p.549). Lutz via a lepra com olhos de parasitologista, propondo uma analogia com a ancilostomíase, tema do estudo que publicava em Leipzig, à mesma época. A infecção de cada novo caso exigia a preexistência de outro, num espaço determinado, mas as condições para que isso ocorresse não pareciam condizentes com o contágio pessoa a pessoa. Para explicar a transmissão complexa e peculiar da lepra, admitia, ainda hipoteticamente, que o sangue ou as excreções das mucosas dos doentes, contendo o agente infeccioso, requeressem “maturação” no meio exterior ou “uma inoculação direta vulnerante (por exemplo, por meio de insetos que picam)”.
Centro de Limeira, em meados do século XIX, visto a partir do bairro Boa Vista. Quadro de Hercule Florence (1804-1879), pertencente ao acervo do Museu Histórico e Pedagógico Major José Levy Sobrinho. Imagem gentilmente cedida por Ariadne Francisca Carrera Miguel e Marcio Bernini Junior.
Ao regressar ao Brasil, em meados de 1886, Lutz retomou a clínica, agora na capital paulista, e continuou a publicar, na Alemanha, artigos relacionados não apenas à dermatologia mas também aos helmintos.3 Foi então que saiu em O Brazil-Medico, na Gazeta Médica da Bahia (18871889) e, em seguida, em livro (1888) o trabalho sobre a ancilostomíase. Veiculado originalmente na coleção de lições de clínica médica de Volkmann (Leipzig, 1885), tornou Lutz mais conhecido entre seus pares.4 Em Limeira e, depois, na cidade de São Paulo, estudou, também, os ciclos evolutivos do Ascaris lumbricoides e do Rhabdonema strongyloides. Na série de artigos que publicou no prestigioso Centralblatt für Bakterologie, Parasitenkunde und Infektionskrankheiten, em 1888, a respeito das infestações por nematódeos intestinais no homem – ancilostomíase, oxiuríase, ascaridíase, tricocefalose etc. – revelava total sintonia com as pesquisas desenvolvidas contemporaneamente na Europa. Ressaltava o papel do solo e das fezes na propagação dessas doenças, correlacionava-as com os hábitos de vida e alimentação das populações imigrantes e chamava a atenção de seus pares para a freqüência das infestações nos domicílios e das epidemias familiares (Deane, 1955, p.77-80). Defendeu a disseminação dos exames de fezes para diagnóstico dessas helmintoses, observando que nem nas três universidades de língua alemã em que estudara essa prática era valorizada.5
Em 15 de novembro de 1889, precisamente quando era deposta a monarquia brasileira, Adolpho Lutz desembarcava na capital do reino do Havaí para aplicar a terapêutica de Unna – considerada, então, promissora – em leprosário pouco antes instalado na ilha de Molokai. Menos de um ano depois (setembro de 1890), demitia-se do cargo de Government Physician for the Study and Treatment of Leprosy, juntamente com Amy Marie Gertrude Fowler, enfermeira inglesa com quem se casaria logo em seguida (11.4.1891). Foram levados a essa decisão por uma teia complexa de eventos que incluía as opiniões anticontagionistas externadas por Lutz em artigo sugestivamente intitulado Leprophobia (1892).
Lutz manteve a clínica particular em Honolulu, transferindo-se, no segundo semestre de 1892, para São Francisco, na Califórnia, sem deixar de publicar importantes trabalhos nos dois periódicos alemães já citados. Os biógrafos ressaltam suas investigações sobre a fascíola hepática e os hospedeiros intermediários do verme, que o levaram a estudar, com sua característica minúcia, os moluscos de água doce existentes nas ilhas do Havaí (Deane, 1955, p.79-80). Esse estudo o prepararia para o que muitos consideram sua maior contribuição à zoologia médica: as pesquisas feitas mais tarde sobre o Schistosoma mansoni e os moluscos responsáveis pela propagação da esquistossomose no Brasil (nota prévia em O Brazil-Medico, 1916).
No Havaí situam-se os antecedentes de outra descoberta importante: a verificação de que pequenos crustáceos viviam em plantas armazenadoras de água direcionaria, depois, a atenção de Lutz para o habitat do transmissor da malária silvestre (Benchimol & Sá, 2005).
Como dissemos, em “Estudos sobre lepra” Lutz já enunciava a suspeita de que a transmissão dessa doença envolvesse um sugador de sangue. A hipótese tornou-se mais plausível no Havaí, entre outros motivos porque não fazia muito tempo, nem a lepra nem os mosquitos existiam naquelas ilhas. Os nativos referiam-se à ‘doença chinesa’, supondo Lutz que houvesse aparecido com a chegada daqueles imigrantes e a disseminação das culturas de arroz.
Henry Leloir (1886) parece ter sido um dos primeiros a cogitar na transmissão do ‘vírus’ leproso por mosquitos. Edward Arning, não obstante fosse autor de experiência crucial em favor do contágio da lepra, correlacionara (1891), como Lutz, o aparecimento mais ou menos concomitante da doença e dos mosquitos nas ilhas havaianas. Outra referência era Arthur Mouritz: em 1885, levantara a hipótese de ser inoculável em fissuras da pele e das mucosas externas por picadas de insetos ou por ectoparasitos, como o da sarna (Souza Araújo, 1929, p.65). Halloppeau, Chantemesse, Sommer, Leboeuf, Noc, Scott, Joly, Blanchard e, um pouco mais tarde, os colombianos Juan de Dios Carrasquilla e Guillermo Muñoz Rivas são outros nomes associados à teoria da veiculação da lepra por mosquitos e artrópodes, especialmente acarianos.6
No período em que Adolpho Lutz foi diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo (1893 a 1908) a lepra permaneceu à sombra de outras questões mais candentes para a saúde pública do estado. As controvérsias sobre doenças que grassavam endêmica ou epidemicamente no país – cólera, febre tifóide, disenterias, febre amarela, peste bubônica etc. – revelam a importância que a microbiologia adquiria na saúde pública. Os últimos dez anos do século XIX estão repletos de conflitos envolvendo a identificação e, por conseqüência, a profilaxia e o tratamento de doenças em núcleos urbanos e zonas rurais do Sudeste do Brasil, convulsionados pela imigração estrangeira, mudança de regime político e industrialização, e ainda pelos desdobramentos socioeconômicos da derrocada do escravismo. Entre os bacteriologistas brasileiros, Lutz era, sem dúvida, o quadro mais experiente, com maior número de trabalhos publicados e relações mais densas com a comunidade científica internacional. Os diagnósticos firmados por ele e por alguns profissionais do Rio de Janeiro estavam calçados em provas laboratoriais inacessíveis à maioria dos médicos.
Quando Lutz iniciou sua carreira, em 1880, os micróbios começavam a se tornar os pivôs de candentes discussões sobre o principal problema da saúde pública brasileira: a febre amarela, também denominada tifo amarílico ou icteróide ou, ainda, americano. Na década de 1890, o saneamento do Rio de Janeiro e de outros portos brasileiros tornou-se crucial para cafeicultores, negociantes, financistas e outras categorias sociais da recém-proclamada República. A principal ameaça à salubridade desses portos era a febre amarela, mas as indefinições que pairavam sobre sua etiologia e transmissão travavam as forças interessadas em livrar dela o Rio e outras cidades. A opinião pública já assimilara a noção de que era causada não por ‘miasmas’, mas por um dos micróbios inscritos na agenda do debate científico ou, quem sabe, não descoberto ainda. Contudo, o relativo consenso fundamentado na teoria miasmática a respeito do que fazer para higienizar portos como o Rio de Janeiro dera lugar a candentes controvérsias sobre os elos a romper na cadeia da insalubridade urbana, variando as escolhas conforme os habitats e as peculiaridades de cada germe incriminado (Benchimol, 2003).
Publicada em setembro de 1911, em O Malho, a charge faz referência à transmissão da febre tifóide pela água. Lê-se no original: “A fama da boa água por água abaixo. Foi confirmada a existência do bacilo da febre tifóide na água do reservatório do Pedregulho. A higiene aconselha a que se ferva essa água ou se usem filtros esterilizadores”.
Naqueles anos, crescia o interesse pelos mecanismos de transmissão das doenças com etiologia microbiana demonstrada ou suspeita. A ênfase dada por Pasteur e Lister à ubiqüidade dos germes no ar retrocedeu por efeito de investigações sobre outros veículos ou portadores: de um lado, água, esgotos, alimentos, dejeções do corpo; de outro, cães, gatos, pássaros e insetos. Cogitava-se na transmissão mecânica dos germes apanhados em águas estagnadas, matérias pútridas e dejeções, como faziam as moscas com o bacilo de Eberth (Lutz, 1895, p.12-3). Em menor medida, cogitava-se na disseminação de doenças por animais sugadores de sangue, diretamente, ao picar os humanos, ou por intermédio da água contaminada pelos insetos infectados que morriam nela, como supunha Patrick Manson que ocorresse com o Culex, o transmissor da filária.
Em 1877-1878, o médico inglês desvendara quase todo o ciclo desse verme, concatenando as partes de um enigma que começara a ser decifrado no Brasil, em 1866, quando Otto Wücherer atribuíra a chamada elefantíase-dos-árabes (a dos gregos fora assimilada à lepra) a um nematódeo microscópico (Wuchereria bancrofti) encontrado na urina dos doentes. Como veremos adiante, o trabalho de Manson sobre a filariose abriu caminho para outras descobertas envolvendo artrópodes como hospedeiros intermediários de microrganismos patogênicos para homens e animais. Malária e febre amarela permaneciam como territórios expostos a grandes indefinições, em parte causadas pelo insucesso das tentativas em encontrar qualquer um de seus supostos agentes microbianos, inclusive esporos, fora do corpo humano (Worboys, 1996). O hematozoário de Laveran, que somente no final da década de 1880 suplantou o Bacillus malariae incriminado por Klebs e Tommasi Crudelli, era encontrado no organismo dos doentes, mas não se conseguia cultivá-lo in vitro nem produzir experimentalmente a doença.
A partir de meados da década de 1890, multiplicaram-se na imprensa médica brasileira e estrangeira as informações ou especulações sobre o papel dos insetos na transmissão de doenças. As moscas, sobretudo, passaram a povoar o imaginário das populações urbanas como fonte onipresente de perigo em meio ou em substituição aos impalpáveis miasmas. Em 1898, os médicos afirmavam que elas disseminavam os micróbios do carbúnculo, da oftalmia do Egito, do botão de Biskara, do piã (bouba) e do mormo. Yersin tinha verificado que as moscas encontradas mortas em seu laboratório continham o bacilo da peste e podiam infectar a água de beber. E Joly (1899, 1898) confirmou que as moscas depositavam os bacilos da tuberculose nos alimentos e bebidas, carregando-os consigo mesmo dessecadas.
Como mostramos no Livro 2 do presente volume da Obra Completa de Adolpho Lutz, tais afirmações pousaram na última teoria etiológica da febre amarela, concebida às vésperas da entronização da teoria de Finlay pela saúde pública brasileira. João Batista de Lacerda, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, investigava a vida simbiótica do bolor que classificou como Aspergillus icteroide com o micróbio incriminado por Giuseppe Sanarelli em 1897, o Bacillus icteroide.7 Ao procurar o bolor e o bacilo em casas recém-habitadas por doentes de febre amarela, encontrou-os sempre sobre dejeções de moscas. As habitações do Rio formariam, assim, vasta sementeira de germes. Como eram veiculados também pelas moscas, nessa rede eram apanhados não só os “imundos” cortiços, como as casas “asseadas e aristocráticas” onde se respeitavam as prescrições da higiene (Lacerda, 1900, p.16-30, 44-5; O Brazil-Medico, 8.6.1899, p.212-4).
A impressão que nos dão muitos artigos escritos nessa época é que as partes componentes das teorias de matriz pasteuriana sobre malária, febre amarela e outras doenças eram como que ‘imantadas’ pelo campo de força de uma outra medicina, que logo seria chamada de ‘tropical’. Novos elos vivos eram encaixados nos constructos elaborados sob a égide da bacteriologia, rearrumando-os. Os liames que prendiam solo, água, ar, alimentos, casas e homens nas teias percorridas pelos supostos micróbios patogênicos acolhiam com dificuldade os novos atores. Ligações eram refeitas, novos componentes, adicionados, mas os insetos permaneciam, muitas vezes, estranhos naqueles ninhos. No caso da malária e da febre amarela, a lógica que presidia a investigação de ponta na medicina tropical parecia ser incompatível com as teorias microbianas que caducavam.
Quando Ronald Ross desvendou, em 1898, o ciclo do parasita da malária das aves no mosquito Culex, e Giovanni Grassi, Amico Bignami e Giuseppe Bastinelli revelaram, no ano seguinte, o ciclo do parasita da malária humana em mosquitos do gênero Anopheles, tornou-se inevitável a suposição de que cumprissem idêntico papel na febre amarela, cujo diagnóstico clínico confundia-se com o de algumas das febres agora interpretadas como sinais clínicos das diferentes espécies do Plasmodium.
As experiências realizadas em Cuba, em 1900, pela comissão médica norte-americana chefiada por Walter Reed rapidamente demonstraram a veracidade da hipótese da transmissão da febre amarela por mosquitos, hipótese sustentada desde 1880-1881 pelo médico cubano Carlos Juan Finlay (Delaporte, 1989).
Carlos Juan Finlay (1833-1915).
HOWARD (1930), prancha 49.
Os estudos de Ross, Grassi e colaboradores ocasionaram imediata reorientação da abordagem da febre amarela no Instituto Bacteriológico de São Paulo, o que resultou em graves cisões em sua equipe. Já em 1898, Vital Brazil levantava as primeiras objeções experimentais ao bacilo icteróide, e Adolpho Lutz começava a estudar a distribuição dos Culex e Anopheles no país por força dos estudos que fazia sobre a malária. Em fevereiro de 1900, Arthur Vieira de Mendonça, assistente de Lutz, exonerou-se do Instituto. “O mosquito traz nas suas asas o ridículo para a classe médica,” declarou aos jornais paulistas (Antunes et al., 1992, p.64, 67).
Nesses mesmos anos, instituía-se na Inglaterra um novo tipo de medicina, em sincronia direta com os esforços que Ronald Ross e Patrick Manson faziam para demonstrar a transmissão da malária por mosquitos, e para afirmar sua prioridade sobre a descoberta que era reivindicada, também, pelos italianos. A expressão “medicina tropical” foi empregada pela primeira vez por Patrick Manson em outubro de 1897, numa série de conferências que intitulou “The necessity for special education in tropical medicine” (Lancet, 1897, n.ii, p.842-5). O projeto tornou-se viável quando Ross deixou o anonimato para ser “ovacionado como valoroso sucessor britânico do francês Pasteur e do alemão Koch” (Worboys, 1976, p.85, 90-1; Cook, 1996). Em 1897, publicou no British Medical Journal a primeira demonstração do desenvolvimento do Plasmodium spp. no mosquito. A descoberta do papel do Culex na transmissão da malária das aves (Ross, 1898, p.401-8, 448-52) foi anunciada por Manson na 66a reunião anual da British Medical Association, realizada em Edimburgo, em 1898. No âmbito dessa importante entidade médica foi então inaugurada nova seção dedicada exclusivamente às doenças tropicais.
O projeto de Manson de autonomizar a nova ‘especialidade’ e viabilizar o programa de ensino e pesquisa a ela relacionado – investigação de parasitas e sua transmissão por hospedeiros intermediários – era vantajoso para a política que Joseph Chamberlain, Secretário de Estado para as Colônias, desejava implementar nos domínios ingleses, onde o comércio, a administração e a exploração agropecuária vinham sendo muito prejudicados pela elevada mortalidade e morbidade entre nativos e europeus. Convencido de que a medicina tropical poderia ser uma ciência muito útil para o imperialismo que qualificava de ‘construtivo’, Chamberlain nomeou Manson, em 1897, Medical Officer to the Colonial Service, e deu-lhe o apoio necessário para que levasse a bom termo as complexas negociações que redundariam na inauguração da London School of Tropical Medicine, em 2 de outubro de 1899. Meses antes (junho), começou a funcionar a Liverpool School of Tropical Medicine, de menor porte, regida por um comitê formado por representantes da Universidade de Liverpool e por negociantes e armadores daquela cidade portuária que mantinha estreitas ligações comerciais com o Brasil.
A criação das duas escolas coincide com a exacerbação da disputa entre ingleses e italianos pela prioridade sobre a descoberta do modo de transmissão da malária a humanos. “É indispensável que estejamos na dianteira no lado prático da teoria do mosquito, senão Grassi a desenvolverá” -escreveu Ross a Manson em 14 de junho de 1899 (apud Bynum & Overy, 1998, p.407).
Fachada da Liverpool School of Tropical Medicine (1975). MILLER (1998), p.32.
A disputa envolvia repercussões internas relacionadas aos abalos provocados no campo médico britânico pela constituição da medicina tropical como domínio autônomo, sob a liderança de Ross e Manson. Na 67a reunião anual da British Medical Association, por exemplo, G. Thin, presidente da seção de doenças tropicais, deu mais ênfase às contribuições dos italianos que à de Ross.8
Manson já havia preparado o discípulo para esses dissabores: “Dê duro e preserve o máximo que puder da teoria do mosquito para a velha Inglaterra” (op. cit., p.390). Na mesma carta, informava Ross da adesão de aliado muito importante tanto para assegurar a dianteira no ‘lado prático’ daquela revolucionária teoria como para sedimentar a medicina tropical como novo domínio de pesquisa:
Ronald Ross com inspetores sanitários, membros da brigada de mata-mosquitos, na Índia. MILLER (1998), p.18.
“Sir” Patrick Manson, pai da medicina tropical e mentor de Ronald Ross, em 1907. MILLER (1998), p.13.
Ray Lankester pelo Museu Britânico, reconhecendo a importância do mosquito nos negócios humanos, está instituindo uma investigação sistemática dos Culicidae. Através do Colonial Office, está distribuindo uma circular com instruções para a coleta de mosquitos tendo em vista sua descrição científica pelo dipterologista do Museu, e eu espero que em breve tenhamos melhor conhecimento desses insetos.9
Filho de um renomado médico e sanitarista, Edwin Ray Lankester (1847-1929) herdou o amor do pai pela microscopia. Estudou ciências naturais em Oxford, onde seu talento logo foi reconhecido. Iniciou a carreira como assistente de Thomas Henry Huxley (1825-1895) no Royal College of Science, em Londres. Depois foi professor da cadeira de zoologia no University College de Londres (18741890) e lecionou anatomia comparada em Oxford. Lankester conquistou reputação internacional graças aos trabalhos que realizou em diversas áreas das ciências da vida. Suas investigações em embriologia, morfologia de invertebrados e anatomia comparada de primatas foram importantes para a consolidação das teorias da evolução e seleção natural de Charles Darwin (1809-1882). Publicou importantes trabalhos em antropologia e paleontologia, assim como diversos livros para popularizar a evolução e as ciências naturais.10
O período em que foi diretor do Museu Britânico de História Natural (1898-1906) foi marcado por graves divergências com outras instâncias de poder na instituição. Ao que parece, eram antigos os conflitos entre os pesquisadores ligados às coleções de história natural do Museu e seu chefe administrativo, o chamado Principal Librarian, um dos vinte integrantes do Standing Committee, por sua vez escolhidos entre os quase cinqüenta trustees ou curadores da instituição. Richard Owen, nomeado em 1856 para a função que Lankester viria a exercer, conseguira, após árdua campanha, a construção de novo prédio em South Kensington para abrigar as coleções biológicas. Seu sucessor, William Flower, um especialista em baleias, criou a mostra permanente de espécimes vivos e fósseis para demonstrar as relações (filogenéticas e sincrônicas) entre os seres vinham sendo reveladas pela anatomia comparada e pelos estudos sobre a evolução. Separou, também, os espécimes escolhidos para exibição pública das coleções destinadas ao estudo de especialistas.
Quando Flower renunciou ao cargo, em 11 de junho de 1898, o Standing Committee cogitou em esvaziar a autoridade ou mesmo suprimir o cargo de Director of the Natural History Departments, para que a instituição fosse governada somente em Bloomsbury, pelo Principal Librarian, que era, também, o secretário dos curadores. Na época, exercia a função Sir Edward Maunde Thompson, conhecido paleógrafo e figura dominadora que ambicionava o controle total do museu.
Em 9 de julho de 1898, a Royal Society divulgou no The Times uma petição contrária à manobra com 120 assinaturas. Foi em meio àquela controvérsia que Lankester assumiu, em 1° de outubro, o cargo de diretor dos departamentos de história natural. A guerra com os trustees e com Thompson prosseguiria até ser ele compulsoriamente aposentado em 1906.11
Embora rejeitasse a idéia de que o conhecimento científico devesse ser cultivado somente em virtude de seus benefícios práticos, Lankester não era insensível a esse pragmatismo. Participara da fundação da Marine Biological Association (1884) com a convicção de ser esta uma área da zoologia com aplicações relevantes. Seus esforços em prol da instituição da microbiologia refletiam a mesma preocupação. Foi Lankester quem convenceu o prefeito de Londres a contribuir para a criação do Instituto Pasteur de Paris, iniciando-se, então, um movimento para que a Inglaterra fosse dotada de instituição congênere.12 Em 1894 começou a funcionar, em Londres, o British Institute of Preventive Medicine. O nome foi mudado para Jenner e depois para Lister Institute of Preventive Medicine. Lankester faria parte de seu conselho por muito tempo (Lester, 1995, p.146-7).
No mesmo ano em que assumiu a direção do British Museum (1898), passou a integrar o Tropical Diseases Committee criado pela Royal Society por determinação do Secretário de Estado Joseph Chamberlain. Os trabalhos que publicara anteriormente sobre protozoários tinham sido de grande utilidade para Ross,13 mas Lankester se mostrou a princípio cético em relação às conclusões deste sobre o Proteosoma, o parasita da malária das aves. Juntos visitaram o Instituto Pasteur de Paris onde Laveran, Mesnil e Metchnikoff confirmaram que Ross realmente encontrara o parasita da malária no corpo do mosquito.14
Em carta escrita a Manson, em 14 de junho de 1899, Ross comentou: “Já lhe contei que Ray Lankester finalmente se converteu? Prometeu patrocinar nossa causa junto ao Governo. Queremos você e Lord Lister com ele, como avalizadores da verdade da teoria do mosquito” (apud Bynum & Overy, p.407). Ross preparava-se para partir para Serra Leoa, na primeira expedição ultramarina da escola de Liverpool, com o objetivo de identificar mosquitos transmissores da malária e os meios de exterminá-los. Lankester designara o especialista em dípteros do Museu, E. E. Austen, para participar da expedição: “Ele dará precisão às suas classificações e descrições de mosquitos, e o ajudará de muitas formas” – escreveu Manson em 17.6.1899 (ibidem, p.409).
A descoberta de Ross transformou os dípteros sugadores de sangue em elemento ponderável para os arquitetos do império britânico. Uma vez reconhecido o papel desse grupo de invertebrados na malária, Lankester imediatamente propôs o reconhecimento de todas as espécies no mundo que pudessem estar envolvidas na transmissão daquela e de outras doenças ao homem e aos animais. Grande admirador do trabalho de David Bruce, tendo até mesmo dedicado a ele belas páginas em Kingdom of Man (London, 1907), Lankester patrocinou também o levantamento da mosca tsé-tsé, que o médico britânico reconhecera, em 1895-1896, como transmissora de tripanossomos patogênicos (voltaremos ao assunto adiante). O levantamento resultaria na publicação de A Monograph of the Tsetse Flies – Genus Glossina (London, 1903), de autoria de E. E. Austen.15
A circular distribuída por Chamberlain, em 6 de dezembro de 1898, a agentes e funcionários do império britânico dizia:
Em meu despacho circular de 19 de agosto último, referi-me a uma investigação sobre malária que tencionávamos fazer.
Uma comissão foi agora designada com este propósito e está prestes a partir para a África.
Os comissários prestarão contas, periodicamente, a um comitê formado conjuntamente pela Royal Society e por mim, o qual fará a supervisão geral do inquérito.
Foi sugerido por este comitê que, em vista da possível conexão da malária com mosquitos, seria desejável obter conhecimento exato sobre as diferentes espécies de mosquitos e insetos correlatos nas várias colônias tropicais. Assim, pedir-lhe-ei, se houver meios para este desiderato, que nos faça o obséquio de tomar as medidas necessárias, assim que puder, para que se façam na colônia coleções dos insetos alados que picam homens e animais.
Anexo a esta uma cópia impressa das instruções que foram elaboradas pelo British Museum para uso daqueles que possam vir a ser empregados nesse trabalho, e acrescentaria que devem ser obtidos diversos espécimes de cada tipo de inseto, e que devem ser enviados diretamente ao British Museum (Natural History), Cromwell Road, Londres, S.W., para serem examinados e classificados … Como atribuo grande importância à investigação científica da malária, confio em que o máximo esforço será envidado para levar a cabo da forma mais rápida e completa as instruções contidas no presente despacho. (Theobald, 1901, p.x)
Os primeiros dípteros enviados ao Museu Britânico pela rede de coletores mobilizada com a ajuda do Foreign, do Colonial e do India offices e de outros organismos foram recebidos por A. G. Butler, o responsável pela seção de entomologia do departamento de zoologia, mas a tarefa se revelou por demais complexa para aquele especialista em mariposas e borboletas. No início de 1900 (Howard, 1930), Lankester contratou Frederick Vincent Theobald, do South-Eastern Agricultural College. Este zoólogo havia publicado pequeno trabalho intitulado Account of the British Flies, naquelas circunstâncias credencial boa o bastante para que lhe delegassem a penosa incumbência de inventariar os mosquitos do mundo.
Frederick Vincent Theobald (1868-1930).
HOWARD (1930), prancha 17.
Theobald e a instituição em que trabalhava estavam ligados a outra vertente da entomologia que começara a ganhar grande dinamismo pouco tempo antes, em função de uma problemática ‘econômica’: as pragas agrícolas, que puseram em evidência grupos de insetos diferentes dos que a medicina humana e veterinária trazia agora a primeiro plano. A história daquele ramo da entomologia aplicada, em que sobressairiam os Estados Unidos no começo do século XX, é magistralmente narrada por um de seus mais insignes representantes, Leland Ossian Howard, cuja correspondência com Lutz, quase tão densa quanto a de Theobald, analisaremos em outra parte do presente trabalho.
Apoiando-se na Bibliotheca Entomologica organizada por Hagen, e no Index to Entomological Literature, de Walther Horn e Sigmund Schenkling, Howard (1930, p.208) mostra que o número de trabalhos publicados na Europa antes de 1863 sobre os danos causados por insetos às lavouras, pomares e jardins alcançava elevada cifra: entre 17.300 e 25.229. Excetuando-se o Farms Insects, de John Curtis (1791-1862), entomologista e ilustrador inglês, e o Treatise on Insects Injurious to Gardeners, Foresters and Farmers, de Vincenz Kollar, a maioria daqueles trabalhos tinha, para Howard, pouco valor do ponto científico. Os remédios que sugeriam para as pragas eram irrelevantes e ineficazes. “Não obstante isso, os entomologistas daquele tempo fizeram sua parte no esforço de tornar conhecidos as histórias de vida e os hábitos sazonais dos insetos inimigos de jardins e campos” (Howard, 1930, p.208).
Hermann August Hagen (1817-1893).
HOWARD (1930), prancha 4.
Em meio àquelas publicações “muito elementares,” Howard destaca alguns precursores da entomologia científica de seu próprio tempo. O físico e naturalista francês (1683-1757) René Antoine Ferchault de Réaumur, autor, entre muitas outras obras, de Mémoires pour servir à l'Histoire des Insectes (1734-1742), em doze volumes, poderia ser tomado como o ‘criador’ da entomologia econômica, pois o que mais lhe interessava nos insetos eram suas ‘indústrias’, seu ‘gênio’. Só conhecendo bem aqueles minúsculos engenheiros, os homens poderiam controlá-los e até mesmo usá-los em seu próprio proveito (ibidem).
John Curtis (1791-1862).
HOWARD (1930), prancha 17.
Vincenz Kollar (1797-1860) HOWARD (1930), prancha 22.
Folha de rosto de Bibliotheca Entomologica, obra organizada por Hermann August Hagen e publicada em 1862. Biblioteca Central do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O naturalista francês foi uma referência para os entomólogos britânicos William Spence (1763-1860) e William Kirby (1759-1850), autores de An Introduction to Entomology (4v., 1815-1826; 7.ed., 1856), “obra-prima repleta de sábias considerações a respeito da importância do estudo de insetos sob todos os pontos de vista, especialmente do econômico” (ibidem, p.211).
Spence foi um dos fundadores, em 1833, da Entomological Society of London, cujos membros, em geral homens abastados, reuniam-se para “exibir, identificar, trocar, vender ou comprar insetos que eram às vezes tão caros quanto livros raros,” numa época em que a expansão colonial fazia afluir para Londres e outros centros produtos exóticos de todos os tipos, inclusive conchas que muitos entomologistas também colecionavam.16
A profissionalização da entomologia na Inglaterra e a criação de instituições voltadas para sua instrumentalização em prol da agropecuária foram processos acelerados por um episódio que teve grande impacto no mundo inteiro: a Phylloxera, termo que designa a um só tempo um inseto afídeo (Hemíptera, Sternorhyncha), e a doença que atacava as raízes e folhas da videira (também chamada de doença de Pierce).
“Fancy Portrait. A phylloxera, um verdadeiro gourmet: descobre as melhores videiras e afeiçoa-se aos melhores vinhos”. Imagem extraída do v.99, de 6.9.1890, da revista ilustrada de humor Punch, or The London Charivari. www.gutenberg.org/files/12393/12393-h/12393-h.htm (acesso em 23.03.2006).
Folha de rosto do primeiro tomo da obra de René Antoine Ferchault de Réaumur. Publicado em 1734, foi dedicado às lagartas e borboletas. Exemplar pertencente à Biblioteca Central do Museu Nacional do Rio de Janeiro.
Descrita pela primeira vez por Asa Fitch, nos Estados Unidos, como Pemphigus vitifolii, disseminou-se pela França e Inglaterra na década de 1860, tendo sido descrita neste último país, em 1867, por John Obadiah Westwood (1805-1893),17 como Peritymbia vitisana. No ano seguinte, foi constituída uma comissão francesa para investigar o problema, e um de seus integrantes, Jules Émile Planchon (1823-1888), estabeleceu a relação da doença com o inseto, dando-lhe o nome provisório de Rhizaphis vastatrix. Espécimes foram enviados a Victor Antoine Signoret (1816-1859), em Paris, que classificou o inseto no gênero Philloxera. Charles Valentine Riley (1843-1895), no Missouri (1870), estabeleceu a identidade da forma norte-americana da doença e de seu agente, como Westwood fizera na Inglaterra.
John Obadiah Westwood (1805-1893).
HOWARD (1930), prancha 17.
Originária dos Estados Unidos, da região a oeste das Montanhas Rochosas, a praga disseminou-se rapidamente: em 1878, França e Córsega estavam tomadas. Foram atingidos em seguida Argélia, Portugal, Espanha, Suíça, Itália e Alemanha. Entre 1883 e 1885, foram invadidas as províncias do Danúbio, a Romênia, a Moldávia e a Turquia. Até à Austrália chegou a Phylloxera.
Na França, já enfraquecida e endividada pela guerra franco-prussiana (1870-1871), as devastações do inseto causaram prejuízo estimado em mais de dez bilhões de francos (dois bilhões de dólares, em cifras da época). Mas a recuperação foi rápida, e deveu-se à substituição das velhas videiras européias por novas plantas resultantes de enxertos com raízes americanas que, como se verificou então, tinham resistência natural à doença.18
Em 1885, superada a crise, Charles Whitehead iniciou a publicação de relatórios sobre os insetos daninhos às colheitas britânicas para o Committee of Council for Agriculture, sendo nomeado Agricultural Adviser (1886). Três anos depois foi criado o Board of Agriculture. Outro nome destacado por Howard (1930, p.220-1) na gênese da entomologia econômica inglesa é o de Eleanor A. Ormerod (1828-1901), competente amadora que em 1877 tornou-se Honorary Consulting Entomologist da Royal Agricultural Society. Além de cuidar de sua correspondência, publicou às suas próprias expensas dezessete relatórios anuais que muito contribuíram para a difusão dos conhecimentos relativos a insetos daninhos entre os agricultores ingleses. Em 1892 publicou um importante Manual of Injurious Insects, e seis anos depois, Handbook of Insects Injurious to Orchard and Bush Fruits. Em 1894, o cargo tornou-se função remunerada exercida agora por Cecil Warburton, ligado à Cambridge University.
Eleanor Anne Ormerod (1828-1901).
HOWARD (1930), prancha 17.
À mesma época, a pesquisa entomológica aplicada era acolhida em duas instituições: a Universidade de Birmingham e o Southeastern Agricultural College. Fundado em 29 de novembro de 1894, em Wye, cidade do condado de Kent, este último tornou-se uma escola filiada à Universidade de Londres quatro anos depois.19 Em Birmingham atuaria Walter E. Collinge; em Wye, Frederick Vincent Theobald.
Nascido em Kingston-on-Thames, em 15 de maio de 1868, Theobald ingressou naquela escola agrícola assim que esta abriu as portas. Influenciado pelo trabalho de Eleanor Ormerod, deu início à publicação de uma série de artigos sobre entomologia agrícola no periódico do College, e também preparou uma exposição sobre os insetos daninhos da Inglaterra para o British Museum. De 1900 a 1903, chefiaria a Seção de Zoologia Agrícola da Universidade de Londres. Pesquisador infatigável, Theobald publicou cerca de 65 trabalhos sobre mosquitos entre 1900 e 1914, inclusive a monumental A Monograph of the Mosquitoes of the World (5v., 1901-1910). Com quase 2.500 páginas e muitas litografias, representou o maior esforço realizado até então para o conhecimento sistemático dos Culicidae. Embora muitas de suas categorias taxonômicas tenham sido modificadas posteriormente, a obra monumental de Theobald serviu de base para todos os trabalhos futuros sobre esse grupo de insetos.
Após o lançamento do último volume de sua monografia, em 1910, voltaria à entomologia agrícola, reduzindo significativamente a produção em dipterologia.20
Durante sua gestão como diretor do Museu Britânico, Lankester envidou grandes esforços para explorar o potencial médico e económico da zoologia. Em sua opinião, a botânica tinha avançado muito mais nesse sentido. Em carta ao diretor do Jardim Botânico de Kew, William Turner Thiselton-Dyer (1843-1928), em 16 de março de 1899 (p.147), dizia estar “convencido da necessidade de criar-se aqui um departamento de Zoologia Econômica para trabalhar lado a lado com o departamento de sistemática, e fazer uso das informações que este produz. Isso resultaria na formação de uma esplêndida coleção, e dar-nos-ia também posição mais elevada de utilidade em assuntos de interesse público”.
Ao que parece, o projeto foi implementado: na primeira carta a Adolpho Lutz, em 28 de abril de 1900, Theobald explicaria seu vinculo com o Zoological Department, mas nas cartas subseqüentes começa a aparecer o timbre alusivo à Economic Section. Em 1903, viria a lume, como publicação do Museu, First Report on Economic Zoology, de autoria de Theobald (Lester, 1995, p.147).
Não é exagero dizer que Adolpho Lutz foi um dos mais eficientes e criativos integrantes da rede armada pelos ingleses. No relatório sobre as atividades do Instituto Bacteriológico de São Paulo em 1898, dava ênfase à consolidação da medicina tropical na Inglaterra e também na Alemanha. Lutz saudava a iminente inauguração das escolas de medicina tropical em Liverpool e Londres assim como o lançamento, nessa capital, do Journal of Tropical Medicine. Referia-se à publicação de dois “excelentes” tratados, o de Manson – Tropical diseases (1898) – e o de Botto Scheube (1853-1923), Die Krankheiten der warmen Lander (1898). Robert Koch organizara uma expedição a vários países para investigar a malária, cujo parasito – como vimos em livro anterior desta coleção – vinha sendo estudado tanto por Lutz e sua equipe, em São Paulo, como por Francisco Fajardo, Oswaldo Cruz e alguns outros bacteriologistas do Rio de Janeiro.
Dissemos que desde a década de 1880 Adolpho Lutz estava atento à relação entre mosquitos e doenças, em particular a lepra. Na realidade, interessavam-lhe os artrópodes em contexto mais amplo, à luz de problemáticas zoológicas relativamente independentes daquelas que norteavam a caça aos microrganismos patogênicos. Durante sua estada no Havaí (Benchimol & Sá, 2004b), coletou para zoólogos e museus germânicos. No Brasil, continuou a permutar espécimes e informações com pesquisadores alemães. A correspondência com o médico e amigo Ludwig Pfeiffer (1842-1921), por exemplo, mostra que em 1889 discutiam não só malária, mas também pebrina, mal do sarcosporídio, esporozoários e até mesmo crustáceos braquiópodes.21 Mais conhecido por seus trabalhos em bacteriologia, Pfeiffer manifestou sua satisfação por “encontrar finalmente um colega com os mesmos interesses,” observando que “infelizmente os zoólogos são menos patólogos do que deviam ser, e os médicos entendem menos do que deviam de zoologia”.22 No ano seguinte (1890), o médico alemão publicaria sua obra mais famosa, Die Protozoen als Krankheitserreger (Os protozoários como agentes patogênicos).
Como mostramos no primeiro livro do presente volume da Obra Completa de Adolpho Lutz (Benchimol & Sá, 2005), seus primeiros estudos sobre protozoários foram publicados em 1889 no Centralblatt für Bakterologie, Parasitenkunde und Infektionskrankheiten: tratavam de mixosporídios encontrados na vesícula biliar de batráquios, ordem de animais a que retornaria no fim da vida. Dois anos depois, publicou no mesmo periódico trabalho fundamental sobre a disenteria amebiana (1891, p.241-8).
Depois que assumiu a direção do Instituto Bacteriológico (1893), Lutz passou a examinar o sangue de aves, répteis, anfíbios e outros animais em busca de esporozoários, ou componentes daquele grupo de protozoários então classificados como citozoários, subdivisão dos hemosporídios, reconhecidos como causadores de doenças no homem e em animais. Em 18951896, procurava coccídios, sarcosporídios e mixosporídios em coelhos, sapos, rãs, lepidópteros, cobras, lagartos e peixes. Depois disso, Lutz voltou-se cada vez mais para a malária humana. Em lugares pantanosos do estado de São Paulo com casos da doença, pôs-se a abrir animais para, em seguida, comparar seus hematozoários com o plasmódio, buscando entender o modo como parasitavam os organismos de seus hospedeiros. A problemática de sua transmissão por mosquitos impôs-se a ele somente em 1897. Naquele ano, foi chamado à região onde era construída nova linha ferroviária ligando a capital paulista ao porto de Santos, na serra de Cubatão. Numerosos casos de uma febre que não demorou a identificar como malária vinham acometendo os operários, não obstante o ambiente fosse muito diverso das planícies encharcadas associadas à doença. Ocorriam tanto no alto da Serra, como nas vertentes íngremes, destituídas de pântanos. No acampamento dos trabalhadores da ferrovia, Lutz teve sua atenção despertada por um mosquito que não conhecia.
Logo na primeira noite, que sucedeu a um dia muito quente, surgiram, enquanto estávamos sentados junto a um lampião, numerosos insetos picadores. Incluíam o Simulium pertinax Kollar,23 alguns culicídeos, mais ou menos banais e meus conhecidos, e uma espécie que ainda não vira, caracterizada pelas asas maculadas e pela posição perpendicular esquisita que tomava ao sugar. Apesar da sua delicadeza e tamanho diminuto, deu provas de ser um sugador de sangue voraz … Tive imediatamente a certeza de ter encontrado o mosquito que procurava, muito embora naquela época ainda não fossem conhecidos os característicos dos transmissores da malária. Ao ser descoberto, pouco depois, que estes deveriam ser procurados entre as espécies do gênero Anopheles, vi com satisfação que a nova espécie era, de fato, um Anopheles (Lutz, 1903, in Benchimol & Sá, 2005, p.760-1).
No intervalo entre as primeiras observações, baseadas em “convicção imediata, quase intuitiva” (Gadelha, 1994, p.178), e a publicação de sua descoberta, em 1903, Lutz verificou que os mosquitos da floresta, quase sem exceção, passavam a fase larval na água das bromeliáceas e de outras plantas. Elaborou técnicas inovadoras para a coleta dessas larvas e sua criação em laboratório. Estudou as espécies de bromeliáceas e sua distribuição não apenas na serra de Santos como em outras regiões com ecologia parecida. Interessou-se por todos os grupos de animais que povoavam as águas dessas plantas,24 e estudou o modo de vida dos mosquitos, depois que alcançavam o estágio alado, sem se limitar às espécies bromelícolas.
Para a execução desse programa mobilizou, além do ajudante Getulino G. Pinto, que sempre o acompanhava às excursões a campo, uma rede própria de coletores que, em função de seu interesse crescente pela entomologia, alcançaria diversos rincões do Brasil e vários países estrangeiros. Nessa rede preponderam imigrantes suíços e alemães. Educados em seus países de origem à época em que era hábito muito difundido formar coleções de história natural, ao chegarem à América do Sul tais imigrantes passaram a ver nessa atividade não apenas uma forma de lazer como uma maneira de aumentar a renda familiar, já que as coleções formadas por eles em geral eram vendidas ao Instituto Bacteriológico. No artigo publicado em 1903, Lutz agradecia a colaboração do senhor Aehringsmann e do professor von Wettstein, que lhe tinham fornecido água de bromeliáceas de diversas localidades, contendo larvas de mosquitos. Alberto Loefgren e Gustavo Edwall, da Comissão Geográfica de São Paulo, forneceram-lhe preciosas indicações bibliográficas relacionadas à botânica. João Paulo Schmalz, colecionador amador de Joinville (Santa Catarina), criara grande número de mosquitos para ele, e a correspondência entre ambos começou em 1899. Na primeira carta, de 30.6.1899, Schmalz informava que sua coleção continha principalmente coleópteros e lepidópteros, mas iria coletar dípteros para Lutz. A partir de então, mandaria várias remessas (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, Pasta 216, maço 12).
Nesse ínterim, Lutz foi enredado no empreendimento planetário organizado pelo governo britânico. O primeiro contato foi feito em 24 de março de 1899, por intermédio do Consulado Geral no Rio de Janeiro (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 168, maço 2). Tendo começado o estudo sistemático dos Culicidae em 1898, pôde fazer a primeira remessa ao Museu Britânico já em junho de 1899, através do vice-cônsul britânico na capital brasileira: “achando-me naquele tempo ocupado com estudos análogos … correspondi mandando todos os meus culicídeos, em número de mais de quarenta espécies” (Lutz, 1903, in Benchimol & Sá, 2005, p.563-4). Incluíam mosquitos da floresta e outras espécies que considerava novas. Em 12 de julho, Lankester, o diretor do Museu, acusou o recebimento do mate-rial.25 Em 11 de dezembro de 1900, enviou ao colaborador brasileiro cópia do relatório de Austen sobre sua missão a Serra Leoa como “naturalista adjunto” à expedição de Ross, assim como o relatório preliminar de Theobald sobre as coleções de mosquitos recebidas de várias partes do mundo.26
Segundo esse relatório, publicado em julho de 1900, desde o início de 1899 o Museu recebera do Brasil coleções formadas pelo cónsul do Pará, W. S. Churchill, e por Carlos Moreira, do Museu Nacional. Outros materiais provieram das colónias britânicas, tendo havido escassas remessas do Japão, México e Itália.
A primeira carta de Lutz a Theobald presente no arquivo do Museu Nacional é datada de 2 de abril de 1900 (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 267, maço 2). É uma carta formal. Já se tinham passado nove meses desde que enviara ao British Museum a coleção de culicídeos e outros dípteros sugadores de sangue, mas não ouvira mais falar sobre ela, “não obstante eu houvesse declarado que tinha interesse numa rápida determinação das espécies”.27 Tinham lhe mandado uma monografia sobre culicídios da República Argentina que continha algumas das espécies enviadas por ele.28
Queixava-se Lutz de que havia aumentado consideravelmente sua coleção, e teria podido descrevê-la por sua própria conta se não se sentisse obrigado a aguardar os exames que seriam feitos em Londres. Tal compromisso o impedira de enviar seus espécimes a um “conhecido especialista”, Eugenio Ficalbi (1858-1922), que lhe pedira também uma coleção de Culicidae, e com quem pretendia publicar a descrição de uma nova espécie (já enviara a ele amostras da espécie em questão e uma série de mosquitos da floresta). Por culpa do Museu Britânico, não pudera divulgar em seu relatório anual como diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo a lista das espécies coletadas em função dos estudos que fazia sobre a malária e outras doenças.
Primeira carta de Lutz a Theobald, de 2.4.1900 (a letra é de sua esposa, Amy Fowler Lutz). BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 267, maço 1.
Lutz terminava aquela carta ressentida pedindo que lhe concedessem a liberdade de descrever, ele próprio, o material enviado, com a ajuda de outro entomologista caso Theobald não tivesse tempo para dedicar a isso.
Este respondeu imediatamente: em carta escrita em 28 de abril de 1900 no South-Eastern Agricultural College, explicava: “não sou funcionário do Museu Britânico. Estou apenas cuidando para eles deste trabalho negligenciado”. Theobald admitia que “nada havia sido feito com relação aos mosquitos até eu me dedicar ao assunto há dois meses”. Naquele intervalo, mapeara os Anopheles e boa quantidade de Culex, mas como a coleção do Museu Britânico continha milhares de espécimes, precisaria ainda de seis meses para concluir a tarefa.
Reina a confusão nesse assunto todo, tendo sido o mesmo inseto em muitos casos descrito sob meia dúzia de nomes diferentes simplesmente porque proveio de uma nova localidade. Por exemplo, o Culex taeniatus Wied ocorre quase em toda parte, e em cada país parece ter um novo nome, do que decorre tremenda dificuldade para identificar com base em todas as antigas descrições – na verdade, as de Ficalbi, Skuse e Arribálzaga são as únicas de grande valor. (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 267, maço 2)
Theobald começara o trabalho pelos espécimes enviados por Lutz. Reconhecera já duas espécies novas de Anopheles que denominara A. albipes e A. lutzii; o terceiro espécime era um A. albitarsis Lynch Arribálzaga. Entre os Culices, figuravam Culex bigoti Bellardi e Culex taeniatus Wied. O entomologista inglês criara um gênero novo (Aegritudines) para acomodar um mosquito de rio enviado por Lutz e outras espécies.
Nessa primeira carta é visível seu entusiasmo com o interlocutor brasileiro, a quem pedia espécies novas, já que os curadores do Museu Britânico iam patrocinar uma monografia com pranchas coloridas, e Theobald gostaria que fosse a mais completa possível.
A avidez com que Adolpho Lutz dilatava suas próprias coleções demonstra o quanto se sentia entusiasmado com aquela atividade científica. Em Theobald, encontrara o interlocutor perfeito, inclusive para o plano (nunca realizado) de escrever um tratado sobre as espécies de mosquitos do Brasil. Seus conhecimentos e sua destreza classificatória foram de grande valia para o entomologista inglês, como ficou demonstrado na grande obra que executou sobre os culicídeos do mundo. Em apenas um ano, Theobald finalizou os dois primeiros volumes e um atlas com fotografias e desenhos, que foram publicados pelo trustees do Museu Britânico em 1901. Aí descreveu 289 espécies, das quais 114 eram novas para a ciência. As descrições tiveram por base a coleção de Diptera que era formada no Museu Britânico, e que continha, à época, cerca de cinco mil espécimes de todas as partes do mundo. Os dois volumes de Theobald constituíam o primeiro tratado escrito sobre mosquitos sugadores de sangue. O movimento iniciado pelo governo britânico em 1899 de mobilizar uma rede em suas colónias e outras partes do mundo para a coleta de culicídeos tornou o Museu Britânico um sorvedouro de coleções mais ou menos extensas. Era impossível a análise de todo o material. Em 1903, veio a lume o primeiro volume suplementar (III) da monografia de Theobald, baseado em coleções recebidas desde a finalização dos dois primeiros volumes, coleções que totalizavam 4.200 espécimes. Theobald descrevia agora 88 espécies novas para a ciência. Quatro anos depois (1907), foi publicado o segundo volume suplementar da monografia (IV), com a descrição de 73 espécies novas. Na apresentação desse volume, Ray Lankester informava que desde 1903 o Museu recebera cerca de 12 mil espécimes, e que não fora possível examinar até então mais do que a metade desse número. O quinto volume suplementar só viria a lume em 1910 (Lankester, in Theobald, 1907, p.III-VI).
A correspondência entre Theobald e Lutz, que se prolongaria até fevereiro de 1906, revela o esforço por descrever e comparar uns com outros, e com descrições feitas anteriormente, os diversos espécimes capturados pelo brasileiro e reunidos pelo inglês. Com base na observação e descrição precisa dos caracteres de espécimes adultos – órgãos genitais, tromba, antenas, palpos, occipício, lobos protorácicos, mesonoto, escutelo, pleuras, pernas, unhas, abdome, asas etc. – e com base, também, em comparações com espécies e gêneros já determinados ou em processo de determinação, estabelecem a classificação e, ao mesmo tempo, as sinonímias. As cartas trazem, com freqüência, pequenos desenhos indicando caracteres diferenciais de mosquitos.
Anatomia de um típico Culex. I. Pr., probóscida; an., antenas; p., palpos; e., olhos; oc., occipício; pro., lóbulos protorácicos; mes., mesotórax; sc., escutelo; met., metatórax; 1st abd., primeiro segmento abdominal; abd., abdômen; ovp., lóbulos basais da fêmea; H., halter; fe., fêmur; t., tíbia; mt., metatarso; 1st ts/, primeiro tarsômero; ts., tarsos; u., unhas. II. Escamas alares: a., das veias; b., da franja; vs., escamas medianas; Is., escamas laterais; bs., escamas marginais; fs., escamas da franja. III. Cabeça da fêmea, ampliada: Pr., probóscida; p., palpos; an., antenas; f., lóbulo basal da antena; fr., fronte; oc., occipício; c., clípeo; e., olhos; n., nuca; v., vértice. IV. Genitália masculina: bj., lóbulo basal; cl., clásper. V. Halter (H). THEOBALD (1901), p.6, fig.7
Essa démarche tem como contrapartida o desenvolvimento de técnicas para coletar, observar e replicar os insetos em laboratório e para intercambiar aqueles fragilíssimos materiais biológicos a longas distâncias. Ocorriam constantes acidentes nesse percurso, e muitas vezes era necessário trabalhar com insetos desmembrados ou desfigurados. Nesses casos, descrições prévias eram de grande valia.
Em virtude de acidente ocorrido com uma das primeiras remessas, a partir de 23 de setembro de 1900, Lutz passa a agasalhar seus espécimes em pequenas cápsulas de gelatina para que Theobald os montasse depois como preferisse.
Julgo que este modo de embalar mostrar-se-á prático uma vez que nada poderá se perder ou confundir mesmo que algumas partes venham a se desprender – o que eu acho só ocorrerá se foram tratados de forma muito rude. São facilmente seccionados com uma tesoura pequena e afiada e embora possa ser um trabalho um pouco maçante — creio que os insetos poderão ser retirados com segurança. Dentro do papel em que cada espécie foi embalada você encontrará minha definição da espécie. (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 267, maço 1)
Aqueles dípteros eram coletados, em última instância, em virtude de sua eventual significação médica. Por isso, era importante reconhecer seus ciclos de vida e hábitos, especialmente a relação de proximidade com as populações humanas e a atração por seu sangue. Dizemos ‘em última instância’ porque Lutz e Theobald são movidos por uma ‘paixão’ que extrapola o sentido utilitário da pesquisa.
Uma leitura ingênua da relação entre ambos nos levaria a supor que era de mão única, e de cunho tão desigual quanto as relações econômicas entre Grã-Bretanha e Brasil: ‘matérias-primas’ exportadas por Lutz seriam convertidas em conhecimentos ‘manufaturados’ pelo entomologista inglês.
De fato, Theobald tem, a princípio, a supremacia na relação: pelo lugar que ocupa, pelas facilidades de trabalho e, sobretudo, pelo acesso à literatura especializada e a materiais recolhidos no mundo inteiro. Lutz conta com a ajuda de coletores locais, e com vantagem muito importante: poder observar os insetos em seu ambiente natural e poder manipulá-los vivos. A relação especialista–coletor proposta originalmente pelo lado britânico logo é modificada. O próprio Lutz descreve e classifica seus materiais e começa a estabelecer com Theobald um diálogo entre iguais. Este muitas vezes reclassifica espécies que chegam já descritas e nomeadas pelo interlocutor brasileiro, mas muitas vezes, também, acata as novas categorias estabelecidas por ele, e incorpora os nomes genéricos que propõe. Constantemente, responde a perguntas de Lutz, já que tem visão geograficamente mais abrangente do problema, o que lhe dá posição privilegiada para aquele trabalho de natureza essencialmente sistemática, isto é, comparativa. Mas Lutz detém ‘peças’ que faltam ao vasto quebra-cabeça montado por Theobald e pode determinar suas espécies com base num conjunto mais rico de fenómenos: se lhe faltam livros e coleções para a análise morfológica comparativa dos caracteres de machos e fêmeas adultos, Lutz tem a possibilidade de confrontar cores, padrões de movimento, habitats, características das larvas e de suas transformações até as formas adultas e até mesmo as relações predatórias ou de convivência entre espécies.
Formas diferenciadas de pouso de exemplares dos gêneros Anopheles (1 e 3 – A. rossii) e Culex (2 – C. fatigans). THEOBALD (1901), p.59, fig.22.
A classificação adotada por Theobald para separar os gêneros baseava-se principalmente na estrutura e coloração das escamas da cabeça, tórax, abdome e asas dos insetos, e não no tamanho do palpo, caráter usado por aqueles que haviam trabalhado com essa família anteriormente. O perfeito acondicionamento para o envio dos espécimes era fundamental para a análise daqueles caracteres. Na apresentação do primeiro volume de sua monografia (p.vi) Theobald assinalava:
Na investigação das numerosas espécies enviadas, meu trabalho foi consideravelmente prejudicado pela ausência de espécimes conservados em álcool … É muito difícil fazer preparações das unhas, cabeça etc. a partir de insetos secos, e aqueles conservados em álcool são da maior importância no tocante a certas diferenciações específicas. A melhor maneira de despachar os espécimes é em tubos, em quarenta por cento de álcool, tendo grande cuidado para que os números correspondam aos dos insetos montados. O mesmo se aplica às larvas e pupas, das quais quase nenhuma foi recebida do exterior.
Nos papéis que envolviam cada espécime, Adolpho Lutz anotava sua descrição, e tanto aí como em “notas adicionais,” fazia observações mais ou menos extensas sobre os hábitos das imagos e larvas dos exemplares adultos que enviava a Theobald. Aqueles montados tinham um número no verso do rótulo. Muitos provinham de larvas coletadas por Lutz em determinados lugares. Ele dava então informações sobre a localização geográfica desses pântanos, poças, rios, plantas ou recipientes, associados ou não à presença humana; descrevia e comparava ninfas e larvas, analisava o ‘canibalismo’ de algumas, como as de Psorophora ciliata, que tinham “todos os hábitos de animais carnívoros atacando larvas até do mesmo tamanho e escondendo-se enquanto predam outras;” registrava se os mosquitos coletados (ou criados em laboratório) picavam humanos, cães, aves, répteis e outros animais; se o faziam de dia, no crepúsculo ou à noite; se era dolorosa ou imperceptível a picada, e se sugavam sangue, dando ênfase, nesse caso, à relação de proximidade ou afastamento das habitações humanas. Até mesmo a acidez da saliva é usada, em certos casos, como elemento de distinção.
Lutz começa a produzir seus próprios táxons com a ajuda de bibliografia a princípio escassa. Nas primeiras cartas, citava especialmente Christian Rudolph Wilhelm Wiedemann (1770-1840), que escreveu Aussereuropäische zweiflügelige Insekten,29 Eugenio Ficalbi (1858-1922), autor de “Revisione delle Specie Europei della Famiglia delle Zanzare” (Bull. Soc. Ent. Ital., 1896) e George Michael James Giles (1853-1916), médico do Indian Medical Service, que publicou em 1899 uma descrição das espécies usadas por Ross em suas investigações sobre a malária e, no ano seguinte, importante manual intitulado A handbook of the Gnats or Mosquitoes giving the Anatomy and Life History of the Culicidae (London, 1900).
Disposição das nervuras na asa de um exemplar do gênero Culex. C., veia costal; S.C., subcostal; 1a [lth] à 6a [6th], primeira à sexta veias longitudinais, a, a’ e a’,” engrossamentos (a’ é chamada por Austen de 6a. veia, a” de 8a.); y, veia transversal supranumerária; z, veia transversal mediana; p, veia transversal posterior; A, célula costa; B, célula subcostal; C, célula marginal; D, primeira célula submarginal; E, segunda célula submarginal; F, primeira célula posterior; G, segunda célula posterior; J, terceira célula posterior; K, célula anal; H, primeira célula basal; I, segunda célula basal; L, auxiliar; M, célula espúria. THEOBALD (1901), p.18, fig.13.
Um dos primeiros autores a compilar os dados até então conhecidos sobre mosquitos, Giles ressaltava a necessidade de se ter em mãos um levantamento do que se conhecia até então sobre esses dípteros, para que se pudessem identificar corretamente as espécies coletadas, principalmente aqueles coletores que viajavam para lugares distantes das capitais providas de museus. Temendo os problemas que teria ao regressar à Índia, decidira compilar os dados existentes e fazer ele mesmo, quando possível, dissecações para desfazer inconsistências ou contradições observadas em diferentes autores. Giles examinou as coleções do Museu Britânico e do Museu de História Natural de Paris. Na descrição dos dípteros europeus, baseou-se em Ficalbi. Para a Austrália, usou o trabalho de Skuse; e para a Argentina, Lynch Arribálzaga. Giles usou também Theobald, ao se referir aos dípteros britânicos, além de clássicos como Robineau-Desvoidy, Fabricius, Macquart, Meigen e Wiedmann. Com edição esgotada já no primeiro ano, Giles publicaria em 1902 uma edição revisada e aumentada de seu livro. Aí fez amplo uso da monografia de Theobald que viera a lume no ano anterior. Este, por sua vez, no volume publicado em 1905 (p.2), ressaltava a importância do trabalho do compatriota, entre outros motivos porque mostrara o estado caótico em que se achavam os Culicidae no começo daquele século.30
René Antoine Ferchault de Réaumur (1683-1757), Johann Christian Fabricius (1745-1808) e Johann Wilhelm Meigen (1764-1845), autores clássicos da entomologia. HOWARD (1930), prancha 15.
Na descrição das asas, Theobald e Lutz adotaram a terminologia usada por Skuse em sua Monograph of the Culicidae of New South Wales, “que é de longe a mais simples, e serve perfeitamente aos propósitos da identificação” (Theobald, 1901, p.vi).
Mencionamos Eugenio Ficalbi como fonte importante para Lutz. Nascido na cidade portuária de Piombino, em Livorno, Itália, a 10 de março de 1858, formou-se em medicina pela Universidade de Siena (1883) e em ciências naturais pelo Instituto de Estudos Superiores de Florença (1889). De 1883 a 1888, trabalhou como assistente de Sebastiano Richiardi (18341904) na cátedra de zoologia e anatomia comparada da Universidade de Pisa. Por um curto período foi médico de bordo, depois ocupou o cargo de professor de ciências naturais pelo Liceo-Ginnasio de Siena; em seguida, lecionou zoologia, anatomia e fisiologia comparada nas universidades de Sassari (1889), Cagliari (1890), Messina (1895) e Pádua (1900). Em 1905, substituiu Richiardi na direção do Instituto de Anatomia Comparada e Zoologia da Universidade de Pisa.
Além de se dedicar aos estudos anatômicos de aves, serpentes, símios e anfíbios, Ficalbi investigou os dípteros nematóceros, em particular a família Culicidae – em seu tempo, poucos ocupavam-se desses insetos na Itália. Sua primeira contribuição foi Notizie preventive sulle zanzare italiane, trabalho em oito partes publicado no Bollettino della Società entomologica italiana entre 1889 e 1896. Em 1896, veio a lume Revisione sistematica della famiglia delle Culicidae europee (Firenze: Ricci, 300p.), investigação que exigiu grande acuidade classificatória, dada a considerável quantidade de repetições, sinonímias e confusões entre espécies presentes na literatura. O trabalho traz o inventário completo das espécies até então descritas e do estado da arte dos conhecimentos científicos sobre o assunto. Retornou ao grupo em “Venti specie di zanzare Culicidae italiane” (Boll. Soc. entom. ital., n.31, 1899, p.46-234), obra que completou seu esforço de classificação e descrição das espécies italianas.
Os estudos de Ficalbi foram fundamentais para Giovanni Battista Grassi (1854-1925) identificar o mosquito transmissor da malária. A monografia sobre os culicídeos europeus forneceu a Grassi o arranjo sistemático no qual se baseou para distinguir, entre as várias espécies do grupo, aquelas responsáveis pela veiculação do plasmódio ao homem.31
Referência também muito importante para Adolpho Lutz e Frederick Vincent Theobald é Félix Lynch Arribálzaga. Nascido em Buenos Aires em 3 de abril de 1854, foi um dos precursores da zoologia argentina juntamente com seu irmão Enrique, dois anos mais novo. Até os 14 anos, Félix foi educado por um professor alemão e viveu numa propriedade rural da família no distrito de Baradero, província de Buenos Aires, onde realizou suas primeiras excursões para coletar material zoológico. Aos 15 anos, mudou-se com a família para a capital argentina. Com a morte do pai, em 1872, empregou-se no Banco de la Província e iniciou o curso de engenharia, que teve de interromper em virtude da guerra civil de setembro de 1874. Chegou a viver alguns meses no Paraguai.
Nessa época, em parceria com Enrique, deu início a uma coleção entomológica e conheceu os escritos de Buffon, Cuvier, Latreille, Blanchard, Girard e Lacordaire. Em 1877, Félix Lynch Arribálzaga assumiu a administração da fazenda em Baradero e passou a se ocupar dos mutilídeos. O artigo que escreveu a esse respeito – primeira publicação em entomologia assinada por um argentino – foi submetido à Academia Argentina de Ciencias y Letras, da qual se tornou membro em 1878. Naquele mesmo ano publicou vários trabalhos em dipterologia em El naturalista argentino, primeira revista de ciências naturais do país, fundada por seu irmão Enrique com Eduardo Ladislao Holmberg (1852-1937). No primeiro artigo, descreveu três novas espécies de culicídeos encontrados em Buenos Aires; nos seguintes, estudou o gênero Anthrax e outros bombiliídeos de Baradero, bem como as famílias Empididae e Bibionidae, bem representadas na região. Dedicou-se, em seguida, aos coleópteros e himenópteros. Em 1890, voltou aos dípteros com dois textos sobre a família Mycetophilidae. No ano seguinte, publicou na Revista del Museo de la Plata “Dipterologia Argentina,” artigo que seria muito utilizado por Adolpho Lutz. Também estudou as famílias Syrphidae (1891-1892) e Chironomidae (1892). Sua última publicação sobre dípteros foi uma monografia sobre o gênero Sapromyza encontrado na América (1893). Lynch Arribálzaga faleceu em 10 de abril de 1894, aos 40 anos de idade. Pouco antes, doou sua coleção entomológica para o Museu Nacional de História Natural de Buenos Aires (Papavero, 1973, p.335-7).
Seu irmão, Enrique Lynch Arribálzaga, realizou seus primeiros estudos entomológicos em Resistencia (Chaco). Sua obra mais importante foi “Asilides argentinos,” publicada entre 1879 e 1883 nos Anales de la Sociedad Científica Argentina. Publicou também algumas notas sobre as famílias Calliphoridae (1879) e Muscidae (1880), além de um catálogo sobre a fauna de dípteros do Rio da Prata (1882). Foi membro da Academia Nacional de Ciências de Córdoba e da Academia Nacional de Ciencias Exactas, Físicas y Naturales de Buenos Aires; sócio honorário da Sociedad Entomológica Argentina; membro correspondente do Museo de la Plata e colaborador do Museo de Ciências Naturales de Buenos Aires. Faleceu em Resistencia a 22 de junho de 1935 (Papavero, 1973, p.337-9).
Em extensa carta a Theobald, datada de 18 de agosto de 1900, Lutz pedia mais literatura sobre Diptera, inclusive o livro que o entomologista inglês publicara em 1892 sobre o assunto – An account of the British Flies (Diptera). Impaciente, escreveu: “Tendo recebido alguma literatura a esse respeito, senti-me capaz de determinar as espécies em meu poder, e de descobrir o que provavelmente é novo”. Sua lista era encabeçada por Megarhina, de que não possuía espécimes: vira uma no Rio de Janeiro, mas não conseguira capturá-la. Lutz tratava em seguida de Anopheles. Encontrara as três espécies conhecidas em moradias humanas somente quando ficavam próximas a seus habitats. Julgava Lutz que o albitarsis era morfologicamente idêntico ao argyritarsis Rob. Desv. Criara este último a partir de seus ovos, e agora apresentava a Theobald interessantes dados sobre tempo de desenvolvimento até começar a sugar sangue.
Folha de rosto do trabalho publicado por Frederick Vincent Theobald em 1892. Biblioteca Central do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Criara também o Aedes squamipennis a partir de larvas coletadas à beira de um rio próximo a São Paulo.
Três espécies de Uranotaenia – duas já descritas por Lynch Arribálzaga, e uma espécie nova – sugavam sangue e viviam em regiões pantanosas. “São todas excepcionalmente bonitas” – comentou Lutz, antes de analisar as semelhanças e diferenças em relação aos Anopheles e Culex. Detinha-se na descrição das grandes larvas de Psorophora ciliata, que predavam outras larvas de Culicidae, e comentava os hábitos de duas espécies de mosquitos ribeirinhos que enviara a Theobald: Taeniorhynchus taeniorhynchus e T. fasciolatus.
Discorria em seguida sobre os Culex. Lutz encontrara o C. taeniatus habitualmente em casas situadas no litoral e em lugares mais quentes do interior (exceto São Paulo), e também na floresta, junto com o Ochlerotatus fasciatus, o Janthinosoma discrucians e outra espécie desse grupo, que considerava idêntica ao Culex posticatus Wied., do México.
“Nosso mosquito diurno” – registrava Lutz – “é um Heteronycha F. L. Arr. e eu suponho que seja idêntico ao C. aestuans … É o mosquito comum nas casas que pica somente no escuro e somente muito tempo depois da eclosão”. Lutz denominava humilis outro tipo de Heteronycha - menor, não muito comum e limitado a regiões pantanosas. Descrevia as características morfológicas das duas espécies criadas a partir de larvas, nenhuma das quais correspondia à [Heteronycha] dolosa, supondo Lutz que esta fosse idêntica ao aestuans, nome que deveria prevalecer. “O que pensa você disso” – perguntava a Theobald, para em seguida pedir “alguns espécimes e também de Culex flavipes, que não consegui encontrar aqui”.
Outra espécie descrita por Lutz era o Culex bigoti, encontrado em centros urbanos e no oco de um tronco, em meio a larvas de Heteronycha, das quais pareciam viver. Chamava atenção para as semelhanças destas com as de Psorophora ciliata, que já vira sugando sangue de uma cegonha, à noite.
Para Lutz, outros Culex que supostamente existiriam no Brasil seriam formas mal preservadas de C. bigoti. Estava seguro disso em relação ao C. fulvus e C. costalis, e supunha que o mesmo raciocínio se aplicasse ao C. toxorhynchus e C. taeniatus.
“De longe, o maior número de espécimes recebidos foram aqueles encontrados no interior e ao redor das habitações humanas” – escreveria Theobald na apresentação do primeiro volume de sua monografia (p.vii):
Provavelmente ainda há grande número de espécies a serem encontradas no interior de matas e florestas, espécies puramente silvestres, especialmente entre as Megarhinas, Sabethes e Wyeomyias, e provavelmente vários novos gêneros serão descobertos quando forem exploradas tais localidades … Embora estas espécies silvestres não tenham tão grande importância econômica, possuem no entanto interesse e valor científico, e esperamos que os coletores tirem proveito das oportunidades de obter Culicidae em ilhas distantes e partes desabitadas de vários continentes.
Como vimos, estava em curso a investigação de Adolpho Lutz que resultaria na publicação, em 1903, de “Waldmosquito und Waldmalaria” (Mosquitos da floresta e malária silvestre), no CentralBlatt für Bakteriologie, Parasitenkunde und Infektionskrankheiten (v.33, n4, p.282-92). Não surpreende, portanto, a ênfase que dava à captura e descrição de mosquitos que viviam nos ambientes onde grassava aquela modalidade da doença, e que dependiam de plantas armazenadoras de água. Na carta de 18 de agosto de 1900, comentava a inclusão dos mosquitos da floresta enviados a Theobald no gênero Aegritudines. Em meio à fauna existente em bromélias – “que parece ser quase o único lugar de reprodução para algumas espécies e ocasional para outras” – encontrara dois outros mosquitos parecidos com o Culex por seus caracteres, e com o Janthinosoma pela cor. Referia-se ainda a um espécime que parecia corresponder ao Sabethes remipes (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 267, maço 1).
Nos meses seguintes, enviaria muitas outras “formas” da floresta, “a maioria provavelmente não descrita,” coletadas tanto em zonas de altitude como nas matas próximas a rios ou à costa, onde as bromélias eram abundantes. Esses mosquitos – escrevia em 23 de setembro de 1900 – “têm o hábito peculiar de por assim dizer estacionarem no ar … parecendo muito com aranhas. (Atacam homens e cães durante o dia)”.
Dentre as espécies descritas por Lutz sobressai aquela reconhecida ainda hoje como o vetor primário da chamada ‘malária das bromélias’, que ocorre no litoral do estado de São Paulo, em caráter epidêmico, e, de forma endêmica, de São Paulo ao Rio Grande do Sul. Além de transmitir paludismo ao homem, esse mosquito que Theobald batizou de Anopheles lutzii (atual A. cruzii) é o único vetor natural conhecido de malária simiana nas Américas (Consoli & Oliveira, 1994). Segundo Adolpho Lutz, sua larva
via de regra desenvolve-se em bromélias, como suspeitava há muito tempo, uma vez que a imago é encontrada em matas em encostas íngremes de montanha onde não se encontra nenhuma outra [coleção] de água. A larva e a ninfa têm a cor vermelho-tijolo. A imago pica homens e cães com avidez ao entardecer – estando o clima quente – e penetra nas moradias e barracões erguidos nas matas, sendo responsável por várias epidemias de febre intermitente entre trabalhadores engajados na construção de ferrovias. À sombra, pode picar também de dia.32
Na mesma carta, Lutz descrevia o principal transmissor do impaludismo das regiões pantanosas, o Anopheles albitarsis:
reproduz-se principalmente em pocinhas originárias da inundação de certos rios; a larva, em geral encontrada em lugares rasos, é marrom ou esverdeada, quando jovem anegrada com faixa dorsal clara. A imago pode picar menos de 24 horas após a eclosão e se estabelece como mosquito domiciliar em regiões pantanosas … Varia bastante de acordo com a idade e outras circunstâncias. Encontrei-o em mais de uma dúzia de lugares próximos a São Paulo, Santos e Rio. Pica ao entardecer e à noite, às vezes também durante o dia causando considerável reação (ao menos em meu caso).
Como dissemos, a primeira carta de Theobald a Lutz tinha a data de 28 de abril. Decorreram quatro meses até a segunda, escrita em 25 de agosto de 1900. O entomologista inglês esperava terminar em novembro do mesmo ano o primeiro volume de sua monografia, que já compreendia 150 espécies descritas em detalhes, com pranchas coloridas. Qualquer espécie nomeada por Lutz seria bem-recebida e poderia ainda ser incorporada ao livro. “Sim, seu mosquito gigante é Culex bigoti” – acrescentava Theobald. “Tomo nota do nome genérico que sugere e uso-o, dando-lhe o crédito” (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 267, maço 2).
Discorria em seguida sobre os gêneros Panoplites, Aedeomyia e Wyeomyia nos quais enquadrara espécies enviadas pelo brasileiro. O segundo abrigou espécies bem diferentes do Aedes, gênero cuja descrição, feita por Lynch Arribálzaga, não se sustentava na opinião de Theobald. Tratava também do uso de taeniorhynchus como nome específico para a espécie J. taeniorhynchus de Arribálzaga (= Panoplites brasiliensis de Theobald), já que Wiedmann empregara-o para o Culex taeniorhynchus (= C. perturbans de Walker e não o C. solicitans).
Theobald não possuía nenhum exemplar de Urotaeniae e pedia a Lutz que emprestasse alguns a tempo de serem descritos para o livro. “Gostaria de ver seu O. fasciatus e C. flavipes. Não deparei ainda com eles, por isso devo dar a descrição de Arribálzaga a menos que você possa enviar-me espécimes imediatamente”.
Em 23 de setembro de 1900, Lutz redargüiu que tampouco encontrara o Culex flavipes, “embora deva existir aqui também, a menos que seja importado do exterior”. Perguntava ao entomologista britânico se Enrique Lynch Arribálzaga, irmão de Felix, estava vivo. Queria corresponder-se com ele para obter informações sobre aquele mosquito: “A princípio considerei Culex aestuans idêntico, mas depois verifiquei que se tratava de uma Heteronycha”.
O incremento do diálogo com Theobald levou Adolpho Lutz à decisão de mandar-lhe o restante do material concernente aos Culicidae que coletara nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, “de modo a assegurar uma descrição e classificação homogêneas”. No total, 24 a 25 espécies, das quais sete seriam novas, e algumas outras existentes apenas em “uma ou duas coleções talvez inacessíveis”. A maioria dos espécimes enviados eram duplicatas, mas alguns eram únicos. Lutz ia deixá-los com Theobald pelo tempo necessário, ou “para sempre se – como espero – consiga substituí-los durante o verão, conhecendo agora os hábitos da imago e das larvas; ainda assim, talvez venha a pedir de volta um ou outro dos que lhe mandei”.33
Em troca, pedia a Theobald que lhe enviasse, o quanto antes, tudo o que publicasse a respeito dos Culicidae, até mesmo, se possível, as provas das figuras e pranchas que sairiam em sua monografia. Queria apresentar no relatório do Instituto Bacteriológico uma lista e curta descrição dos culicídeos da região, com ilustrações. Propôs ao entomologista britânico até mesmo que lhe enviasse duzentas a quatrocentas cópias das pranchas e desenhos de espécies brasileiras e daquelas da América do Sul e Central que seriam provavelmente encontradas no Brasil. Com esse material, tencionava fazer uma edição em português, em pequena escala, não destinada à venda, mas sim com o objetivo de “despertar o interesse e ajudar a completar o estudo desse grupo”.
Ciclo de vida do Culex I. Larva (madura; grandemente ampliada). II. Pupa: d, sifão respiratório ampliado; b, barbatana caudal ampliada. III. Ova do Culex: c, óvulo ainda mais ampliado. THEOBALD (1901), p.26, fig 15.
Larva e pupa de Corethra (grandemente ampliadas). a, larva; a1 vista lateral da cabeça, ampliada; c e c1, “flutuadores;” d, cauda; d1, vista lateral, ampliada; a2, raio ainda mais ampliada da mesma; b, pupa; b1, aleta caudal; b2, tubos aéreos. THEOBALD (1901), p.35, fig 18.
Iniciava-se, então, a idade de ouro da entomologia médica, com intenso intercâmbio entre campos disciplinares diversos, que só arrefeceria em meados do século XX, algum tempo depois da morte de Lutz (6.10.1940). Se na conjuntura anterior, de decolagem da revolução pasteuriana, o antraz e, em seguida, o cólera e a febre tifóide serviram de modelos aos caçadores de micróbios, agora médicos dedicados à clínica e à bacteriologia, zoólogos que haviam estudado outros grupos de animais, veterinários, botânicos e até mesmo leigos fascinados pelo estudo da natureza reconfiguravam a rede de atores que iria colaborar ou competir na busca de transmissores alados de doenças assemelhadas à malária e à febre amarela.
O estudo dos mosquitos capazes de transmitir doenças vinha sendo feito principalmente por médicos que adquiriam na prática, às pressas e nem sempre de maneira adequada, as competências necessárias para lidar com a biologia e a sistemática desses insetos. Um dos grandes problemas que enfrentavam era a falta de conhecimentos específicos sobre esse grupo de animais. Segundo Grove (1990), quando Manson pediu ao Museu Britânico (História Natural) bibliografia sobre a sistemática do grupo, na década de 1880, a coisa mais próxima que puderam lhe fornecer foi um tratado sobre baratas.
À semelhança da fase mais prolífica e caótica da caça aos micróbios patogênicos, nas décadas de 1880 e 1890, a avidez com que se passou a buscar possíveis transmissores alados de doenças, nesta última década e na seguinte, alavancou o conhecimento dos culicídeos mas, ao mesmo tempo, criou enormes confusões no tocante à identificação e ao batismo de espécies sinônimas.
Durante todo o século XIX, haviam sido descritas apenas 42 espécies no âmbito da família dos Culicidae estabelecida por Johann C. Fabricius em sua Entomologica systematica (1794). Somente na primeira década do século XX foram mais de duzentas espécies novas (Lane, 1953), a maioria por Theobald, Lutz e o norte-americano Daniel William Coquillett, ao qual logo retornaremos. Outros entomólogos produziram monografias concernentes à fauna de determinados países ou territórios. O zoólogo suíço Emílio Goeldi (1859-1917), diretor do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, em Belém, outro participante daquela rede científica internacional a que Lutz estava vinculado, escreveu vários trabalhos sobre os mosquitos amazônicos, especialmente Os mosquitos no Pará, em 1905 (Sanjad, 2003, p.85-111). Robert Newstead e Harold Howard Shearme Wolferstan Thomas também estudaram The mosquitoes of the Amazon Region (1910). Cabe referir, ainda, as monografias de E. Porter Felt (Mosquitoes or Culicidae of New York State, 1904), Brèthes (Insectos de Tucumán, 1905), Graham (Notes on some Jamaica Culicidae, 1905), Autrán (Los mosquitos argentinos, 1907) e Aitken (Notes on the mosquitoes of British Guiana, 1908).
Emílio Augusto Goeldi (1859-1917). HOWARD (1930), prancha 51.
Houve, assim, um salto considerável nos conhecimentos acumulados por esses e outros pioneiros da entomologia médica, mas com grande confusão taxonômica, em virtude da sinonímia criada a partir de descrições que se baseavam, muitas vezes, em caracteres que depois seriam considerados como de valor secundário. “Reinava quase que anarquia nos conceitos genéricos e supragenéricos” – escreveria, em 1955, o entomólogo John Lane (1955, p.35) – “a estabilidade taxonômica dos Culicídeos só foi conseguida muito mais tarde”.34
Stegomyia fasciata Fabricius. THEOBALD (1901), prancha 13, figura 49.
As primeiras observações sistemáticas de Adolpho Lutz foram publicadas somente em 1901, e como anexo a um artigo de Emílio Ribas, diretor do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo – “O mosquito como agente da propagação da febre amarela”. A nota de Lutz dizia respeito a duas espécies habitualmente encontradas em domicílios, Culex taeniatus e Culex fasciatus, incorporados por Theobald, em fins daquele ano, ao gênero Stegomyia, como Stegomyia fasciata.35Não obstante se afirmasse ser ele o único transmissor da febre amarela, em 1903 sustentava Lutz que mosquitos silvestres também poderiam transmitir o germe ainda desconhecido da doença, hipótese que Fred Soper (1933) e sua equipe, da Fundação Rocke-feller, confirmariam, no Brasil, em 1932.36
Ao publicar “Waldomosquitos und Waldmalaria” (1903), Adolpho Lutz já se tornara o pólo de aglutinação no país dos médicos, biólogos e leigos que se voltavam para aquele campo emergente de pesquisa.
Os biógrafos dão muita ênfase a uma tese de doutoramento que ele orientou, tese pioneira na história da entomologia médica brasileira. Seu autor, Celestino Bourroul, nasceu na cidade de São Paulo em 13 de novembro de 1880 – ano em que Lutz regressava ao Brasil com o diploma de médico obtido na Suíça. Bourroul fez os estudos elementares e secundários na capital paulista e em Itu (SP). Decidido a seguir os passos do pai, o médico Paulo Bourroul, ingressou, no começo de 1899, na Faculdade de Salvador, uma vez que não havia ainda escola médica em seu estado. A faculdade do Rio de Janeiro era mais conceituada academicamente, mas muitos filhos da elite paulista evitavam-na em virtude dos mortíferos surtos de febre amarela e varíola que assolavam a capital brasileira.
Foi certamente a leitura do trabalho de Lutz que levou o talentoso estudante de medicina a enveredar pela pesquisa entomológica: na ilha de Itaparica, iniciou a coleta e criação de mosquitos que tinham por habitat as águas armazenadas em bromeliáceas. Descreveu sete espécies, uma delas descoberta por ele: católico devoto, Bourroul deu-lhe o nome de Megarhinus mariae, em “homenagem gratíssima à Maria Imaculada”.37 As fontes que consultamos não permitem saber exatamente como se estabeleceu e desenrolou a relação do estudante com o diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo, mas no Museu Nacional do Rio de Janeiro, no Fundo Adolpho Lutz (Divisão Diptera, pasta Culicidae), encontram-se textos de Bourroul emendados pelo cientista, que anexou à tese daquele doutorando, publicada em 1904 em modesta oficina tipográfica da Bahia, extenso trabalho de sua própria lavra intitulado “Synopse e systhematisação dos mosquitos do Brasil”. As oito partes de que se compõe formam segmentos com numeração não seqüencial a partir da página 33 da tese de Bourroul, e parecem constituir a síntese do esforço de sistematização que viera desenvolvendo a partir de material coletado por ele próprio e por seus coletores no Brasil, e a partir, também, da interlocução com Theobald.38
Compreendia: a) quadro dos gêneros da família Culicidae; b) catálogo dos culicídeos brasileiros e sul-americanos; c) Euculicidae: chave para a determinação dos gêneros encontrados no Brasil; d) chave para a determinação dos gêneros da subfamília Culicinae observados no Brasil; e) chave para a determinação das espécies de Euculicidae encontradas no Brasil (não incluindo Culicinae); f) chave para a determinação das espécies da subfamília Culicinae; g) quadro das espécies encontradas “na Bahia, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Manaus”.
Vista lateral do Instituto Bacteriológico de São Paulo, vendo-se ao fundo um dos pavilhões do Hospital de Isolamento. Algumas Instalações do Serviço Sanitário de São Paulo. São Paulo, Vanorden & Co., 1905. Museu Emílio Ribas.
Celestino Bourroul em 1904, por ocasião de sua formatura. DONATO, 2002, p.31.
Adolpho Lutz tem a seu lado, em trajes negros, sua irmã Maria Elisabeth Lutz Warnstorff e as duas filhas desta, com blusas claras, Paula Elisabeth e, acima dela, a caçula Gertrude. À esquerda, trajando negro também, Matilde, outra irmã de Adolpho. Foto tirada, provavelmente, no começo do século XX, numa das visitas ao Rio de Janeiro. Pode ter sido em 1902, quando veio buscar Aedes aegypti para as experiências realizadas em seguida, em São Paulo, com o fim de demonstrar a transmissão da febre amarela por mosquitos; ou em 1908, quando Lutz regressou à capital federal para organizar a mostra do Instituto Bacteriológico na exposição comemorativa do centenário da abertura dos portos, realizada na Urca. Acervo Margareta Luce.
O novo grupamento de famílias e gêneros utilizado por Lutz seria integralmente adotado no volume 4 (suplemento) da monografia de Theobald, que considerou-o “alicerçado em excelente solo” (1907, p.15). Ao escolher os caracteres para separar a família Culicidae em dois grandes grupos, Lutz tomou por base a probóscide perfurante ou não perfurante. A partir do grupo com probóscide perfurante, fez nova subdivisão, utilizando, desta vez, a larva com ou sem sifão respiratório, e a partir daí separou as subfamílias e gêneros. Como veremos adiante, Theobald considerou essa classificação geral sem dúvida alguma a melhor até então proposta.
Mosquitos do Brasil recebeu nota máxima na Bahia, e Bourroul foi agraciado com a láurea acadêmica e com uma viagem à Europa (Donato, p.30). Em 1904 mesmo retornou a São Paulo, e enquanto aguardava a materialização do prêmio, que demoraria a acontecer, quase cedeu a uma oferta de trabalho feita pela comunidade italiana, que organizava sua Società di Beneficienza. Teria hospital próprio, o Umberto I, com inauguração prevista para 1° de janeiro de 1905. Bourroul chegou a figurar entre os médicos que fariam parte de seu corpo clínico, ao lado de outro importante colaborador de Adolpho Lutz – Alfonse Splendore, sobre quem já falamos no primeiro livro do presente volume da Obra Completa do cientista.39
Da trajetória posterior de Celestino Bourroul, divergente da entomologia, campo em que fizera tão promissora estréia, vale ressaltar o fato de que em 1913 assumiria, na recém-criada Faculdade de Medicina de São Paulo, o cargo de professor substituto na disciplina de Física e História Natural, da qual era catedrático o parasitologista francês Émile Brumpt. No ano seguinte, este retornaria à França, e Bourroul se tornaria catedrático de Parasitologia.
Segundo Edgard de Cerqueira Falcão, o binômio Bourroul-Lutz serviu de referência, por muitos anos, a diversos pesquisadores, como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Arthur Neiva (apud Donato, 2002, p.30). Antes de falarmos deles, detenhamo-nos no que manteve a mais estreita colaboração com Lutz: Francisco Fajardo. A amizade foi forjada no começo da década de 1890, no curso das lutas contra as epidemias que atormentavam as populações urbanas do Sudeste do Brasil. O interesse pela malária e, logo, pelos insetos hematófagos aproximou-os mais. Fajardo, que também fez parte da rede organizada pelo Museu Britânico, coletou no Rio de Janeiro muitos sugadores de sangue para o diretor do Instituto Bacteriológico. Mais tarde, recordaria Arthur Neiva (1941, p.viii) que seu retrato era um dos poucos que se viam no quarto que Lutz viria a ocupar em Manguinhos.
Leão de Aquino retrata assim Fajardo: “Figura inconfundível de verdadeiro fidalgo à antiga, nada tinha de vulgar. Naturalmente elegante, de estatura mediana, possuía bela fronte espaçosa, olhos muito vivos e expressivos, cabelos muito negros e usava longos bigodes à kaiser, como era de moda na época. Tinha a tez pálida, porém de aspecto sadio. As suas atitudes distintas, seu modo pausado de falar, simples e correto, inspiravam logo, à primeira vista, simpatia e respeito”. Revista Medica Municipal, 1945, p. 167
Da mesma geração de Celestino Bourroul, Fajardo ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1882, doutorando-se em novembro de 1888 com tese sobre O hipnotismo. Logo conquistou reputação de excelente clínico, e em 1892 assumiu o lugar de assistente da cadeira de clínica propedêutica, cujo titular era Francisco de Castro.40 Em 1901, pediu para ser exonerado (BM, 8.3.1901). Lecionou também na Universidade Popular Livre, onde “suas luminosas conferências eram ouvidas religiosamente por excepcional auditório” (Aquino, jul.-dez. 1945, p.167). Uma delas converteu-se em Moléstias tropicais (1902).
Durante esses anos, produziu diversos trabalhos que testemunham seu interesse pela bacteriologia e pela pesquisa em laboratório, inclusive Diagnóstico e prognóstico das moléstias internas pelo exame químico, microscópico e bacteriológico junto do doente (1895).41 Publicou também estudos sobre impaludismo, cólera-morbo, febre amarela, beribéri, piroplasmose bovina e espirilose das galinhas, em periódicos médicos nacionais e no prestigioso Centralblatt für Bakteriologie, Parasitekunde und Infektionskrankheiten. Em abril de 1893, foi eleito membro titular da Academia Nacional de Medicina (era um dos mais novos) com memória sobre “O micróbio da malária”. O interesse pelo estudo das doenças tropicais, escreve Leão de Aquino (jul.-dez. 1945, p.170-1), fez de Fajardo “o ponto único para onde se voltaram todas as atenções, quando no parlamento brasileiro se cogitou de criar esta nova disciplina nas faculdades médicas do Brasil”.42
Orientador da tese de Carlos Chagas sobre malária, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Fajardo reuniu os trabalhos que escrevera sobre o assunto com a intenção de publicá-los em forma de livro, e em carta a Adolpho Lutz, de 12 de janeiro de 1904, escreveu: “ficaria muito contente se quisesse remeter qualquer nota de seus estudos, mesmo que inclua figuras etc.”.43
Naquele ano integrou a delegação enviada ao II Congresso Médico Latino-Americano, em Buenos Aires.44 Fajardo relataria em 1906, ao XV Congresso Internacional de Medicina, em Lisboa, a bem-sucedida campanha contra a febre amarela no Rio de Janeiro. Foi sua última missão em proveito da microbiologia e da medicina tropical, que se instituíam sob a liderança do membro mais novo do grupo, Oswaldo Cruz. Ironicamente, seria vítima de tragédia ocasionada pelo primeiro fruto mais consistente desse esforço, o soro antipestoso fabricado em Manguinhos (sofreu uma reação anafilática fatal ao injetá-lo em si mesmo).45
Francisco Fajardo, Oswaldo Cruz e outros jovens bacteriologistas do Rio de Janeiro conheceram Adolpho Lutz durante os surtos de cólera que irromperam no Sudeste do país em 1893-1895. Eles nos fornecem elementos muito interessantes para avaliarmos a importância que a bacteriologia ganhava na saúde pública. Na perspectiva dos médicos que agiam à luz do novo paradigma, este dissipava as dúvidas suscitadas pelo diagnóstico clínico e reorientava as ações dos higienistas para elos precisos das cadeias infectocontagiosas, tornando mais eficientes seus contra-ataques às agressões epidêmicas. Mas os diagnósticos e pareceres que emitiram Adolpho Lutz, em São Paulo, e aquele punhado de jovens que começava a se destacar no Rio de Janeiro,46 calçados em provas laboratoriais ainda inacessíveis à maioria dos clínicos e higienistas, em vez de eliminarem, acentuaram as dissonâncias que costumavam aparecer em conjunturas epidêmicas. Os conflitos protagonizados por eles tornaram ainda mais beligerante a consolidação da República oligárquica, convulsionada pela Revolta da Armada (setembro de 1893 a março de 1894), a Revolução Federalista (1893-1895), a Revolta de Canudos (junho de 1896 a outubro de 1897) e o assassinato do ministro da Guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt (5.11.1897).
No calor das refregas transcorridas naqueles anos tumultuados, os profissionais dotados da proficiência e da ambição necessárias para ampliar a relevância social da microbiologia e da zoologia médica formaram sua identidade, testaram o poder e os limites de seus conhecimentos, amadureceram ambições individuais e projetos coletivos envolvendo bases mais estáveis para o exercício da pesquisa como carreira profissional.
A quinta pandemia de cólera do século XIX (1881-1896) alcançou o Brasil no auge dos fluxos comerciais e migratórios com a Europa, a América e o Oriente. Em agosto de 1893 irromperam diarréias letais na Hospedaria dos Imigrantes de São Paulo. Adolpho Lutz, diretor do laboratório bacteriológico recém-fundado naquele estado, confirmou a presença do bacilo-vírgula nas dejeções dos doentes. Seu diagnóstico foi contestado pelos clínicos locais, que só enxergavam casos de disenteria, intoxicação alimentar e outras afecções não contagiosas. Lutz enviou culturas ao Instituto de Medicina Tropical de Hamburgo, onde William Phillips Dunbar (18631922) confirmou o cólera.
Francisco de Castro, chefe do órgão de saúde pública federal – a Diretoria Sanitária, criada em dezembro de 1892 -47 decidiu repetir os exames no Rio de Janeiro. Delegou a tarefa a Francisco Fajardo e aos doutores Eduardo Chapot Prévost, lente de histologia da Faculdade de Medicina, e Virgílio Ottoni, preparador da mesma cadeira.
O surto em São Paulo foi debelado em outubro. Naquele mesmo ano (1893), a Diretoria Sanitária deu lugar ao Instituto Sanitário Federal.48 Situado na rua do Passeio no 64, tinha atribuições similares àquelas conferidas à instituição que Lutz chefiava em São Paulo.49 Francisco Fajardo assumiu a chefia do laboratório de bacteriologia do instituto carioca, cujo diretor-geral era ainda Francisco de Castro (BM, 1.1, 8.1, 8.2.1895).
Em novembro de 1894 começaram a circular notícias alarmantes sobre casos de cólera no vale do Paraíba, a espinha dorsal da atividade econômica mais importante do país, o café. Alarmado, o governo mandou para lá Fajardo e o secretário do Instituto Sanitário Federal, Azevedo Sodré. Em Cruzeiro convergiram com Adolpho Lutz, que fazia idêntica inspeção com Silva Pinto, diretor do serviço sanitário de São Paulo. Trabalhando juntos pela primeira vez, Lutz e Fajardo tentaram verificar, nas fezes dos doentes encontrados na região, a presença do bacilo-vírgula ou Komma bacillus, descoberto por Koch em 1883.
Os médicos cariocas regressaram ao Rio de Janeiro na madrugada de 25 de novembro. Às 5 e meia da manhã daquele dia, Chapot Prévost foi acordado por um Fajardo exausto, mas ansioso para entregar-lhe o material recém-coletado no vale do Paraíba (BM, 1.12.1894, 15.5.1895). “É interessantíssimo o problema,” disse-lhe. “Há muitas dúvidas, apesar das autópsias feitas por mim e pelo Lutz, que é justamente o homem que supúnhamos, um verdadeiro sábio.” Prévost imediatamente se pôs a inocular placas em gelose, balões e tubos com caldos nutritivos. Às 11 da manhã, chegaram Virgílio Ottoni e Oswaldo Gonçalves Cruz (BM, 22.8.1895). Foi nos laboratórios que mantinham em suas residências particulares que realizaram as provas de força da ciência dos micróbios, capazes de legitimar ações que atropelariam interesses poderosos e estilhaçariam o cotidiano de multidões.
A correspondência entre Francisco Fajardo e o “amigo e mestre” Adolpho Lutz, iniciada em 26 de abril de 1895,50 trataria de vários outros problemas médicos e sanitários: ancilostomíase, lepra, beribéri, disenteria ame-biana, tuberculose, e ainda a febre amarela – questão preponderante naquela virada de século para o diretor do Instituto Bacteriológico paulista -e a malária, objeto comum de investigação de Fajardo e Lutz. Por vezes, a correspondência dizia respeito aos pacientes que o primeiro atendia em seu consultório,51 ou ao intercâmbio de livros, materiais e técnicas utilizados em suas respectivas pesquisas – preparações de cérebro, intestino, sangue e outros líquidos e órgãos, porquinhos-da-índia, lápis para escrever em vidro, peças anatômicas, tubos para cultura, até mesmo máquina de escrever.52
Em carta de 23 de julho de 1897, comunicava a Lutz que, ao examinar o sangue de uma vaca doente, encontrara os parasitos da febre do Texas, “de acordo com as estampas do Centralblatt que o senhor me mostrou no sul, bem como com os trabalhos de Laveran e Blanchard e de Smith e Kilborne”. Precisando com urgência da opinião do colega mais experiente, Fajardo enviava-lhe preparação onde se viam bem os “diplococos endo-globulares” (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 212, maço 2). A alusão ao ‘sul’ tem a ver com a viagem que fizeram a Montevidéu para assistir à conferência em que Giuseppe Sanarelli anunciou a descoberta do suposto micróbio da febre amarela, o bacilo icteróide.53 Em 28 de julho, Fajardo pediria até mesmo cópia das notas que Lutz tomara sobre as experiências feitas pelo bacteriologista italiano em presença deles (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 168, maço 5).
Na carta de 4 de março de 1900, comentava “a belíssima preparação de malária” que recebera de Lutz:
Tenho-me exercitado bem no método de Ziemann, dado por muitos como o mesmo do Romanovsky, aplicando-o à malária com intuito de explorá-lo inteiramente e de modo definitivo com relação ao beribéri; mas nunca obtive preparação tão bela: é um modelo de coloração o preparado que me mandou … Estes trabalhos que aí tem feito de (malária) pedem publicidade.54
Em 20 de novembro, referindo-se certamente à investigação em curso sobre a malária das florestas, perguntava: “Por que não envia o seu importante trabalho a Laveran, acompanhado de algumas espécies de mosquitos? Ele deseja muito e espera mesmo”.55
Fajardo estivera em Paris aquele ano (carta de 29.10.1900). Levara consigo preparação feita por Lutz a partir de um caso de “acesso pernicioso” e mostrara-a a Laveran, que
apreciou-a muito. Ele autorizou-me a dizer-lhe que está pronto a corresponder-se com o Sr. e que, desde já, aceitará os mosquitos que eu disse que o Sr. colhe e estuda; ele corresponde-se com o mundo todo. O Sr. já ensaiou um método novo que ele publicou para coloração dos hematozoários? Vi com ele estudos do Ross belíssimos. (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 180)
No começo de 1901, Francisco Fajardo procurava Anopheles para Lutz.56 Alguns dos mosquitos por ele coletados no Rio de Janeiro fizeram parte do material examinado por Theobald que, em fins daquele ano, publicaria o primeiro volume de sua ciclópica monografia.
Em 1901 veio a lume, também, Contribuição para o estudo dos culicídeos do Rio de Janeiro, de Oswaldo Gonçalves Cruz, então diretor técnico do Instituto Soroterápico Federal do Rio de Janeiro (Instituto de Manguinhos) e diretor do gabinete de bacteriologia e anatomia patológica da Policlínica Geral do Rio de Janeiro. Ele havia estudado os mosquitos de alguns focos de malária nos arredores da capital – o Jardim Botânico, ‘arrabalde’ ainda distante, que as linhas de bonde acabavam de conectar à zona urbana (Oswaldo Cruz residia na rua Jardim Botânico no 9); e Sarapuí,57 freguesia da baixada fluminense, às margens da Estrada de Ferro Central do Brasil. Nesses lugares, encontrara uma espécie de Anopheles que não se assemelhava a nenhuma daquelas descritas por Giles em A handbook of the gnats or mosquitoes (1900).58 Seu Anopheles sp.? apresentava caracteres que diferiam das três espécies consignadas nesse livro: Anopheles albimanus Wied., Anopheles albitarisis Arribálzaga e Anopheles argyrotarsis Desv.59
“Não temos a pretensão de afirmar que a espécie … seja nova” – declarou Oswaldo Cruz no final do trabalho publicado em 1901. “Em todo caso, enquanto os doutos não se pronunciam, proporíamos que se designasse provisoriamente o mosquito … sob o nome de Anopheles lutzii, em homenagem ao sábio que com tanta proficiência dirige o Instituto Bacteriológico de S. Paulo” (p.15).
Em carta escrita em 30 de novembro daquele ano,60 Adolpho Lutz comentou o artigo de Oswaldo Cruz sobre o Anopheles novo. Agradeceu a intenção de homenageá-lo, mas explicou que
o nome A. lutzii já está pré-ocupado por Theobald que assim chamou uma das duas novas espécies que mandei daqui já faz muito tempo. A outra foi chamada A. albimanus e desconfio que seja idêntica com a espécie descoberta pelo colega; se me mandar um exemplar poderei ser mais positivo. Sei que ocorre perto da capital federal. Tenho-o de 1/2 dúzia de lugares.
“Gonçalves Cruz” começara a corresponder-se com ele à mesma época que Fajardo; para sermos precisos, um mês antes. A primeira carta ao “sábio mestre sr. dr. Lutz” é datada de 11 de março de 1895. Este último estivera no Rio de Janeiro. No dia em que regressava a São Paulo, o jovem clínico e bacteriologista redigiu apressadamente estas linhas reverenciais:
Ao chegar à nossa casa encontrei pessoa da família doente e por esse motivo vejo-me impossibilitado de, pessoalmente, como era de meu dever, ir despedirme de V.Sa, agradecer-lhe a honrosa visita com que distinguiu-me e protestar o meu reconhecimento pelos sábios ensinamentos que tão bondosamente ministrou-me. (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 213, maço 1)
A correspondência de Fajardo com Lutz mostrou que a colaboração entre o bacteriologista de São Paulo e o grupo do Rio de Janeiro prosseguiu com crescente densidade após o episódio do cólera. Destacamos aqui um par de cartas, pois demonstram que o epíteto de ‘mestre’ atribuído a Lutz não era simples retórica de cortesia. Naquela escrita em 1° de agosto de 1895,61 Fajardo referia-se, entre outros assuntos, ao envio do “Davidson” adquirido numa livraria da capital a pedido de Lutz. Tratava-se muito provavelmente de Hygiene & diseases of warm climates, volumosa obra (1.016 páginas) organizada por Andrew Davidson e publicada em Edimburgo e Londres em 1893 (Young J. Pentland). Em 27 de maio daquele mesmo ano, na segunda carta a Lutz, Oswaldo Cruz comentara:
Acabo de receber o trabalho de Davidson e vou imediatamente dar começo à parte que me coube isto é, a febre de Malta e a dengue. Se fosse possível teria muito desejo de encarregar-me do estudo sobre a framboesia (p.511) e para isso peço a sua autorização, caso o colega dela encarregado queira ceder-ma.62 [grifo nosso]
Carta de Oswaldo Cruz a Adolpho Lutz, de 11 de março de 1895. BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 213, maço 1.
Nascido em 5 de agosto de 1872 em São Luís do Paraitinga, interior de São Paulo, Owaldo Gonçalves Cruz migrou para o Rio em 1877, aos cinco anos. O pai, que era médico, instalou-se com a família na Gávea, nas proximidades do Jardim Botânico. Ali o dr. Bento Gonçalves Cruz formou clientela, até mesmo entre os operários que as fábricas de tecido traziam para a região. Em 1886, com apenas 14 anos, o filho matriculou-se na Faculdade de Medicina. Em maio de 1890, tornou-se assistente de Rocha Faria no Instituto Nacional de Higiene – o antigo Laboratório de Higiene da Faculdade (1883), que se transformava em dependência da recém-criada Inspetoria Geral de Higiene. Trabalhou ali com Barros Barreto, Henrique Tanner de Abreu e Francisco Fajardo até completar o curso médico, em 1892, com tese sobre A veiculação microbiana pelas águas.
Naquele ano faleceu o pai, meses depois de assumir o cargo de inspetorgeral de Higiene. Em janeiro de 1893, Oswaldo Cruz casou-se com Emilia da Fonseca, filha de um rico negociante português. Teria com ela seis filhos. A necessidade de prover a subsistência da família levou-o a assumir a clínica do dr. Bento Cruz, na Gávea. Em agosto de 1894, conheceu lá o colega que lhe abriria importantes portas na vida profissional, o dr. Salles Guerra, seu futuro biógrafo. Oswaldo Cruz tinha 22 anos e já era pai de uma menina de meses, que adoeceu dias depois. Chamado para examiná-la, Guerra (1940, p.25) deparou, em ampla sala do térreo, com “provido laboratório de análises e pesquisas, aparelhado demais, pensei eu, para o número provável de exames que profissional tão jovem poderia ter … Não escapou a Oswaldo Cruz a minha tácita surpresa, e acudiu logo: ‘Foi presente de meu sogro, presente de casamento’”.63
Salles Guerra, que chefiava o serviço de moléstias internas da Policlínica Geral do Rio de Janeiro, propôs que o chamassem para organizar um laboratório de análises para embasar os diagnósticos de sua área e da clínica de Silva Araújo, que lidava com sífilis. Junto com Werneck Machado e Alfredo Porto formariam o “grupo dos cinco germanistas,” assim chamado pelo empenho que tinham em aprender o alemão, o idioma dos textos mais avançados de medicina na época.
Quando Oswaldo Cruz se incorporou ao grupo de Chapot Prévost, Francisco Fajardo e Benedito Ottoni para dar sustentação técnica ao Instituto Sanitário Federal, foi apresentado como alguém já conhecido por suas publicações sobre bacteriologia (BM, 22.8.1895, p.255). Entre outros trabalhos, publicara “Contribuição para o estudo de microbiologia tropical” (1894).64
Os protozoários, que Lutz e Fajardo vinham estudando, foram também pesquisados por Oswaldo Cruz. Na já referida carta de 27 de maio de 1895, informava ao bacteriologista de São Paulo que vinha examinando sangue de pássaros, “porém sem resultado no que se refere aos hematozoários”. Tendo verificado a presença da Amoeba coli de Lasch65 num caso de disenteria, enviava a Lutz o desenho de seus movimentos. “Num outro caso da mesma moléstia não logrei ver o referido protozoário”.
Em 18 de setembro de 1895, Adolpho Lutz foi efetivado no cargo de diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo, que exercia como interino desde 1893. Cinco dias depois, Oswaldo Cruz felicitou-o e, em tom ainda formal, submeteu à sua “alta apreciação” um preparado de sangue colhido num doente acometido por grave anemia. Explicava a técnica que usara para fixar e corar o material:
Em alguns pontos (principalmente onde marquei com tinta) observam-se hemácias com o protoplasma repleto de granulações afetando disposições irregulares, fazendo algumas lembrar a forma do hematozoário de impaludismo. Serão simples deformações das hemácias? Será defeito da técnica? Será um hematozoário? Ansioso, espero o seu veredicto.66
Dois meses depois (26.11.1895), remeteu-lhe a cultura de um microrganismo cromógeno que isolara “no bulbo das pernas de uma galinha afetada de uma espécie de herpes circinado e cuja diagnose não consegui fazer visto não encontrar nos livros de microbiologia que possuo, uma descrição que se adapte a ele”. E em anexo, detalhava os caracteres biológicos que conseguira verificar (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 213, maço 1).
A correspondência existente no Fundo Adolpho Lutz do Museu Nacional apresenta lacuna de alguns anos que coincidem, grosso modo, com o período em que Oswaldo Cruz, com a ajuda do sogro, viajou para a França para fazer estudos de aperfeiçoamento no Instituto Pasteur. Ao descrever essa temporada, que se estendeu de 1896 a 1899, Guerra (op. cit., p.31-42) mostra-nos um homem muito apreensivo com as notícias sobre os dramáticos acontecimentos do governo de Prudente de Morais – as agitações promovidas na capital pelos ‘jacobinos’, esteios do antecessor, o marechal Floriano Peixoto. Um atentado contra o presidente ocorreu em 5 de novembro de 1897, quando as autoridades celebravam o extermínio dos sertanejos que haviam protagonizado a epopéia de Canudos, e a violenta repressão aos florianistas do Rio e de outras cidades surgiu após a morte do ministro da Guerra, marechal Carlos Machado de Bitencourt, em conseqüência das punhaladas desferidas pelo anspeçada Marcelino Bispo de Melo.
Salles Guerra alonga-se no relato da questão Dreyfus que, em 1898, cindiu a França em dois campos hostis. “Foi um levedo que fez fermentar os ânimos, justamente como a revolta entre nós,” escreveu Oswaldo Cruz. “Conheço famílias inteiras esfaceladas pela divergência das opiniões em tal assunto.” Quando Duclaux, diretor do Instituto Pasteur, passou a presidir reuniões públicas em que a nata da ciência francesa se manifestou em favor de Dreyfus, comentou: “A ciência dignou-se descer do seu alto pedestal e entrar francamente na liça dos combatentes”.
Oswaldo Cruz acompanhava os debates travados no Brasil a propósito da febre amarela. O soro de Sanarelli não resistiu às experiências feitas por Lutz em 1898, mas o bacilo icteróide foi confirmado em São Paulo, no Rio, na Argentina, no México, nos Estados Unidos e em Cuba. “Quando nos libertaremos dessa peste?” – desabafou. “É a nossa túnica de Nessus. É como uma mancha indelével que nos degrada e nos humilha.”
Em Paris, estava mergulhado no estudo de higiene, microbiologia, histologia e química biológica. Freqüentava o serviço de vias urinárias de Félix Guyon e o laboratório de toxicologia da municipalidade de Paris, onde aprendeu com Ogier e Vibert tudo quanto se relacionava à moderna prática médico-legal.67 Oswaldo Cruz freqüentou o Instituto Pasteur em pleno boom de descobertas de microrganismos patogênicos, e quando pareciam ilimitadas as perspectivas não apenas das vacinas, para a prevenção de doenças infecciosas, mas também da soroterapia, com fins curativos. A tecnologia recém-desenvolvida para o tétano e a difteria por Emil von Behring, Shibasaburo Kitasato e Émile Roux, foi apresentada por este último ao 8° Congresso Internacional de Higiene e Demografia, realizado em Budapeste, em setembro de 1894. Em julho de 1898, Oswaldo Cruz escreveu para os médicos brasileiros um relato didático sobre a seção de preparo de soros terapêuticos do Instituto Pasteur, que funcionava em Garches, cidade vizinha a Versalhes (BM, 8.8.1898, p.266). Em outro artigo, apresentou o laboratório que fazia o diagnóstico das doenças infectocontagiosas em Paris (BM, 15.7.1899, p.258-62).
Ao regressar ao Rio de Janeiro, em 1899, Oswaldo Cruz montou um consultório de doenças geniturinárias e um laboratório de análises clínicas – o primeiro da capital – na travessa de São Francisco, atual Ramalho Ortigão. O da Policlínica ficou incompleto: o arsenal que trouxe de Paris não coube no precário edifício onde funcionava.
Naquele mesmo ano, chegou ao Brasil a peste bubônica. O comércio internacional e os fluxos migratórios a vinham alastrando pelo mundo inteiro, desde a China e Indochina (1893-1894) até a África do Sul, Portugal, a costa oeste dos Estados Unidos (São Francisco) e até mesmo o Paraguai (1899). No rastro dela seguiam os pasteurianos, obtendo vitórias sensacionais. Em 1894, Alexander Yersin conseguiu identificar o bacilo da peste em Hong Kong, e antes do fim do ano desenvolveu o soro contra a doença com Calmette e Borrel, em Paris. Em 1898, Paul-Louis Simond foi enviado à Índia para aplicá-lo, e lá confirmou a hipótese de que eram as pulgas que transmitiam a doença de rato para rato, e do rato ao homem. Concomitantemente, Waldemar Mordekhai Haffkine (1860-1930) fazia em prisões e quartéis indianos experiências promissoras com uma vacina antipestosa. Na cidade do Porto (Portugal), em 1899, Albert Calmette (1863-1993) e Alexandre Salimbeni aperfeiçoavam a técnica de preparação do soro curativo quando a peste finalmente migrou para o Brasil, em vapores oriundos daquela cidade (Sournia & Ruffie, 1986; Delaunay, 1962; Mollaret & Brossolet, 1993).
O primeiro indício foi a mortandade suspeita de ratos em Santos. Em 9 de outubro, Vital Brazil instalou-se no hospital de isolamento para vigiar de perto os acontecimentos e logo Adolpho Lutz juntou-se a ele. No dia 18, o governo do estado enquadrou aquele porto em severa quarentena. Inconformados, os comerciantes e médicos do lugar trouxeram do Rio de Janeiro Eduardo Chapot Prévost, na esperança de que o cientista contradissesse o Instituto Bacteriológico de São Paulo, mas deu-se o contrário. Em 22 de outubro, Oswaldo Cruz chegou a Santos, a convite da Câmara e comissionado, também, pelo governo da União. Cinco dias depois telegrafou ao ministro da Justiça: “fechei o ciclo pasteuriano para a diagnose da espécie microbiana patogênica. Os critérios clínico, epidemiológico e bacteriológico permitem afirmar categoricamente ser a peste bubônica a moléstia reinante” (Revista Medica de S. Paulo, 1900, p.231).
A dificuldade em obter o soro de Yersin e a vacina de Haffkine levou o governo paulista a promover a urgente criação de um laboratório para fabricá-los. Adolpho Lutz, Vital Brazil e Oswaldo Cruz escolheram o lugar e relacionaram os materiais necessários. Instalado na Fazenda Butantan, sob a direção de Vital Brazil, o apêndice do Bacteriológico entrou em operação em fins de 1900, logo em seguida ao laboratório soroterápico carioca, criado por determinação do prefeito Cesário Alvim na fazenda de Manguinhos. A direção deste foi entregue ao barão de Pedro Afonso, proprietário do Instituto Vacínico Municipal, onde se produzia e aplicava a vacina antivariólica, e Oswaldo Cruz ficou encarregado da direção técnica. Em meio à reforma da fazenda, o novo prefeito Antônio Coelho Rodrigues requereu ao ministro da Justiça e Negócios Interiores, Epitácio Pessoa, a transferência do laboratório para a esfera federal, já que a municipalidade teria de montar outro no matadouro de Santa Cruz, para combater o carbúnculo sintomático que Chapot Prévost identificara no gado abatido para consumo da população. Em 30 de outubro de 1900, o Instituto Soroterápico Federal enviou à Diretoria Geral de Saúde Pública os primeiros cem frascos de vacina antipestosa, preparados por Oswaldo Cruz, Henrique Figueiredo de Vasconcellos, seu contemporâneo de Faculdade, e os estudantes Antônio Cardoso Fontes e Ezequiel Dias. As divergências com Pedro Afonso tornaram-se insustentáveis e, com a demissão deste em 9 de dezembro de 1902, Oswaldo Cruz assumiu a direção plena do instituto.
Como vimos, foi ainda na condição de diretor técnico que Oswaldo Cruz publicou em 1901 o trabalho sobre a espécie de Anopheles possivelmente nova que batizou com o nome de Adolpho Lutz. As excursões aos referidos focos de malária foram feitas com os técnicos de Manguinhos. Henrique da Rocha Lima, que iria se incorporar ao instituto em 1903, ao regressar de viagem de estudos a Berlim, alude, em carta a Oswaldo Cruz, de 19 de outubro de 1901, às “fotografias de nossa excursão a Sarapuhy, que ornam o meu quarto,” excursão da qual tinham participado Vasconcellos, Fontes, Ezequiel e até mesmo o arquiteto Luiz de Morais, contratado para edificar os prédios monumentais que iriam agasalhar o Instituto Oswaldo Cruz.68
A correspondência entre Oswaldo Cruz e Adolpho Lutz já não tem aquela cerimônia hierárquica que caracteriza as primeiras cartas. Mais maduro, o primeiro tem muitas questões técnicas a compartilhar com o antigo mestre, sobretudo no que concerne a soros e vacinas. Aquelas relativas à entomologia médica ganham importância crucial a partir de 1901 por força agora da febre amarela, que passa à ordem do dia na agenda sanitária do Brasil e de outros países. “A grande obra do British Museum sobre os mosquitos de todo o mundo já deve ter aparecido no mês passado. Estou esperando-a cada dia” – escreveu Adolpho Lutz em 30 de novembro.69 Na mesma carta aconselhava:
Será bom esperar esta obra fundamental para qualquer publicação sobre o assunto. Eu mesmo dei todo o meu material sobre mosquitos, 27 espécies (das quais o terço é novo), mas me consta que do Amazonas ainda tem muitas outras. O número total de espécies conhecidas de todo mundo será mais ou menos de duzentas, das quais uns trinta Anopheles. Na América do Sul deve haver pelo menos 4 Anopheles. A. albitarsis e argyritarsis são idênticos e o seu território vai das Antilhas até ao Rio da Prata como acontece com vários Culex (entre outros o taeniatus e fatigans).
Além de culicídeos reuni perto de 60 outras espécies de dípteros sanguessugas, como motucas, borrachudos, birigui, pólvoras etc. Com a literatura que tenho cheguei a classificar dois terços deles. Ficava-lhe muito obrigado por qualquer contribuição principalmente de notícias que variam muito de um lugar para outro. As pequenas espécies como pólvoras, biriguis e borrachudos estão ainda bastante mal estudadas, mas o número das espécies comuns é pequeno.70
Em 6 de janeiro de 1902, Oswaldo Cruz informou Lutz de que já encomendara o livro de Theobald e prometeu enviar logo exemplares bem conservados do mosquito que descrevera. Ficara muito interessado em saber que ele encontrara filárias em alguns animais:
Se fosse possível indicar-me quais esses animais e se ainda possui alguns deles muito lhe agradeceria, porquanto tenho no Instituto um estudante que vai escrever tese sobre a transmissão da filária pelos mosquitos. Conseguimos verificar a formação dos flagelos no protozoário do pombo e conseguimos corá-los pelo processo de Laveran.
O primeiro volume de A Monograph of the Culicidae trazia referências elogiosas a Adolpho Lutz. Logo no primeiro parágrafo da apresentação escrita em 1° de setembro de 1901, Theobald agradecia a “grande ajuda” que recebera “na forma de coleções e informações da América do Sul graças à bondade do doutor Lutz e do senhor Moreira. Sou grato também ao professor Howard no tocante às coleções da América do Norte”. Adiante acrescentava: “o Dr. Lutz enviou-me toda a sua coleção e muitas notas críticas de grande valor concernentes a ela. Embora um lote tenha sido destruído em trânsito, a coleção foi de grande ajuda para mim” (p.v, vi).
Consagrado como o grande especialista em culicídeos da América do Sul, Lutz pôs sua expertise integralmente a serviço da grande questão sanitária que se impunha ao continente naquele momento.
Convém recapitular fatos já explicados em livro anterior do presente volume de sua Obra Completa. Em 1900, realizaram-se em Cuba experiências que formam um divisor de águas na história da febre amarela. Os norte-americanos tinham ocupado a antiga colônia espanhola em fevereiro de 1898, e quando ficou patente sua incapacidade em lidar com a doença, renderam-se à teoria proposta pelo médico cubano Carlos Juan Finlay quase duas décadas antes (1880-1881). Para isso, foi importante, também, a confluência naquela ilha dos médicos norte-americanos, cuja preocupação dominante era a identificação do verdadeiro ‘bacilo’ da febre amarela, com os ingleses, que exploravam a fértil problemática dos vetores biológicos de doenças. Em junho de 1900, Walter Myers e Herbert. E. Durham, da recém-fundada Liverpool School of Tropical Medicine, iniciaram uma expedição ao Brasil para investigar a febre amarela. O encontro em Havana com a comissão chefiada por Walter Reed foi uma escala da viagem com destino ao Pará. Os médicos de Liverpool traziam uma hipótese genérica – a transmissão da febre amarela por um inseto hospedeiro -, que ganhou maior consistência com as informações recolhidas em Cuba (Durham & Myers, 1900).71
Enquanto Carrol e Agramonte dedicavam-se à refutação do bacilo de Sanarelli, que havia sido confirmado por médicos do Marine Hospital Service, Lazear iniciava as experiências com mosquitos fornecidos por Finlay, em agosto de 1900, mas, em setembro, faleceu em conseqüência de uma picada acidental. Walter Reed então redigiu às pressas uma Nota preliminar, apresentada no mês seguinte à 28a reunião da American Public Health Association, em Indianápolis. E tomou a si a tarefa de fornecer a confirmação dos trabalhos de Lazear, através de uma série de experiências destinadas a provar que o mosquito era o hospedeiro intermediário do “parasito” da febre amarela; que o ar não transmitia a doença; e que os fomites não eram contagiosos. Em seguida, a comissão norte-americana retomou as experiências relacionadas ao agente etiológico, mas deparou com ambiente já desfavorável à utilização de cobaias humanas.72
Os resultados foram apresentados ao 3° Congresso Panamericano realizado em Havana, em fevereiro de 1901, ao mesmo tempo em que William Gorgas dava início, naquela cidade, à campanha contra o mosquito transmissor, então identificado como Culex fasciatus. Já a partir de janeiro de 1901, as comissões sanitárias que atuavam no interior de São Paulo incorporaram o combate ao mosquito ao repertório de ações destinadas a anular tanto o contágio como a infecção da febre amarela.
Walter Reed (1851-1902), Aristides Agramonte Simoni (1868-1931), William Jesse Lazear (1866-1900) e James Carrol (1854-1907). HOWARD (1930), prancha 45.
Em fins daquele ano, os diretores do Instituto Bacteriológico e do Serviço Sanitário de São Paulo, Adolpho Lutz e Emílio Ribas, obtiveram do presidente do estado, Francisco de Paula Rodrigues Alves, autorização para reproduzir na capital as experiências feitas em Cuba. O objetivo era neutralizar as reações à chamada ‘teoria havanesa’ articuladas por médicos alinhados com o bacilo de Sanarelli e outros micróbios. Antes de elas começarem, Lutz viajou para o Rio de Janeiro, mais de uma vez, para obter mosquitos e infeccioná-los em casos leves de febre amarela. Hospedava-se na rua Mariz e Barros n° 36, na Tijuca, onde funcionava o colégio mantido por suas irmãs.
Em 3 de novembro de 1901, Emile Marchoux (1862-1943) e Paul-Louis Simond (1858-1947), do Instituto Pasteur de Paris, desembarcaram na capital brasileira para verificar os fatos recémpostulados por Walter Reed e colaboradores. Três semanas depois chegou o terceiro integrante da missão médica francesa, Alexandre Salimbeni (18671942). O governo da França tinha grande interesse em aplicar em suas colônias – especialmente o Senegal – a nova estratégia profilática, que permitia a abolição das ruinosas quarentenas impostas aos navios mercantes.
Em 19 de novembro,73 Adolpho Lutz pediu a Oswaldo Cruz informações, assim que este tivesse ocasião de conversar com os membros da missão francesa. E comunicou: “É provável que irei para o Rio nestes três meses e terei então muito prazer em vê-lo”. No dia seguinte (20.11.1901), o diretor técnico do Instituto Soroterápico Federal respondeu que já estivera com Simond e Marchoux:
Pretendem demorar-se aqui e por isso já tomaram casa em Petrópolis onde ficarão residindo. Por ora não começaram o estudo da febre amarela porque não tem havido material. Declararam-me que além da febre amarela desejariam: o Dr. Simond estudar os hematozoários dos animais, tendo feito as mais merecidas referências ao teu último trabalho sobre hematozoários dos ofídios. O Dr. Marchoux, desejou fazer também alguns estudos sobre impaludismo, e sobre os mosquitos.
Disseram-me mais, que fatalmente irão a S. Paulo e que terão o máximo prazer em conhecer pessoalmente o amigo que já conhecem muito pelos trabalhos publicados. Essa viagem, porém, terá lugar durante os meses do inverno, como me declarou o Dr. Marchoux.74
Lutz comunicou então a Oswaldo Cruz (30.11.1901) que, em vista daquelas informações, resolvera adiar sua viagem ao Rio de Janeiro.75 Ele viajaria à capital federal somente em meados de 1902. Em carta a Emílio Ribas, de 25 de junho, reclamou das chuvas, do calor e do tempo que perdia nos bondes a percorrer grandes distâncias – para chegar, por exemplo, ao Hospital São Sebastião, no bairro do Caju, onde acompanhava três doentes “dos quais obtive alguns mosquitos chupados”. A epidemia de febre amarela que começara em dezembro de 1901 seguia fazendo vítimas, e continuavam a entrar “casos graves”. Lutz estava criando Stegomyia fasciata no laboratório da Diretoria Geral de Saúde Pública.76 Era para lá que seu ajudante Carlos Meyer devia enviar exemplares retirados do plantel mantido no Instituto Bacteriológico de São Paulo. “Precisamos muito de mais mosquitos” – escreveu Lutz, que ia visitar Manguinhos em companhia de Oswaldo Cruz naquele mesmo dia.
Em agosto regressou à capital federal e, no dia 30, deu livre curso à sua frustração: “O tempo ultimamente tem sido sempre fresco, os mosquitos são raríssimos e não encontrei uma só Stegomyia … Aqui não se pode fazer nada de útil e seria mais fácil voltar para aqui quando aparecerem os primeiros casos da nova estação que são esperados mais ou menos num mês desta data”. E perguntava a Ribas: “Se quiser que empreste mosquitos dos franceses ou que demore mais, peço mandar um telegrama bem cedo na manhã de segunda-feira”.
Numa terceira carta ao diretor do Serviço Sanitário de São Paulo,77 em 28 de novembro de 1902, Lutz comentava: “A epidemia está declinando, mas ainda há casos”. Os mosquitos que conseguira infectar estavam vivos e bem, e o bacteriologista de São Paulo refere-se a eles em termos que denotam a expectativa de seu uso iminente: “Os 4 do primeiro caso serão bons em poucos dias; o doente já sarou, tendo tido um ataque característico completo, mas sem gravidade. Temos alguns de mais 2 casos dos quais um leve, outro fatal e tenho eles separados”.
No Instituto Bacteriológico, Lutz iniciara a reprodução controlada, desde a fase larvária, dos Stegomyia fasciata capturados no Rio de Janeiro, alimentando-os com substâncias que não fossem o sangue, de maneira a excluir qualquer infecção indesejada. Em 28 de novembro foram enviados exemplares a Meyer, que se achava em São Simão, em meio a novo surto de febre amarela. Sua missão era infeccionar mais mosquitos, fazendo-os sugar o sangue de doentes recém-chegados ao hospital de isolamento daquela cidade, situada a 730 quilômetros da capital paulista, por estrada de ferro. Recebidos no Instituto Bacteriológico em 2 de dezembro, foram mantidos à base de mel e tâmaras secas por mais 12 dias, prazo considerado mínimo para se tornarem infectantes. Foram acrescentados mais três para compensar a temperatura inferior àquela reinante em Havana, à época de Reed.
Em livro anterior da Obra Completa de Adolpho Lutz descrevemos em detalhes as experiências realizadas no Hospital de Isolamento da cidade de São Paulo. A primeira série, visando provar que eram os Stegomyia os transmissores da febre amarela, envolveu cinco sessões, entre 15 de dezembro de 1902 e 20 de janeiro de 1903. A preferência por voluntários já ‘aclimatados’ e por casos leves para a infecção dos mosquitos, assim como a dilatação do prazo para a maturação do germe no organismo destes, obedeciam ao propósito de se produzir infecções de pouca gravidade nos voluntários humanos. Não se tinha tratamento para a febre amarela, e a morte de qualquer um seria desastrosa.
A segunda série de experiências – 11 sessões que se prolongaram de 20 de abril a 10 de maio de 1903 -, teve por objetivo demonstrar “o contágio ou não da febre amarela pelas roupas usadas por doentes”. Envolveu três italianos que foram mantidos em reclusão no Hospital de Isolamento de São Paulo, num quarto protegido com tela de arame contra mosquitos, e repleto de roupas e objetos sujos com urina, vômito e fezes de amarelentos. Submeteram-se a esse suplício sem manifestar sinais da doença – o que, no caso, era o desejável.
Os médicos encarregados de expor os resultados foram categóricos no relatório final:78
As experiências dos norte-americanos em Havana e as nossas … demonstram que só no organismo do mosquito encontra o germe amarílico as condições necessárias para a sua reprodução.
Ficou definitivamente demonstrado … que um pernilongo – Stegomyia fasciata – pode conduzir a febre amarela a grande distância e transmiti-la do indivíduo doente ao indivíduo são. A experiência feita aqui na Capital de São Paulo remove para sempre todas as objeções. Não temos aqui o concurso tumultuário das agências climatológicas ou mesológicas, como as que se dão em muitas localidades flageladas para embaraçar as conclusões. As belas experiências dos médicos americanos em Havana … não conseguiram fazer calar todas as controvérsias, só pelo fato de ser aquela populosa cidade um lugar em que reinava a febre endemicamente, havia mais de um século. Objetava-se que os casos experimentais ali observados não constituíam uma prova absoluta, porque os indivíduos podiam ter contraído a infecção por um outro canal que não o dos mosquitos. Essa objeção em São Paulo seria simplesmente um caso de improbidade científica (apud Lemos, 1954, p.73, 75-7).
Para Nuno de Andrade (1902), diretor-geral de Saúde Pública, a descoberta de Finlay apenas acrescentava um elemento novo à profilaxia da febre amarela. Seus defensores restringiam ao homem e ao mosquito todos os fios do problema. “Confesso que a hipótese da inexistência do germe no meio externo me perturba seriamente” – declarou. A indeterminação do micróbio deixava a teoria havanesa exposta a dúvidas perturbadoras. Andrade considerava fato provado a transmissão pelo Stegomyia fasciata, mas as deduções profiláticas lhe pareciam arbitrárias, e a guerra ao mosquito em Cuba, mera “obra de remate” das medidas sanitárias que as autoridades militares tinham executado antes.
Esse foi o cerne do confronto que se deu no Quinto Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia, realizado no Rio de Janeiro em meados de 1903. Os partidários de Finlay liderados por Oswaldo Cruz – os “exclusivistas” -tudo fizeram para obter o aval da corporação médica à nova estratégia, com a exclusão da antiga, enfrentando cerrada oposição dos “não convencidos”.
A verdade é que as conclusões da comissão Reed ainda estavam sub judice, e eram checadas por outras comissões em lugares onde a febre amarela criara raízes igualmente antigas. O Public Health and Marine Hospital Service, criado em 1° de julho de 1902, enviara a Vera Cruz, no México, os doutores Herman B. Parker, George E. Beyer e Oliver L. Pothier.79 Quanto às pesquisas feitas no Pará pelos médicos de Liverpool, suas conclusões iniciais colidiam com as de Reed (Gouveia, O Brazil-Medico, 1.6.1901, p.208-10). De acordo com artigo publicado em The Lancet, no começo de 1901, os ingleses tinham descartado os protozoários como agentes da febre amarela, e só encontravam bacilos nos órgãos de amarelentos mortos. Além de não se coadunar com doenças bacterianas, a transmissão pelo mosquito parecia não se adequar a certas características “endemiológicas” observadas no Pará.
No Brasil esteve também uma missão alemã, organizada pelo Seemannkrankenhauses [Hospital dos Marinheiros] e o Institutes für Schiffs-und Tropenkrakheiten [Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo], ambos de Hamburgo, cidade portuária cujos negociantes tinham, havia muito tempo, fortes ligações com o país. Durante quase cinco meses (10 de fevereiro a 4 de julho de 1904), os doutores Hans Erich Moritz Otto e Rudolf Otto Neumann visitaram algumas cidades brasileiras, especialmente o Rio de Janeiro.
Aí já se encontravam Marchoux, Simond e Salimbeni. Durante o tempo em que permaneceram na capital brasileira, franceses e alemães puderam observar, de perto, os fatos biológicos e sociais produzidos na cidade que serviu como primeiro laboratório a céu aberto para o teste de uma campanha calcada na teoria culicidiana, sob condições que não eram as da ocupação militar, e sem saneamento prévio que turvasse os resultados. (Na realidade, a reforma urbana concomitante criou diversos problemas à campanha levada a cabo por Oswaldo Cruz.)
Assim que foi eleito presidente da República, em 15 de novembro de 1902, Francisco de Paula Rodrigues Alves divulgou um Manifesto à Nação, em que qualificava o saneamento do Rio de Janeiro como sua mais séria preocupação: “A capital da República não pode continuar a ser apontada como sede de vida difícil, quando tem fartos elementos para constituir o mais notável centro de atração de braços, de atividades e de capitais nesta parte do mundo” (Câmara dos Deputados. Documentos Parlamentares, 1978, p.303-7; Franco, 1973).
A cidade de São Paulo acabara de ser modernizada durante seu mandato como presidente do estado (1900-1902), e foi com seu aval que a saúde pública paulista abraçou a teoria de Finlay. Para executar a reforma urbana há décadas propugnada pelos higienistas para o Rio de Janeiro, Rodrigues Alves escolheu um time de engenheiros de primeira linha. Aquele nomeado prefeito da cidade, Francisco Pereira Passos, assistira a uma das fases mais delicadas da reforma efetuada em Paris por Georges Eugène Haussmann (1853-1870), no governo de Napoleão III (Chiavari, 1985; Duby, 1983; Benchimol, 1992). Tomou posse como prefeito do Distrito Federal em 30 de dezembro de 1902, com o Conselho Municipal suspenso para que pudesse legislar por decretos e realizar operações de crédito à sua revelia. Ao mesmo tempo em que remodelava, com o governo federal, a estrutura física da cidade, semeava um cipoal de interdições para banir “velhas usanças” incompatíveis com o ideal de civilização que as elites cultuavam (Benchimol, 1992).
Pereira Passos, Paulo de Frontin e Lauro Muller: os três grandes auxiliares da administração de Rodrigues Alves na modernização do Rio de Janeiro” Charge publicada em O Malho de 16.7.1904, em Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2002, p.54.
Para as obras do porto, o governo federal contratou a firma britânica C. H. Walker, que construíra as docas de Buenos Aires. Concluídas apenas em 1911, representaram um contrato de 4.500.000 libras e mobilizaram cerca de dois mil operários. A retificação da linha irregular do litoral implicou a demolição dos fervilhantes quarteirões marítimos e o aterro de suas numerosas enseadas com o entulho proveniente do arrasamento de um dos morros da cidade. A energia elétrica passou a mover as engrenagens do porto e outras esferas da vida urbana.
Charles Louis Napoléon (1808-1873), Napoleão III a partir de 1852: símbolo do imperador burguês, com paixão por obras públicas. Barão Georges-Eugène Haussmann (18091891), prefeito do Sena entre 1853 e 1870. Fonte: www.upf.edu/ materials/fhuma/portal_geos/tag/img/img_temes/016napoleonhaussmann.jpg (acesso em 16/03/2006).
A avenida Central foi a espinha dorsal dos melhoramentos urbanísticos projetados com a finalidade de transformar o Rio de Janeiro numa metrópole parecida com Paris. Quando o eixo da avenida foi inaugurado, em 7 de setembro de 1904, sobre os escombros de centenas de prédios, a imprensa divulgou os vencedores do concurso internacional de fachadas, promovido com o intuito de elevar aquele espaço ao ápice da hierarquia arquitetônica da cidade (Santos, 1966, p.139; Museu Nacional de Belas Artes, 1982). Por volta de 1910, estavam prontos os seus prédios ‘monumentais’, inclusive o Teatro Municipal, decalque do majestoso Théâtre de l'Opéra, de Paris.
Ao mesmo tempo, na distante fazenda de Manguinhos, Oswaldo Cruz edificava um palácio que se equiparava aos da avenida Central, e que ainda surpreende quem adentra o Rio de Janeiro. Consciente da relevância que as fachadas tinham no imaginário da época, usou-as para legitimar a instituição de pesquisa que implantava, tomando como modelo o Instituto Pasteur de Paris (Stepan, 1976; Benchimol, 1990).
Cerimônia oficial de lançamento da pedra fundamental da Avenida Central, em 8.3.1904. Entre os presentes destacam-se o presidente da República, Francisco de Paula Rodrigues Alves, o engenheiro Paulo de Frontin e o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos. A avenida foi inaugurada e entregue ao público em 15.11.1905. Acervo AGCRJ apud MENDONÇA (2004), p.43.
Avenida Central, atual Avenida Rio Branco, em 1906. Em primeiro plano, à esquerda, encontra-se o Palácio Monroe, projetado e construído pelo engenheiro Francisco Marcelino de Souza Aguiar. Premiado internacionalmente, o edifício sediou o Ministério da Viação, a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e, após a transferência da capital para Brasília, o Estado Maior das Forças Armadas. À direita e ao fundo do Palácio Monroe, avista-se o Convento da Ajuda, construção empreendida pelo brigadeiro José Fernandes Alpoim no século XVIII, demolida em 1911. Mais ao fundo, vêem-se prédios em construção, entre eles os do Teatro Municipal (esquerda) e Biblioteca Nacional (direita). Acervo do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, imagem usada em MENDONÇA (2004), p.45.
Oswaldo Cruz assumiu a Diretoria Geral de Saúde Pública – DGSP com a intenção de enfrentar três doenças: febre amarela, varíola e peste bubônica. Em abril de 1903, apresentou ao ministro da Justiça o plano da campanha contra o Stegomyia fasciata. Tratava-se de impedir a contaminação dos mosquitos pelos amarelentos infectantes, a infecção das pessoas receptíveis pelos mosquitos contaminados e a permanência dos casos esporádicos que garantiam a continuidade da doença nos intervalos epidêmicos (Franco, 1969; Benchimol, 1999). Quanto à varíola, bastaria vacinar a população. A peste bubônica seria detida pelo extermínio dos ratos e pelo uso do soro e da vacina fabricados em Manguinhos.
A retificação de curso e mentalidade na gestão do pasteuriano Oswaldo Cruz é visível no enquadramento de número limitado de doenças, e na ênfase aos vetores da febre amarela e da peste bubônica e à vacina, ‘ponteiro’ direcionado para o flanco da varíola. Estas setas confeririam nitidez às ações das brigadas da DGSP em meio às conflagrações do ‘embelezamento’ do Rio de Janeiro. O tumulto tragou a vacina, a peste foi subjugada, a febre amarela desapareceu do Rio de Janeiro, mas só momentaneamente.
Desenho de J. Carlos representando Oswaldo Uruz sob a forma de mosquito, montado numa seringa, em alusão à vacina antivariólica. Com o olhar posto em Cuba, o cientista brasileiro era partidário da “teoria havanesa,” de Carlos Juan Finlay, relativa à transmissão da febre amarela pelo Stegomyia fasciata (posteriormente chamado Aedes aegypti). Charge publicada na revista Tagarela, em 1903.
Antes da nomeação de Oswaldo Cruz, Pereira Passos havia intensificado a polícia sanitária nas habitações. O serviço foi incorporado à Diretoria Geral de Saúde Pública e converteu-se no Serviço de Profilaxia Específica da Febre Amarela. A cidade foi repartida em dez distritos sanitários, cujo pessoal tinha a incumbência de receber as notificações de doentes, aplicar soros e vacinas, multar e intimar proprietários de imóveis, detectar focos epidêmicos. A seção dos mapas e das estatísticas fornecia coordenadas às brigadas de mata-mosquitos, que percorriam as ruas neutralizando depósitos de água em que houvesse larvas de mosquito. Outra seção expurgava com enxofre e piretro as casas, depois de cobri-las com imensos panos de algodão, para matar os Stegomyia na forma alada. Os doentes mais abastados eram isolados (dos mosquitos) em suas próprias residências; os mais pobres iam para os hospitais de isolamento no Caju ou em Jurujuba (Niterói). As vítimas da peste, varíola e outras doenças contagiosas eram conduzidas, com seus pertences, para os desinfectórios antes de serem isoladas naqueles hospitais.
A vacina antivariólica fora declarada obrigatória em leis do século XIX não executadas por falta de condições políticas, técnicas e culturais (Chalhoub, 1996, p.161-2; Fernandes, 1999). Quando foi submetido ao Congresso o projeto de lei reinstaurando a obrigatoriedade da vacinação e revacinação contra a varíola, recrudesceu a oposição ao “General Mata-mosquitos” e ao “Bota-abaixo”. Em 5 de novembro, foi fundada a Liga Contra a Vacinação Obrigatória. Já havia sido aprovada a lei que a instituía (31.10.1904), e quando os jornais publicaram, em 9 de novembro, o esboço do decreto que ia regulamentar aquele “Código de Torturas,” a cidade foi convulsionada, por mais de uma semana, pela Revolta da Vacina (Sevcenko, 1984; Chalhoub, 1996; Carvalho, 1987). A população pagou duplamente caro por ela: além da feroz repressão, teria de suportar, em 1908, a epidemia de varíola mais mortífera que o Rio de Janeiro conheceu, em que pereceram quase 6.400 pessoas.
Ao assumir a direção-geral da Saúde Pública, Oswaldo Cruz propôs ao Congresso que o Instituto Soroterápico Federal fosse transformado “num Instituto para estudo das doenças infecciosas tropicais, segundo as linhas do Instituto Pasteur de Paris” (Benchimol, 1990, p.26). A proposta foi derrubada, mas isso não impediu que ele proporcionasse a Manguinhos as condições técnicas e materiais para que rapidamente superasse seu desenho original.
A equipe primitiva restringia-se ao diretor, a dois chefes de serviço e dois auxiliares estudantes. O Instituto era procurado por doutorandos que não encontravam na Faculdade de Medicina as condições adequadas para desenvolver trabalhos sobre microrganismos e seus hospedeiros, e o afluxo de estudantes cresceu durante as campanhas sanitárias.
O ambiente de trabalho naquele lugar afastado da zona urbana diferia da ambiência belicosa em que se davam as demolições. Os pesquisadores precisavam atender às demandas da saúde pública, mas tinham liberdade para escolher seus objetos de pesquisa. Oswaldo Cruz queria que os integrantes de seu “jardim de infância da ciência” – a expressão é dele -todos com menos de 30 anos, adquirissem confiança em si mesmos para desenvolver trabalhos próprios e originais.80
Em seus relatórios ao ministro da Justiça e Negócios Interiores, defendia o alargamento das atividades do Instituto. Elas dilatavam-se em três planos distintos – fabricação de produtos biológicos, pesquisa e ensino -, vertentes peculiares ao Instituto Pasteur de Paris e que definem, ainda hoje, o perfil do grande conglomerado que é a Fundação Oswaldo Cruz. Doenças humanas, animais e, em menor escala, vegetais enfeixavam investigações que punham a instituição em contato com diferentes ‘clientes’ e comunidades de pesquisa, reforçando suas bases sociais de sustentação. A dilatação de fronteiras tinha também conotação geopolítica, como para os institutos europeus que atuavam nas possessões coloniais africanas e asiáticas. Com freqüência cada vez maior, os cientistas de Manguinhos se embrenhariam pelos sertões do Brasil para estudar e combater doenças, especialmente a malária. Ao colocarem sua expertise a serviço de ferrovias, hidrelétricas, empreendimentos agropecuários ou extrativos, iriam deparar com problemas diferentes daqueles vivenciados nos centros urbanos. Teriam oportunidade de estudar patologias pouco ou nada conhecidas, e de recolher materiais biológicos que dariam grande amplitude às coleções biológicas do instituto e aos horizontes da medicina tropical no Brasil.
Em Manguinhos não havia separação entre as rotinas de pesquisa, ensino e fabricação de produtos biológicos. Em 1906, por exemplo, Figueiredo de Vasconcelos cuidava da preparação do soro e da vacina contra a peste, junto com Ezequiel Dias. Preparava a maleína e estudava o mormo e a transmissão da espirilose das galinhas por percevejos. Henrique da Rocha Lima chegara pouco antes da Alemanha. Além de investigar a anatomia patológica da febre amarela, estruturou o curso de especialização, com lições de bacteriologia, parasitologia, anatomia e histologia patológicas. Henrique Aragão fazia o diagnóstico da peste, preparava soro antiestreptocócico e estudava a piroplasmose eqüina. Cardoso Fontes era responsável pela conservação das culturas microbianas e pelo preparo das tuberculinas (para uso terapêutico no homem e diagnóstico de bovinos). Alcides Godoy preparava os soros antidiftérico e antitetânico e fazia a dosagem do antipestoso. Estava em vias de obter a primeira descoberta “sensacional” de Manguinhos: a vacina contra o carbúnculo sintomático, ou peste da manqueira, uma epizootia que dizimava de 40 a 80 por cento dos bezerros em vários estados brasileiros. Outros produtos veterinários seriam desenvolvidos depois (Aragão, 1950; Benchimol, 1990). Entre 1907 e 1918, a pauta industrial do instituto evoluiria de 11 para 26 produtos, a maior parte fornecida gratuitamente a hospitais e serviços sanitários. Além das vantagens econômicas para o Estado, Ezequiel Dias (1918, p.47) ressaltaria a vitória “moral” que representou a quase completa substituição da importação de imunoterápicos (Benchimol, 1990).
Como vimos, Manguinhos foi criado para importar determinadas técnicas e enfrentar uma crise sanitária bem específica. A teoria dos germes e as tecnologias médicas associadas a ela sustentaram a primeira fase de seu desenvolvimento, mas a instituição adquiriu excelência e singularizou-se no cenário científico mundial graças aos estudos sobre as doenças parasitárias nativas, vale dizer, em mais de um sentido: ‘tropicais’. O termo nos reporta não somente ao campo de ensino e pesquisa cuja gênese indicamos, mas também a dimensões geopolíticas e ideológicas similares àquelas que recobriam as relações entre as potências européias e suas colônias. Manguinhos será reconhecido como instituição de medicina tropical em virtude de suas aquisições científicas, e também por sua inserção em zona do planeta considerada ainda subalterna aos centros de civilização. Esse era um conceito em larga medida compartilhado pelas elites dos países colonizadores e do Brasil, e à luz de conceito análogo os cientistas de Manguinhos vêem as zonas interioranas que vão constituir o manancial de novas descobertas relacionadas a doenças ‘tropicais’, denotando ‘trópico’, aqui, uma relação entre litoral e interior tão desequilibrada quanto a que ligava o Brasil a Paris e outras capitais européias. Mas é preciso ter em mente ainda que Oswaldo Cruz, Adolpho Lutz e seus ‘discípulos’ são movidos por um ideal nacionalista que os impele ao esforço – bem-sucedido, como veremos – de reequilibrar essa relação e estabelecer com a elite científica dos países europeus um diálogo (ou uma competição) entre iguais.
A medicina tropical diferenciava-se em certa medida da pasteuriana, pois os problemas que buscava elucidar requeriam disciplinas e ferramentas em parte diferentes daquelas acionadas pelo programa clássico de pesquisa dos caçadores de micróbios (e vacinas). Os temas caros à medicina tropical eram os mecanismos de transmissão de doenças por artrópodes, filo que abrange as classes dos insetos e aracnídeos; os ciclos evolutivos de parasitos no meio ambiente e no meio orgânico de sucessivos hospedeiros vertebrados ou invertebrados. O estudo dessas questões requeria o conhecimento das regras de classificação das diferentes espécies de microrganismos – no período, protozoários principalmente – e de seus hospedeiros; o conhecimento dos hábitos, da distribuição geográfica e das relações com o ambiente dos transmissores comprovados ou hipotéticos de doenças (mosquitos, principalmente); a distribuição, incidência e as características clínica e anatomopatológicas das doenças de humanos e animais comprovadas ou hipoteticamente relacionadas a microrganismos e seus vetores hematófagos. Para dar cabo desse programa, era preciso recorrer à entomologia, à parasitologia (especialmente a protozoologia), e ainda à história natural, botânica, ecologia e epidemiologia (Worboys, 1996, p.181-207; Benchimol & Sá, 2005, p.43-457; Caponi, 2003).
Uma nova geração de profissionais polivalentes: médicos, bacteriologistas, sanitaristas e entomologistas
Uma das áreas em que mais se investiu na fase inaugural do Instituto de Manguinhos foi a entomologia, a cargo do próprio Oswaldo Cruz e de Arthur Neiva e Carlos Chagas. Segundo o corte da distribuição de atividades promovido em 1906, Neiva fazia sistemática de mosquitos e experiências com espectrofotometria, ao passo que Chagas estudava a vida e os hábitos dos transmissores da malária.
Carlos Chagas procurou o Instituto em 1902, por intermédio de Francisco Fajardo, em cujo laboratório, na Santa Casa de Misericórdia, adquirira o primeiro contato com os estudos sobre a hematologia e o parasito da malária. Freqüentou Manguinhos até março de 1903, quando concluiu a tese intitulada “Estudos hematológicos no impaludismo”.81 Em 15 de junho Oswaldo Cruz contratou-o para que trabalhasse no Instituto, mas Chagas preferiu a clínica e, em março de 1904, conseguiu ser lotado no hospital de isolamento de Jurujuba (Niterói), complementando os vencimentos do emprego público com os de seu consultório particular. No ano seguinte, Cândido Gaffrée solicitou ao diretor-geral da Saúde Pública a indicação de um médico capaz de fazer a profilaxia da malária em Itatinga, onde a Companhia Docas de Santos construía uma represa hidrelétrica, cujas obras estavam virtualmente paralisadas por causa da doença. Oswaldo Cruz encarregou Chagas da missão.82
Tendo sido desvendado o modo de transmissão da malária, ingleses, alemães e italianos empenharam-se em estabelecer medidas para combatê-la, visando os mosquitos que atuavam como vetores, e os portadores do parasito. A profilaxia abrangia métodos de natureza ofensiva e defensiva. Os primeiros visavam à eliminação dos anofelinos através de campanhas de feição militar. As “brigadas contra os mosquitos,” expressão cunhada por Ross, deveriam atacá-los em seu estágio larval aquático, tanto por meio de substâncias tóxicas (como o petróleo), quanto pela drenagem dos terrenos alagadiços.83 As medidas defensivas consistiam na proteção individual e coletiva de humanos por meio de cortinados nas camas, e de telas nas portas e janelas das casas. Chamava-se profilaxia ‘específica’ ou ‘terapêutica’ a ingestão de quinina para eliminar o hematozoário do corpo dos doentes. Ingleses e norte-americanos privilegiavam o ataque ao vetor, ao passo que os alemães, italianos e franceses davam mais ênfase ao combate ao parasita mediante a ação germicida da quinina (Worboys, 1993, p.524-5).
Partindo de equação análoga àquela empregada por Oswaldo Cruz no combate à febre amarela – romper a cadeia de transmissão, impedindo que o doente contaminasse o mosquito, e que este infectasse o homem são – Chagas (1906) aperfeiçoou em Itatinga procedimentos que iriam tornarse corriqueiros em outras campanhas antipalúdicas. O ataque ao mosquito não poderia restringir-se às ações antilarvárias, tendo em vista a dificuldade de implementá-las nas regiões inóspitas, pouco povoadas, onde se davam as construções hidrelétricas e ferroviárias. Além disso, acreditava Chagas que os insetos deviam ser combatidos principalmente em sua forma adulta, no interior dos domicílios, onde, na maior parte das vezes, ocorria tanto a sua contaminação pelo doente parasitado como a infecção do indivíduo são. A destruição domiciliária dos anófeles era feita através de fumigações com enxofre ou piretro. Décadas depois, com o advento dos inseticidas sintéticos de ação residual, como o DDT, esse método seria utilizado em larga escala nos programas que culminaram na mal-sucedida tentativa de erradicação mundial da malária.84
Henrique da Rocha Lima e Ezequiel Dias fotografados por J. Pinto em frente ao laboratório do Instituto Soroterápico. Rio de Janeiro, 1904. Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação – Imagem IOC(I)11-3.2-1.
Reunião de cientistas no barracão que servia de biblioteca e gabinete fotográfico do Instituto Soroterápico. Estas “sessões científicas” eram realizadas todas as quartas-feiras, à noite, para debater as publicações recebidas de instituições biomédicas nacionais e estrangeiras. De costas, Alcides Godoy; à sua direita: Antônio Cardoso Fontes, Rocha Lima, Oswaldo Cruz (o que escreve, debruçado sobre a mesa), Henrique Marques Lisboa, Carlos Chagas, Ezequiel Dias, Rodolpho de Abreu Filho, Paulo Parreiras Horta, Henrique Aragão e Afonso Mac Dowel. Rio de Janeiro, 1904. Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação – Imagem IOC(OC)4-1.
Ao regressar ao Rio de Janeiro, Chagas continuou vinculado à Diretoria Geral de Saúde Pública, transferindo-se para Manguinhos em 19 de março de 1906. Esse foi o ano em que ingressou Arthur Neiva.
Vinte e cinco anos mais moço que Adolpho Lutz, Neiva nasceu em 22 de março de 1880, em Salvador, Bahia.85 Naquela capital, iniciou o curso de medicina, mas no segundo ano transferiu-se para a Faculdade do Rio de Janeiro, onde se formou em 1903, defendendo, dois anos depois, tese sobre as várias aplicações de uma substância anestésica, a estovaína. Quando Oswaldo Cruz assumiu a direção da DGSP, Neiva foi um dos primeiros acadêmicos recrutados para o Serviço de Profilaxia Específica da Febre Amarela.86 Sua cultura geral e seu amor à pesquisa chamaram a atenção do chefe, Dr. Antônio Pacheco Leão, que o recomendou a Oswaldo Cruz. Para viabilizar seu ingresso em Manguinhos, este o nomeou auxiliar técnico do Laboratório Bacteriológico da Saúde Pública.
Em 1906, Neiva publicou seu primeiro trabalho em entomologia: a descrição de nova espécie de mosquito transmissor de malária. Em fevereiro do ano seguinte, executou, com Carlos Chagas, a profilaxia da doença na Baixada Fluminense, onde a Inspetoria Geral de Obras Públicas iniciava a adução das águas dos rios Xerém e Mantiqueira para o abastecimento da cidade do Rio de Janeiro. Em Ponta dos Trilhos foi erguido um laboratório e um hospital de isolamento, provido de telas metálicas e tambor à prova de mosquitos. As intervenções no meio ambiente ficaram a cargo da própria Inspetoria, e entre as medidas antilarvárias – proteção aos depósitos de água nas casas, petroleação de poças, aterro dos charcos – figurava a destruição de bromélias – incorporando, portanto, a teoria de Lutz sobre a malária das florestas. O emprego de peixes nos depósitos de água (Chagas Filho, 1993, p.78) antecipava uma prática mais tarde amplamente utilizada pela Fundação Rockefeller para destruir as larvas do Aedes aegypti, o transmissor da febre amarela. Ao mesmo tempo, Neiva e Chagas implementavam severas medidas da profilaxia química e mecânica: ingestão obrigatória de 50 centigramas de quinina, duas vezes por semana, sendo o tratamento extensivo aos indivíduos infectados residentes na região; isolamento dos portadores de gametas e desinfecção sistemática das moradias com piretro.87
Durante os onze meses de permanência em Xerém, Neiva comprovou que as doses de quinina preconizadas não apenas eram insuficientes como faziam surgir raças quinino-resistentes do plasmódio. Só em 1910 seria publicada essa teoria, de grande atualidade.
Em março de 1908, Neiva foi nomeado assistente do Instituto Oswaldo Cruz, sendo-lhe confiada a organização da biblioteca de Manguinhos.88 Naquele ano, ele e Chagas comandariam outras campanhas antipalúdicas no interior do Brasil. O desenvolvimento da entomologia em Manguinhos guarda íntima relação com essas campanhas, e os trabalhos que publicaram no período – desdobramentos daquele iniciado por Oswaldo Cruz em 1901 – têm por objetivo o reconhecimento dos transmissores da malária no Brasil. Até a criação das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, em 1909, continuariam a ser veiculados em O Brazil-Medico. Os subtítulos que às vezes os acompanhavam – “Trabalho do Instituto de Manguinhos” -, o uso de certas expressões e o próprio esforço de intervir mais ativamente na sistemática do grupo denotam a preocupação em firmar a identidade de um coletivo de pesquisa no âmbito daquela disciplina emergente. Até 1910, Adolpho Lutz continuou a desempenhar o papel de mediador com as autoridades do campo, sobretudo Theobald.
Em carta endereçada a ele, em 13 de julho de 1906, Oswaldo Cruz referiu-se a numerosos mosquitos coletados em Minas Gerais, em meio aos quais figurava “uma outra anofelina nova que o Neiva descreveu”.89 Lutz propôs a divulgação do trabalho na Revista Medica de São Paulo, mas o diretor de Manguinhos explicou que os originais já haviam sido entregues à redação de O Brazil-Medico. De fato, em suas páginas saiu o primeiro trabalho entomológico de Arthur Neiva, com a descrição do Myzomyia tibiamaculata (Neiva, 1906, p.288-9).90 “Estamos preparando um grande viveiro para a criação e estudo dos hábitos dos mosquitos em vida; assim como da transmissão do impaludismo pelos anofelinos brasileiros” – comentou Oswaldo Cruz em carta datada de 31 de agosto de 1906.91
Desenho de larva da espécie Aedes aegypti Meigen. HOWARD, DYAR e KNAB (1912), prancha 76.
No ano seguinte, Carlos Chagas publicou no mesmo periódico três trabalhos, que foram reunidos em opúsculo intitulado Novas espécies de culicidios brasileiros.92 Adolpho Lutz colocara aquela descrita por Oswaldo Cruz em 1901 (Anopheles lutzii) no gênero Pyretophorus. Bourroul a redescrevera em sua tese (1904), cometendo, porém, equívocos; com base nestes dados, Theobald reclassificara aquele anófeles como Myzorhynchella nigra. “Manguinhos deseja restabelecer a realidade dos fatos, reavendo a nova espécie … sobre a qual tem direito de prioridade” – reivindicava Chagas em 1907. A descrição mais exata que apresentava agora justificaria a sinonímia de Pyretophorus lutzii e Myzorhynchella nigra, e sua substituição por “nova espécie de Gonçalves Cruz, Myzorhynchella lutzi” (p.3-4).93
Chagas descreveu duas outras espécies novas muito parecidas com a anterior: Myzorhynchella parva e Myzorhynchella nigritarsis.94 “A tendência do Instituto de Manguinhos” – fala orgulhosamente – “seria delas fazer variedades da mesma espécie e não espécies distintas. Seguindo, porém, nesse assunto a norma do prof. Theobald, somos forçados a aceitar como suficientes para diferenciar as espécies os caracteres distintos de cada uma das anofelinas” (p.12).
Chagas também descreveu a Cellia braziliensis, que tinha muitas semelhanças com a Cellia argyrotasis, e alguma com a Manguinhosia lutzi,95 esta última proposta por Oswaldo Cruz no mesmo ano. A nova espécie de Taeniorhynchus Chagas denominou, no trabalho de 1907, juxtamansonia, apresentando inclusive três microfotografias96 para mostrar as diferenças em relação ao T. fasciolatus e ao Mansonia pseudotitillans no tocante à disposição das escamas nas asas (p.23-8).
Naquele mesmo período, Oswaldo Cruz publicou dois trabalhos em entomologia. No primeiro (1906), propôs a criação de novo gênero na subfamília Anophelinae – Chagasia – para abrigar nova espécie que denominou Chagasia neivae. O primeiro dos homenageados capturara em Juiz de Fora, Minas Gerais, esse mosquito estudado e descrito por Neiva em Manguinhos.
Com base em material coletado também por Chagas, às margens do Rio Bicudo, em Minas, Oswaldo Cruz propôs em 1907 outro gênero novo na mesma subfamília – Manguinhosia – para agasalhar espécie que batizou em homenagem a Adolpho Lutz como Manguinhosia lutzi.97 Seria rebatizada com o nome de Anopheles peryassui no ano seguinte, quando se verificou que era, na verdade, um anófeles.
O primeiro gênero continua válido, formando com Anopheles e Bironella a subfamília Anophelinae. Segundo Consoli e Oliveira (p.59-60), os mosquitos do gênero Chagasia, abundantes em certas localidades, são essencialmente silvestres, e têm por habitat pequenos córregos, especialmente aqueles que descem as encostas das montanhas. Suas larvas criam-se nas margens de riachos de fundo arenoso e águas límpidas, entre as raízes e detritos vegetais que as protegem da correnteza. Estudos posteriores demonstrariam que os adultos preferem picar junto à copa das árvores. Ainda não se conhece a importância epidemiológica das espécies de Chagasia.
Em outro trabalho publicado em 1906-1907, sobre a profilaxia do impaludismo, Carlos Chagas fez um balanço dos anófeles então conhecidos no Brasil:
2 Cellia (argyrotarsis e albipes); 2 Myzomyias, o Myzomyia lutzi e o Myzomyia tibia-maculata (recém-descritas em Manguinhos pelo Dr. A. Neiva); e 2 Pyretophorus, o Pyretophorus lutzi e uma outra espécie não descrita, cujos exemplares pertencem ao Instituto de Manguinhos, onde vão ser estudados. Novo gênero foi criado há pouco pelo Dr. Oswaldo Cruz, com uma espécie brasileira, a mesma a que o Dr. A. Lutz deu a denominação de Pyretophorus fajardoi. Sobre este ponto, para resolvê-lo, é esperada a opinião de Theobald.
De fato, em 21 de junho de 1906 – um mês depois de escrever o trabalho publicado em O Brazil-Medico -, Oswaldo Cruz tratou longamente daquele assunto com Adolpho Lutz. Acabara de receber dele um exemplar do P. fajardoi para comparação com o Chagasia.
Realmente é o mesmo mosquito, mas quis-nos parecer que, sem alterar as descrições existentes, não a podíamos incluir no gênero Pyretophorus pelas seguintes razões:
1° segundo Blanchard (criador de gênero) todos os Pyretophorus têm as asas manchadas. Esse caráter falta a nosso mosquito.
2° O Pyretophorus, segundo Theobald, tem escamas nas ‘labelas’ da fêmea. O nosso mosquito não tem escamas.
3° O modo de pousar na Pyretophorus é típica, como é típica para todos os Anophelinae, exceto já o Stethomyia, como o amigo se refere na tese de Bourroul. A posição do mosquito que estudamos é muito particular, como procurei mostrar com o esquema que enviei-lhe e com desenhos que estou mandando fazer. Além disso, o comprimento do pescoço é enorme. Não sei se existe pescoço tão longo em outros culicídeos. Esse mosquito vive em zonas onde abunda o Pyret. lutzi e tem hábitos diversos. A Chagasia é um mosquito muito resistente, pica durante o dia dentro das matas e conserva-se bastante tempo em cativeiro. O Pyr. lutzi dessas zonas é quase que exclusivamente crepuscular e morre facilmente em cativeiro. Estamos à espera de obter larvas para comparar com os dos Pyretophorus.
Creio que não seria desarrazoado criar-se um novo gênero para esse mosquito, que tantas particularidades anatômicas apresenta. (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 213)
A conselho de Lutz, Oswaldo Cruz enviou um exemplar a Theobald. O portador foi Rocha Lima, que já estivera na Alemanha antes de ingressar em Manguinhos, e que regressou àquele país em outubro de 1906, para completar seus estudos de anatomia e histologia patológicas. Oficialmente, viajou em comissão para estudar “os melhoramentos a introduzir no Instituto” e para inaugurar, a convite de Fischer, a seção de estudos da peste no Instituto de Higiene de Berlim.98 Em Londres, entregou ao entomologista do Museu Britânico a seguinte carta de Oswaldo Cruz, escrita em francês (9.7.1906):
O senhor deve receber das mãos do sr. dr. Rocha Lima, chefe de serviço no Instituto de Manguinhos, um exemplar de um mosquito que descrevi no “Brazil-Medico” sob o nome de Chagasia neiva. Julguei que devia formar um novo gênero devido aos caracteres anatômicos importantes que este inseto apresenta … Enviei um exemplar a meu cultivado compatriota e amigo particular, o senhor doutor Lutz de São Paulo, e ele, inclinado também a ver um novo gênero, aconselhou-me a pedir sua opinião. O senhor Lutz havia descrito esse mosquito a partir de um único exemplar, e o colocara no gênero Pyretophorus, dando-lhe o nome de P. fajardoi. Mas agora crê que tem elementos suficientes para criar um novo gênero. Junto com o mosquito envio-lhe a descrição, fotografias e a correspondência com Lutz. Se o senhor quiser me honrar com uma resposta, ser-lhe-ei muito grato.
É justamente a imagem do Chagasia fajardoi que se vê na capa de Os anophelinos do Brasil, tese de um doutorando de medicina que foi orientado por Oswaldo Cruz e co-orientado por Adolpho Lutz. Para a historiografia da entomologia médica brasileira, tem significação quase equivalente à tese defendida por Celestino Bourroul quatro anos antes. Seu autor, Antônio Gonçalves Peryassú, da mesma geração que o médico paulista, nasceu no Pará em 1879, e também estudou na Faculdade de Medicina da Bahia, transferindo-se em 1902 para a do Rio de Janeiro, onde se doutorou somente em 1908. Foi aluno do curso de aplicação de Manguinhos e estudou no Instituto Pasteur de Paris.99
No prefácio escrito quando foi publicada sua tese, em 1921,100 Peryassú discorria, em linguagem singela, afeita ao grande público, sobre o importante papel que os insetos desempenhavam na natureza. Antes de chegar ao grupo que de fato estudara, referia-se a duas categorias de transmissores de doenças que, “nestes últimos anos, têm assumido importância capital na patologia … dos povos que habitam as zonas quentes”. A primeira era constituída de meros portadores de bactérias que causavam doenças como a tuberculose, a febre tifóide, o cólera etc. Seus agentes etiológicos eram eliminados em secreções e excreções facilmente acessíveis às diferentes espécies de moscas que, em seguida, contaminavam alimentos, feridas e mucosas do homem e dos animais.
A segunda categoria de transmissores era formada por espécies hematófagas que participavam da evolução do microrganismo patogênico, hospedando-o antes de ele alcançar o homem. Os insetos hematófagos desempenhavam papel predominante na veiculação da maioria das doenças produzidas por protozoários, em algumas causadas por bactérias (peste bubônica, por exemplo, propagada pelas pulgas) e numa doença relacionada a helminto – a filariose humana, transmitida por diversas espécies de culicídeos:
Assim, a malária tem como vetores os mosquitos anofelinos; a febre amarela, o Stegomyia calopus; as leishmanioses, os flebótomos; a doença de Chagas, os triatomas; a doença do sono, as moscas glossinas; o mal de cadeiras, as motucas. Enfim, as várias tripanoses, espiroquetoses, espiriloses, etc., dos animais, são propagadas por várias espécies de insetos.
No Brasil, os principais sugadores de sangue eram os culicídeos, os flebótomos, os tabanídeos, os simuliídeos, os culicóides e ceratopogonídeos, os hemípteros e os sifonápteros. Peryassú detinha-se no primeiro grupo:101 tinham sido descritas até então 134 espécies de culicídeos brasileiros, distribuídas nas subfamílias Anophelinae, Megarhininae, Culicinae, Aedinae, Uranoloeninae, Trichoprosoponinae e Dendromyinae. “São quase todas hematófagas. Mas as espécies nocivas ao homem pertencem todas às subfamilias Anophelinae e Culicinae.”
Como bom sistemata, do geral ao particular o médico paraense chegou, finalmente, ao grupo que estudara,
as espécies pertencentes à subfamília Anofelinae, representada no Brasil por sete gêneros: Anopheles, Myzorhynchella, Manguinhosia, Cyclolepteron, Cellia, Chagasia e Stethomyia, com dezenove espécies, das quais são exclusivamente brasileiras as seguintes: Anopheles: matogrossensis, tibia-maculatus e gilesi; Myzorhynchella: lutzi, parva e nigritarsis; Manguinhosia lutzi; Cyclolepteron: intermedium e pseudo-maculipes; Cellia: brasiliensis, tarsimaculata e allofa e Chagasia fajardoi.
Larva da espécie Anopheles (Myzomyia) lutzi. O desenho de Manoel Castro e Silva foi publicado em PERYASSÚ (1921).
“Tenho umas informações a pedir-lhe, que têm por fim servir de orientação a uma tese, que um dos estudantes, que freqüentam Manguinhos, vai escrever sobre ‘Mosquitos do Brasil’” – escreveu Oswaldo Cruz a Adolpho Lutz, cerca de um ano antes de Peryassú defender sua tese (10.4.1907).102 Perguntava então se existia no Brasil o Culex albifasciatus a que se referia Theobald, e se a Dendromyia leucostigma era a D. arthrostigma encontrada no país. Pedia, também, a Lutz que emprestasse exemplares de três espécies de Melanoconion – theobaldi, fasciolatum e spissipes -, e que autorizasse o doutorando paraense a usar o esquema que havia produzido, relativo à variação das manchas brancas de Megarhinus ferox:
Pedia-lhe mais que nos proporcione elementos novos de que possa dispor sobre o assunto.
O trabalho compõe-se: 1° De uma adaptação da classif. de Theobald aos mosquitos brasileiros. 2° Descrição das espécies brasileiras. 3a Distribuição geográfica. 4° Observações feitas em Manguinhos. 5° Estudos experimentados sobre biologia do Stegomyia fasciata e de outros mosquitos comuns.
O diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo atendeu rapidamente a aqueles pedidos, porque cinco dias depois Oswaldo Cruz agradecia e comentava: “teria muito desejo de mandar-lhe meu discípulo aí uns 15 dias, mas creio que infelizmente não o poderá porque tem ele que defender a tese em breve”.103 Semanas depois (17.6.1907), teve acesso ao quarto volume da monografia de Theobald, e logo escreveu a Lutz:
Permita-me que, em meu nome e no de todos os companheiros de Manguinhos apresente-lhe as nossas mais entusiásticas felicitações pela devida justiça que lhe é feita pelo Theobald, que entregou-lhe o bastão de primeira autoridade no assunto.
Como brasileiros sentimo-nos verdadeiramente orgulhosos e como amigo gozamos também da justa satisfação de que se acha possuído. (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 213, maço 1)
A correspondência entre ambos mostra que a colaboração no tocante à transmissão de hematozoários ao homem e a outros hospedeiros não se restringiu aos insetos, e envolveu outros personagens das equipes paulista e carioca.
Segundo aquele corte da distribuição de atividades em Manguinhos em 1906, Henrique Aragão, que ingressou no Instituto à mesma época que Chagas e Neiva,104 cuidava, entre outras coisas, da classificação sistemática de uma família de carrapatos, os ixodídeos. Essa linha de investigação levou-o a desenvolver um produto veterinário que começou a ser preparado, em escala industrial, em 1907: a vacina contra a espirilose das galinhas, doença infecciosa causada pelo Spirillum gallinarum, bactéria transmitida às aves de curral por Argas – um gênero de carrapatos da família Argasidae.
Tudo indica que a investigação foi proposta por Adolpho Lutz, em função de uma problemática que, em certa medida, se entrecruza com a da malária. Atualmente, os Argas são reconhecidos como vetores de bactérias do gênero Spirochaeta, mas o interesse por eles, àquela época, tem relação com a descoberta da chamada febre do Texas ou piroplasmose bovina. Hoje sabe-se que é um ‘complexo patogênico’, também conhecido como Tristeza Parasitária, que acomete bovinos e outros animais picados por carrapatos da espécie Boophilus microplus, que serve de hospedeiro intermediário a dois parasitos, uma riquétsia do gênero Anaplasma (Ana-plasmose) e um protozoário do gênero Babesia (Babesiose).105
No começo do século XX, a febre do Texas era uma entidade única. O bacteriologista romeno Victor Babès havia descrito em 1888 o agente causal da hemoglobinúria bovina (B. bovis). Em 1893, Theobald Smith e F. L. Kilborne identificaram não apenas o agente da febre do Texas (Babesia bigemina), como seu modo de transmissão através de um carrapato da espécie Boophilus annulatus. No Brasil, a primeira publicação sobre a doença foi feita por Francisco Fajardo (1901), com base na observação de animais recém-importados e em fase de aclimatação no Rio de Janeiro.106
Em 16 de julho de 1906, Adolpho Lutz comunicou a Oswaldo Cruz que estava começando a estudar os Argas e propôs que Manguinhos colaborasse. Uma semana depois (29.7), Cruz declarou que estavam “inteiramente” à sua disposição: “Peço-lhe indicar-nos suas idéias e o programa a seguir”. Tinham já boa quantidade de Argas, em cativeiro, sendo alimentados apenas com galinhas. Um mês depois (31.8), reiterou: “Estamos dispostos e muito empenhados em fazer os estudos que nos lembra e espero apenas suas instruções”. Em setembro de 1906, estavam em curso, “começando pelo estudo sistemático do sangue das galinhas” (10.9.1906). Oswaldo Cruz comunicou então ao diretor do Instituto Bacteriológico que em breve um de seus assistentes – referia-se a Henrique Aragão – iria a São Paulo para estudar a histoplasmose,107 doença então relacionada a um protozoário, e para pedir novas instruções sobre os argas. E acrescentou: “Nada temos encontrado nas galinhas examinadas que nos possa dar idéia de filária ou de seus embriões”.108
Aragão e Lutz continuaram a trocar informações e materiais biológicos relacionados a esse objeto de pesquisa até a transferência do último para o Instituto de Manguinhos. Em carta a Aragão, datada de 5 de junho de 1907, Lutz acusava o recebimento de carrapatos, “indubitavelmente uma espécie de Rhipicephalus e que me parecem idênticos a alguns exemplares de sanguineus de origem africana que tinha na minha coleção … não há nada de dizer contra a sua ocorrência no Rio de Janeiro; parece-me todavia que se trata de espécie introduzida. Pelo menos aqui não as encontrei entre um número bastante grande de carrapatos caninos”. Nessa carta, Lutz referia-se a Argas miniatus que encontrara também em Campinas, e a seu interesse por outro gênero – Amblyoma – possivelmente envolvido com a transmissão de doenças ao homem e ao gado: “Achei mais um Amblyoma talvez novo e muitos outros exemplares … que só provêm do litoral e do interior mais quentes … recebi também exemplares de Tucuman” (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 194).
Em meados de 1908, Lutz ainda recebia Argas infeccionados por Henrique Aragão.109 Sob a orientação dele e de Oswaldo Cruz, o jovem bacteriologista de Manguinhos fazia experiências de infecção de aves não apenas com microrganismos do gênero Spirillum, mas com nematódeos (filarias) e protozoários, seguindo, neste último caso, o modelo experimental explorado por Ross no estudo do plasmódio da malária, cujo ciclo nessa classe de hospedeiros não fora completamente elucidado. Nesse terreno, Aragão desenvolveu um trabalho que teria grande repercussão nos centros de medicina tropical europeus.
Em 2 de março de 1907, Oswaldo Cruz indagava a Lutz: “Desejava saber em que animais tem encontrado, entre nós, os halterídios e hemogregarinas; depois de seu trabalho publicado em 1900 sobre os ‘drepanídios das serpentes’ no Centralblatt”.110 No mês seguinte (15.4.1907), o diretor de Manguinhos comentou, entusiasmado: “O Aragão conseguiu transmitir o halterídio do pombo pela Lynchia [gênero de díptero da família Hippoboscidae], tendo verificado uma evolução no pulmão do pombo. O 2° número de O Brazil-Medico publica uma nota preliminar” (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 213).
O trabalho de Aragão veio a lume em 1907 com o título “Sobre o ciclo evolutivo do halterídio do pombo”. Sabia-se que o protozoário Haemoproteus columbae infectava as células vermelhas do sangue de pombos, e fora já identificada sua reprodução sexual, mas nada se sabia sobre a reprodução assexual no hospedeiro vertebrado. Aragão mostrou que ocorria no endotélio pulmonar por um processo denominado “esquizogonia”. A descoberta do ciclo exoeritrocitário do Haemoproteus columbae representou contribuição decisiva, pois ajudou a compreender como os agentes da malária e de outras doenças causadas por protozoários evoluíam no organismo de seus hospedeiros vertebrados.111
Naquele mesmo ano, Adolpho Lutz produziu análise muito interessante do estado da arte nesse campo de pesquisa, destacando os problemas que vinha investigando com o pessoal de Manguinhos. O trabalho chamava-se “A transmissão de moléstias por sugadores de sangue e as espécies observadas entre nós”. Foi apresentado ao III Congresso Médico Latinoamericano, que se realizou na capital do Uruguai em 1907, juntamente com uma Exposição Internacional de Higiene. Os diretores de Manguinhos e do Instituto Bacteriológico de São Paulo não puderam comparecer ao evento; a comunicação de Lutz foi entregue à presidência do congresso por J. I. de Oliveira Borges, médico auxiliar do Serviço de Profilaxia da Febre Amarela, da DGSP. Deve ter sido lido por ele na seção de 23 de março de 1907, em que Borges apresentou comunicação de sua própria autoria sobre a “Profilaxia da febre amarela no Rio de Janeiro”.112
Passando os olhos pelos índices dos cinco tomos das Actas do Congresso, encontramos os nomes de vários médicos do Brasil, quase todos do Rio de Janeiro.113 Examinando-se os títulos das comunicações de brasileiros e latino-americanos, verificamos forte prevalência do diagnóstico, tratamento e profilaxia da tuberculose, sífilis e outras doenças venéreas, sobretudo na seção de Higiene e Demografia, em que se debateu muito a higiene pública e a escolar. Não se encontra, porém, nenhum trabalho similar ao de Adolpho Lutz, concernente a qualquer um dos temas caros à medicina tropical, exceto a comunicação do funcionário de Oswaldo Cruz, que tratava, porém, mais dos aspectos práticos da campanha contra a doença transmitida pelo Stegomyia fasciata.114 Não obstante seja abrangente e up-to-date, o trabalho de Lutz é vazado em estilo didático; percebe-se a intenção de instruir seus colegas de profissão e, ao mesmo tempo, demarcar as incógnitas mais instigantes para os que quisessem se aventurar por aquele terreno de pesquisa, tanto no campo da medicina humana como na veterinária. Lutz começa o trabalho direcionando a atenção do leitor para o sangue, que serve para alimentar os tecidos do organismo de seu “dono legítimo” e também os de outras espécies:
pouca gente tem uma apreciação correta da freqüência e intensidade com que este parasitismo se observa no reino animal, e quantos organismos vivem unicamente deste líquido orgânico, abundante e facilmente encontrado. Contam-se por milheiros as espécies parasitárias que se alimentam com o sangue do homem e de outros vertebrados.
Deixando de lado os organismos que parasitam invertebrados, assim como os vermes que habitam o tubo gastrintestinal ou o sistema circulatório do homem, Lutz trata principalmente dos “parasitas exteriores” – usa também “ectoparasitas” -, cujos “assaltos” tinham três tipos de conseqüência: a perda direta de sangue, mais grave no caso de morcegos e sanguessugas; lesão mecânica e irritação consecutiva à inoculação de secreções venenosas, como nas mordeduras de pequenos sugadores de sangue, especialmente ceratopogonídeos (maruim ou mosquitos-do-mangue) e algumas espécies de Simulium: “Tem-se observado a morte de milheiros de animais domésticos em conseqüência das suas mordeduras numerosas e irritantes”.
A terceira conseqüência, a mais grave, é a que mais interessa a Lutz: a inoculação de microrganismos patogênicos pelos ectoparasitas.
Esta possibilidade foi pressentida há muito tempo, mas foi somente nos últimos anos que se chegou a formar uma idéia aproximativa da sua importância enorme para a patologia do homem e dos animais domésticos, principalmente nas zonas quentes, onde freqüentemente constituirão o mais sério obstáculo ao progresso da cultura.
A relação com o clima nada tem a ver com as explicações dadas pela geografia médica à época em que reinava a teoria dos miasmas. O que importa agora são suas relações com a fisiologia dos organismos envolvidos nesses ‘complexos’ parasitários:
A passagem do sangue do hospedador para o organismo de um inseto hematófago traz um abaixamento considerável da temperatura do ambiente. Sendo esta grande demais, haverá uma interrupção temporária ou definitiva na evolução do parasita ingerido. Por isso se explica que a maior parte dos hematozoários, que vivem alternadamente em animais com sangue quente e artrópodes sugadores de sangue, propagam-se somente em clima quente, ou durante a estação quente nos climas temperados. Também a propagação dos transmissores e a intensidade dos seus instintos sanguinários dependem da temperatura, e o conjunto dos fatos enumerados nos explica o caráter especial da patologia dos países quentes em geral, e a distribuição local de certas moléstias que dependem da fauna local de insetos e aracnídeos sugadores de sangue.
Os parasitas habituais do sangue humano, que a ele chegavam depois de passar pelo organismo de um inseto ou aracnídeo hematófago, pertenciam a dois grupos: protozoários e metazoários; neste último caso, eram nematódeos do gênero Filaria.
Na correspondência reproduzida há pouco, ficou claro o interesse de Adolpho Lutz e Oswaldo Cruz por esse gênero de parasitas do sangue. O mais conhecido era a Filaria bancrofti, graças a uma linhagem de investigações que começou com Theodor Bilharz e Wilhelm Griesinger, no Egito (1851), e Otto Wucherer, na Bahia (1865), passando por Timothy Lewis, em Calcutá (1872) e Joseph Bancroft, na Austrália, até chegar a Patrick Manson, que concatenou as observações desses predecessores e desvendou boa parte do ciclo do parasita em 1877-1878. Chegou assim ao mosquito Culex, a espécie mais comum nas regiões onde reinava a filariose. Em 1879 comprovou que as microfilárias eram adaptadas aos hábitos noturnos do mosquito: cumprindo uma ‘lei de periodicidade’, invadiam a circulação periférica ao cair da tarde e refluíam durante o dia. Dissecando o Culex em períodos sucessivos, reconstituiu a metamorfose do embrião em larva e, em seguida, na forma adulta da Filaria sanguinis hominis, já equipada para abandonar seu hospedeiro e levar vida independente.115
Em 1907, o número de espécies conhecidas de Filaria era grande e tendia a aumentar. O próprio Lutz observara no sangue de vertebrados
perto de vinte formas embrionárias ou microfilárias, cuja classificação está ainda longe de ser completa, enquanto a evolução, na maior parte dos casos, fica completamente desconhecida. Há aqui assunto para muitos estudos, e as soluções destas questões devem ser interessantíssimas; mas só podem ser obtidas a custo de trabalhos longos e pacientes. Até hoje os transmissores privilegiados parecem [ser] as Culicidae ou mosquitos legítimos; mas será preciso experimentar com várias espécies e estudar também o papel de outros sugadores de sangue. Com mosquitos e microfilárias de pássaros tive vários resultados negativos.
Ao tratar dos protozoários, Lutz detém-se no grupo que reverberava então com mais força no horizonte da medicina tropical: os tripanossomos. Logo, o Instituto de Manguinhos obteria grande prestígio internacional com a descoberta de uma nova tripanossomíase humana, a Doença de Chagas. As primeiras observações sobre a ocorrência desses protozoários no Brasil tinham sido feitas, anos antes, pelo próprio Lutz, que os encontrara em roedores e batráquios.
Aquela linha de investigação remonta, na verdade, a David Gruby que, em 1843, propôs o nome ‘tripanossomo’ para designar um parasita encontrado por ele no sangue de uma rã (Trypanosoma sanguinis). Em 1881, um cirurgião veterinário que vivia na Índia, Griffith Evans, encontrou-os no sangue de camelos e cavalos que morriam de uma doença conhecida localmente como ‘surra’. Seu agente ganhou depois o nome de Trypanosoma evansi.
Em 1895-1896, na África do Sul, o médico militar britânico David Bruce, já famoso pela descoberta, dez anos antes (1884), da etiologia e modo de transmissão da febre de Malta (brucelose), verificou que os tripanossomos (Trypanosoma brucei brucei) eram os agentes de outra doença, a nagana, que acometia cavalos e gado em algumas partes da África. Demonstrou também que era transmitida por moscas do gênero Glossina e que os antílopes e búfalos constituíam os reservatórios silvestres do parasito.116
Em 1903, os bacteriologistas argelinos Etienne (1878-1948) e Edmond Sergent (1876-1969), do Instituto Pasteur de Paris, descobriram no sangue de camelos outra variedade desse grupo de protozoários, que denominam Trypanosoma berberum, agente etiológico do debad, uma doença de camelídeos. Verificaram também que a transmissão se dava pela picada de mutucas.117
Edmond Sergent (1876-1969).
HOWARD (1930), prancha 48.
Pouco tempo depois (1901), um parasita estranho foi encontrado no sangue de um capitão que adoeceu em Gâmbia, onde pilotava barcos fluviais. Seu médico não conseguiu identificar o parasita, e o doente foi repatriado para a Inglaterra. No ano seguinte, Dutton, da Escola de Medicina Tropical de Liverpool, reconheceu outro tripanossomo. Levando em conta a origem do paciente, Aldo Castellani deu-lhe o nome de T. gambiense. Esse mesmo investigador encontrou em 1903 tripanossomos no fluido cerebroespinhal de pessoas mortas em conseqüência da chamada doença do sono, na África Oriental. Quando foram associados a uma doença humana, denominada também African trypanosomiasis ou Tripanossomíase do Congo, o governo britânico incumbiu Bruce de desvendar seu mecanismo de infecção e transmissão. Como chefe da Royal Society's Sleeping Sickness Comission, ele viajou para Uganda e, mais uma vez, associou um inseto (a mosca tsé-tsé) à transmissão da primeira tripanossomíase humana conhecida.118
Esquema da epidemiologia da doença de Chagas, segunda tripanossomíase humana conhecida. O tatu desempenha a função de hospedeiro do Trypanosoma cruzi. O barbeiro, um inseto reduviídeo, torna-se vetor da doença ao ingerir o sangue do tatu infectado com tripanossomos. Estes multiplicam-se no intestino do inseto, são expelidos nas fezes e, quando o barbeiro pica o homem, entram em contato com sua pele e mucosa. MACKIE, HUNTER III & WORTH, 1945, p.290.
Esquema da epidemiologia da doença do sono mostra, de maneira genérica, na parte superior direita do desenho central, as áreas de reprodução da mosca tsé-tsé, pertencente ao gênero Glossina. Após picar os hospedeiros do Trypanosoma gambiensis, humanos ou mamíferos silvestres, a mosca passa a atuar como transmissora da doença do sono para outros indivíduos. MACKIE, HUNTER III & WORTH, 1945, p.280.
Em 1909-1910, Stephens e Fantham descreveriam o Trypanosoma rhodesiense (alusão à antiga colônia Rodésia), responsável por uma variedade da doença do sono chamada kaodzera, observada em Nyassaland e transmitida pela Glossina morsitans.119
Além da grande rinderpest ou peste bovina (viral), e das epidemias de nagana, na África do Sul, grassaram em fins do século XIX mortíferas epidemias de tripanossomíases humanas, possivelmente favorecidas pelo choque de dois ecossistemas – o natural, com sua vegetação, sua fauna e seus vetores originais, e o ecossistema criado pelo homem, com seus animais, explorações e cultivos. De 1896 a 1906, grande epidemia no Congo causou mais de quinhentas mil mortes. Outra, ao redor do lago Vitória, abateria entre 1900 e 1920 dois terços da população local, cerca de 250 mil pessoas, vitimadas, provavelmente, pelo T. b. rhodesiense.120
À época do III Congresso Médico Latino-americano (1907), os investigadores brasileiros estavam atentos à única tripanossomíase humana conhecida, a doença do sono, ainda não encontrada no país. Sabia-se que era inoculada pela Glossina palpalis e, talvez, a G. fusca. A nagana também era transmitida ao gado e a animais domésticos pelas glossinas. Estas moscas vulgarmente denominadas tsé-tsé, das quais já se conheciam cerca de dez espécies, pertenciam à família dos muscídeos.
Adolpho Lutz vinha estudando nos anos anteriores, com grande interesse, outra família de insetos dípteros que parecia estar envolvida na transmissão de tripanossomíases – os tabanídeos. Havia a suspeita de que fossem os vetores de uma epizootia de grande importância econômica no Brasil, muito letal para os eqüinos, a peste de cadeiras. (Este será um dos fios condutores de Lutz para Manguinhos, em 1908).
Tripanossomos tinham sido observados também em aves e peixes: “Há aqui outro assunto para estudos pacientes não só na pesquisa das espécies, mas também na determinação do modo pelo qual se propagam” -registrava Lutz no trabalho de 1907.
Os protozoários que causavam as diferentes formas da malária humana ocupavam lugar secundário em sua exposição, uma vez que já eram bem conhecidos. Sabia-se que eram transmitidas somente pelos Anophelinae, e o número de espécies, como vimos, crescera consideravelmente, verificando-se que nem todas tinham a mesma importância na propagação da doença.
Não obstante houvesse sólidas evidências sobre o papel dos mosquitos do gênero Culex na transmissão do plasmódio das aves e de espécies afins, ainda não se conheciam bem os ciclos de vida desses hematozoários, tanto nas aves como em macacos e tartarugas.
Os parasitas do gênero Gregarina – Lutz usa a expressão “verdadeiras hemogregarinas”121 – que viviam nas hemácias de répteis, anfíbios e alguns mamíferos, tinham sua transmissão relacionada, “com mais ou menos fundamento, ora a carrapatos, ora a sanguessugas, ora a pulgas ou piolhos”.
Não estava ainda bem estabelecida na classificação zoológica a posição de outro grupo de parasitas, muito mais diminutos, que também atacavam os glóbulos vermelhos sangüíneos de vertebrados, os piroplasmas, hoje atrelados ao filo dos apicomplexos.122 Sabia-se à época de Lutz que tinham grande importância,
por causa dos estragos que produzem entre os bovinos e eqüinos, como também entre os carneiros e os cães de caça … A sua ocorrência no gênero humano não está ainda bem estabelecida. Nos bovinos, principalmente, a sua importância patológica não é inferior à do impaludismo no gênero humano.
Como dissemos, a descoberta do modo de transmissão da febre do Texas, ou piroplasmose bovina, pusera em evidência o papel dos carrapatos nas doenças de animais e humanos. Tratava-se da “primeira demonstração completa de que há doenças que se propagam apenas por intermédio de um artrópode” (Lutz, 1936). No texto de 1907, Lutz alongava-se na descrição das espiriloses que os Argasidae propagavam:
a espirilose africana do homem, transmitida pelo Ornithodorus moubata e a espirilose das galinhas, propagada pelo Argas miniatus. As outras espiriloses dos bois e cavalos, pela transmissão das quais se responsabilizam, com boas razões, certas ixodídeas, e outras observadas nos gansos e nos camundongos, cujo modo de propagação não está ainda bem estabelecido, como acontece também com a espirilose de Obermeyer ou febre recorrente [Lutz refere-se ao médico alemão Otto Hugo Franz Obermeier (1843-1973)].
As espiriloses são doenças causadas por bactérias de forma alongada e espiralada do gênero Spirillum. Ainda hoje, com freqüência, confundem-se com as do gênero Spirochaeta, que tem por sinônimos Spirosoma, Spironema ou Treponema. ? O gênero foi criado em 1905 por Fritz Richard Schaudinn (Kruif, 1945), protozoologista do Instituto de Moléstia Tropicais de Hamburgo, para acomodar o Treponema pallidum, microrganismo que causava a sífilis, descoberto naquele ano por ele e Erich Hoffmann.123 Como vimos em outro livro da Obra Completa de Adolpho Lutz (2005), em 1904, às vésperas dessa descoberta, Otto e Neumann, do mesmo instituto, desembarcaram no Rio de Janeiro com um ‘ultramicroscopio’, um dos primeiros fabricados pela firma Zeiss, para verificar a hipótese de que a febre amarela fosse também causada por um espiroqueta. À época da comunicação de Lutz (1907), muitos autores ligavam as espiroquetas aos tripa-nossomos, vendo-os, portanto, como protozoários ínfimos, que poderiam, talvez, atravessar os filtros bacterianos como outros microrganismos então chamados de ultramicroscópicos. Lutz contestava esse ponto de vista: “achamos que o seu parentesco com os bactérios é muito mais evidente … em todos os casos, trata-se de formas tão simples ou reduzidas, que a sua classificação não pode ser atualmente resolvida”.
Não via, porém, razões para excluir a sífilis e a framboesia – causada pelo Treponema pertenue – das espiriloses, “que, na verdade, deviam ser chamadas espiroquetoses, porque os parasitas destas moléstias pouco se distinguem das espiroquetas legítimas”. A propagação da sífilis se fazia por contaminação direta, mas para a segunda doença, Lutz admitia a transmissão por insetos.124
Parte de sua comunicação dizia respeito às doenças produzidas por bactérias, em cuja transmissão os ectoparasitas hematófagos desempenhavam papel mais ou menos comprovado ou importante: o carbúnculo maligno ou antraz, a peste bubônica, a febre de Malta e a lepra. No primeiro, esse modo de transmissão parecia ser “excepcional e acidental;” nas outras, rara e excepcional era a transmissão direta, “como no caso da lepra, [na qual] não pode ser obtida”. No primeiro volume da Obra Completa de Adolpho Lutz, no livro dedicado a esta última doença, analisamos exaustivamente a gênese de sua convicção de que a lepra era transmitida por mosquitos.125
Desde a criação dos Institutos Soroterápicos de Manguinhos e do Butantan, a peste bubônica era objeto de intensa experimentação relacionada não apenas à soroterapia como a seus meios de transmissão. Após as duas descobertas fundamentais de Yersin – o bacilo da peste e o papel do rato em sua difusão – colocaram-se duas questões: como circulava o bacilo e como se dava a contaminação do homem? Foram em parte elucidadas por Paul-Louis Simond, à época em que dirigiu o Instituto Pasteur de Saigon, antes, portanto, de vir ao Rio de Janeiro para investigar a febre amarela. Após verificar a presença do bacilo em pulgas encontradas em ratos moribundos, Simond conseguiu transmitir experimentalmente a peste pela pulga de ratos em junho de 1898 (Molaret, 1998). Desde então, a profilaxia da doença passou a envolver tanto a desratização como a ‘desinsetização’. Experiências feitas depois na Índia demonstraram que as pulgas dos ratos podiam infeccionar outros pequenos roedores. Em 1907, Lutz apresentava uma síntese das questões sobre as quais estavam debruçados os pesquisadores de Manguinhos e de São Paulo:
Diz-se que uma pulga destas, o Pulex cheopis Rothschild, também ataca o homem, mas as pulgas dos nossos ratos nunca mostraram esta disposição, nem mesmo o Pulex brasiliensis, anteriormente descrito por Baker, de exemplares fornecidos por mim, e que deve diferir da espécie de Rothschild, se não for idêntico. De outro lado, verifiquei muitas vezes que a pulga do cão (Ctenocephalus canis), na falta deste animal, ataca com a mesma facilidade tanto os pequenos roedores como o homem, e considero-a como o verdadeiro intermediário. De homem a homem a transmissão pode também ser realizada pelo Pulex irritans. Tendo colhido alguns exemplares deste do cadáver de um pestoso, com muitos bacilos no sangue, consegui isolar uma cultura pura de bacilos de Yersin de excrementos evacuados somente três dias depois. Posto que não seja bem demonstrado que a transmissão se faz pela picada, pode já bastar o contato destes excrementos infeccionados para produzir a moléstia, principalmente se a pele for friccionada em conseqüência de comichão provocada pelas picadas.
Lutz analisava, em seguida, as doenças cuja etiologia era ainda desconhecida: a febre amarela, o tifo exantemático, a dengue, a verruga peruviana e a febre fluvial do Japão. Somente no primeiro caso, fora comprovada a transmissão por picada de mosquito:
Falamos da febre amarela e de seu transmissor, a Stegomyia calopus, mais conhecido como Stegomyia fasciata … A sua pátria verdadeira não está bem estabelecida, mas a história da febre amarela indica como tal as ilhas e o continente da América Central. É provável que haja outras espécies do mesmo gênero ou de outros aliados que possam transmitir esta moléstia; mas até hoje o fato não foi verificado, e nenhuma delas é igualmente espalhada e adaptada a este papel de transmissor.
A última parte da comunicação de Lutz dizia respeito aos estudos que vinha fazendo sobre os artrópodes hematófagos. Tratava apenas das espécies do Brasil e dos países vizinhos, a maior parte das quais era desconhecida. Como parasitas do homem e dos animais domésticos, encontrara só quatro espécies de carrapatos: o Argas miniatus, transmissor da espirilose das galinhas, que parecia haver sido introduzido no Brasil pouco antes; o Boophilus microplus Canestrini que, em geral, atacava somente os bois; e duas espécies de Amblyoma, “que se encontram no homem e nos animais domésticos … e que devem ser os transmissores dos piroplasmas eqüinos e caninos”.
Lutz observara grande número de espécies de ácaros em todos os gêneros de mamíferos e aves, até mesmo em répteis: “Sendo só em parte hematófagos e em geral pouco inclinados a mudar de hospedador, a sua importância patogênica, aliás pouco estudada, não parece estar em relação com a sua freqüência”.
Referia-se, também, a duas espécies de percevejos que atacavam o homem, o cosmopolita comum, importado, mas pouco freqüente nas cidades brasileiras, e outra espécie muito freqüente, indígena do Brasil.
Três espécies de pulgas parasitavam homens e animais: a mais importante era o Rhynchoprion penetrans (atualmente, Tunga penetrans) o conhecido ‘bicho-de-pé’, as outras foram encontradas por Lutz nas orelhas de ratos e camundongos e na barriga de tatus. Em diversos mamíferos, observara outras espécies, em parte não descritas, pertencentes aos gêneros Rhopalopsylla, Pulex, Ctenocephalus e Typhlophsylla. “Estudos mais aprofundados deste grupo prometem resultados interessantes zoológicos e biológicos, principalmente em relação à transmissão dos parasitas.”
Entre os dípteros encontrava-se número muito maior de sugadores de sangue que em todas as outras classes e ordens reunidas. Em 1907, a coleção de Adolpho Lutz compreendia já cerca de 250 espécies do Brasil e das repúblicas platinas:
O maior número, cerca de 150, é fornecido pelas tabanídeas que todas chupam sangue dos mamíferos; destas, apenas 15% pertencem a espécies novas, tendo este grupo despertado a atenção de muitos naturalistas do século passado … Entre os nematóceros ou mosquitos há uma espécie de Simulium, duas de Ceratopogon e uma de Phlebotomus que chupam sangue humano e só em parte foram anteriormente descritas. O papel mais importante entre os transmissores de moléstias toca às culicídeas, ou mosquitos pernilongos. Há cerca de cem espécies no território mencionado; a distribuição desta é geralmente mais extensa que a das tabanídeas, mas, como para os outros dípteros, os Andes formam uma barreira absoluta. Entre eles há sete ou oito gêneros da subfamília dos anofelinos, representados por dez espécies; e conquanto nem todos tenham importância como transmissores de malária, explica-se facilmente a prevalência desta infecção em muitas regiões do território. Das outras espécies, as que chegam a incomodar seriamente o homem não excedem o número de vinte; ainda assim há assunto para muitos estudos em determinar as espécies que servem de transmissores de moléstias importantes.
Mais da metade das espécies tem larvas fitófilas e só se criam na água acumulada em certas plantas, de preferência silvestres; neste caso, os adultos encontram-se apenas nas matas, e entre estas há uma espécie transmissora da malária que cria-se em bromeliáceas. As espécies domésticas, pouco numerosas, são importantes porque incluem o Culex fatigans, propagador da filariose e talvez da lepra, e a Stegomyia calopus, transmissora da febre amarela.
Culex fatigans Wiedemann. THEOBALD (1901), prancha 29, figura 115.
Em meados de 1907, os diretores dos institutos Soroterápico de Manguinhos e Bacteriológico de São Paulo fizeram longas viagens, muito proveitosas para ambos. Os destinos eram divergentes, mas aquelas viagens acabariam por fazer convergir suas trajetórias. Em 23 de abril, Oswaldo Cruz comunicou a Lutz que embarcaria rumo a Berlim em junho ou julho, para representar o governo brasileiro no XIV Congresso Internacional de Higiene e Demografia (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 213). Logo veremos no que deu isso. Dois meses depois (26 de junho), Lutz escreveu a Aragão: estava de partida para o Pará, e lamentava saber que Oswaldo Cruz viajara antes de sua passagem pelo Rio de Janeiro, “porque precisava muito de uma conversação com ele sobre muitos assuntos”. Pretendia visitar Manguinhos para ver se conseguia ratos e camundongos brancos (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 194).
Contratado pelo governo paraense para estudar as epizootias que afetavam o gado na Ilha de Marajó, Lutz chegou a Belém em 18 de agosto com um “médico-ajudante,” Godofredo Luce, seu sobrinho. No Rio de Janeiro ficou retido o auxiliar Getulino G. Pinto, por razões de saúde.126 Lutz foi recebido a bordo por numerosa comitiva, da qual faziam parte o ajudante de ordens do governador, os diretores do Sindicato Industrial Agrícola Paraense, vários médicos e ainda um repórter de A Província do Pará,127 que registrou com admiração os instrumentos e aparelhos trazidos pelo cientista. Desembarcaram todos no trapiche da Companhia do Amazonas, e em dez carros de praça seguiram para o palacete do governador Augusto Montenegro, à avenida São Jeronymo. Depois rumaram para o Museu Goeldi, onde os aguardava o diretor, dr. Jacques Hüber. Lutz, que residiria temporariamente aí, foi apresentado ao dr. Vicente José de Miranda, que pôs à sua disposição as fazendas que possuía no Marajó.128
Na manhã de 19 de agosto, o cientista fez “visitas de etiqueta a diversos cavalheiros e pessoas de sua relação”.129 À tarde, com o sobrinho Godofredo Luce, visitou a Diretoria do Serviço Sanitário do Estado.130 Escolheu gaiolas para as cobaias e coelhos que ia levar para Marajó, e deu instruções sobre as drogas e medicamentos que deveriam constar da “ambulância” preparada na farmácia daquele órgão público.
Em companhia de Lyra Castro, diretor do Hospício dos Alienados, foi à residência do senador Antonio Lemos, dono de A Folha do Pará, tendo o seu cicerone a preocupação de mostrar-lhe, no caminho, o aspecto das ruas e construções da cidade.
Chegada do paquete Justo Chérmont ao novo cais do Porto de Belém. Nesta mesma embarcação, Adolpho Lutz viajou de Óbidos para a capital paraense, quando esteve na região a convite do governador Augusto Montenegro para verificar epizootias que afetavam as fazendas do estado. SILVA e FERNANDES (1998), p.48.
Fachada do Palácio do Governo, após as obras realizadas durante a gestão de Augusto Montenegro, em 1904. Erguido no século XVIII (1771), conforme projeto do arquiteto Antônio José Landi, o prédio recebeu posteriormente o nome de Lauro Sodré e abriga, atualmente, o Museu do Estado do Pará. SILVA e FERNANDES (1998), p.180.
Hospital de Caridade, em Belém, com indicação manuscrita informando a data de 7.8.1908. Os pavilhões eram voltados para a rua Oliveira Bello, entre a avenida Generalíssimo Deodoro e a Travessa Catorze de março. SILVA e FERNANDES (1998), p.192.
Às 5 da manhã de 22 de agosto,131 Adolpho Lutz embarcou no “Conqueror,” rebocador da Booth Line, com Godofredo Luce, Lyra Castro, Jacques Huber e Vicente José de Miranda. Na foz do Arary, passaram para uma lancha cedida pela Monard & Cia., a qual os transportou a seu destino: a fazenda Tuyuyu, às margens daquele rio, pertencente ao coronel Raymundo José de Miranda. O coronel era proprietário também da fazenda Sant'Anna, na foz do rio, onde ficou Hüber.132 Em Cachoeira, Lutz recebeu os cumprimentos de dois outros potentados locais. Durante o trajeto, “apanhou vários insetos” – conta o repórter da expedição. “A certa altura do rio … era tão notável a quantidade de peixes, que muitos, ao saltar, caíam dentro da embarcação, o que causou alegres reparos ao dr. Lutz.” Quase à noite desembarcaram em Tuyuyu.133 Na manhã de 23,
antes mesmo que o sol brilhasse, já o incansável investigador se achava nos currais, separando vários bezerros entre os quais 3 afetados de oftalmia … Às 9 horas, já preparados os aparelhos num vasto salão da casa … submeteu a exames 2 cavalos atacados do mal conhecido na gíria dos vaqueiros por “quebra-bundas”. O 1° examinado apresentou vagos [sinais] da moléstia, acentuando-se entretanto, no outro, os fenômenos parasíticos.
O sangue de ambos, retirado por meio de golpes e ferroadas de mutucas, foi infectado em proporção conveniente em cobaia … Ainda nesse dia foram apanhadas 2 capivaras sãs para estudos.
No dia 24, Lyra Castro partiu para Diamantina, “uma das mais belas fazendas de Marajó”. Lutz chegou lá dois dias depois, com Vicente Miranda. Em meio à enorme manada de gado, perto de mil reses, e entre as éguas que enchiam os currais, não encontrou animais doentes, segundo o jornalista que acompanhava suas investigações. Apenas retirou um tumor esponjoso da perna de um cavalo, para estudo histológico, e examinou o sangue de uma saracura e um guará. Regressando à tarde a Tuyuyu, entrou pelo Igarapé das Almas, onde Vicente Miranda matou a tiros “enormes jacarés”. Lutz surpreendeu-se com a quantidade de aves aquáticas que esvoaçavam sobre a embarcação. No dia 27, fez novos estudos nos cavalos em observação, e à tarde partiu em excursão à ilha São Thiago para ver “o modo por que os insetos ali picavam os cavalos”. No dia seguinte, autopsiou um dos quadrúpedes mortos a bala e encontrou em seus líquidos orgânicos elementos que reforçaram sua hipótese sobre a etiologia do “quebra-bundas”. O sangue foi injetado numa cobaia, e o líquido cefalorraquidiano, noutra. Tanto neste como nas preparações secas Lutz encontrou os protozoários descritos por Elmassian.
Pelas páginas de A Província do Pará, Lutz mandou um recado aos fazendeiros de Marajó: que o auxiliassem enviando a Tuyuyu os animais atacados ou a comunicação sobre os lugares onde se encontravam.134
Em 2 de setembro, chegaram àquela fazenda o bacteriologista Antonio Figueiredo e o ajudante de Lutz, Getulino G. Pinto, com mais cobaias e as drogas e instrumentos solicitados ao governo do estado.135 Uma semana depois,136 A Província do Pará informou que Lutz encontrara um cavalo com a tripanossomíase em período flórido, tendo sido o seu sangue inoculado em vários animais.
Ao regressar a Belém, em 24 de setembro, declarou que colhera “os mais profícuos resultados”.137 Permaneceu algumas semanas no museu Goeldi e partiu para o baixo Amazonas, em companhia do intendente de Óbidos.138 Em 24 de outubro, A Província do Pará noticiava a presença de Lutz naquela cidade, já de regresso da fazenda Santa Cruz, de propriedade do desembargador Thomaz Ribeiro, onde examinara cavalos afetados de “quebra-bunda” e reses com carbúnculo.139 Em 1° de novembro, com Godofredo Luce e seu anfitrião em Belém, Jacques Hüber, o diretor do Museu Goeldi, seguiu para Peixe-Boi, às margens da Estrada de Ferro de Bragança. Regressou a Belém uma semana depois, e em 9 de novembro viajou novamente: visitou diversas fazendas nos municípios de Chaves, Cachoeira e Soure.140 Em 6 de dezembro, inspecionou propriedades no Arapiranga.141
Finalmente, em 17 de dezembro de 1907, Adolpho Lutz regressou a São Paulo a bordo de um vapor do Lloyd, o São Salvador.142 Segundo o noticiário da imprensa, suas conclusões, apresentadas ao governador do estado, seriam publicadas, na íntegra, no número seguinte da Lavoura Paraense. Na realidade, saíram naquele mesmo ano no Diário Oficial do Estado do Pará e, no ano seguinte, na Revista da Sociedade Scientífica de S. Paulo, com o título “Estudos e observações sobre o quebra-bunda ou peste de cadeiras”.143
Já na edição de 11 de outubro, sob o título “O mal de cadeiras. Cura possível pelo método combinado do atoxil e do mercúrio” (p.1), A Província do Pará publicou interessante entrevista dada por Adolpho Lutz no Museu Goeldi. Ele confirmava o parentesco entre a doença que atacava os eqüinos na ilha de Marajó e em partes do Amazonas e a moléstia do sono – sleeping sickiness ou Afrikanische Schlafkrankheit, fazia questão de esclarecer -, tratando-se, em ambos os casos, de tripanossomíases. Ao jornalista Oscar de Carvalho, Lutz mostrou “bela preparação de tripanossomas em que os observamos movendo-se rapidamente no campo microscópico”. Entregou-lhe também cópia de um artigo de Robert Boyce, “Treatment sleeping sickness and other trypanosomiasis by the atoxyl and mercury method,” recém-publicado no British Medical Journal (14.9.1907, n.2437). Resumindo o trabalho desse pesquisador da Escola de Medicina Tropical de Liverpool, o jornalista de A Província do Pará assegurava que aquelas descobertas terapêuticas permitiriam salvar milhões de vidas humanas e tornar habitáveis vários territórios de clima tropical então refratários ao “homem civilizado” por causa dos protozoários que vitimavam humanos e outros animais:
Só a Índia perde mais de um milhão de libras, anualmente, em gado morto pela surra, e está na memória de todos a perda de cavalos na última guerra sul-africana pela moléstia da mosca tsé-tsé … Não seria, pois, inoportuno, agora que está no Pará o sábio dr. A. Lutz, fazer algumas experiências com o método do atoxyl e do mercúrio no tratamento da tripanossomíase que devasta o gado em Marajó.
Segundo o jornalista, Lutz administrara o composto a um macaco inoculado com o tripanossoma do mal-de-cadeiras, e o animal achava-se em melhor estado do que aqueles não submetidos ao medicamento.
A interação com a medicina tropical inglesa não se dava só pelas páginas de seu principal periódico científico. Em fins de outubro, a caminho de Óbidos, Lutz passara por Manaus e estivera com um pesquisador da Escola de Medicina Tropical de Liverpool, que lá se encontrava “em investigações científicas sobre a febre amarela”.144
Em 1905, o dr. Harold Howard Shearme Wolferstan Thomas empreendera, com Anton Breinl, a 15a expedição ultramarina daquela instituição, com o objetivo de investigar a doença na bacia amazônica e estabelecer um laboratório em Manaus, onde os ingleses tinham influência preponderante. Alguns dirigentes da Escola consideraram “impensada” a decisão, uma vez que seu pessoal mal dava conta dos materiais de pesquisa produzidos por outras expedições. O território esquadrinhado por elas era principalmente a África, depois a Índia e o Oriente Médio, tendo em mira, a princípio, a malária.145 Na referida expedição a Gâmbia, em 1902, John Everett Dutton demonstrara a presença de um tripanossomo no sangue de humanos acometidos pela doença do sono; as expedições à Senegâmbia (1902) e ao Congo (1903-1904) estavam já voltadas para esse grupo de protozoários. Foi nesse terreno que Wolferstan Thomas ganhou projeção. Em 1903, tornou-se o primeiro diretor de um laboratório inaugurado pela Escola de Liverpool em Runcorn, para estudos em medicina veterinária tropical.146 Trabalhando em sintonia com Dutton, Thomas demonstrou que um composto orgânico arsenical, o atoxyl, era eficiente no tratamento de tripanossomíases. Um de seus colaboradores, Anton Breinl, que mais tarde se tornaria conhecido como o pai da medicina tropical australiana, contraiu a doença do sono e curou-se graças àquela droga.147 Ehrlich visitou Runcurn, e suas próprias investigações com o atoxyl o levariam, em 1910, ao Salvarsan, primeiro medicamento eficaz contra a sífilis (Riethmiller, 1999).
Dr. Wolferstan Thomas (em pé, à esquerda) com George Brocklehurst e membros da comunidade britânica em Manaus (1920). MILLER (1998), p.34.
Laboratório da Liverpool School of Tropical Medicine em Manaus. MILLER (1998), p.35.
Pouco depois de chegarem à capital do Amazonas, Thomas e Breinl contraíram a febre amarela. Breinl regressaria pouco tempo depois à Inglaterra, mas Thomas permaneceu à frente do The Yellow Fever Research Laboratory.148 Em cartas enviadas a Ronald Ross, em 22 de agosto e 13 de dezembro de 1905, analisava as patologias reinantes em Manaus: febre amarela, malária, filariose, disenteria amebiana, beribéri, ancilostomíase e lepra. Comunicava sua intenção de viajar a Iquitos, e de enviar Breinl “a uma das piores zonas malarígenas às margens do rio Madeira … desejo [diz ele] compilar dados sobre malária abrangendo a maior área possível do vale amazônico”. Na carta, de 13.12.1905, comentou:
Em janeiro de 1906 começará a ser instalado um sistema dos mais modernos de esgotos e de abastecimento de água … O diretor de saúde pública no Rio visitou Manaus algumas semanas atrás, e isso estimulou ainda mais as autoridades … Um grande obstáculo aqui é que quase nenhum empreendimento governamental é executado sem o dispêndio de grandes somas de dinheiro. Todo funcionário quer seu quinhão, por isso muitas obras custam o dobro do que deveriam.149
Oswaldo Cruz esteve de fato em Manaus. Em setembro de 1905, embarcou no rebocador República, rumo ao Norte, com a intenção de reunir elementos para um plano de reorganização dos serviços de saúde nessa parte do litoral. Entre os 23 portos visitados até 6 de dezembro, incluem-se, além da capital do Amazonas, Belém, Santarém (PA) e Óbidos (PA). Em janeiro de 1906, iniciou a expedição aos portos do Sul, que se estendeu às capitais do Uruguai, Argentina e Paraguai. Era um desdobramento do saneamento da capital federal, que chegava ao fim junto com o governo de Rodrigues Alves. Primeira expressão de um projeto sanitário de âmbito nacional, que só começaria a se concretizar na década de 1920, com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, aquela viagem marca o começo do divórcio entre os cientistas-sanitaristas liderados por Oswaldo Cruz e as elites políticas que haviam patrocinado o saneamento da capital federal. Segundo sua concepção imediatista da ciência e saúde, a crise que ameaçava a ‘cabeça urbana’ do país fora resolvida, o que tornava desnecessária a maquinaria montada por Oswaldo Cruz e renovada, ano a ano, pelo Congresso, sempre a título precário. O projeto nacional de saúde pública subentendido na visita a Manaus baseava-se no pressuposto de que as doenças não respeitavam fronteiras. A vitória alcançada no Rio de Janeiro contra a febre amarela seria de Pirro se a guerra não fosse estendida às outras cidades com focos da doença.
Em carta a Adolpho Lutz, de 6 de janeiro de 1907, Oswaldo Cruz comentou artigo que Thomas (1907) acabara de publicar em O Brazil-Medico, anunciando a transmissão da febre amarela a macacos por meio de estegomias infeccionados.150
No decurso dos quatro meses em que esteve no Pará, Adolpho Lutz visitou as fazendas dos principais municípios criadores (Cachoeira, Chaves, Soure e Óbidos), onde fez estudos referentes não só ao mal-de-cadeiras como às oftalmias bovinas, ao carbúnculo, à osteomalacia, à esponja etc. “Sobre a moléstia dos cavalos” – lê-se em A Província do Pará (18.12.1907) – “vulgarmente denominada quebra-bunda, e que ele prefere chamar peste de cadeira,151 os seus trabalhos, se ainda não encerram a última palavra no assunto, muito adiantam acerca de várias questões, ainda mal estudadas.”
Já se sabia que a doença atacava os eqüídeos da América do Sul, tendo sido constatada em vários pontos do Brasil, inclusive em São Paulo, onde Vital Brazil acabara de publicar um estudo a respeito.152 O mal-de-cadeiras grassava com intensidade no estado de Mato Grosso, no Paraguai, Uruguai e Rio da Prata. O trabalho que Vital Brazil e Adolpho Lutz tomavam como referência fora publicado em 1901 pelo Dr. Miguel Elmassian, diretor do Instituto Bacteriológico de Assunção, onde havia descoberto o agente do mal, o Trypanosoma equinum. A descoberta fora confirmada por Otto Voges, José Lignières,153 Joaquín Zabala, Félix Mesnil e Alphonse Laveran. Em 1903, Elmassian e Luis Enrique Migone publicaram artigo mais extenso sobre o assunto nos Annales de l'Institut Pasteur de Paris.
Além de confirmar que o tripanossomo atuante no Pará era o mesmo descrito por Elmassian,154 Lutz confirmou observação popular sobre a receptividade das capivaras à doença: verificou que se infeccionavam espontaneamente e constituíam um reservatório silvestre do parasita. Demonstrou, na realidade, que vários mamíferos eram suscetíveis à infecção experimental (a preguiça, por exemplo), salientando a suscetibilidade extrema do pequeno macaco-de-cheiro, que considerou excelente para as experiências etiológicas e terapêuticas.
Lutz chegou à conclusão de que o mal-de-cadeiras fora importado no Marajó, dando origem à epidemia de 1828 entre os cavalos da ilha. Depois, tornara-se endêmica, produzindo aqui e ali surtos que não se generalizavam.
Procurou desfazer um equívoco freqüente entre os criadores paraenses, que confundiam casos de tripanossomíase com o mormo. No Pará, só era considerado quebra-bunda a paralisia dos quartos traseiros; quando o animal ficava triste, magro, incapaz de trabalhar e com as glândulas da cabeça tumefeitas, considerava-se que sofria de “mormo seco”. De acordo com Lutz, o mormo era sempre acompanhado de manifestações externas -corrimento nasal ou tumores cutâneos; e o quebra-bunda nem sempre se revelava por paralisia, sendo esta, em todos os casos, um fenômeno tardio.
No tocante aos meios curativos e profiláticos, experimentou “o atoxil, o iodureto de potássio, o biclorureto (sic) de mercúrio combinado ao atoxil, o trypanrot, certas cores de anilina e em nenhum destes agentes achou um meio curativo certo e constante”. O trypanrot, desenvolvido por Ehrlich, e o atoxil, de Thomas, faziam desaparecer os tripanossomos do sangue, mas dias depois ressurgiam. Outros casos mostraram-se inteiramente refratários a esses preparados. Os demais medicamentos testados foram ainda menos eficazes. A profilaxia era então o único meio ao alcance dos fazendeiros, ainda que fosse quase tão difícil quanto a cura. Os cavalos doentes precisavam ser isolados ou sacrificados, mas isso requeria o diagnóstico do mal antes que fosse denunciado pela paralisia. Como o diagnóstico bacteriológico não estava ao alcance dos criadores, dependia da criação de postos zootécnicos. Lutz aconselhava ainda a extinção das capivaras e o uso de uma substância que afugentasse as mutucas. As pernas do animal deviam ser untadas com ela, por serem esses os pontos preferidos pelos insetos.
Isso nos traz de volta à entomologia médica, objeto do presente livro de sua Obra Completa. Adolpho Lutz regressou a São Paulo convencido de que os principais transmissores do Trypanosoma equinum eram duas espé-cies muito abundantes nos campos de criação, ambas já descritas: Tabanus importunus e Tabanus trilineatos.155 No entanto, nas poucas vezes em que procurara o tripanossomo no corpo destas moscas, os resultados foram negativos, “fato esse que, cientificamente nada resolve, pelo resumido número de pesquisas praticadas”.156
Lutz estava se tornando um grande especialista nesse grupo de insetos, no âmbito do qual descreveria o maior número de espécies novas ao longo de sua trajetória como entomologista. Até as vésperas de sua morte o cientista se dedicaria a ele, como se pode ver em livro anterior do presente volume de sua Obra Completa (2005).
Os primeiros passos nessa direção parecem estar relacionados ao estudo que publicou em 1899 sobre um caso de bicheira ou miíase da garganta transmitido por tabanídeo. Numa das primeiras cartas a Theobald, em 23 de setembro de 1900, Lutz informava-o de que estava investigando as mutucas ou Tabanidae. A descoberta, três anos depois, de que as moscas tsé-tsé hospedavam e propagavam o tripanossomo da doença do sono reforçou seu interesse pelo grupo. Possivelmente foi isso que motivou a correspondência com Etienne Sergent, em 1904, um ano após a já referida descoberta do Trypanosoma berberum, agente etiológico de uma doença de camelídeos transmitida pela picada de mutucas.157
Em 1905, ao mesmo tempo em que saía na Imprensa Médica de São Paulo a longa série intitulada “Novas espécies de mosquitos do Brasil,” reeditada no presente livro, Lutz publicava, em alemão, na Revista da Sociedade Scientífica de S. Paulo, “Beiträge zur Kenntniss der brasilianischen Tabaniden” [Contribuições para o conhecimento dos tabanídeos brasileiros].158 Em 1907, o Centralblatt für Bakteriologie, Parasitenkunde und Infektionskrankheiten estampou o segundo trabalho de Lutz sobre aquelas moscas: “Bemerkungen über die Nomenklatur und Bestimmung der brasilianischen Tabaniden” [Anotações sobre a nomenclatura e identificação dos tabanídeos brasileiros].159
Em carta a Henrique Aragão, às vésperas da viagem ao Pará (5.6.1907), e à mesma época da publicação do quarto volume da monografia de Theobald, Lutz comentou: “Concluí a primeira parte do meu trabalho sobre mutucas … mas faltam ainda % do trabalho” (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 194). Oswaldo Cruz havia se referido a esse trabalho meses antes (6.1.1907): “Se quiser publicá-lo em nossas Memórias de Manguinhos, como o tem feito o Theobald nos Reports do Wellcome Research Laboratories do Balfour, terei muita satisfação em fazê-lo” (ibidem, pasta 213).
O extenso estudo sobre “Tabanídeos do Brasil e de alguns países vizinhos,” em que Lutz incluiria as observações feitas no Pará, foi publicado na Alemanha, no Zoologische Jahrbücher, com o título “Tabaniden Brasiliens und einiger Nachberstaaten”.160
Na carta aqui referida, Oswaldo Cruz manifestava grande interesse em prover o Instituto Soroterápico Federal de uma coleção de tabanídeos, e pedia ao diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo indicações bibliográficas, inclusive sobre Sarcophaga.161 Lutz faria mais que isso. Levaria para Manguinhos a coleção que formara em São Paulo, e publicaria em abril de 1909, na edição inaugural das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, em português e alemão, seus dois primeiros trabalhos em colaboração com Arthur Neiva: “Erephopsis auricincta. Uma nova mutuca, da subfamilia Pangoninae,” e “Contribuições para o conhecimento da fauna indígena de tabânidas”.162
O opúsculo ricamente ilustrado que Oswaldo Cruz publicou naquele ano para apresentar ao mundo os produtos biológicos, os laboratórios e as instalações do instituto recém-batizado com seu nome detalhava, também, a “Coleção de tabânidas” de Manguinhos, incluindo já as espécies incorporadas por Lutz.163
À medida que se aproximava o fim do governo Rodrigues Alves (1906), grande euforia apoderava-se da opinião pública. As estatísticas comprovavam o êxito das campanhas de Oswaldo Cruz contra a febre amarela e a peste bubônica. As novas avenidas e os palacetes edificados às suas margens davam a impressão de que a capital do Brasil, enfim, civilizara-se. A rude plebe que animara a revolta da vacina fora subjugada e expulsa das áreas renovadas, e boa parte dos adversários da reforma e saneamento urbanos rendera-se à retórica triunfante da ‘regeneração’ do país.
Apesar do prestígio de Oswaldo Cruz, Manguinhos encontrava-se numa posição bastante frágil por haver extravasado, sem respaldo legal, o arcabouço primitivo do Instituto Soroterápico. Sua transformação em Instituto de Medicina Experimental foi novamente pedida ao Congresso, em junho de 1906. O projeto esteve a ponto de naufragar. A oposição vinha de representantes das oligarquias, que consideravam um desperdício os investimentos em instalações tão luxuosas para a ciência; setores mercantis, que não queriam o controle da fabricação de produtos biológicos por um órgão estatal; e políticos ligados à corporação médica, que não viam com bons olhos o ensino numa instituição independente da Faculdade de Medicina. Em larga medida, a batalha foi vencida num teatro distante da capital brasileira. A Diretoria Geral de Saúde Pública e o Instituto, ambos chefiados por Oswaldo Cruz, foram as únicas instituições sul-americanas a participarem, em setembro de 1907, do XIV Congresso Internacional de Higiene e Demografia, e da Exposição de Higiene anexa a ele, em Berlim. A medalha de ouro conquistada lá teve enorme repercussão no Brasil. Recepção apoteótica foi preparada no Rio de Janeiro para receber o herói nacional que fizera a Europa se curvar ante o Brasil. A cidade, que se tornara a “Paris das Américas,” tinha um Pasteur para canonizar.
Ainda em Paris, Oswaldo Cruz redigiu o regulamento do Instituto de Patologia Experimental, criado em dezembro de 1907, e rebatizado de Instituto Oswaldo Cruz em março de 1908. Além de sacramentar o tripé “pesquisa, produção e ensino,” atrelava o instituto diretamente ao ministro da Justiça. Graças a isso, não houve descontinuidade em sua trajetória quando Oswaldo Cruz deixou a direção da Saúde Pública em 1909. Igualmente importante foi a autorização para que auferisse rendas próprias com a venda de serviços e produtos biológicos. Isso permitiu enfrentar em condições mais vantajosas que outras instituições públicas a tradicional penúria de recursos orçamentários para a saúde e a ciência.
Em 1906 foi inaugurada a primeira filial de Manguinhos, em Belo Horizonte, a recém-fundada capital do estado de Minas Gerais, e Carlos Chagas executou a já referida campanha antipalúdica em Itatinga, interior de São Paulo. No ano seguinte, Chagas e Arthur Neiva (1910) combateram a malária na Baixada Fluminense. Em 1908, Neiva atuou em outras regiões, ao passo que Chagas seguia, com Belisário Penna, para o norte de Minas Gerais, onde a doença impedia o prolongamento dos trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil. Lá sua atenção foi despertada para um inseto hematófago que proliferava nas paredes de pau-a-pique das casas, saindo à noite para sugar o sangue de seus moradores e de animais domésticos. Atacava de preferência o rosto humano, razão pela qual o chamavam de “barbeiro”. Em março de 1909, completou a descoberta de uma nova doença tropical, ao encontrar no sangue de uma criança doente o tripanossomo cujas formas viera rastreando no organismo do transmissor.
Vista de alguns dos prédios do Instituto Oswaldo Cruz, cerca de 1912: em primeiro plano, biotério para criação de animais de laboratório, inclusive torre para criação de pombos. Ao fundo, prédio principal do Instituto, o castelo mourisco. Junto a ele, a velha cavalariça destinada aos animais usados na preparação de soros. À esquerda, ao fundo, a graciosa torre do aquário para experiências com animais de água doce e salgada. Fundo de Arquivos Emile Brumpt. Instituto Pasteur. Foto 54.
Cientistas fotografados por J. Pinto em frente à Casa de Chá (Manguinhos, 1908). Sentados, da esquerda para a direita: Carlos Chagas, José Gomes de Faria, Antônio Cardoso Fontes, Gustav Giemsa, Oswaldo Cruz, Stanislas von Prowazek e Adolpho Lutz. Em pé, no mesmo sentido: Arthur Neiva, Henrique da Rocha Lima, Henrique de Figueiredo Vasconcellos, Henrique Aragão e Alcides Godoy. Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação – Imagem IOC OC 4-5-1.
Oswaldo Cruz e cientistas chegando a Manguinhos de charrete. Rio de Janeiro, c. de 1908-9. Da esquerda para a direita estão Oswaldo Cruz (2°) e os professores Gustav Giemsa (3°) e Stanislas von Prowazek (4°), da Escola de Medicina Tropical de Hamburgo. Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação – Imagem IOC(OC)4-3.
Lutz datilografa um trabalho numa Remington nova em folha em seu laboratório, no primeiro pavimento do Castelo Mourisco; o autor da foto, batida provavelmente em 1912, ressalta os registros de vácuo, ar comprimido, gás e água existentes no laboratório. Fundo de Arquivos Emile Brumpt. Instituto Pasteur. Foto 55.
A serviço da Inspetoria de Obras contra as Secas, Adolpho Lutz percorreu, com Astrogildo Machado, o Vale do São Francisco, de Pirapora a Juazeiro, entre 17 de abril e 17 de julho de 1912. Em seu relatório, publicado nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz (1915. t. VII), os cientistas apresentam dados concernentes à incidência da doença de Chagas, febre amarela, alastrim, leishmaniose, febre tifóide, cólera, ancilostomíase e malária, entre outras. Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação – Imagem COC ace1-18-1.1-1.
A bordo do España, Adolpho Lutz desce o rio Paraná, em 1918. BR.MN. Fundo Adolpho Lutz.
O Instituto Pasteur acabara de fundar a filial de Brazzaville (1906), capital da África Equatorial Francesa (atual República do Congo), com o objetivo de estudar tripanossomíases animais e a única manifestação humana até então conhecida, a doença do sono.
Com o apoio dos pesquisadores de Manguinhos, Chagas desenvolveria um trabalho abrangente sobre a doença produzida pelo Trypanosoma cruzi. Estudariam os hábitos do barbeiro e das populações que atacava, a biologia daquele protozoário e seu ciclo em ambos os organismos infectados, os sinais clínicos e as lesões orgânicas que singularizavam a doença até então confundida com a malária ou a ancilostomíase (Chagas Filho, 1994; Coura, 1997; Delaporte, 1994, 1999).
A Doença de Chagas consolidou a protozoologia como uma das mais importantes áreas de pesquisa do Instituto Oswaldo Cruz, e transformou-o num lugar muito atraente para os pesquisadores europeus, sobretudo alemães, que desbravavam esse campo de investigações. Em julho de 1908, dois professores da Escola de Medicina Tropical de Hamburgo foram contratados por seis meses para dar cursos e publicar os resultados de suas pesquisas, em primeira mão, nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz: Stanislas von Prowazek, sucessor de Schaudinn, e Gustav Giemsa (18671948), inventor do método de coloração mais utilizado para a observação de hematozoários. Em maio do ano seguinte, foi a vez de Max Hartmann, do Instituto de Moléstias Infecciosas de Berlim. Giemsa viria de novo a Manguinhos em 1912, assim como Hermann Duerck, docente de anatomia patológica da Universidade de Jena.
Novos pesquisadores brasileiros ingressaram no Instituto Oswaldo Cruz nesse período. Em 1909, Gaspar Viana substituiu Rocha Lima na anatomia patológica. Além de descobrir o valor do tártaro emético no tratamento das leishmanioses, do granuloma venéreo e da esquistossomose, investigaria a evolução do Trypanosoma cruzi nos tecidos do homem e dos animais, a blastomicose e outras micoses, e classificaria como leishmaniose a úlcera de Bauru e as “úlceras bravas” do Amazonas. José Gomes de Faria inventariaria diversas espécies novas de trematódeos, publicando, em 1910, a descoberta do Ancylostoma braziliense.
A principal aquisição foi, sem dúvida, Adolpho Lutz. Em 1908, veio ao Rio de Janeiro para organizar a mostra do Instituto Bacteriológico na Exposição Comemorativa do Centenário da Abertura dos Portos, no bairro da Urca. No Pavilhão do Estado de São Paulo foram exibidas peças anatômicas de patologias médico-veterinárias, entozoários e outros parasitas, insetos transmissores de doenças e publicações variadas (Lemos, 1954). Tudo indica que foi durante essa estada na capital federal que Oswaldo Cruz formalizou o convite para que Lutz se transferisse para Manguinhos. Em carta datada de 18 de outubro de 1908, fazia votos para que ele houvesse chegado bem a São Paulo e comentava, ansioso:
Dirigi-lhe um telegrama, há dias, de acordo com o que tínhamos combinado e ainda não recebi resposta. Mas, como não havia mais dúvida procurei o Ministro que imediatamente se dignou de concordar com a proposta que fiz de sua vinda para cá, e nesse sentido dirigiu-me um Aviso autorizando-me a assinar um contrato por 6 meses, podendo ser renovado, tendo o Sr. os vencimentos de chefe de serviço. Está, como vê, tudo pronto e com grande satisfação aguardamos o dia de sua chegada. Consegui arranjar-lhe uma ajuda de custos para mudança de um conto de réis. Quer que lha mande para aí ou prefere recebê-la aqui? Para mim é indiferente e aguardo sua resposta.164
Vista noturna do Palácio das Indústrias, recuperado para a Exposição Nacional de 1908, evento organizado para a celebração do centenário de abertura dos portos brasileiros às nações amigas. Construído em 1864, o prédio sediou a Escola Militar da Praia Vermelha até 1904. Na imagem sobressai a iluminação elétrica, recéminaugurada na cidade do Rio de Janeiro. Acervo do Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, em MENDONÇA (2004), p.50.
Dias depois (29.10.1908), chegou às mãos de Lutz telegrama de Oswaldo Cruz: “Recebi tarde suas cartas. Grave moléstia filha impediram responder logo. Bagagens podem ser despachadas S. Francisco Xavier … Providenciei já sua residência Instituto”.165 Em 1° de novembro de 1908, aos 53 anos, Adolpho Lutz tornou-se chefe de serviço do Instituto Oswaldo Cruz.166 Até conseguir montar residência no Rio de Janeiro, instalou-se no campus do Instituto com a mulher, a inglesa Amy Fowler, a filha Bertha Maria Júlia Lutz, então com 14 anos, e o caçula, Gualter Adolpho, com 5.167 Em Manguinhos começa o terceiro período de sua vida profissional, em que realiza a aspiração de se dedicar por inteiro à pesquisa – e não necessariamente de aplicação médica -, o que faz até falecer, no Rio de Janeiro, em 6 de outubro de 1940, poucas semanas antes de completar 85 anos. Graças à sua longevidade, essa fase, iniciada tardiamente, foi mais longa do que as duas outras reunidas.168
Seu último trabalho como diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo, publicado em 1908 em O Brazil-Medico, seria reconhecido como sua principal contribuição à dermatologia brasileira. Falamos dele no primeiro volume de sua Obra Completa (2004): a descoberta no país, pela primeira vez, de uma doença que se caracterizava por lesões muito graves na boca, e que Lutz qualificou como micose pseudococcídica, depois de identificar o fungo que a causava e de descrever seu modo característico de reprodução.
As Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, inauguradas em 1909, difundiriam os trabalhos de seus cientistas quase sempre em português e alemão, cabendo a Adolpho Lutz a árdua ainda que pouco reconhecida tarefa de traduzi-los para esse idioma, hegemônico até a Primeira Guerra Mundial. Seu capital de relações com universidades, museus e institutos de pesquisa europeus e norte-americanos contribuiu para consolidar o prestígio internacional de Manguinhos. Certamente, ajudou a abrir portas para os pesquisadores mais antigos, recém-promovidos a assistentes, que foram mandados para o exterior, nesse mesmo período, para fazerem estágios e estudos de aperfeiçoamento em laboratórios do primeiro mundo.
Para reforçar a promissora vertente da veterinária, Oswaldo Cruz já enviara um técnico à célebre escola francesa de Alfort. Entre 1909 e 1910, Cardoso Fontes e Alcides Godoy viajaram para a Alemanha; Figueiredo de Vasconcellos, para a França; e Henrique Aragão, para ambos os países. Arthur Neiva foi o único que rumou para os Estados Unidos. A decisão resulta de seu interesse em especializar-se em entomologia, e da vontade de Oswaldo Cruz de que o fizesse lá, e não na Europa. A estada de Neiva em Washington tem relação com a visita feita pelo diretor do Instituto de Manguinhos àquela capital em 1907-1908. A campanha contra a febre amarela no Rio de Janeiro fora um sucesso, e ele acabara de obter a medalha de ouro em Berlim.169 O governo brasileiro, que acabara de expedir para a Europa uma milionária comissão de propaganda (ironicamente cognominada ‘áurea comissão’), para atrair imigrantes e capitais ao país, resolveu aproveitar a súbita notoriedade de Oswaldo Cruz para defender no exterior as vantagens do povoamento do Brasil. Além de cumprir as missões diplomáticas de que o encarregou o barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Cruz procurou consolidar, em proveito de Manguinhos, as relações com os centros que estavam na vanguarda da medicina experimental. O material exposto em Berlim foi repartido entre Hoffmann, um dos descobridores do micróbio da sífilis, a Kaiser-Wilhelms-Akademie, o Instituto de Higiene de Berlim, e as Escolas de Medicina Tropical de Londres, Heidelberg e Hamburgo. Depois de visitar esta última, e o Instituto Pasteur, em Paris, Oswaldo Cruz embarcou para Nova York, onde conheceu o Instituto de Pesquisas Médicas fundado por Rockefeller, que “considerou o estabelecimento mais completo para o estudo da bacteriologia e medicina experimental” (Guerra, 1940, p.395).
Em Washington, entrevistou-se com o presidente Theodore Roosevelt, dando-lhe garantias de que a esquadra norte-americana, em manobras de guerra, poderia desembarcar seus 15 mil tripulantes no Rio de Janeiro, sem temer a febre amarela. Segundo Howard (1930, p.425), ficou tão impressionado com o que viu no Museu de História Natural dessa capital “que sugeriu ao dr. Neiva que, quando chegasse sua vez [de especializarse no exterior], fosse visitar os Estados Unidos”.
A carta que Oswaldo Cruz escreveu ao jovem assistente de Manguinhos, em 18 de julho de 1907, portanto ainda dos Estados Unidos, corrobora as palavras de Howard. Entusiasmado com a “bela monografia sobre culi-cídeos” que esse entomologista e seus colaboradores estavam preparando, Oswaldo Cruz afirmava:
Vão atirar o Theobald por terra. Mostraram-se muito entusiasmados quando eu lhes disse que estávamos inteiramente desnorteados com a orientação dada por Theobald. Pediram-me e prometi-lhes uma coleção tão completa quanto possível de nossos mosquitos que eles na maioria não conhecem.
Peço-lhe que quanto antes prepare uma coleção para enviar-lhes. Manifestando desejo em mandar para aqui um assistente estudar estas questões de entomologia, mostraram-se satisfeitíssimos com a idéia … De modo que é preciso que você comece a aprender a falar inglês. Desejam também saber as datas dos números da Imprensa Medica em que vieram os artigos do Lutz, para estabelecer questões de prioridade. Não tenho certeza, mas creio que o Peryassú tratou, talvez, com pouca importância a classificação do Knab e Dyar. Se for ainda tempo convinha modificar qualquer expressão mais áspera, porque são uns trabalhadores sem iguais.170
Em carta a Adolpho Lutz, às vésperas de sua transferência para Manguinhos (30.7.1908),171 Cruz declarou: “o Neiva … será o ‘artropedista’ do Instituto” (referia-se à artropodologia, ramo da zoologia que estuda os artrópodes).
O jovem médico baiano, que seria por algum tempo o principal colaborador de Lutz em Manguinhos, viajou para Washington em 1910, quando Theobald publicava o quarto e último volume de sua célebre monografia. Lá conviveria com três personagens exponenciais da entomologia norteamericana: Leland Ossian Howard, Harrison Gray Dyar e Frederick Knab, em vias de publicar obra tão importante quanto a de Theobald, baseada, porém, em categorias taxonêmicas e métodos de análise em desacordo com aqueles empregados pelo entomologista britânico.172
Manguinhos, num período crucial de mudanças, estreitava assim sua ligação com outra comunidade de pesquisa entomológica, à qual, como veremos, Lutz também era ligado, e que estava prestes a provocar grande abalo nas autoridades até então indisputadas daquele campo científico.
Nessa escolha pesou, também, um fator de natureza geográfica e ecológica: para os sul e norte-americanos era proveitosa e conveniente a exploração da fauna neotropical, à qual os ingleses tinham acesso apenas indireto. Por trabalharem in loco, tinham condições de cooperar (ou competir) num inventário mais abrangente, e de enxergar melhor as inter-relações entre os grupos e seus respectivos ambientes.
À semelhança do que aconteceu na Europa, os estudos entomológicos nos Estados Unidos foram impulsionados pelas pragas agrícolas. Trabalhos esparsos começaram a aparecer em fins do século XVIII,173 escritos, em sua maioria, por fazendeiros ou fruticultores com reduzidos conhecimentos de entomologia. As poucas coleções de insetos pertenciam a amadores e estavam relacionadas à sua beleza, prevalecendo, assim, as de besouros e borboletas (Howard, 1930, p.10). Como em outras colônias do Novo Mundo, todo o conhecimento sobre a fauna entomológica norte-americana estribavase em coleções formadas por naturalistas viajantes europeus, pertencentes a grandes colecionadores ou instituições do Velho Mundo. No início do século XIX, começaram a surgir trabalhos mais consistentes sobre a fauna entomológica norte-americana nos próprios Estados Unidos. Em 1806, o reverendo Frederick Valentine Melsheimer (1749-1814) publicou A Catalogue of Insects of Pennsylvania – por cerca de 18 anos, a única referência disponível aos americanos recém-libertados do jugo colonial.174 Entre 1824 e 1828, Thomas Say (1787-1834), um dos fundadores da Academia de Ciências Naturais da Filadélfia, publicou três volumes intitulados American Entomology or Descriptions of the Insects of North America, sendo o autor comparado a grandes nomes da entomologia européia, como DeGeer, Fabricius e Lineu (Mallis, 1971, p.16).
Estudos mais gerais sobre insetos de importância econômica só apareceram na década de 1840, quando Thaddeus William Harris (1795-1856) publicou Report on Insects Injurious to Vegetation (1841), e Alpheus Spring Packard Jr. (1839-1905), Guide to the Study of Insects (1869).175 Em 1854, o estado de Nova York designou o médico Asa Fitch para estudar os insetos prejudiciais à vegetação, dando início a um movimento que, aos poucos, se estenderia a outros estados norte-americanos. Fitch publicou 14 relatórios nos Transactions of the New York State Agricultural Society entre 1855-1872. No mesmo ano em que foi contratado, o Escritório de Agricultura dos Estados Unidos incumbiu o fazendeiro e artista Townend Glover (1813-1883)176 de estudar sementes, frutos e insetos, tornando-se ele o primeiro ‘entomologista’ do governo federal. O cargo seria formalizado com a criação do Departamento de Agricultura, em 1862. Glover, que à época trabalhava na Universidade de Maryland, foi chamado de volta e assumiu oficialmente a função de entomologista dos Estados Unidos. Em 1878, foi substituído por Charles Valentine Riley (1843-1895) e Leland O. Howard (1857-1950), futuro interlocutor de Adolpho Lutz.
Nesse meio tempo, alguns estados contrataram seus próprios entomologistas para enfrentar as pragas agrícolas. Seus estudos eram publicados em relatórios, folhetos e periódicos voltados para o mundo rural ou para os poucos pares que liam o American Entomologist. As coleções multiplicaram-se, e cursos sobre entomologia passaram a fazer parte do currículo das universidades e colégios agrícolas estaduais. Tais iniciativas pontuais culminaram na organização, em 1888, das State Agricultural Experiment Stations [Estações Estaduais de Experimentação Agrícola].177
Antes de assumir o cargo no governo federal, Riley fez carreira no estado de Missouri, como entomologista e professor. Entre 1874 e 1876, chefiou a comissão para o combate ao gafanhoto das Montanhas Rochosas, que devastava as plantações dos estados do Oeste e Meio-Oeste americanos. O sucesso da campanha guindou-o ao posto de entomologista do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Por iniciativa sua, foi criada em 1881, nesse Departamento, a Divisão de Entomologia, promovida a Bureau de Entomologia em 1904.
Leland Ossian Howard foi contratado em 1878 para ser assistente de Riley.178 Hábil taxonomista, dedicou especial atenção ao grupo dos himenópteros, que inclui diversas pragas agrícolas. Em 1883, obteve o grau de mestre em Cornell com tese sobre a morfologia de himenópteros da família Chalcididae. Com a aposentadoria de Riley, em 1894, assumiu a chefia da Divisão de Entomologia, cargo que ocuparia por mais de trinta anos. Em 1895, tornou-se também curador honorário da seção de insetos do Museu Nacional dos Estados Unidos.179
Leland Ossian Howard (1857-1950).
Fonte: hbs.bishopmuseum.org/dipterists/ images/howard.gif (acesso em 17 de maio de 2006).
Durante a administração de Riley, vários profissionais passaram pela Divisão de Entomologia. Charles H. Tyler Townsend, por exemplo, foi absorvido em 1888 e permaneceu na Divisão até 1891. Mudou-se então para o Novo México e tornou-se professor do Colégio de Agricultura e Artes Mecânicas em Las Cruces. Dois anos depois, assumiu a curadoria do Museu de História Natural da Jamaica. Entre 1904 e 1906, viveu nas Filipinas, depois foi entomologista e diretor da Estação Experimental do Peru (1909 a 1913), retornando aos Estados Unidos para trabalhar com entomologia agrícola. Com a morte de Coquillett, em 1911, substituiu-o como sistemata da Divisão de Entomologia do Departamento de Agricultura. Regressou ao Peru em 1919 e, finalmente, radicou-se no Brasil (Itaquaquecetuba, SP) até sua morte em 1944. Desde o período em que viveu no Peru, Townsend manteve duradoura correspondência com Adolpho Lutz sobre insetos sul-americanos (1909-1932).
Charles Henry Tyler Townsend (1863-1944). HOWARD (1930), prancha 43.
Daniel William Coquillett (1856-1911). HOWARD (1930), prancha 6.
Outro personagem que merece destaque é Daniel William Coquillett, considerado um dos maiores dipterologistas norte-americanos e um dos pioneiros no controle biológico de insetos. De origem francesa, nasceu em Pleasant Valley, Illinois, a 23 de janeiro de 1856. Ainda criança, começou a colecionar insetos, principalmente mariposas e borboletas. Sua primeira contribuição madura à entomologia foi On the Early States of some Moths (1880). Vitimado pela tuberculose, transferiu-se, dois anos depois, para Anaheim, no sul da Califórnia. Começou, então, a especializar-se nos dípteros, embora viesse a publicar trabalhos sobre vários outros grupos.180 Em 1893, transferiu-se para Washington e começou a estudar o Aspidiotus perniciosus, inseto hemíptero (Sternorrhyncha) da família dos diaspidídeos, voraz destruidor de arbustos e árvores frutíferas. Três anos depois (1896), tornou-se curador honorário da seção de dípteros do Museu Nacional dos Estados Unidos. Publicou diversos trabalhos sobre taquinídeos, simuliídeos e culicídeos. Type Species of North American Genera of Diptera (1910) teve grande repercussão entre os entomologistas. Coquillett descreveu, ao todo, cerca de mil espécies do grupo. Faleceu em Atlantic City, New Jersey, em 7 de julho de 1911. Sua valiosa coleção de dípteros passou a integrar o acervo do Museu Nacional dos Estados Unidos.
Coquillett foi importante interlocutor de Howard durante o tempo em que este chefiou a Divisão de Entomologia, uma vez que compartilhavam os mesmos interesses, inclusive a defesa dos métodos de controle naturais em substituição aos pesticidas. O interesse de Howard pelos dípteros antecede a descoberta do modo de transmissão da malária. Antes de 1897-1899, já sugeria a aplicação de querosene em águas paradas para combater mosquitos e reduzir a incidência de doenças. O interesse pelos dípteros cresceu consideravelmente após a descoberta de Ross e dos italianos concernente a seu papel na malária, e a demonstração pelos norte-americanos, em Cuba, de que propagavam a febre amarela. Pesquisadores que já se dedicavam à entomologia passaram a ser muito valorizados, pois eram os mais qualificados para desembaraçar as confusões taxonômicas que a corrida aos transmissores de doenças exacerbou.
O estudo dos dípteros passou a receber tratamento mais sistemático na Divisão de Entomologia. Howard, que já estudara a biologia de Culex quinquefasciatus, publicou outro trabalho sobre o Anopheles quadrimaculatus, principal vetor da malária no país. Em 1901 veio a lume Mosquitoes: How they live; How they Carry Disease; How they are Classified; How they may be Destroyed. No mesmo ano, o Century Magazine estampou “Malaria and Certain Mosquitoes”.
Em 1902, Howard pediu financiamento à Carnegie Institution, recém-fundada em Washington, para estudar os dípteros norte-americanos. Argumentou que o livro e o atlas de Theobald, publicados em 1901, assim como o do major George M. Giles, lançado em 1900 e reeditado em 1902, não continham material representativo das Américas do Norte e Central e do Caribe (então chamado ‘Índias Ocidentais’). O objetivo de Howard era produzir uma obra abrangente sobre os mosquitos dessas regiões. Liberado o financiamento em 1903, ele convidou dois entomologistas para colaborarem no ambicioso empreendimento: Frederick Knab e Harrison Gray Dyar.
À época, Knab trabalhava como ilustrador para o entomologista Stephen Alfred Forbes. Nascido em Würzburg, Baviera, em 22 de setembro de 1865, pertencia a uma família de artistas. Seu pai, Oscar Knab, era gravador e pintor, e um de seus irmãos serviu como artista na corte da Baviera. Frederick Knab também revelou talento para as artes, e algum tempo depois de emigrar para os Estados Unidos (com 8 anos), regressou à Alemanha para uma temporada de estudos em Munique. (A família radicou-se em Chicopee, Massachusetts.) Knab dedicou-se à pintura de paisagens, e em 1885-1886 teve a oportunidade de desenvolver seus conhecimentos entomológicos numa expedição ao rio Amazonas. Ingressou na Divisão de Entomologia do Departamento de Agricultura em 1906. Com a morte de Coquillett, cinco anos depois, assumiu a curadoria da coleção de dípteros do National Museum of Natural History. Faleceu em Washington, em 2 de novembro de 1918, vítima de uma doença não diagnosticada, contraída durante a expedição ao Brasil.
Harrison Gray Dyar, por sua vez, já trabalhava no Museu de História Natural desde 1897, como chefe da Seção de Lepidoptera, a convite do próprio Howard.181 Depois de se formar em química no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, em 1889, doutorou-se na Columbia University com a tese On Certain Bacteria from the Area of New York City (1895). Antes de ingressar no Museu de História Natural, foi assistente de bacteriologia (1896-1897) no College of Physicians and Surgeons da Columbia University.
Em 1894, publicou “A Classification of Lepidopterous Larvae”. Graças a esse importante artigo, assumiu a curadoria dos lepidópteros do Museu. Suas pesquisas sobre as lagartas deram origem à chamada Regra de Dyar, segundo a qual a largura da cápsula cefálica das larvas dos lepidópteros segue uma progressão geométrica regular nos sucessivos instares, descoberta que permitiu a determinação dos vários estágios do inseto através da medição de sua cabeça.
Dyar e Knab ficaram responsáveis pela parte taxonômica da obra organizada por Howard, e como o primeiro tinha condição financeira privilegiada, financiou várias expedições para a coleta de insetos. Dyar foi um dos mais importantes taxonomistas de sua época. Além de escrever muitos artigos sobre lepidópteros norte-americanos, dedicou-se ao estudo dos mosquitos, especialmente em estágio larval. Após a morte de Knab, passou a pesquisar os mosquitos também em sua fase adulta, tornando-se uma autoridade em culicídeos. Suas investigações sobre a genitália masculina desses insetos foram essenciais à classificação do grupo. Além dos Culicidae, Dyar estudou as famílias Simuliidae, Psychodidae e Chaoboridae.
Fundou o lnsecutor lnscitiae Menstruus, periódico que chegou a 14 volumes entre 1913 e 1927, colaborou nas principais publicações entomológicas de seu país, e envolveu-se em acaloradas controvérsias com alguns de seus pares, como D. W. Coquillett, J. B. Smith e Henry Skinner.
The Mosquitoes of North and Central America and the West Indies, em quatro volumes, foi publicado pelo Instituto Carnegie de Washington entre 1912 e 1917. A obra tornou-se um marco na taxonomia desse grupo de insetos. Howard pretendia concluí-la em três anos, mas decorreram seis até sair o primeiro volume. O autor principal atribuiu a demora à necessi dade de fazer um trabalho tão completo quanto possível para biólogos e sanitaristas, criticando ele a rapidez com que foram publicados os trabalhos de Theobald e Giles, incompletos e com sérios problemas taxonômicos. Em virtude do atraso, teve de mobilizar outros recursos além daqueles concedidos pelo Instituto Carnegie: provieram de fundos destinados pelo Congresso ao Departamento de Agricultura para a investigação de insetos prejudiciais à saúde do homem e dos animais; de fundos de assistência da Comissão do Canal do Istmo [do Panamá]; da ajuda de voluntários na América Central e nas Índias Ocidentais e, last but not least, de desembolsos dos autores, especialmente Dyar (Howard, ibidem, p.472).
O trabalho dos três entomologistas consolidou uma longa disputa a propósito de normas taxonómicas relacionadas principalmente aos Diptera, disputa travada sobretudo com seus pares europeus. Adolpho Lutz, um dos grandes parceiros de Theobald, participou, em vários momentos, da controvérsia taxonómica provocada pelos norte-americanos, que ambicionavam a hegemonia nos conhecimentos sobre aquele grupo de insetos.
Assim como que a monografia de Theobald estava associada à construção do império britânico, o empreendimento de Howard e colaboradores cumpria função similar na expansão do imperialismo norte-americano, mais notável após terem sido debelados os efeitos da Guerra de Secessão (1861-1865). A ‘trustificação’ da economia transcorreu ao mesmo tempo em que a África e o Pacífico eram repartidos principalmente entre Grã-Bretanha, França, Alemanha, Bélgica e Japão. Se nessa partilha os Estados Unidos tinham participação menor, no continente americano não poupavam esforços para impor sua hegemonia política e económica, em detrimento da européia, recorrendo à ocupação territorial apenas em áreas próximas ao território norte-americano (Caribe e América Central). O marco inicial desse processo foi a guerra hispano-americana (1898), em que os Estados Unidos intervieram em favor da independência cubana. Além de Cuba, a Espanha perdeu para os ‘ianques’ Porto Rico, no Caribe, e as Filipinas, na Oceania.
A Grã-Bretanha tinha possessões na região das Antilhas, então chamadas de Índias Ocidentais Britânicas: Jamaica, Bahamas, Trinidad, Tobago, Santa Lúcia, Dominica etc. Nestas ilhas abasteciam-se de carvão (Hobsbawm, 2002, p.102) os navios a vapor das companhias inglesas que dominavam o comércio internacional na América do Sul e Central. Em Belize (na época, Honduras Britânicas) possuíam uma base naval, e estavam presentes também na Guatemala e na parte da Guiana tomada aos holandeses em 1815 (Falcon, 2000, p.73). A influência britânica representava um obstáculo ao interesse dos Estados Unidos em conseguir o monopólio do comércio e navegação entre os oceanos Atlântico e Pacífico.
Em 1901, o presidente Theodore Roosevelt (1901-1909) enunciou a doutrina que ficou conhecida como Big Stick (grande porrete), corolário da Doutrina Monroe (1823), cujo lema fora “a América para os americanos”. Seu primeiro fruto foi o movimento separatista fomentado pelos Estados Unidos no norte da Colômbia, que resultou na criação, em 1903, de um estado independente no istmo do Panamá. No ano seguinte, começou a construção do Canal para ligar os dois oceanos. Concluído em 1914, ficaria sob controle norte-americano até 1999.
Outro episódio importante da afirmação da hegemonia norte-americana teve lugar na Venezuela. Em 1902, o Estado e alguns capitalistas eram devedores insolventes de fortes credores ingleses e alemães. Inglaterra, Alemanha e Itália bloquearam então os portos venezuelanos, mas Roosevelt negociou uma saída para a crise, de maneira a impedir que ela reforçasse a presença européia na região (Donghi, 1982, p.169).
William Crawford Gorgas (1854-1920) fotografado no lugar da construção do Canal do Panamá, onde sua expertise foi essencial para o combate aos transmissores da febre amarela e da malária. Acervo da National Library of Medicine, em Bethesda. LYONS & PETRUCELLI (1987), p.562.
De 1909 a 1912 ocorreu a primeira ocupação da Nicarágua pelos Estados Unidos, que intervieram também no México,182 em 1913, quando subiu ao poder o general Huerta, simpático aos ingleses. Os norte-americanos apoiaram seu adversário, Venustiano Carranza, e ocuparam militarmente o porto de Vera Cruz.
A Primeira Guerra Mundial abriu espaço para os Estados Unidos se apoderarem dos mercados e territórios controlados pelos ingleses, ampliando sua influência para além do Caribe e da América Central.
O primeiro contato entre Howard e Lutz ocorreu em outubro de 1902: o diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo pediu alguns trabalhos do chefe da Divisão de Entomologia dos Estados Unidos, e foi prontamente atendido.183 Em 13 de janeiro de 1903, Lutz propôs que continuassem a se corresponder e a trocar materiais biológicos. Na resposta datada de 10 de fevereiro, Howard acolheu muito bem a sugestão: “Diga-me o que deseja especialmente deste país. Por acaso já possui algumas de nossas espécies sugadoras de sangue? Envie-me uma lista do que o senhor tem ou uma lista de seus desiderata. Ficarei muito feliz se receber do senhor qualquer coisa nessa linha”. Sem demora, Lutz enviou quatro cópias do trabalho que acabara de publicar sobre mosquitos e malária das florestas. Na mesma carta (24.2.1903), disse que gostaria de receber publicações do Departamento e trocar especialmente exemplares de Diptera, assinalando que já coletara cerca de cem espécies brasileiras (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 83, maço 2).
Em maio, Howard enviou-lhe um relatório de Coquillett sobre as espécies recebidas do entomologista de São Paulo, juntamente com uma caixa contendo espécimes que poderiam interessar-lhe. “O senhor observará que montamos os insetos num plano um pouco diferente” – fazia questão de observar Howard – “e eu creio que se se familiarizar com nosso método acabará por considerá-lo muito superior ao inglês.”
A correspondência prosseguiu amigavelmente, com trocas freqüentes de espécimes e informações taxonômicas. É interessante notar que, em suas cartas, Howard não faz menção alguma a Theobald ou à colaboração de Lutz com ele. O trabalho sobre a malária silvestre não teve impacto imediato, mas quase dez anos depois, como veremos, Dyar e Knab iriam travar intensa polêmica a propósito da veracidade das observações de Lutz sobre essa nova forma da doença, com ciclo exclusivamente silvestre.
Como já vimos, em 1904 Lutz publicou novo arranjo taxonómico dos Culicidae na tese de Celestino Bourroul: agrupou os gêneros em diferentes subfamílias, e utilizou pela primeira vez, com muita propriedade, os caracteres das larvas para essa divisão supragenérica. Fez inicialmente duas grandes divisões levando em conta a posse ou não de probóscida perfurante: Euculicidae e Culicimorphae. Os Euculicidae (com probóscida perfurante) foram então subdivididos em dois grandes conjuntos -Asiphonatae e Siphonatae – por terem ou não as larvas sifão respiratório. Era a primeira vez que se utilizavam caracteres larvais para a divisão de subfamílias. Os Siphonatae foram novamente subdivididos, utilizando Lutz, agora, como caráter diferencial, a probóscide curva ou reta (Ankylorhynchae e Orthorhynchae). Os novos grupos são subdivididos sucessivamente até se chegar aos gêneros.184
O arranjo proposto por Adolpho Lutz logo foi acatado por seus pares europeus, especialmente Raphael Blanchard e seu interlocutor mais freqüente, Frederick Theobald, que adotou a nova classificação quase que integralmente no segundo suplemento à sua monografia, publicado em 1907.
Blanchard atuava no ápice da rede que interligava zoólogos e parasitologistas do mundo inteiro, cada vez mais voltados para temas de relevância médica (Caponi, 2003, p.113-49). Foi um dos fundadores da Société Zoologique de France, e seu secretário-geral de 1876 a 1900. Com Alphonse Milne-Edwards, organizou os congressos internacionais de zoologia (o primeiro em 1889) que sacramentaram regras mais precisas para a nomenclatura zoológica. Blanchard criou em 1898 os Archives de Parasitologie -onde muitos trabalhos de Lutz seriam resenhados – e, em 1902, o Institut de Médecine Coloniale, com o objetivo de proporcionar formação em parasitologia aos médicos que atuavam nos chamados ‘países quentes’.
Em 1905, publicou Les moustiques: histoire naturelle et médicale, um dos tratados fundadores da entomologia médica, onde reproduzia (p.619-20) a classificação proposta para os culicídeos por Lutz (e, diga-se de passagem, apresentava, nas palavras deste [1939, p.477], “excelente sumário dos argumentos a favor da transmissão culicidiana da lepra”).185 Blanchard analisava o papel comprovado dos mosquitos como transmissores da malária, febre amarela e filariose, e seu papel “presumido” na veiculação não apenas da lepra (p.543-5), mas também da dengue, peste, úlcera dos países quentes, verruga, pinta, febre ondulante e uma epizootia eqüina do sul da África.
Compsomyia macellaria: Fig.1- Inseto inteiro, ampliado; Fig.2 – Cabeça vista de perfil, ampliada; Fig.3 – Cabeça vista de frente, ampliada; Fig.4 – Cabeça vista do alto, ampliada; Fig.5-9: Aricia pici: Fig.5 – Inseto inteiro, ampliado; Fig.6 – Cabeça vista de perfil, ampliada; Fig.7 – Cabeça vista de frente, ampliada; Fig.8 – Cabeça vista do alto, ampliada; Fig.9 – Pupa antes da eclosão da mosca; Fig.10-13: Dermatobia cyaniventris: Fig.10 – Inseto inteiro, ampliado; Fig.11- Cabeça vista de perfil, ampliada; Fig.12 – Cabeça vista de frente, ampliada; Fig.13 – Cabeça vista do alto, ampliada. Prancha extraída de artigo de Raphael Blanchard intitulado “Contribution à l’étude des diptères parasites,” publicado nos Annales de la Société Entomologique de France (v.LXV, 1896), periódico criado em 1832 após a fusão da Revue Française d'Entomologie e da Revue de Pathologie végétale et d'Entomologie agricole de France.
BR.MN.Fundo Adolpho Lutz.
Tudo indica ter a correspondência entre o francês e o brasileiro começado em 1901, ou mesmo antes.186 Das cartas existentes no arquivo deste, a primeira é datada de junho de 1905: Blanchard pedia exemplares de mosquitos para sua coleção entomológica “qui ne comptait pour ainsi dire aucun type sud-américain” (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 255, maço 1). Nessa correspondência, é visível o respeito que tinha o parasitologista francês pelos trabalhos de Lutz:
Mil agradecimentos por sua carta extensa, amável e instrutiva. Ficarei muito feliz de publicar nos [Archives de Parasitologie] os seus trabalhos e os de seus alunos que queira enviar-me. Parece-me particularmente desejável que publique logo um trabalho englobando seus importantes estudos sobre os mosquitos, com a diagnose das subfamílias, gêneros e espécies recémestabelecida pelo senhor. Agradeço-lhe de antemão o próximo envio de mosquitos. Não possuo nada, ou quase nada da América do Sul; essa coleção será, portanto, muito bem-vinda … os trabalhos publicados no Brasil infelizmente são pouco acessíveis para nós aqui.187
O novo arranjo de Lutz mereceu elogios também de seus pares nos Estados Unidos, especialmente de Dyar,188 que vinha trabalhando com larvas e genitálias, em busca de uma classificação melhor do que a proposta por Theobald. Em artigo publicado em dezembro de 1905, nos Proceedings of the Entomological Society of Washington, intitulado “On the Classification of the Culicidae,” comentou:
Uma classificação proposta pelo dr. Lutz e citada na obra de R. Blanchard … corresponde exatamente aos caracteres larvais, e é evidentemente a melhor e mais natural classificação já proposta. O doutor Lutz chegou a esse feliz resultado não pelo uso de qualquer caráter novo, mas mudando a ordem de importância dos antigos. O comprimento relativo dos palpos nos sexos, até agora encarado como caráter da maior importância, é relegado a uma condição subordinada … Os inúteis caracteres de escamas usados por Theobald são descartados, e muito adequadamente. Falo de divisões primárias, ou subfamilias, sem entrar no mérito da classificação dos gêneros. (Dyar, 1905, p.188)
Prosseguindo a comparação entre as classificações de Theobald e Lutz, Dyar analisava outros caracteres usados por este para a divisão das subfamílias e propunha rearranjos. A seu ver, o caráter forte no esquema do brasileiro era a presença ou ausência de cerdas no metanoto; as subdivisões, baseadas no palpo, eram fracas e deviam ser descartadas. Procurando combinar os caracteres de larvas e adultos, Dyar (ibidem, p.190) aceitava como válidas somente três subfamílias: Anophelinae; Culicinae e Sabethinae. Esse trabalho despertou grande interesse entre os entomólogos norteamericanos, e seria aprofundado em artigo publicado no ano seguinte, em colaboração com Frederick Knab.
Em 22 de junho de 1906, este pediu a Lutz cópia da tese de Bourroul (haviam tomado conhecimento da classificação que inserira aí através do livro de Blanchard). Knab já havia enviado a Lutz o último trabalho escrito em parceria com Dyar sobre as larvas de mosquitos e a nova classificação que queriam dar ao grupo:
O senhor verá que, no essencial, concordamos com seus pontos de vista; apenas estamos inclinados a reconhecer quatro subdivisões, de modo a obter maior simplicidade. Descartamos por completo os Aedes como grupo heterogêneo e insustentável. O senhor foi o primeiro a reconhecer os Sabethides como grupo. Em nossa opinião, possuem valor quase igual ao de todas as outras formas juntas. Sua região deve oferecer grande abundância de materiais interessantes, e esperamos ver muitas contribuições valiosas suas ao conhecimento dos mosquitos.
“The larvae of Culicidae classified as independent organisms” acabara de ser publicado no Journal of the New York Entomological Society (1906, v.XIV, n.4, p.169-230). Dyar e Knab tratavam aí da classificação dos Culicidae exclusivamente a partir dos caracteres larvais, criticando o valor das estruturas das escamas para separar gêneros, critério proposto por Theobald e adotado por muitos outros investigadores. Comentavam o livro de Blanchard, de início elogiosamente, sobretudo por haver ele eliminado certos aspectos “grosseiros” da produção entomológica recente, mas em seguida atacavam a classificação convalidada por ele:
Não podemos evitar um sentimento de surpresa com o fato de autores eminentes adotarem caracteres tão fracos para a separação de subfamílias e gêneros. Muita importância é dada à extensão dos palpos no macho ou na fêmea, o que nos leva a duas objeções fundamentais. De acordo com nossa experiência, o comprimento do palpo nunca é um caráter importante, em qualquer inseto, sendo ele produto da adaptação, sem valor supragenérico, não tendo, com freqüência, sequer valor genérico … Na definição de gêneros, muita importância é atribuída à forma e ao arranjo das escamas. Para qualquer estudioso familiarizado com o valor dos diferentes caracteres nos insetos, esta parece ser, a priori, uma escolha infeliz. (Dyar & Knab, ibidem, p.172-3)
Para reforçar o argumento de que aqueles caracteres não levavam a uma classificação ‘natural’, Dyar e Knab recorriam a livro publicado em Calcutá em 1904 por P. S. James e W. Glen Linston, A monograph of the Anopheles mosquitoes of India Calcutta. Os autores denunciavam aí a natureza muito subjetiva das descrições feitas por Theobald de caracteres que considerava basilares, como, por exemplo, a forma das escamas – o quanto eram lanceoladas, longas ou estreitas nas asas, semelhantes a pêlos no abdome, ele próprio às vezes peludo. Tudo isso seria fruto de percepção circunstancial, subjetiva e pouco mensurável do entomologista britânico.
Theobald, por sua vez, no volume de sua monografia lançado em 1907, fazia o seguinte comentário (p.9, 13): “muito se tem feito em relação a larvas de Culicidae na América, e graças a esses trabalhos, grande número de formas são agora definitivamente conhecidas. Não há dúvida de que os caracteres larvais têm grande valor e interesse, mas certamente não é usual formar gênero e espécie de larva”. Segundo Theobald, quem examinasse uma série extensa de qualquer larva perceberia grande variação em seus caracteres, não só em diferentes estágios da mesma espécie, mas também no mesmo estágio atravessado por diferentes exemplares da mesma espécie.
O entomologista britânico referia-se a outro método novo de classificação proposto em 1904 por E. P. Felt, que levava em conta não apenas os caracteres larvais, mas também a genitália do macho e as nervuras das asas. Nos Proceedings of the Entomological Society of Washington, Dyar (1905) concordara com Felt, e concluíra que os agrupamentos pela genitália eram corroborados pelas larvas, constituindo assim uma divisão mais natural do que aquela baseada em escamas e palpo, recém-inaugurada por Theobald.
Desenho da genitália de um macho da espécie Stegoconops capricornii Lutz. HOWARD, DYAR & KNAB (1912), prancha 24.
O interesse pelas larvas levou Dyar a assumir a responsabilidade pelo estudo dos estágios imaturos dos Diptera na grande publicação que preparava com Howard e Knab. De temperamento forte e arrogante, Dyar não media palavras ao enfrentar os entomólogos que pensavam de maneira diferente, mesmo colegas de Washington. Logo que saiu o trabalho sobre larvas de Culicidae que realizou com Knab, Daniel Coquillett, o curador da Seção de Diptera do Museu de História Natural publicou nota externando sua indignação com o procedimento de Dyar:
Assim que o sr. Busck regressou da expedição às Índias Ocidentais, no último outono, entregou-me os espécimes de mosquitos coletados para que os nomeasse, e eu imediatamente comecei a separar as larvas e peles de larvas em espécies, pretendendo depois associá-las aos adultos criados aqui, para então identificar definitivamente as várias espécies … O doutor H. G. Dyar, porém … pôs-se a clamar por eles, exigindo que lhe fossem entregues imediatamente. Tão obstinado e veemente foi em suas exigências, que expediram uma ordem instruindo-me a colocar imediatamente o material em suas mãos. Fui instruído, também, a preparar uma lista provisória dos adultos procriados, o que fiz, marcando as espécies duvidosas. Dyar por sua vez foi instruído a ajudar a corrigir essa lista, indicando os casos, se houvesse algum, em que mais de uma espécie houvesse sido incluída sob um único nome. Ele se recusou a fazer isso. Ao invés, preparou e às pressas publicou o referido artigo [The Larvae of Culicidae Classified as Independent Organisms], dando os nomes provisórios, mas sem nenhuma explicação quanto a esta circunstância … Ademais, em vários casos suprimiu o ponto de interrogação inscrito por mim, e em outros ardilosamente transferiu-o do nome da espécie para o do gênero, dando assim intencionalmente a falsa impressão de que era ao gênero e não à espécie que dizia respeito minha dúvida! (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 168, maço 4)
Theobald permaneceu confiante na abordagem adotada desde o início de seu trabalho sobre os Culicidae. Na introdução ao volume de 1907, reiterou sua escolha: a enorme quantidade de material que tivera à disposição para análise comprovara o valor da estrutura das escamas não somente para o diagnóstico dos espécimes como para uma classificação natural e verdadeira deles. Considerava a genitália do macho e a estrutura do palpo de menor importância, úteis apenas para complementar o conhecimento do grupo baseado no agrupamento das escamas. Theobald adotava o arranjo taxonômico de Lutz com apenas duas pequenas alterações. Considerava-a a melhor classificação geral já proposta, e elogiava Lutz por haver conservado as descrições originais dos gêneros de Culicidae, apresentadas nos clássicos da entomologia, atualizando a classificação conforme os conhecimentos mais modernos.
Após a publicação do volume de 1907, a correspondência de Theobald com Lutz escasseou. O primeiro voltou-se cada vez mais para seu objeto primitivo de interesse, as pragas agrícolas, ao passo que o segundo deixou a direção do Instituto Bacteriológico de São Paulo para começar vida nova em Manguinhos. Assim como para o entomologista britânico, os mosquitos ficariam em segundo plano entre os grupos entomológicos aos quais Lutz iria dedicar-se: os simuliídeos, primeiramente, depois os flebótomos, os ceratopogonídeos, as megarhininas (já às vésperas da Primeira Guerra Mundial), os hipoboscídeos, os oestrídeos, as tripaneidas (tefritídeos) e, por último, os blefarocerídeos. Com exceção dos tabanídeos, estudados por Lutz até sua morte, e dos flebótomos, associados às leishmanioses, esses grupos, à época, não tinham sido ainda associados a nenhuma questão médica ou sanitária relevante.
A interlocução de Adolpho Lutz com os norte-americanos, interrompida durante o ano de sua mudança para o Rio de Janeiro, prosseguiria até a Primeira Guerra Mundial, versando ora sobre classificação e intercâmbio de espécimes, ora sobre disputas taxonómicas e de interpretação, como no caso da malária silvestre.
Dedicados à coleta e ao estudo da fauna de Diptera da América Central e do Caribe, Dyar e Knab publicam periodicamente trabalhos concernentes a novas espécies e a sinonímias. A interlocução com entomologistas da América Latina, especialmente Adolpho Lutz, é fundamental para a identificação das espécies neotropicais e o mapeamento de sua distribuição geográfica. Em 1908, propõem novo nome para a espécie classificada por Theobald como Myzomyia lutzii – aquele espécime coletado por Lutz na serra de Cubatão e por ele relacionado à transmissão da malária silvestre. Theobald batizara-o primeiro com o nome de Anopheles lutzii, depois transferira-o para o gênero Myzomyia. Os entomólogos norte-americanos incluíram a espécie no gênero Anopheles, já que não reconheciam Myzomyia como válido. E como o nome Anopheles lutzii já estava ocupado, denominaram-no Anopheles cruzii, observando: “Dá-nos grande prazer dedicar esta interessante espécie ao Dr. Oswaldo Cruz, conhecido higienista e bacteriologista do Rio de Janeiro” (Dyar & Knab, 1908, p.53).189
A correspondência com Adolpho Lutz foi reiniciada em abril de 1909: Howard comunicou-lhe que estava prestes a ser publicada a monografia que vinha preparando, e pediu-lhe um retrato para a galeria de entomologistas que constaria aí. Além de enviar a fotografia (14.7.1909), Lutz disse que em breve publicaria uma revisão dos Culicidae brasileiros em parceria com Arthur Neiva. Estava trabalhando com simuliídeos e ceratopogonídeos, e pediu ao norte-americano espécies deste último grupo coletadas no Brasil, classificadas e descritas por Coquillett. Pediu também a descrição de ceratopogonídeos da região do Caribe para que pudesse compará-los, pois acreditava serem diferentes das espécies encontradas no Brasil. A mesma dúvida tinha em relação a duas espécies de simuliídeos.
Howard encaminhou aquela carta aos dipterologistas do Museu de História Natural de Washington. Em 20 de setembro de 1909, Knab devolveu-lhe comentários e sugestões para que fossem transmitidos a Lutz (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 168, maço 4). Estavam bem apreensivos com a revisão que tencionava publicar. Temiam problemas taxonômicos e de prioridade: “Muito obrigado pela oportunidade de ler a carta do dr. Lutz” – escreveu Knab:
Fiquei bastante interessado em saber que ele continua a trabalhar com mosquitos. Imagino que não podemos pedir-lhe para segurar a publicação de sua revisão dos Culicidae brasileiros, mas talvez o senhor possa sugerir isso de maneira delicada. O senhor com certeza se dá conta das complicações que provavelmente ocorrerão se nosso trabalho e o dele vierem a público simultaneamente, ou quase. Talvez o dr. Lutz consinta em informar quando pretende publicar.
Knab considerava decepcionante a tese sobre Culicidae de Peryassú: seria, em larga medida, mera transcrição do trabalho de Theobald. De Lutz esperavam mais originalidade, e sugeriam a Howard que o aconselhassem a olhar com mais cuidado a classificação baseada na estrutura das escamas e no palpo do macho, uma vez que vinham aperfeiçoando um sistema próprio desde a primeira publicação a esse respeito em 1907 (Canadian Entomologist, v.39, p.47-50). Knab explicava, então, como estavam dividindo os gêneros Culex e Aedes. Pelas regras que vinham adotando, algumas espécies de Culex relacionadas no folheto do Instituto Oswaldo Cruz passariam para o gênero Aedes.190 Knab também pedia a Howard que conseguisse as descrições de algumas espécies citadas aí, especialmente aquela batizada por Lutz como Anopheles occidentalis, já que o nome encontrava-se já pré-ocupado por uma espécie norte-americana descrita por ele e Dyar.
Knab havia escrito a Oswaldo Cruz que estavam ansiosos para ver os tipos das espécies brasileiras de Culicidae, em particular os de Lutz. Pedia agora a Howard para ver se conseguia outras publicações dele, em particular a série sobre taxonomia de Culicidae publicada na Imprensa Médica. Feitas essas considerações, respondia às questões apresentadas por Lutz sobre ceratopogonídeos. Segundo Knab, o trabalho de Coquillett não era confiável, uma vez que ele se limitava a utilizar a tabela taxonômica de divisão dos grupos, sem comparar os exemplares, o que dava origem a muita confusão. “Quanto às perguntas do dr. Lutz concernentes a Ceratopogon; C. pergandei Coq. foi descrito do Distrito de Columbia, e parece absurdo que essa espécie apareça no Brasil”. Na opinião de Knab, as espécies brasileiras de Culicidae raramente chegavam à América Central, e nas Índias Ocidentais existia uma fauna própria, com pequena porcentagem de formas continentais.
Eu sugeriria que o senhor enviasse ao dr. Lutz um conjunto de Ceratopogon e Simulium, mas mesmo assim não se pode confiar na determinação. Se não estiverem mais disponíveis os trabalhos nos quais constam as espécies de Coquillett, o senhor deveria mandar copiar as descrições para o dr. Lutz. (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 168, maço 3)
Atendendo àquelas sugestões, Howard enviou cartas a Lutz (com cópia da de Knab) e a Oswaldo Cruz. Dois meses depois, Lutz respondeu: ele e Neiva aguardariam a monografia dos norte-americanos para evitar a confusão que poderia surgir com as publicações simultâneas. Esclarecia as dúvidas de Knab e levantava ele próprio algumas questões, manifestando sua discordância de alguns aspectos da classificação que propunham. Lutz lamentava não haver tido oportunidade de discutir a nomenclatura usada pelos “especialistas de Howard” (é assim que se refere a Knab e Dyar). Fazia questão de lembrar que fora um dos primeiros a usar a larva como caráter relevante, e tecia considerações sobre o status taxonômico de algumas espécies, discordando de modificações feitas por Dyar e Knab:
Como é do conhecimento geral, há bom número de anos tenho sempre usado a maior parte das larvas dos nossos mosquitos (incluindo mesmo Mansonia e Taeniorhynchus) como controle das diferenças genéricas estabelecidas, mas nunca poderia aprovar a inclusão de mosquito tão diferente como o Culex apicalis (estou certo de que é idêntico ao Taeniorhynchus confinis de [Lynch] Arribálzaga) com Janthinosoma, por causa somente das respectivas larvas, que conheço bem, e nem penso que isso permita desrespeitar como um todo a prioridade na classificação. (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 168, maço 3)
A observação foi prontamente respondida por Knab, em carta que Howard reencaminhou a Lutz, junto com uma de sua própria lavra (10.1.1910):
Não compreendemos o que o doutor Lutz quer dizer quando afirma que desrespeitamos prioridade. Estamos aderindo a ela com o rigor que nos é possível. Penso que tudo isso aparecerá claramente para ele quando vir nosso trabalho concluído. (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 168, maço 3)
Howard, por sua vez, mostrou a Lutz quão satisfeitos ficaram com sua decisão de adiar a publicação sobre mosquitos, e prometeu fazer tudo para que a deles saísse o mais rápido possível. Havia submetido seus comentários mais específicos a Knab, que redargüia com as seguintes ponderações:
É muito natural que o dr. Lutz esteja em desacordo conosco em certas questões de classificação – nós não estamos de modo algum satisfeitos com nosso próprio esquema. Ainda assim, a nosso ver fizemos o melhor possível. Ainda estamos convencidos de que os caracteres palpo e escama não deviam ser usados. Alguns dos caracteres que parecem funcionar bem com um pequeno número de espécies perdem esse valor com outras. Tivemos de abandonar certos grupos que, a nosso ver, precisavam ser definidos por não havermos conseguido encontrar caracteres tangíveis em adultos. A verdade é que os caracteres específicos são com freqüência aqueles que se desenvolvem melhor, e tendem a obscurecer os genéricos.
Tivemos de rejeitar Stegoconops como gênero compósito. S. capricorni, o tipo, é um Haemagogus, como pode ser visto de imediato pela estrutura dos lobos torácicos. Quanto ao formato do abdome, temos completa gradação, perpassando outras espécies, como o típico Aedes. Tive muito trabalho com essas coisas pois sentíamos que o Aedes, tal como o entendemos hoje, devia ser desagregado, mas não alcancei resultados satisfatórios. Quanto ao grupo Janthinosoma, baseamos nossa concepção não somente nas larvas, mas também na genitália dos machos, que indica exatamente o mesmo agrupamento. Incluímos 384 espécies de mosquitos na monografia, e estudamos as larvas e genitálias masculinas de quase três quartos desse total, portanto nossos pontos de vista têm algum fundamento. Além disso, tivemos a oportunidade de estudar material de fora de nossa região. (Ibidem)
Knab lamentava que Lutz não houvesse publicado nada a respeito das larvas de Mansonia, já que isso teria sido de grande utilidade, pois o mosquito tinha grande importância econômica. Na nova classificação que propunham, os gêneros Mansonia e Taeniorhynchus eram unificados, com base nas genitálias dos machos. Knab (ibidem) admitia que poderiam permanecer separados, mas julgava terem estreito parentesco e que a associação “não causará dano algum”. O missivista assinalava uma divergência nas interpretações de Lutz e Peryassú no tocante a uma espécie:
Estamos perplexos com as afirmações do doutor Lutz referentes a “MicroculeX” argenteoumbrosus. Temos espécimes enviados alguns anos atrás pelo doutor Lutz como Culex imitator que concordam perfeitamente com espécimes oriundos de Trinidad e Panamá, e que se reproduzem em bromélias. A descrição de Theobald de “argenteo,” a [espécie] umbrosus coincide em todos os aspectos com esses espécimes. Além disso, é evidente que o Dr. Peryassú não conhecia “argenteo-umbrosus,” contentando-se em citar a descrição de Theobald, o que fortaleceu nossa convicção.
No pé em que está a questão, queremos ver a coisa, ou, pelo menos, queremos que nos mostrem as diferenças tangíveis! O que é o Culex amazonensis [?]. É a espécie [descrita por] Spix e Martius? Não considerei tangível a descrição deles! (vejo que a espécie é amazonicus, não amazonensis como temos. Não há referência a nenhum Culex amazonensis!).
Prosseguindo suas considerações taxonómicas, Knab aceitava certas objeções feitas por Lutz:
Suspeitamos que Myzomyia “tibiomaculata” pudesse ser Anopheles eiseni, mas não conseguimos tornar a descrição satisfatória para nós. A. eiseni foi publicado em 1902, portanto tem prioridade. Consideramos insolita e oswaldoi a mesma espécie, dando prioridade à última. Resolvemos o problema do Culex apicalis seguindo a mesma linha do doutor Lutz; esta espécie, então, terá que ser conhecida por confinis [Lynch] Arrib. A espécie que Theobald denominou confinis terá de chamar-se indoctum Dyar & Knab. Aguardamos com o maior interesse as notas adicionais do doutor Lutz e o material que nos prometeu.
Pondo um fecho àquela discussão, Howard reafirmava a consideração que tinham por Lutz e acusava o recebimento da primeira parte de sua monografia sobre os tabanídeos brasileiros: “Folheei-a com o maior interesse. Percebo que o senhor anda muito ocupado. Todos os homens de valor estão. E isso me faz apreciar ainda mais sua gentileza em escrever-me aquela longa carta”. (BR.MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 168, maço 3).
Três meses depois, em abril de 1910, chegava a Washington Arthur Neiva, o mais próximo colaborador de Adolpho Lutz em Manguinhos, para iniciar seus estudos de aperfeiçoamento em entomologia. Passou lá cerca de oito meses. Em dezembro ou janeiro do ano seguinte, munido de cartas de recomendação de Howard, viajaria para a Europa para completar os estudos preliminares da Revisão do gênero Triatoma – o transmissor da Doença de Chagas – que publicaria em 1914.
Howard (1930, p. 425) descreveu Neiva como um “jovem encantador de 30 anos, essencialmente talvez um bacteriologista, mas muitíssimo interessado em entomologia médica”. Ele chegou aos Estados Unidos exatamente quando Theobald publicava o quarto e último volume de sua monografia. Lá interagiu bastante com os três personagens exponenciais da entomologia norte-americana, em vias de publicar obra tão importante – ou mais – quanto a do entomologista britânico (1912-1917).
Três meses depois de chegar a Washington (11.7.1910), Neiva escreveu extensa carta a Adolpho Lutz relatando suas impressões sobre o trabalho dos dipterologistas chefiados por Howard:
Li quase todo o trabalho do Dyar e Knab e estou certo de que embora seja bastante revolucionário acabará por se impor. Serão provavelmente 4 volumes magnificamente ilustrados no que concerne às larvas; sairá ainda este ano … Theobald tem aqui a sua Via dolorosa: toma pancada a cada momento, é de causar pena. Pouco se ocupam do Sr., de vez em quando há alguns tópicos que lhe são referentes; todavia sempre que o fazem é com acatamento e, do Knab, que é um cavalheiro, tenho ouvido as melhores referências a seu nome, e fala do Sr. com muita simpatia e consideração.191
Neiva ficou, a princípio, deslumbrado com o que viu no Museu de História Natural de Washington, especialmente com o método de trabalho dos norte-americanos:
As coleções são de uma riqueza incalculável; a belíssima coleção de borboletas do Foetterle desapareceria aqui; o Dyar trabalha com borboletas auxiliado por algumas pessoas que desenham, montam, catalogam, ficham etc., etc. Agora mesmo, estou olhando para a caixinha que contém as do Foetterle, cujo nome vem escrito por fora. Eles se orgulham de possuir a melhor coleção de borboletas do continente americano jamais reunida; realmente só vendo. É um salão enorme ocupado totalmente pelas borboletas, tudo distribuído com grande método; e tudo o mais é assim; devem ufanar-se do que possuem. O número de assistentes é extraordinário, já se vê que não fazem o menor trabalho material: montagem, rotulagem dos insetos, catalogação das fichas, datilografia, desenhos, tudo isto é executado por um enxame de senhoritas. (Ibidem)
As caixas onde guardavam os insetos eram parecidas com as usadas no Instituto Oswaldo Cruz, mas com uma inovação que Neiva descrevia para que a introduzissem lá:
a caixa é de parede dupla, com um vão mais ou menos de 2 dedos; de vez em quando, há uma travessa de madeira entre as duas paredes e o vão que serve também de encaixe para a tampa, é cheio de naftalina, podendo-se portanto inclinar a caixa para qualquer lado sem que a naftalina se deposite sobre os insetos ou que os traumatize.
Os mosquitos eram montados pelo mesmo processo que usavam, mas os americanos estavam descontentes porque muitos se estragavam: “creio que vão adotar o nosso processo de tubos de vidro, e eu peço ao Sr. para mandar fazer outro tanto com os nossos, senão dentro em breve não teremos mais coleção que preste”. A carta de Neiva mostra que, no Instituto Oswaldo Cruz, ainda não se fazia a distinção entre ‘tipo’ [holótipo](um único exemplar selecionado que serviu à primeira descrição da nova espécie) e ‘cotipo’ [sintipo] (quando a espécie é descrita sobre mais de um exemplar, todos eles tendo valor como tipos). “Seria excelente prática a introduzir nas nossas coleções” – registrava o companheiro de Lutz.192 Em outra passagem da mesma carta, registrava mais uma novidade técnica: quando possuíam mais de um exemplar da mesma espécie, os entomologistas norte-americanos montavam o aparelho genital no bálsamo, o que facilitava muito o trabalho dos desenhistas. Em outra carta, faria referência à redilha usada lá, que pretendia levar para o Brasil; “todos os outros apetrechos entomológicos são provenientes da Europa!”.193
Neiva analisava, então, o estado da arte em relação a vários grupos de Diptera: “tirando os Culicidae, parece que está ainda tudo por fazer”. Sua principal referência era o Manual of North American Diptera, de Samuel Wendell Williston.194 Aí encontrara uma exposição didática da classificação antiga de Dyar e Knab para os mosquitos (“a que vai aparecer já foi um tanto remodelada”), e das classificações propostas por Schiner, Coquillett e outros entomologistas: John Casper Branner, que estivera no Brasil em 1882, com Albert Koebele, para investigar lagartas que destruíam algodoeiros nordestinos; o barão Carl Robert Osten Sacken (1828-1906), que realizara a maior parte de seus trabalhos sobre dípteros quando servira em Nova York (1856-1877) como secretário e cônsul geral da Rússia; e ainda Auguste Lameere (1864-1942), professor belga que presidiu o Primeiro Congresso Internacional de Entomologia, em Bruxelas, no ano mesmo em que viajou Neiva (1910).
Na opinião deste, era muito fraca a parte dos simuliídeos no trabalho de Williston. Os tabanídeos eram estudados por Hine:
não é grande coisa, adota apenas uma família: Tabanidae … Quando trata das Oscinidae [chloropidae], diz adotar a recente opinião de [John Merton] Aldrich, o qual diz que o gênero Hippelates não é bem formado. Há bons quadros dos gêneros das Anthomyidae revistos por Adams; das Muscidae; os Oestridae são tratados fracamente, e Williston ainda admite 2 sp.! de Dermatobia dizendo que este gênero tem álulas pequenas! Boa chave dos gêneros das Sarcophagidae; as Dexiidae são tratadas minudentemente, o mesmo se dando com os Tachinidae. Os quadros de gênero são feitos por Adam. Eis rapidamente o que é esse livro para nós (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 157).
Durante a estada em Washington, Neiva teve sua atenção e entusiasmo despertados por um grupo de mosquitos não hematófagos, os Megarhinus. Ao analisar o material depositado no Museu Nacional e a bibliografia lá disponível, percebeu que os brasileiros tinham conhecimento muito mais abrangente do grupo graças à observação das larvas e posturas.195 Neiva examinou cuidadosamente os exemplares disponíveis no Museu e propôs a Lutz que fizessem a revisão do grupo. Tomou, ainda, a iniciativa de escrever a Peryassú, em Belém, para pedir-lhe que coletasse larvas de Megarhinus e as enviasse ao Instituto Oswaldo Cruz. Na carta a Adolpho Lutz, ponderava:
Estamos atualmente em condições excepcionais. Já estou estudando a coleção daqui e já está pronta a descrição do <img> do M. haemorrhoidalis Fabr … amanhã vou trabalhar com as <img>. Deste mosquito eles não se ocupam na monografia … como sabe, dele separaram algumas espécies e fizeram creio uma embrulhada. Até 1906, data do trabalho “The Species of mosquitos in the genus Megarhinus,” acreditavam absolutamente na imutabilidade das manchas dorsais que seria o mais seguro caráter específico; continuam ainda com este modo de pensar, mas o Knab admite “uma muito pequena variação”. Ora, nós podemos resolver perfeitamente este ponto, com a criação de algumas larvas encontradas no mesmo foco e que pertençam a Meg que, pelo menos, em um dos sexos, apresenta partes manchadas. Creio que na profilaxia196 há de haver capatazes que possam indicar seguramente onde é habitual encontrarem-se focos de Meg… A maioria dos Megarhinus brasileiros aqui não se conhece, de modo que, dispondo das duas maiores coleções conhecidas, nós poderemos elaborar um trabalho decisivo. Aqui também estão convencidos que os Meg não se alimentam de sangue; talvez de sucos vegetais ou então em invertebrados; pois no trabalho que vão publicar, há uma grande série de fatos referentes aos mosquitos que sugam lagartas etc. etc., e eles acabam de receber comunicação das Filipinas … de um mosquito que suga térmita. Variando os meios, talvez possamos criá-los.
As observações biológicas sobre este grupo, eles não a possuem; neste ponto, ainda lhes estamos em superioridade. Não acha que é magnífica a oportunidade, podendo se fazer a revisão dos Megarhinus de todo o mundo?197
Lutz abraçou com entusiasmo o projeto. Com a ajuda de Peryassú e Foetterle, passou imediatamente a estudar as espécies brasileiras e sua biologia. Em 1913, publicou com Neiva, nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, “Contribuições para a biologia das Megarhininae com descrição de duas espécies novas”. Estudavam aí os hábitos de vida e o habitat dessas espécies, desde a postura, passando pelas larvas até as formas adultas. No ano seguinte, veio a lume o segundo trabalho, agora sobre a espécie Megarhinus haemorrhoidalis (Fabricius, 1794). Os autores apresentavam extensa sinonímia, com base em material examinado por Neiva na capital norte-americana e em seguida na Europa:
um de nós (Neiva) depois de ter estudado 5 exemplares machos e 7 fêmeas pertencentes à coleção do U. S. N. Museum de Washington, tornou a descrever a espécie e a comparou em seguida com o tipo ainda existente em regular estado de conservação no Museu Zoológico de Copenhagen” (Lutz & Neiva, 1914, p. 52-3)
Em outras cartas escritas dos Estados Unidos, Neiva continuou a manter Lutz informado do que observava lá, e chegou a pedir-lhe que enviasse exemplares brasileiros de Megarhinus para serem trocados por duplicatas existentes no Museu, a fim de aumentar a coleção do Instituto Oswaldo Cruz. O médico baiano causou boa impressão nos parceiros norte-americanos. Knab, o mais receptivo, levou-o às reuniões da Entomological Society of Washington, e Howard convidou-o a escrever algumas páginas sobre os organismos causadores da malária para a monografia sobre mosquitos que estavam preparando. Em carta de 11 de agosto, Neiva contou a Lutz:
Continuo a trabalhar na obra do Howard, Dyar e Knab e estou certo que estão contentes comigo, pelo menos se exteriorizam deste modo, e Howard ofereceu-me magnífico jantar no Cosmos Club tendo convidado vários amigos e ocupado eu o lugar de honra. Enfim cheguei a desconfiar se era eu mesmo… Atualmente sou membro honorário do clube por indicação do Howard; magnífica idéia que atenuará, um tanto, a horrível insipidez de Washington.
O texto que preparou para The mosquitoes of North and Central America and the West Indies foi publicado no volume 1 (p.188-94), com o título “The Malarial Organisms”.198 Neiva analisava os tipos de plasmódios existentes e seus ciclos de vida, depois de apresentar sucinto histórico sobre a classificação geral desse grupo de parasitas unicelulares. Em nível supragenérico, adotava a nova ordem Binucleata criada por Max Hartmann e Victor Jollos. Como já mostramos, Hartmann, do Instituto de Moléstias Infecciosas de Berlim, estivera em 1909 em Manguinhos, a convite de Oswaldo Cruz, para consolidar os estudos em protozoologia na instituição brasileira.199 Para a classificação em nível específico (gêneros e espécies), Neiva seguia Blanchard, que vinha “cuidadosamente trabalhado a sinonímia de acordo com as regras de nomenclatura zoológica”.200
Os estudos do entomologista de Manguinhos nos Estados Unidos abrangeram outros grupos de insetos além dos dípteros, em especial os hemípteros do gênero Triatoma, cuja importância médica acabara de ser revelada por Carlos Chagas. Neiva tinha analisado a biologia da espécie transmissora da Doença de Chagas (Conorhinus megistus Burm) em trabalho publicado aquele ano mesmo (1910) nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Em carta de 26 de outubro, comentava que já obtivera alguns exemplares de reduvídeos
e queria todas as duplicatas de Conorhinus que o museu possui, além de alguns representantes do gênero Meccus, que fica muito próximo dos Conorhinus. Quanto à literatura, quando saí daí entreguei uma lista, a mais completa possível sobre o assunto, ao Dr. Oswaldo, e creio que ele já providenciou a respeito. Acho também que este grupo é muito fácil de estudar e poderíamos fazer bastante no que concerne à biologia, que é quase completamente ignorada. Estudei no Museu de Nova York, nos de Brooklin, Boston e Cambridge a coleção de Conorhinus, aliás mal representada em todos eles, e do que vi concluí que o gênero Lamus deve entrar para a sinonímia de Conorhinus. Se o Dr. Oswaldo quiser, Manguinhos poderá tomar a chefia destes estudos, pois em toda a parte estão descurados.
Neiva seria em Manguinhos o especialista nesse grupo entomológico. O trabalho de identificação e comparação das espécies depositadas nos museus norte-americanos prosseguiria na Europa, e seria fundamental para a revisão do gênero Triatoma que começava a desenvolver. Em 1911, publicaria, em alemão, nos Proceedings of the Entomological Society of Washington (n.13, p.239-40), a descrição de duas espécies novas do continente africano. No mesmo ano, descreveria em O Brazil-Medico uma nova espécie brasileira, e três espécies novas dos Estados Unidos. Mais duas espécies novas desse país seriam descritas em 1912, no mesmo periódico. No ano seguinte, abordaria os hemípteros hematófagos da América do Sul e, finalmente, em 1914, concluiria a Revisão do gênero Triatoma, aprovada com menção honrosa pela congregação da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde Neiva seria admitido como livre-docente da cadeira de história natural médica e parasitologia.
Na última carta escrita a Lutz dos Estados Unidos, em 26 de outubro de 1910, referia-se à intensa temporada de trabalho no Gipsy Moth Parasite Laboratory situado em Melrose Highlands, Massachusetts. Sentia-se orgulhoso do prestígio que tinha o amigo naquele país:
Onde estive sempre me referi ao Snr., e com muito prazer via que o seu nome era conhecido. Como há vários Lutz entomologistas aqui, ao me referir ao seu nome ao Johnson,201 diretor do Museu Boston, ele julgou a princípio que se tratasse de um seu homónimo de N. York; contestei e ele me retrucou: já sei, é o Dr. Lutz dos mosquitos e tabânidas, alemão; não, repliquei, é exatamente este, porém é brasileiro. Os homens dos mosquitos muito o apreciam, principalmente o Knab, com quem tenho alguma intimidade, e que acha que o Snr. foi por vários [anos] roubado pelo Theo, e que tem esperanças de o ver aceitar a nova classificação, ‘mesmo porque no fundo é a sua própria’.
Àquela altura, Neiva já aderira à classificação dos norte-americanos, “cuja aceitação vai ser favorecida pelo próprio Theo porquanto, o V volume, recém-aparecido, de tal forma complica as coisas com a criação excessiva de gêneros que, atualmente, ele próprio, se sentirá em dificuldades para determinar mosquitos”.
Neiva estava curioso para ver o segundo trabalho sobre simuliídeos (borrachudos) que Lutz terminara em setembro, e que sairia aquele ano mesmo nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Na primeira comunicação a esse respeito, publicada no mesmo periódico em 1909, Lutz descreveu onze espécies encontradas no Brasil, sendo cinco novas, e uma espécie, nova variedade específica da região. Além de propor uma chave taxonômica para elas, analisava a biologia, ecologia e fisiologia desses dípteros e explicava, com detalhes, o modo de criar suas larvas e pupas em laboratório. Na segunda comunicação, o número de espécies conhecidas aumentou muito graças às excursões de coleta feitas pelo próprio autor e por outros pesquisadores de Manguinhos, e aos materiais enviados por amigos entomólogos, como Joseph Foetterle e Philipp von Luetzelburg.202 Lutz (1909, p.214) reexaminou com muito cuidado as coleções feitas anteriormente “à luz da nova orientação”. Como crescera o material para estudo, os conhecimentos tinham se tornado mais “exatos,” permitindo a distinção de maior número de espécies. Mas não bastavam as diferenças de tamanho, cor e desenho: era necessário o microscópio para pesquisar “bons caracteres anatômicos” em adultos, larvas e pupas. Lutz criou uma chave taxonômica baseada no estado da pupa para determinar as espécies de Simulium descritas nas duas comunicações.
Em 1911, Knab (p.172-9) publicou detalhada resenha sobre elas. Em sua opinião, constituíam, de longe, o mais completo estudo até então produzido sobre aquele grupo de Diptera, tão interessante e tão importante economicamente:
é gratificante verificar que o dr. Lutz não é um sistemata da velha escola, pois aborda seu tema de todos os ângulos. Confere pleno valor aos dados obtidos nos estágios iniciais e a partir da biologia, articula-os com os caracteres das imagos e, ao mesmo tempo, considera cuidadosamente as fontes possíveis de erro.
Os simuliídeos seriam objeto de mais um artigo de Lutz, publicado em 1917, no qual tornaria a descrever o Simulium amazonicum, espécie originalmente descrita por Goeldi, em 1905.
Imagens de pupas e casulos de diferentes espécies da família Simuliidae. Fig.1 – S. subnigrum. Fragmento de pele pupal com apêndice branquial de um lado. Fig.2 – S. rubrithorax. Casulo e pele pupal. Fig.3 – S. perflavum. Pupa de um macho. BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta Simuliidae, maço 6.
Segundo Amaral-Calvão & Maia-Herzog (2003, p.263), suas observações eram extremamente perspicazes, ressaltando pontos que ainda hoje são relevantes para os estudiosos do grupo. Já naquela época, Lutz chamava atenção para as modificações morfológicas ocorridas no padrão de desenhos do escudo dos simuliídeos de acordo com a incidência da luz e com o estado de conservação dos exemplares, observação muito importante para a identificação de espécimes depositados em coleções científicas. Além disso, o cientista registrou as mudanças na coloração do corpo desses dípteros devidas ao depósito de pigmento nos tecidos após a hemólise da hemoglobina contida no sangue ingurgitado pelas fêmeas.
Casulo vazio de simuliídeo.
BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta diversos, maço 3.
Em carta datada de 11 de agosto de 1910, Arthur Neiva comentou: “Em alguns aspectos o E. U. tem sido para mim uma formidável desilusão, outros porém, muito poucos aliás, excedem a expectativa. Julgo não incorrer em exagero, se disser que são os primeiros especialistas do mundo”. Já na carta de 26 de outubro, apresentava suas impressões sob outra luz: “poucas coisas resistem à análise próxima e detida e acho que, para nós brasileiros, mais do que nunca devemos nos orientar pela Europa”. No fim daquele ano, munido de cartas de recomendação de Howard, partiu para lá e visitou os museus de história natural de Paris, Londres, Viena, Berlim e Copenhague, a fim de completar os estudos que resultariam na já mencionada Revisão do gênero Triatoma (1914).203
Ao regressar ao Brasil, tornou-se um dos mais próximos colaboradores de Lutz, até 1915, quando alçaria vôo de longo alcance como fundador e dirigente de instituições científicas e sanitárias.204 A experiência e a bibliografia por ele adquiridas, e a visita às principais coleções entomológicas dos Estados Unidos e da Europa foram essenciais para alavancar os estudos sobre os dípteros em Manguinhos. Papel igualmente importante teve o incremento do intercâmbio de exemplares com instituições norte-americanas, especialmente a Divisão de Entomologia e o Museu de História Natural, e algumas instituições européias. Pesquisadores estrangeiros que detinham coleções importantes também permutariam espécimes com Lutz e Neiva, como o italiano Mario Bezzi (1868-1927)205 e o alemão Paul Speiser. Em seus trabalhos, os dois brasileiros ressaltariam a importância desses materiais para o estudo de determinados grupos. Assim, a posse de espécies exóticas, combinada à experiência adquirida no estudo de outros nematóceros, permitia-lhes, em 1912, “dar o primeiro passo no assunto difícil da classificação das espécies sul-americanas do gênero Phlebotomus (Lutz & Neiva, 1912, p.4).
Nesse trabalho, agradeciam à “Exma. Sra. D. Almeida Magalhães,” que coletara para eles alguns espécimes, e ao dr. Murillo de Campos, que lhes enviara material do norte de Mato Grosso. Já transcorria então a prolongada correspondência com Joseph Francisco Zikán, que seria, nas décadas de 1910 e 1920, um dos principais coletores de Lutz. Nascido em 1° de março de 1881, em Teplitz-Schönau, Boêmia, pertencente então ao Império Austro-Húngaro, Zikán imigrou para o Brasil em 1902, depois de concluir os estudos secundários. Fixou-se inicialmente na cidade de São Paulo, onde trabalhou numa fundição. Em novembro de 1904, mudou-se para Mar de Espanha (MG) e tornou-se professor primário. Interessado desde criança na coleta de borboletas, empreendeu várias excursões em busca de insetos. Nos anos seguintes, conciliou as atividades docentes e de coletor com a de administrador de fazendas, tendo residido em cidades de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Na Exposição do Centenário do Brasil, em 1922, recebeu um prêmio por sua coleção de insetos (Nomura, 1997, p.81-2).206
A primeira carta da série Lutz-Zikán é datada de 29 de julho de 1910. O pesquisador de Manguinhos pedia ao administrador da fazenda Jerusalém, em Alegre, município do Espírito Santo, que lhe enviasse borrachudos, inclusive larvas e pupas. “Desta forma, será possível determinar as espécies que ocorrem, mesmo que não se tenha nenhum mosquito adulto por causa do tempo frio. Como terminarei o meu trabalho em breve, gostaria de examinar, antes, tudo o que puder.”
Explicaria, em seguida (22.8.1910), que preferia receber os borrachudos adultos “secos ou espetados por alfinetes finos, de lado a lado, através do tórax, ou ainda em envelopes bem pequenos de papel de seda que poderão eventualmente ser espetados por alfinetes”. Lutz, que já recebera de Zikán remessas de tabanídeos, dizia-lhe, nessa segunda carta, que tinha interesse também em piolhos de pássaros, “mas necessito do nome dos hospedeiros”. Pedia-lhe que informasse qual a época mais propícia para a coleta de insetos, porque pretendia fazer uma excursão a Alegre com Foetterle (que, de fato, realizaram em 1916).
Zikán logo revelou suas habilidades como coletor e, assim, em 11 de dezembro de 1911, Lutz apresentou-lhe um programa de trabalho bem mais ambicioso, que nos dá uma boa idéia da extensão de seus interesses em entomologia. Pedia-lhe
borrachudos (ovos, larvas e pupas), especialmente as últimas (conservadas em fenol); taquinídeos (moscas em lagarta) em glicerina, álcool e água; tabanídeos (ovos, larvas e pupas) especialmente as últimas (conservadas em formol). Dípteros parasitas especialmente de pássaros (secos); colocar os pássaros numa rede ou saco até que esfriem. Estrídeos (berne) capturados e cultivados. Mosquitos pólvora e birigui. Mosquitos bem pequenos, de dia, na mata e, principalmente, à noite e de manhã cedo, também em animais. Com uma lanterna, que é colocada num prato com líquido, também para apanhar espontaneamente à noite.
Nessa carta, Lutz pedia ainda a Zikán para mandar-lhe tudo o que obtivesse em matéria de térmitas, de percevejos que picassem em cabanas e estábulos, e quaisquer mosquitos que se criassem em água de bromélias e taquaruçu, “especialmente os menores e os bem grandes (Ceratopogon e Megarhinus)”. Bom material deveria ser enviado o mais rápido possível. Biriguis e percevejos poderiam viajar em pedaços de bambu verde, cuidando Zikán de avisar Lutz para que este os retirasse imediatamente do trem.
As remessas do naturalista tcheco parecem ter sido gratuitas até 9 de agosto de 1913, quando Lutz escreveu: “O senhor não apresentou nenhuma exigência para os seus esforços. Talvez fosse bom que o fizesse na forma de uma fatura em 3 vias, marcadas 1a, 2a e 3a via. Na oportunidade talvez pudesse me mandar mais alguns Phlebotomus. Há muitos gambás aí?”.
A carta de Zikán de 27 de outubro de 1915 provinha já do Sul de Minas. No timbre do papel lê-se: “Serraria Passa Quatro – Emilio Kuentgen (em liquidação) – Herm. Stoltz & Cia. liquidantes. Passa Quatro. Rede Sul-mineira”. O naturalista Tcheco residia agora na Fazenda dos Campos, a mais de 1.600 metros acima do nível do mar. “A fauna aqui é extremamente diferente daquela de Alegre e bastante rica” – comentou. Na resposta datada de 2 de novembro de 1915, Lutz apresentou-lhe alguns pedidos:
Na sua região certamente não faltam córregos de montanha e quedas d’água. Neles e junto deles peço-lhe que colete material de Simulium (borrachudos) e muito particularmente blefarocerídeos. Larvas e pupas vivem sobre placas de pedras em quedas d’água pequenas e maiores. As larvas se conseguem cobrindo-as e rolando a mão à qual aderem. As pupas precisam ser raspadas e então são recolhidas numa rede ou saco. A água precisa ser represada. Isto pode ser feito sentando na água em traje de banho, acima do local, ou enchendo um saco com musgo ou capim e comprimindo este acima do local … As moscas, assim como os mosquitos, devem ser procuradas em pedras molhadas, sobre flores ou revoando sobre a água, talvez também no crepúsculo. Elas aparecem especialmente quando as águas estão baixando … O material seria bem útil para mim agora, o quanto antes melhor. Coletar também pupas de borrachudos nos mesmos lugares e os próprios mosquitos, ao entardecer, nos cavalos; não esquecendo a barriga e a parte interior das orelhas. As mutucas aparecerão provavelmente mais tarde, se houver animais … Momentaneamente necessito especialmente de blefarocerídeos e borrachudos … Interesso-me igualmente por plantas e indubitavelmente se acharão aí várias coisas interessantes.
Em 23 de setembro de 1923, Zikán comunicou a Lutz que deixaria Passa Quatro. Adquirira uma pequena propriedade perto de Benfica, Itatiaia, a cerca de 6 quilómetros da estação Barão Homem de Mello, da Estrada de Ferro Central do Brasil.
Lá me aguarda muito trabalho. Logo após a minha chegada devo iniciar a construção de uma casa, já que lá só existe um miserável barraco de barro. Futuramente espero ser recompensado por abundantes capturas de insetos. Eu espero muito, principalmente, da captura na luz. Vou ter luz elétrica na casa.
De julho de 1927 a janeiro de 1928, a convite do Prelado Apostólico do Rio Negro, Zikán coletou nas missões salesianas do Amazonas. “Da minha viagem ao Rio Negro voltei cheio de febre, da qual só consegui me livrar faz pouco tempo. O resultado não correspondeu às minhas expectativas” -escreveu a Adolpho Lutz em 3 de julho de 1928. Esta é a última carta existente no Fundo depositado no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Contratado como auxiliar técnico da Estação Biológica, atual Parque Nacional do Itatiaia, e promovido, mais tarde, a naturalista do Parque, Zikán daria contribuição decisiva à organização e catalogação das numerosas espécies existentes na região.207
Àquela altura estava em curso outra correspondência digna de registro de Adolpho Lutz com um personagem que foi importante interlocutor em suas pesquisas entomológicas (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 215). Trata-se de Wilhelm H. Hoffmann (1875-1950). Formado em medicina pela Universidade de Berlim, trabalhou no Instituto de Patologia da Universidade de Breslau, depois no Instituto Robert Koch, em Berlim. A partir de 1902, serviu como médico da marinha alemã na Índia, na África Oriental e na África do Sul, regressando então ao Instituto berlinense. Em 1912, esteve novamente na Índia e, em seguida, no Ceilão e na China para estudar a peste e o cólera. Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, foi nomeado higienista conselheiro para a região do Mar Negro, que incluía Romênia, Ucrânia, Criméia e Geórgia. Ao terminar a guerra, Hoffmann viajou para Cuba a convite de Juan Guiteras Gener, principal liderança sanitária do país, catedrático de Medicina Tropical da Universidad de La Habana. O médico alemão incorporou-se ao Hospital de Enfermidades Infecciosas “Las Animas,” na capital cubana, e em 1927 passou a fazer parte do recém-criado Instituto Finlay. Nesses lugares, realizou numerosas pesquisas em anatomia patológica e entomologia médica relacionadas a doenças tropicais, em particular a febre amarela. Hoffmann tornou-se cidadão cubano e presidiu a Sociedade de Biologia e Medicina Tropical. Publicou cerca de quatrocentos trabalhos ao longo de sua carreira (Báez, 1951, p.2-13).
Adolpho Lutz coleta material no rio Paraíba, perto de Resende (provavelmente década de 1920). Acervo do Instituto Adolfo Lutz.
A correspondência depositada no Museu Nacional do Rio de Janeiro, no Fundo Adolpho Lutz (pasta 215), tem início em 17 de dezembro de 1922 e prolonga-se até fevereiro de 1935. Grande parte dela diz respeito à troca de informações e materiais biológicos concernentes à entomologia. Hoffmann, que publicara em 1921 trabalho sobre a mosca Chrysops, já na primeira carta agradece as separatas sobre ceratopogonídeos remetidas por Lutz, e promete conseguir-lhe jejenes, nome vulgar dados nos países de língua hispânica a várias espécies de simuliídeos e ceratopogonídeos. “Esse nome é extremamente comum no linguajar corrente local” – escreve o médico alemão.
Diz-se aqui jocosamente de uma pessoa muito esperta: ‘Ele sabe onde o jején coloca seus ovos’ … Evidentemente ainda é necessário realizar muita coisa aqui em Cuba no âmbito de entomologia médica. Estou voltado para isso já há alguns anos, e há pouco tempo dirigi-me a um competente entomólogo local, S. C. Bruner,208 norte-americano, convidando-o a trabalhar conjuntamente, eu como médico, ele como especialista em entomologia. Para a minha satisfação ele se dispós a isso … Estou lhe escrevendo sobre isso porque, justamente no início do trabalho, o Sr. poderia dar uma ou outra sugestão como resultado de sua rica experiência.
Em 1909 teve início a correspondência de Lutz com Charles Townsend, o já mencionado entomologista do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Era então responsável pelos dípteros numa unidade do Bureau de Entomologia, o Gipsy Moth Parasite Laboratory, em Melrose, Massachusetts (onde Neiva, como vimos, passaria uma temporada). O trabalho de Lutz sobre Cuterebra e os materiais e informações por ele enviados começaram a pavimentar quase duas décadas de correspondência com Townsend. Em 1910, o Ministério de Fomento do Peru contratou-o para criar seu serviço entomológico e para pesquisar insetos daninhos à cultura do algodão. Durante os três anos em que permaneceu naquele país, o norte-americano manteve constante contato com Lutz. Pedia-lhe bibliografia e espécimes para comparação, e oferecia-lhe material de seu interesse, especialmente tabanídeos e simuliídeos.209
Em 25 de janeiro de 1913, Townsend comunicou a Lutz haver começado a investigar a transmissão da verruga peruana e pediu-lhe trabalhos sobre hematófagos sul-americanos. Acreditava ser ela transmitida por carrapatos e assim estava interessado especialmente no artigo de Henrique Aragão sobre Ixodidae do Brasil, publicado em 1911 nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, Correspondência, pasta 157, maço 28). Em 27 de maio, Lutz sugeriu a Townsend que flebótomos e ceratopogonídeos seriam, com mais probabilidade, os agentes transmissores da doença.
Aquela sugestão, e os trabalhos sobre flebótomos recebidos, à mesma época, de Marett e Newstead, levaram o entomologista norte-americano a obter evidências de serem esses insetos de fato, os prováveis vetores da verruga. “Ocorreu-me imediatamente que os flebótomos deviam estar presentes nas zonas da verruga e deviam ser os seus transmissores” – escreveu em 27 de julho. “Imbuído dessa idéia, passei minha primeira noite na zona propriamente da verruga, em 25 de junho, e verifiquei a pre-sença dos flebótomos. É uma espécie nova e preparei uma descrição para ser publicada” (ibidem).210 Novas pesquisas levaram-no à confirmação daquela hipótese e à verificação de que os cães nativos eram suscetíveis à infecção natural.
A verruga peruana ou febre de Oroya, àquela época identificada somente no vale de Oroya, próximo à cidade de Lima,211 vinha mobilizando a comunidade científica do Peru desde o final do século XIX, e era objeto de grande controvérsia. Para uns, tratava-se de doenças diferentes (teoria dualista), para outros a verruga e a febre correspondiam a fases ou manifestações clínicas distintas de uma única patologia (teoria unicista).
Daniel Alcides Carrión (1859-1885), sextanista do curso médico, convenceu-se de que só havia um meio de resolver a questão: inoculou em si próprio o material colhido de um jovem que apresentava lesão característica da verruga peruana. Faleceu 39 dias depois (5 de outubro de 1885) com todos os sintomas da febre de Oroya. Desse modo, com o sacrifício da própria vida, demonstrou que eram uma só doença.212 Em 1895, Odriozola propôs o nome doença de Carrión.
Carta enviada por Townsend a Adolpho Lutz, em 27.7.1913, na qual o entomólogo norte-americano reconhece a importância para a sua descoberta das sugestões do cientista brasileiro quanto aos possíveis transmissores da verruga peruana. BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 157, maço 28.
Sua etiologia começou a ser decifrada em 1909 por outro médico peruano, Alberto Barton, que classificou como protozoários os organismos em forma de bastonete encontrados em eritrócitos e células epiteliais de pacientes acometidos pela febre de Oroya. Durante visita ao Peru em 1915, à frente de uma comissão médica enviada pela Universidade Harvard, Richard Strong confirmou a descoberta de Barton, mas classificou o microrganismo como bactéria (Bartonella bacilliformis), e sugeriu até mesmo sua inclusão em novo gênero batizado em sua homenagem: Bartonella. Daí ser a doença chamada também de bartonelose neotrópica. Contudo, Strong reabriu a controvérsia sobre a sua identidade, ao supor que a verruga peruana era causada por outro microrganismo. Somente em 1925, Hideyo Noguchi, bacteriologista da Fundação Rockefeller, assistido pelo peruano Telémaco Battistini, conseguiria cultivar a Bartonella bacilliformis em meio sólido, fora do corpo humano, e em seguida induzir em macacos, pela inoculação desse microrganismo, lesões típicas da verruga, provando, assim, que eram manifestações da mesma doença (Cueto, 1992, p.405; Manson-Bahr, p.227-33).
Outro interlocutor de Lutz a merecer registro é Hermann von Ihering, à época em que dirigia o Museu Paulista. Filho do famoso jurista Rodolpho von Ihering, Hermann Friedrich Albrecht von Ihering nasceu em Kiel, Alemanha, a 9 de outubro de 1850. Estudou medicina e ciências naturais nas universidades de Giessen, Leipzig, Berlim e Göttingen, doutorando-se nesta última em 1873. Depois de formado, trabalhou na estação oceanográfica de Nápoles (1874-1875) e foi professor livre-docente de zoologia nas universidades de Erlangen e Leipzig. Pouco afeito à carreira docente, transferiu-se para o Brasil em 1880. Fixou-se inicialmente no Rio Grande do Sul, onde se dedicou à clínica e ao estudo da fauna, flora e antropologia locais. Em 1883, foi nomeado naturalista-viajante do Museu Imperial do Rio de Janeiro. Com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, foi exonerado juntamente com outros pesquisadores estrangeiros. Passou então a trabalhar como zoólogo para museus da Europa e, mais tarde, tornou-se pesquisador da Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo. À frente do Museu Paulista desde janeiro de 1894, deu prioridade aos estudos zoológicos e à organização e catalogação do acervo, estimulou o intercâmbio com pesquisadores e instituições do exterior, organizou expedições científicas por todo o país e criou a Revista do Museu Paulista, da qual foi um dos principais colaboradores. Publicou ao todo 23 volumes do periódico, entre 1895 e 1914, quando sua circulação foi suspensa em decorrência da Primeira Guerra Mundial.213
Em 1909, fundou no Alto da Serra a Estação Biológica do Cajuru, primeiro laboratório do gênero na América do Sul, onde passaram a ser realizadas as investigações de caráter biológico do museu. Nesse ano teve início a correspondência com Lutz (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 157). Em 13 de setembro, von Ihering informou-lhe ter sido incumbido de organizar o comitê que representaria o Brasil no Congresso Internacional de Entomologia. Consultara a esse respeito Oswaldo Cruz, que indicara o nome de Lutz. Ihering formalizava então o convite e pedia-lhe que apresentasse “uma lista de nomes de entomólogos que tenham merecimento”.214
O primeiro Congresso Internacional de Entomologia ocorreu, de fato, em Bruxelas em 1910, e foi presidido pelo cientista belga Auguste Lameere (1864-1942).215 A idéia de reunir aquele segmento profissional num fórum à parte dos congressos internacionais de zoologia, que vinham se realizando desde 1889, surgiu na Inglaterra por iniciativa de Karl Jordan, e recebeu apoio imediato de W. Rothschild, W. Horn e G. Severin. A mobilização iniciada por esses entomólogos em 1907 concretizou-se às vésperas do VIII Congresso Internacional de Zoologia, realizado em Graz, na Áustria, também em 1910. Do Congresso de Entomologia participaram principalmente delegados europeus: o contingente mais numeroso proveio da Grã-Bretanha e Irlanda, vindo a seguir Alemanha, França e, com representação menor, Itália, Hungria, Rússia, Suécia, Suíça, Áustria, Espanha, Luxemburgo e Países Baixos. Dos entomologistas que aderiram à idéia em outros continentes, poucos compareceram. Dos onze nomes oriundos da África do Sul nenhum esteve em Bruxelas. O único entomologista da Austrália tampouco. O evento obteve dez adesões nos Estados Unidos, mas só viajaram dois entomólogos. Veio um do Canadá, um do Egito, dois do Japão, dois das Índias Orientais, nenhum das possessões inglesas (ilhas Seychelles e Ceilão), não obstante lá tenham se inscrito dois entomologistas. Na América do Sul, houve apenas duas adesões na Argentina – C. Bruch, de La Plata, e F. Lahille, de Buenos Aires (só este esteve em Bruxelas) – uma na Guatemala, J. J. Rodrigues (não pôde viajar), e Hermann von Ilhering, do Brasil, que tampouco compareceu.
No discurso de abertura, Lameere fez longa preleção em favor do fórum próprio para os entomólogos, os quais se sentiam deslocados e mal representados nos congressos de zoologia. Aí preponderavam largamente as discussões concernentes aos vertebrados e a seus ancestrais, principalmente os de vida marinha, reservando-se aos insetos uma única seção (na opinião de Lameere, a zoologia não se libertara ainda da tutela da antropologia). O belga assinalava igual distorção no ensino de zoologia, vastíssima área do conhecimento na qual o professor era obrigado a escolher o que melhor aproveitaria aos estudantes, em sua maioria provenientes de faculdades de medicina. Eram naturalmente privilegiados os estudos sobre os vertebrados e sobre a anatomia e fisiologia, relegando-se a segundo plano as formas terrestres invertebradas.
A partir daquele momento, os entomologistas teriam um lugar apropriado para suas discussões, poderiam se conhecer pessoalmente, trocar reflexões e fazer desaparecer certas prevenções injustificadas. A ‘independência’ que proclamavam em Bruxelas certamente repercutiria em outras países. A legitimidade daquele movimento dependia em larga medida do valor utilitário alcançado pela entomologia, especialmente aquela voltada para a agricultura e as florestas, preponderante entre os temas das comunicações efetivamente apresentadas ao Congresso. O zoólogo belga enaltecia o trabalho desenvolvido nessa área do conhecimento nos Estados Unidos, sobretudo suas estações experimentais que serviam de modelos a vários países europeus. Enfatizava também os avanços ocorridos nos conhecimentos sobre os insetos veiculadores de doenças. Os médicos não podiam mais prescindir desses conhecimentos e se haviam tornado dependentes dos entomologistas, ou tinham eles próprios de se tornar entomologistas, adicionando à bagagem que levavam às regiões tropicais a rede de borboletas (1er Congrès international, v.1, p.77).
Parte do discurso de Lameere tinha em mira a valorização da “entomologia pura” como condição necessária ao desenvolvimento da aplicada. Esta era “a irmã mais moça da entomologia pura … Hoje ela está emancipada … por isso é muito natural ver reunidos neste congresso os práticos e os teóricos da entomologia” (ibidem, p.74-6).
Muitos dos participantes do Congresso faziam parte da rede de interlocutores de Adolpho Lutz, que não é sequer citado entre os que ‘aderiram’ ao evento. Na lista dos membros figuram os nomes, entre outros, de Howard, Osborn, Blanchard, Newstead, Kertész, Bruch, Dampf e Speiser, sobre quem logo falaremos. Theobald apresentou comunicação sobre a distribuição e taxonomia do transmissor da febre amarela (Stegomyia fasciata Fabricius). O único trabalho oriundo do Brasil foi apresentado por Walther Horn, de Berlim, e era de autoria de Zikán. Dizia respeito às larvas de cicindelídeos, família de besouros que reúne espécies predadoras, bem ativas, de coloração viva, encontradas em locais ensolarados.
Com a representatividade crescente de diversos grupos em sua coleção entomológica, o Instituto Oswaldo Cruz passou a desempenhar papel similar ao de um Museu Nacional de História Natural, cuja função precípua seria inventariar a fauna e flora de seu território. Na década de 1910, os estudos entomológicos, já consolidados aí, começaram a expandir-se para insetos que ainda não estavam relacionados à transmissão de doenças. O aumento considerável das coleções de Manguinhos nesse período está relacionado, em parte, à rede mais densa de coletores contratados e de entomólogos amadores que faziam doações espontâneas; e, sobretudo, à incorporação de exemplares coletados pelos próprios pesquisadores, em expedições médico-sanitárias ao Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil para atender a demandas de companhias ferroviárias e de órgãos do governo federal. O interesse de Oswaldo Cruz em inventariar as patologias brasileiras levou-o até mesmo a construir em Manguinhos um hospital para estudo dos casos mais interessantes recolhidos no interior (Benchimol, 1990).
Iniciadas em 1906, como vimos, as missões médicas antipalúdicas ganharam maior vulto depois que o próprio Oswaldo Cruz foi contratado pela Madeira-Mamoré Railway Company. Já em 14 de julho de 1906, após a referida viagem a Manaus e a outros portos do Brasil e do cone Sul, ele comunicara a Adolpho Lutz que cogitava mandar alguns “companheiros” de Manguinhos para fazer a profilaxia da malária durante a construção daquela ferrovia: “nada há de resolvido e desde que haja possibilidade terei a maior honra e satisfação de indicar seu nome para tal comissão da qual teria eu mesmo muito desejo de fazer parte”. O projeto da Madeira-Mamoré fora concebido na década de 1860 pelos bolivianos, que desejavam uma via de comunicação com o Atlântico, e pelos brasileiros, que queriam uma alternativa estratégica ao rio Paraguai (estavam em guerra com o país que esse rio banha). Em 1871 uma companhia inglesa iniciara a construção da ferrovia, mas logo batera em retirada. A extração da borracha no vale amazônico recolocou a ferrovia em pauta, e sua construção foi reiniciada em 1907 por empresa organizada pelo empresário norteamericano Percival Farquhar. O Dr. Belt, chefe de seu corpo médico, antes de se retirar com a saúde arruinada, advertiu: “a região a ser atravessada … é a mais doentia do mundo”. Em um cálculo otimista, avaliava em 90 dias a média de trabalho de um operário antes de ser vitimado por uma das formas malignas da malária. Em 16 de julho de 1910, Oswaldo Cruz viajou para Porto Velho com Belisário Penna, a serviço da Madeira-Mamoré. Em maio fora inaugurado o primeiro trecho, de Porto Velho (RO) até Guajará-Mirim, contornando parte não navegável do rio Madeira. Seus 90 quilômetros haviam exigido a importação de cerca de 88 mil trabalhadores, recrutados em vários países ou entre os nordestinos expulsos pela seca para os seringais da Amazônia. No relatório entregue à companhia, Oswaldo Cruz descreveu o quadro nosológico da região, onde o beribéri e a pneumonia assumiam formas gravíssimas, direcionando, porém, as propostas profiláticas para a malária, que atacava 80 a 90 por cento do pessoal.216
Seringueiros perto de Manaus. MILLER (1998), p.39.
Entre setembro de 1911 e fevereiro de 1912, dois outros pesquisadores de Manguinhos, Astrogildo Machado e Antônio Martins, visitaram os vales do São Francisco e Tocantins com as turmas da Estrada de Ferro Central do Brasil, que estudavam o traçado de uma linha ligando Minas Gerais ao Pará.
As plantações de seringueiras organizadas pelos ingleses na Ásia estavam em vias de suplantar a indústria extrativista brasileira. Em janeiro de 1912, o Congresso, tardiamente, aprovou o Plano de Defesa da Borracha com o intuito de modernizar não apenas a extração e beneficiamento do produto como o processo de trabalho, por meio de medidas que reduzissem “o coeficiente de mortalidade absurdamente elevado” (Albuquerque et al., op. cit., p.116). De outubro de 1912 a março de 1913, Carlos Chagas, Pacheco Leão, João Pedro de Albuquerque e um fotógrafo percorreram grande parte do arcabouço fluvial da Amazônia a bordo de um pequeno vapor equipado com o necessário para os estudos que tencionavam fazer (Cruz, 1913).
Na mesma época, outras três expedições percorriam o Centro e o Nordeste do Brasil, a serviço da Inspetoria de Obras contra as Secas, órgão criado em 1909 para implementar ambicioso programa de estudos que orientasse a reconstituição de florestas, a abertura de estradas e ferrovias, a perfuração de poços e a construção de açudes naquela parte árida do Brasil (Lutz & Machado, 1915; Penna & Neiva, 1916). A de João Pedro de Albuquerque e Gomes de Faria atravessou, de março a julho, os estados do Ceará e Piauí. De março a outubro de 1912, Arthur Neiva e Belisário Penna percorreram a cavalo ou em lombo de mula sete mil quilômetros pelos estados da Bahia, Pernambuco, Piauí e Goiás (Penna & Neiva, 1916). De abril a julho, Adolpho Lutz e Astrogildo Machado singraram o São Francisco e alguns de seus afluentes.217
Às vésperas dessa grande ofensiva científica e sanitária, os pesquisadores mais experientes do Instituto Oswaldo Cruz detalharam as normas que deveriam presidir tanto a coleta de material zoológico como as observações sobre as doenças que os expedicionários iriam encontrar no interior do país, com especial atenção às dermatoses e à doença de Chagas. As “Instruções para colheita e conservação de material científico para estudo,” totalizando 24 páginas datilografadas, eram compostas por nove partes.218 A primeira explicava como deveriam ser registradas as doenças de pele observadas no curso das expedições. A terceira parte intitulava-se “Instruções para o estudo da distribuição geográfica da tireoidite parasitária”;219 a quarta dizia respeito à “Dosagem de matérias orgânicas na água;” a quinta, aos “Mamíferos;” a sexta explicava as técnicas para coleta e estudo de “Protozoários;” a sétima parte tinha por título “Higiene – Plantas tóxicas – Epizootias;” a oitava continha “Instruções para a colheita, conservação e fixação de helmintos;” por último, eram apresentadas as técnicas para “Determinação do grau hidrotimétrico da água”.
Em vários desses segmentos, os viajantes encontravam explicações sobre as diferentes metodologias de coleta de vertebrados e invertebrados: entre os primeiros, diversas espécies de aves, répteis, peixes e, entre os mamíferos, morcegos, roedores e até mesmo botos e peixes-boi. Entre os invertebrados, a atenção dos expedicionários era direcionada para protozoários de vida livre ou parasitas do sangue, do intestino e de outros órgãos do homem e de animais; helmintos (nematódeos, cestódeos, trematódeos e todos os seus prováveis hospedeiros); moluscos de água doce e salgada e ainda artrópodes, como crustáceos, aranhas, escorpiões e centopéias.
Adolpho Lutz possivelmente colaborou em alguns segmentos (em particular aqueles relacionados às dermatoses e aos helmintos). É quase certo que tenha sido o autor da Parte II, concernente aos insetos: “Instruções para colheita e conservação de hematófagos,” publicadas como folheto independente em 1912. O cientista chamava atenção aí para os principais grupos de sugadores de sangue, parasitos ocasionais ou permanentes de pássaros e mamíferos: pulgas, piolhos e, entre os dípteros, culicídeos, borrachudos (Simulium), ceratopogonídeos, flebótomos, as mutucas e outras moscas, como as Hippoboscidae. Embora privilegiasse os prováveis transmissores de doenças, Lutz orientava os expedicionários a coletarem insetos não hematófagos, mas que parasitavam animais ou os visitavam para sugar seu suor. Os carrapatos, apesar de pertencerem ao grupo dos Arachnida, também eram contemplados.
Em 1911 foi publicado o primeiro trabalho em parceria de Lutz e Neiva, no qual descreviam duas espécies novas de Culicidae (Culex scutipunctatus e Anopheles matogrossensis), uma proveniente do Nordeste de São Paulo, a outra, de Mato Grosso. O estudo baseava-se em material coletado pelos autores e numa coleção doada a Manguinhos por Júlio César Diogo, naturalista-viajante do Museu Nacional que estivera nas lagoas de Manicoré e Guaíba, em Forte Coimbra, e em Cuiabá e outras localidades mato-grossenses.
Em 1912, Lutz publicou com Arthur Neiva estudo muito interessante sobre uma mosca parasita de aves, a Mydea pici [Philornis]. A análise da estreita relação entre parasito e hospedeiro mostrou-lhes que o primeiro não causava dano maior ao segundo. Neiva e Lutz contaram com a ajuda do dr. Ruy Ladislau, que colecionou para eles grande quantidade de larvas, pupas e adultos. Desse médico, os autores receberam também importantes informações sobre o modo de infecção, o número, o estágio e localização das larvas no corpo das aves.
Ainda em 1912, Lutz e Neiva publicaram o já referido trabalho sobre os Phlebotomus ou mosquitos-palha. Apesar de não ser conhecido ainda seu papel como transmissor de doenças, os autores comparavam esse grupo de Diptera a certos culicídeos e ceratopogonídeos, ressaltando a voracidade com que as fêmeas atacavam o homem para se alimentarem repetidas vezes de seu sangue. Tinham fortes suspeitas de que hospedavam microrganismos patogênicos: “seu papel de transmissor de certas moléstias é ora certo, ora muito provável” (Lutz & Neiva, 1912, p.84). Tais previsões foram confirmadas por Henrique Aragão: em 1922, demonstrou que uma das espécies descritas por Neiva e Lutz – Phlebotomus intermedius (atualmente Lutzomyia [Nyssomyia] intermedia) -,220 era o vetor da Leishmania (Viannia) braziliensis, responsável pela leishmaniose tegumentar no continente americano. Outra espécie descrita por eles – o Phlebotomus longipalpis (atualmente Lutzomyia longipalpis) – foi associada à leishmaniose visceral americana por Evandro Chagas (19051940), em 1936. Essa descoberta deveu-se a observações feitas por Henrique Penna em 1934, quando trabalhava em Salvador, no Serviço de Febre Amarela da Fundação Rockefeller. Ao analisar fragmentos de fígado que os postos de viscerotomia retiravam de pessoas falecidas de febre amarela no Nordeste, particularmente no Ceará, constatou 41 casos de óbitos pela leishmaniose visceral americana, também chamada calazar (Brazil-Medico, n.48, 1934, p.949-50). Supunha-se, na época, que no Brasil só houvesse a leishmaniose cutânea. Uma comissão de estudos financiada pelo industrial Guilherme Guinle e chefiada por Evandro Chagas investigou a doença no Norte do Brasil e na Argentina, publicando seu relatório no ano seguinte (Chagas, Cunha, Oliveira Castro, Castro Ferreira e Romaña, 1937, p.321-90). Em Sergipe, o filho de Carlos Chagas descreveu pela primeira vez um caso em vida de leishmaniose visceral, registrando a ocorrência freqüente do Lutzomyia longipalpis na moradia do paciente e em seus arredores, fato comprovado posteriormente (Lainson & Rangel, ibidem, p.311).
Na realidade, especulações sobre a relação dos flebótomos com a leishmaniose vinham sendo feitas desde 1905, por André Pressat, e em seguida por Charles Morley. A hipótese foi reiterada por Wenyon, em 1911, e pelos irmãos Etienne e Edmond Sergent, quatro anos depois.221 Adolpho Lutz, que se correspondera com eles em 1904,222 também postulou a transmissão de leishmanioses por flebótomos. Isso ocorreu em 1913, em meio à controvérsia que mantinha com Frederick Knab a propósito da transmissão da malária silvestre.
Relatamo-la em detalhes na apresentação histórica do livro 1 do presente volume da Obra Completa de Adolpho Lutz (Benchimol, & Sá, 2005). A controvérsia teve início em 1912, com a publicação de artigo em que Knab (1912, p.196-200) analisava a transmissão de doenças por insetos sugadores de sangue. Em sua opinião, só poderia hospedar e transmitir um parasita do sangue humano um inseto associado de maneira estreita ao homem, que tivesse o hábito normal de sugar seu sangue repetidamente. Não bastava que o fizesse de vez em quando, como os mosquitos da floresta estudados por Lutz. Outros requisitos eram a relativa longevidade, bem como refeições de sangue e reprodução contínuas. Assim, haveria sempre indivíduos em quantidade necessária para que não sofresse interrupção o ciclo de vida dos parasitas que hospedavam, inclusive no hospedeiro definitivo – o homem – que se tornava, então, presa de uma doença endêmica. O argumento de Knab estava em contradição com o que Lutz sustentara, uma década antes, no já citado artigo sobre a malária das florestas. Para Knab, ele havia “interpretado mal os fatos”: muito provavelmente, o Anopheles incriminado por Lutz nada tivera a ver com o surto de malária entre os trabalhadores acampados na serra de Santos. Os homens já traziam uma malária latente ao chegarem à região, irrompendo ela por efeito de agravos relacionados ao trabalho (Benchimol & Sá, 2005, p.148-9).
Dyar endossou esse ponto de vista: à época em que Lutz publicara sua investigação, não se conhecia ainda a que grau de especialização chegava a relação das várias espécies de Anopheles com a malária. “O sr. Knab mostrou que para que se tenha estabelecido esta relação tão delicada, seria preciso que fosse precedida por uma associação habitual do hospedeiro vertebrado e do mosquito – em outras palavras, somente um Anopheles doméstico ou semidoméstico são capazes de operar como transmissores de malária” (Knab, 1913, p.110-8).
Para os entomologistas norte-americanos, essa cláusula era aplicável a todos os insetos sugadores de sangue, e, por não a satisfazerem, tabanídeos e simuliídeos não se prestavam à transmissão de doenças.
Adolpho Lutz contestou-os veementemente nos Proceedings of the Entomological Society of Washington (1913, v.XV, n.2 e 3). Observações feitas por Carlos Chagas e outros estudiosos em diversas zonas de floresta da Serra do Mar, com profusão de bromeliáceas epífitas, teriam convertido em fato geralmente aceito, no Brasil, que a implementação de grandes projetos de engenharia nesses ambientes resultaria em surtos inevitáveis de malária. Contestando o pressuposto teórico de seus adversários, afirmava Lutz que dois transmissores da malária no Brasil – a Cellia albimana e, principalmente, a Cellia argyrotarsis – eram freqüentes em lugares desabitados, aproximando-se das moradias humanas somente em regiões pantanosas: “Que não querem nem preferem o sangue humano é demonstrado pelo fato bem conhecido de que preferem o cavalo ao cavaleiro … O mesmo se aplica a todas as outras espécies de Anophelidæ”.
Os homens que adentravam lugares onde eram raros os animais de grande porte naturalmente atraíam os mosquitos, e, se permanecessem tempo suficiente no lugar,
a epidemia seguirá o crescimento da infecção entre os mosquitos, e eles próprios aumentarão em número graças à facilidade de alimentação. É fato bem estabelecido que uma espécie pode se tornar excelente hospedeira intermediária ou definitiva de um parasito bem novo na região porque só recentemente foi introduzido o hospedeiro para o estágio seguinte (Lutz, 1913, p.108-9).
Nesse parágrafo encontra-se o nervo da controvérsia. Para Knab, a transmissão da malária, da febre amarela e de outras doenças ‘parasitárias’ só podia ser feita por sugadores já habituados ao sangue do homem. Lutz entrevia a possibilidade do envolvimento de humanos em ciclos silvestres já instalados ou emergentes, e não só para a malária. Em comunicação subseqüente – a tréplica ao segundo artigo de Knab – o cientista brasileiro afirmaria:
Os senhores Dyar e Knab julgam que mosquitos que nunca estiveram em contato com homens antes não podem transmitir doenças. Para testar sua tese, é preciso colocar homens em lugares absolutamente desabitados. Em termos gerais, isso é um tanto difícil, mas ocorre que no Brasil estradas e ferrovias têm sido feitas em tais condições, e quase sempre há epidemia de malária. Eu também tenho conhecimento de epidemias de feridas de leishmânia, com boas razões atribuídas à transmissão por Phlebotomus, em zonas absolutamente desertas. Vi ainda uma pequena epidemia de febre amarela entre pessoas que viviam num lugar onde se podia esperar que houvesse mosquitos da floresta. Tudo isso mostra que as considerações teóricas não foram respeitadas pelos fatos, e tudo o que se quer é que o transmissor, seja qual for o seu passado, pertença a uma categoria em que o parasita possa se desenvolver; então ele deve ter acesso repetido a seres humanos, alguns infectados, outros sem imunidade. Como toma tempo o processo de desenvolvimento, sua vida não pode ser muito curta. Por essa razão, a oviparidade é uma condição favorável (Lutz, 1913b).
O cientista encerrou a discussão, sustentando “integralmente” a exatidão de suas observações, e enfatizando o seu “interesse prático”:
É por isso que me oponho a que … sejam postas de parte com o comentário de que é provável que o doutor estivesse enganado, o que parece subentender que seja um hábito meu cometer erros em observações científicas. Como tenho menos pressa em comunicar minhas observações do que muita gente nos dias de hoje, não creio que minha quota de erros seja incomumente grande.
Este e outros comentários mordazes do entomologista brasileiro foram suprimidos pelo editor dos Proceedings of the Entomological Society of Washington, o que motivou duro protesto de parte de Frederick Knab. A carta que enviou a W. D. Hunter, em 24 de janeiro de 1914, mostra a autoridade que tinha Lutz naquele campo do conhecimento.
Os pesquisadores no Rio de Janeiro … chegarão naturalmente à conclusão de que … usamos de meios desleais para fugir de suas vigorosas críticas. Temo que este procedimento, por mais inconseqüente que pareça ao senhor … causou dano irreparável. Provavelmente criou entre nós e os pesquisadores do Rio uma ruptura que talvez nunca possa ser reparada. Sinto isso profundamente porque afetará seriamente meu trabalho. Por alguns anos tive em mira cultivar relações amistosas com esses pesquisadores, de maneira que pudéssemos trabalhar em harmonia e facilitar as investigações uns dos outros, e deparei com respostas encorajadoras. Como o senhor sem dúvida sabe, de longe o trabalho mais importante em entomologia médica deste lado do Atlântico vem sendo feito por Lutz e seus associados e, do ponto de vista dipterológico, especialmente, seria muito desejável que mantivéssemos contato com eles (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 83, maço 5).
O tom da carta que Knab enviou a Lutz, dois dias depois, deixa evidente sua preocupação em restaurar a cordialidade daquela entente que se apoiava em intercâmbio científico substancial e relevante para ambas as partes. Vimos que em 1911 Knab publicara elogiosa resenha de dois trabalhos de Lutz (1909, 1910) sobre os Simuliidae do Brasil. Na carta de janeiro de 1914, humildemente consultava-o sobre os hábitos e a classificação de duas espécies de Ceratopogoninae, e aludia a comentário feito anteriormente pelo colega brasileiro de que tinha muito material sobre mosquitos ainda inédito: “Por que não o publica? Seus dados biológicos, pelo menos, dificilmente conflitarão com nosso livro … A maior parte de suas observações seguramente será original, e o restante, mais completo, de modo que aperfeiçoará o que formos capazes de apresentar” (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 83, maço 5).
Em 1912, Lutz publicou o primeiro de uma série de três estudos sobre os ceratopogonídeos, insetos de pequenas dimensões, cujas larvas vivem em ambiente aquático, tanto doce como salgado. As fêmeas adultas são conhecidas pela voracidade com que atacam o homem, recebendo a denominação de mosquitos-pólvora as espécies encontradas no interior, em matas úmidas e brejos, e de maruins ou mosquitos-do-mangue, aquelas encontradas no litoral. Já em 1903, Lutz assinalava a existência deles em sua coleção:
Os dipteros conhecidos pelos nomes de pólvora, maruim ou mosquitinhos de mangue são nematóceros e pertencem ao gênero Ceratopogon. Possuímos duas espécies não determinadas, das quais a maior é encontrada principalmente na zona marítima, enquanto que a menor freqüenta as matas úmidas. Ambas são muito ávidas de sangue. Julgamos provável que existam mais espécies em condições análogas. (Lutz, 1903, p. 281-2).
No trabalho de 1907, comentado anteriormente, ressaltava o quanto eram inconvenientes esses mosquitinhos que tornavam quase impossível a passagem do homem por certas zonas. Nos artigos publicados em 1912, 1913 e 1914, descreveu 15 espécies novas de ceratopogonídeos. No primeiro, desenvolveu a taxonomia do grupo, em nível de subfamília e subgêneros,223 e analisou a morfologia, anatomia e biologia dos primeiros estados (larva e pupa). Lutz dedicava especial atenção aos mosquitos-do-mangue, tirando proveito da convivência cotidiana com os manguezais existentes no campus de Manguinhos e em seus arredores. Estudou então a biologia e periodicidade do grupo nesse meio até então inexplorado, a influência das variações de tempo, as larvas das espécies que habitavam buracos de caranguejos, assim como as pupas em liberdade na água do mar.224
Os dois outros trabalhos sobre ceratopogonídeos (1913; 1914) tratavam especificamente da taxonomia das espécies. A primeira descrição de espécie do Brasil – Ceratopogon guttatus (hoje Culicoides guttatus) – fora feita por Coquillett (1904) a partir de exemplares enviados por Lutz a Howard em 1904. No ano seguinte, Goeldi descrevera uma segunda espécie da região amazônica – Haematomyidium paraense (hoje Culicoides paraensis). Posteriormente verificou-se que transmitia a Manzonella ozzardi, filária que ocorre na Argentina e na Amazônia, e a febre de Oropuche, virose que deixa o paciente acamado por até doze dias, com dores no corpo, febre e fotofobia. Aos ceratopogonídeos seria também atribuída a transmissão de uma virose que acomete ovinos, caprinos e bovinos, a chamada ‘Língua Azul’.225
Além de Neiva, Lutz teria outro colaborador nos estudos sobre insetos: Ângelo Moreira da Costa Lima, médico e entomólogo que ingressou no Instituto Oswaldo Cruz em meados de 1913, depois de participar de bem-sucedida campanha contra a febre amarela no Pará.226 Na verdade, a relação de Costa Lima com o diretor do Instituto de Manguinhos foi estabelecida quando aquele ainda era estudante da Faculdade de Medicina, tendo sido incorporado às brigadas que davam combate à febre amarela no Rio de Janeiro. Em 1910, já formado, participou do grupo que Oswaldo Cruz recrutou para debelar a doença em Belém.227 A campanha durou onze meses e terminou vitoriosamente. Costa Lima permaneceu na região como integrante da Comissão de Profilaxia Defensiva. Seis meses depois, atuou contra focos isolados nas regiões de Santarém e Óbidos, fazendo aí várias experiências com mosquitos larvófagos (Megarhininae), até mesmo com o uso de peixes para combatê-los. Realizou também estudos taxonômicos e biológicos sobre o transmissor da febre amarela e outros mosquitos.
Quando começou a trabalhar em Manguinhos, Costa Lima trazia considerável experiência com alguns grupos,228 estabelecendo proveitosa interlocução com Lutz e Neiva. Em 1915 saiu nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz um artigo de autoria dos três sobre moscas parasitas de aves, as moscas pupiparas da família dos hipoboscídeos.229 Os autores utilizaram material coletado por Lutz, ou enviado por amigos e coletores profissionais e, ainda, muitas espécies recolhidas no interior do Brasil pelas expedições científicas a que já nos referimos.
A participação de Costa Lima foi mais notável nos trabalhos morfológicos de identificação de espécies. A principal referência nos aspectos taxonômicos era o médico alemão Paul Speiser, antigo correspondente de Lutz. Desde 1902, trocavam dados, publicações e espécimes. Especialista em ectoparasitos, Speiser publicou muitos trabalhos sobre pupiparas e identificou para Lutz material brasileiro relacionado ao grupo.230 A carta escrita por ele em 22 de novembro de 1902 dá uma boa idéia da natureza da colaboração que mantiveram:
Com o gentil envio das três moscas de pombo, pelas quais lhe transmito meus cordiais agradecimentos, o senhor tanto me surpreendeu quanto me alegrou. O nome delas é Lynchia lividicolor Bigot 1885, parente mais próxima de L. falcinelli Rondani 1879 entre as 11 espécies do gênero até agora conhecidas. A separata anexa da Zeitschr. f. syst. Hym. u. Dipt.231 provavelmente lhe dará informações suficientes sobre o gênero … É claro que também espero que continuemos em contato, pois, justamente agora preciso muito de material, e justamente dessa família. É que no momento estou trabalhando na revisão de todo o grupo sistemático dos Diptera Pupipara para a obra Das Thierreich,232 editada pela Berliner Akademie der Wissenschaften.233 Obviamente, quanto mais material possuir, melhor conseguirei realizar o trabalho. Caso não seja impertinência de minha parte, contando com sua bondade, espero receber ainda mais material, especialmente também de parasitas de morcego … Quanto aos parasitas das corujas americanas da série dos hipoboscídeos, só posso indicar-lhe a Ornithomyia nebulosa Say 1823, da Strix nebulosa, e a Olfersia americana Leach 1817/ 18, da Bubo virginianus e da Screech owl.234 Ocorre que antes nunca foi considerado importante indicar com precisão também o hospedeiro. Por isso gostaria de perguntar-lhe ainda expressamente que pombos forneceram-lhe aquelas moscas. Devem ser os pombos comuns de laboratório!235
No trabalho publicado em 1915, Lutz, Neiva e Costa Lima também tiveram dificuldade em identificar corretamente os hospedeiros das pupiparas, já que não era fácil obter os pássaros que precisavam ser examinados, e com muita dificuldade as moscas coletadas ocasionalmente, fora dos hospedeiros, eram associadas de forma correta às espécies em que se abrigavam.
Adolpho Lutz (1855-1940), Arthur Neiva (1880-1943) e Ângelo da Costa Lima (1887-1964), alguns dos protagonistas da entomologia aplicada destacados por HOWARD (1930), prancha 51.
O segundo trabalho de Lutz e Costa Lima só foi publicado em 1918. Os autores faziam aí o estudo taxonômico de algumas espécies de moscas de frutas, as tripaneidas [Tephritidae], coletadas por Lutz ou enviadas por Rodolpho von Ihering do Museu Paulista. O trabalho guarda estreita relação com a trajetória de Costa Lima que, nessa época, estava voltado para a entomologia agrícola. Lecionava a disciplina na Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, e atuava como pesquisador no Laboratório de Entomologia Agrícola do Museu Nacional, desde 1916, dirigido por Carlos Moreira. Manguinhos continuaria a fazer parte de sua vida profissional, mas não publicaria outros trabalhos com Lutz.236
O interesse deste pelos insetos tornava-se cada vez mais abrangente. Em 1917, concluiu detalhado estudo sobre os estreídeos brasileiros, grupo de muscóideos que passam o período larval sempre em mamíferos. Lutz apresentava a taxonomia do grupo, com uma chave para os gêneros, e as características morfológicas e biológicas das espécies descritas, além de densa análise do parasitismo das oestrinas americanas.
Outra vertente explorada por ele foi a dos blefarocerídeos, insetos característicos da fauna riacófila, isto é, adaptada à corrente de água dos rios e cachoeiras. Seu interesse por esse grupo foi provavelmente despertado pelos estudos anteriores sobre os simulií-deos, típicos também dessa fauna. O trabalho publicado em 1922 continha um inventário das espécies brasileiras, remontando às investigações feitas em 1881 pelo naturalista alemão Fritz Müller, que descrevera larvas e pupas de espécies coletadas em Blumenau, Santa Catarina. Além de fazer estudos taxonômicos e biológicos sobre os blefarocerídeos, Lutz explicava os métodos de coleta e as técnicas de exame desses insetos. Retomou o tema em “Biologia das águas torrenciais e encachoeiradas,” trabalho submetido ao Congresso Internacional de Biologia que teve lugar na capital uruguaia, em outubro de 1930.
Pupa da espécie Curupira horrens, pertencente à família dos blefarocerídeos. BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, caixa gavetão 2, pasta diversos, maço 3.
Larva da espécie Curupira mochlura, pertencente à família Blepharoceridae, coletada na Fazenda do Bonito, Serra da Bocaina, entre os estados do Rio de Janeiro e São Paulo. BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, caixa 36, pasta 247, envelope da Casa São Francisco de material fotográfico.
Larva de espécime da família Blepharoceridae. BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, caixa 36, pasta 247, envelope da Casa São Francisco de material fotográfico.
Característica marcante da produção de Adolpho Lutz na década de 1920 são os trabalhos de cunho metodológico, que agrupamos numa seção à parte no próximo livro do presente volume. Revelam a preocupação de um pesquisador maduro de transmitir sua experiência às gerações mais jovens de médicos que ingressavam num campo já sedimentado, ou que fariam uso da entomologia em sua prática como sanitaristas, numa conjuntura em que ela, também, se consolidava institucionalmente. A Fundação Rockefeller promovia, no Rio de Janeiro, a criação da Escola de Enfermagem, e em São Paulo, a reorganização da Escola de Medicina de São Paulo, patrocinando, ao mesmo tempo, o treinamento de sanitaristas nas zonas rurais brasileiras, e a concessão de bolsas de aperfeiçoamento na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.
Em 1925 o ensino médico foi reformado, com base no plano do dr. Juvenil da Rocha Vaz. Carlos Chagas procurou aproximar as duas instituições que chefiava, o Departamento Nacional de Saúde Publica e o Instituto Oswaldo Cruz, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com o propósito de tornar seu ensino mais permeável à pesquisa, às endemias rurais e ao sanitarismo, encarado, agora, como vantajosa carreira aberta aos profissionais da saúde. A reforma suscitou muita controvérsia no seio da corporação médica por incluir no currículo da Faculdade a cadeira de Doenças Tropicais, da qual o próprio Chagas se tornou o titular, e o curso de Higiene e Saúde Pública, ministrado por pesquisadores de Manguinhos. Tratava-se de um curso de extensão, que garantia aos aprovados a nomeação para cargos nos serviços sanitários, sem concurso. Mas só podia se matricular nele quem apresentasse diploma do Curso de Aplicação do Instituto Oswaldo Cruz, ou fizesse exame de suficiência em suas matérias, uma das quais (zoologia médica) era ministrada por Lutz (ver Benchimol & Teixeira, 1993, p.184-5).
Muitos dos trabalhos metodológicos e sistemáticos realizados por ele nesse período vieram a lume em A Folha Medica, periódico fundado em 1920, e de cuja direção científica fariam parte, juntamente com Aloysio de Castro, diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, diversos professores dessa escola – Ernani Pinto (histologia); Ernani Alves (clínica cirúrgica); L. A. Silva Santos (anatomia); Francisco Lafayette (física) – e ainda Bruno Lobo, diretor do Museu Nacional e professor de microbiologia da Faculdade; Edgar Roquette Pinto, professor de antropologia desse Museu; Octavio de Freitas, diretor do Instituto Pasteur de Recife e Jayme Aben Athar, diretor do Instituto Pasteur do Pará. Nos anos 30, o periódico teria como diretor José Paranhos Fontenelle, conhecido tisiólogo e sanitarista.237
Data desse período a colaboração de Adolpho Lutz com Gustavo Mendes de Oliveira Castro, médico de uma geração que alcançou a maturidade profissional num momento em que eram maiores as oportunidades para o aprendizado e exercício da entomologia, como especialidade, tanto no âmbito da zoologia médica como no da biologia aplicada à agricultura e veterinária.
Nascido em Petrópolis (RJ), em 1904, Oliveira Castro formou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e, ainda estudante, iniciou a carreira científica no Jardim Botânico.238 Após a diplomação, em 1926, trabalhou no laboratório de José Gomes de Faria, no Abrigo Hospital Arthur Bernardes, atual Instituto Fernandes Figueira. No ano seguinte, Oliveira Castro tornou-se assistente de Zoologia Geral e Parasitologia da Faculdade de Farmácia e, em 1929, a convite de Arthur Neiva, ingressou no Instituto Biológico de Defesa Agrícola e Animal, em São Paulo. Essa importante instituição fora criada dois anos antes como desdobramento da campanha contra o Stephanoderes hampei, ou broca-do-café, besouro da família dos Scolytidae, de provável origem africana, que se disseminara pelos cafezais paulistas no início daquele século. Oliveira Castro retornou ao Rio de Janeiro em 1933 para trabalhar no Instituto de Biologia Animal do Ministério da Agricultura. Dois anos depois, assumiu o cargo de professor assistente de Zoologia na recém-criada Universidade do Distrito Federal. Em 1936, integraria a já referida Comissão de Estudos sobre Leishmaniose Visceral, chefiada por Evandro Chagas.
Separata da Folha Médica na qual Adolpho Lutz publicou, em 1920, “O emprego do phenol na técnica microscópica”. BR. MN. Fundo Adolpho Lutz.
A sistemática dos tabanídeos foi o objeto de quatro dos trabalhos que realizou com Adolpho Lutz. Publicados nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, foram reeditados em livro anterior desta Obra Completa do cientista.239 O primeiro, de 1935, dizia respeito a “Novas espécies de motucas do gênero Esenbeckia Rondani;” no ano seguinte, descreveram “Espécies afins do gênero Melpia Walker” (1936a), inclusive um gênero e duas espécies novos, e, ainda, “Duas espécies novas do gênero Fidena Walker” (1936b). O artigo de 1937 dizia respeito a “uma espécie nova do gênero Laphriomia Lutz,” e ao macho de L. mirabilis Lutz.
A transmissão da lepra pelos mosquitos foi o tema de uma série de trabalhos realizados por Adolpho Lutz nesse mesmo período, todos reeditados no primeiro volume de sua Obra Completa (2004).240 Como mostramos aí, após a Revolução de 1930, a corrente que advogava o isolamento compulsório das vítimas do mal de Hansen assumiu o comando das políticas nesse setor, no âmbito do Ministério da Educação e Saúde Pública então criado. Na contracorrente dessa tendência, Lutz continuou a pregar sua convicção de que a doença era transmitida por mosquitos, portanto, não contagiosa. A palestra que proferiu a esse respeito em 1932, na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, foi publicada no Boletim da influente Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra. Lutz voltou a defender seu ponto de vista em grande evento realizado no Rio de Janeiro, em 1933, visando à unificação nacional da campanha contra a lepra. Sua conferência foi até mesmo transcrita em edição dominical de dois importantes matutinos cariocas: Jornal do Commercio e Jornal do Brasil (1.10.1933). Três anos depois, publicou em alemão, português e inglês uma revisão da literatura sobre a transmissão da lepra, que foi objeto de resenhas em revistas médicas francesas e italianas.241 Ao Congresso Internacional do Cairo (21 a 28 de março de 1938), o cientista enviou comunicação intitulada “No control of leprosy without anti-mosquito campaign”.242 A doença foi, ainda, o tema dos dois últimos trabalhos que produziu: “A transmissão da lepra pelos mosquitos e a sua profilaxia,” lido no sétimo Congresso da Pan American Medical Association (1938) e publicado nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz (1939); e “Regras indispensáveis de prophylaxia anticulicidiana sugeridas ao Serviço Sanitário do Estado de S. Paulo,” que permaneceram inéditas.243
No primeiro trabalho, Lutz detalhava, como nunca fizera antes, as experiências destinadas a provar sua teoria:
O mosquito noturno comum, Culex quinquefasciatus, é especialmente suspeito de transmitir a lepra, mas não se presta muito bem para experiências porque só pica às escuras. Stegomyia não convém usar por várias razões. É preferível aproveitar espécies que picam facilmente… por exemplo, as espécies dos gêneros Mansonia, Taeniorhynchus e Janthinosoma. A mais fácil de obter é Culex, hoje Ochlerotatus scapularis, abundante nos jardins arborizados.
Este certamente era o protocolo das experiências que realizava com a ajuda de Oliveira Castro. Os mosquitos eram infectados com os bacilos da lepra e da tuberculose – sobretudo tuberculose bovina e aviária – e com o bacilo de Stefansky, que produzia em ratos uma doença muito parecida com a lepra humana. Para Lutz, a primeira questão a determinar era o tempo que viviam no corpo dos mosquitos. Se não desaparecessem logo de seus órgãos internos, os insetos poderiam servir às culturas e às inoculações em animais. Suas glândulas salivares deviam ser inoculadas em porquinhos-da-índia, coelhos, ratos e macacos, procurando-se induzir neles alguma lesão característica.
Visitante observa insetos coletados por Adolpho Lutz, no laboratório deste no Instituto Oswaldo Cruz (1937).
BR. MN. Fundo Bertha Lutz.
Após a morte de Adolpho Lutz, em 6 de outubro de 1940, seu programa de pesquisas continuou a ser executado por Oliveira Castro e por Heráclides Cesar de Souza Araújo, chefe do Laboratório de Leprologia do Instituto Oswaldo Cruz. Em nota prévia publicada com José Mariano, em 1945, o primeiro apresentou os resultados das experiências feitas com dezenas de voluntários humanos para verificar se os estiletes bucais de mosquitos contaminados seriam capazes de infectar os tecidos no ato da picada. Com base nos resultados dessas e de outras experiências244 realizadas com culicídeos, ixodídeos, pediculídeos, cimicídeos, pulicídeos e triatomíneos, Souza Araújo (1953, 1952) concluiu que qualquer hematófago podia transmitir a lepra, sob certas condições, sendo, portanto, recomendável que a saúde pública estendesse o programa de dedetização em curso contra o vetor da malária aos focos rurais e suburbanos do mal de Hansen. O leprologista de Manguinhos sustentou essa tese no X Congresso Brasileiro de Higiene, realizado em Belo Horizonte, em outubro de 1952, e no V Congresso Internacional de Medicina Tropical e Malária, que teve lugar em Istambul (Turquia), em agosto e setembro de 1953.
Os últimos trabalhos de Adolpho Lutz foram ditados à sobrinha ou à filha. O agravamento da cegueira nos anos 30 levou-o, também, a se dedicar aos anfíbios, animais grandes que podia apalpar com a ajuda do fidelíssimo auxiliar Joaquim Venâncio. Os trabalhos a esse respeito, realizados em colaboração com a filha, Bertha Lutz, serão reeditados em outro livro da Obra Completa de Adolpho Lutz.
Deve ter sido, portanto, com grande dificuldade que realizou o último trabalho em parceria com Oliveira Castro, “Considerações sobre a transmissão de doenças por sugadores de sangue,” publicado em julho de 1936 em A Folha Medica. Aquele número especial do periódico dirigido por José Paranhos Fontenelle era dedicado às “doenças tropicaes e infectuosas,” e reunia diversos artigos em homenagem a Carlos Chagas, falecido dois anos antes. Colaboravam inclusive seus dois filhos, Evandro Chagas e Carlos Chagas Filho.
O trabalho de Lutz e Oliveira Castro245 tinha por objetivo chamar a atenção dos médicos, sanitaristas e outros profissionais de saúde para “a importância dos hematófagos na disseminação de doenças”. Nesse sentido, assemelhava-se bastante àquela comunicação que comentamos anteriormente, apresentada por Lutz ao III Congresso Médico Latino-americano, em 1907.
No quadro anexo a esta apresentação histórica é possível perceber a densidade que havia adquirido a problemática da transmissão de doenças humanas e veterinárias por insetos hematófagos nas três décadas decorridas entre um e outro trabalho.
O de 1936 compõe-se de quatro partes bastante desiguais na linguagem e no conteúdo. A parte histórica é inteiramente calcada no livro de Paul de Kruif, Microbe Hunters [Caçadores de micróbios], um best-seller de divulgação científica lançado em Nova York em janeiro de 1926 (Harcourt, Brace & Co.), já em sua 21a edição. No mesmo tom épico, Lutz e Oliveira Castro narram as investigações de Smith e Kilborne sobre a Febre do Texas; de Bruce, sobre a nagana e a doença do sono; de Manson, sobre a filariose; de Ross e Grassi, sobre a malária e, ainda, os feitos de Finlay e da comissão médica chefiada por Walter Reed no tocante à febre amarela. A contribuição mais original dos autores nessa parte consistiu na inclusão das campanhas feitas no Brasil por Emílio Ribas e Oswaldo Cruz contra a última doença, e no relato, igualmente épico, da descoberta da Doença de Chagas.
O texto de Lutz e Oliveira Castro e a iniciativa editorial de Fontenelle constituem episódios destinados a celebrar a renascença desse feito científico. Como mostraram diversos autores (Kroft, 2006; Kroft et al., 2003; Coutinho, 1999; Chagas Filho, 1968; Carneiro, 1963), seu período ‘heróico’ (1908-1922), marcado pela rápida sucessão de investigações feitas em Manguinhos e em outras instituições sobre o ciclo de vida do protozoário em seus hospedeiros, sobre a biologia do vetor e ainda sobre as características clínicas e anatomopatológicas da doença produzida pelo Trypanosoma cruzi, ou “Tripanossomo brasileiro,” que seria chamada de Tripanossomose americana antes de sua significação epidemiológica começar a ser demolida pelos adversários de Chagas na Academia Nacional de Medicina (1922). A descoberta de Carlos Chagas foi relegada ao limbo até 1934, ano de sua morte, quando Salvador Mazza e colaboradores descreveram mais de mil casos humanos da doença no Chaco argentino, provocando o ressurgimento do interesse por aquela tripanossomíase como objeto de pesquisa e de ações sanitárias em toda a América do Sul.
Na segunda parte do artigo de 1926, Lutz e Oliveira Castro faziam um balanço dos hematófagos incriminados até então como transmissores de doenças, “em sua quase totalidade artrópodes pertencentes à classe dos insetos ou a dos aracnídeos”. Na terceira parte, abordavam a questão do ponto de vista das patologias do homem e de animais domésticos transmitidas por esses hematófagos, ordenando-as conforme a natureza ou categoria taxonômica do agente patogênico. A linguagem nada tem em comum com aquela empregada na parte histórica, e uma preocupação importante dos autores aqui é circunscrever, de um lado, os conhecimentos estabilizados, de outro, as numerosas incógnitas e indefinições que pairavam sobre o vasto campo da medicina tropical.
No texto de 1907, que coincide com os albores de sua instituição no Brasil, a tónica recaía sobre os protozoários; a grande novidade do texto de 1936, todavia, são os vírus.
Nos textos clássicos latinos, a palavra virus designava algum veneno, em sentido figurado ou não. O primeiro a associá-la à idéia de infecção foi, ao que parece, o jesuíta alemão Athanasius Kircher: no Scrutinum Physicomedicum (1658), refere-se ao virus pestiferum, princípio infeccioso da peste bubónica. Nos textos médicos dos séculos XVIII e XIX, ‘vírus’ significava um princípio de natureza desconhecida presente nos humores animais e capaz de transmitir a doença que o originara. Designava, também, o exsudato de uma doença infecciosa – a linfa da varíola, por exemplo. A palavra conservou o significado genérico de agente com propriedades infecciosas quando teve início a revolução pasteuriana. Por suas conotações inespecíficas, era um sucedâneo conveniente de micróbios desconhecidos (“vírus amarílico”) ou, ainda, da substância tóxica produzida pelo organismo infectado ou pelo microrganismo infectante.
Na década de 1890, começou a ser associado a agentes infecciosos filtráveis e submicroscópicos. O aprimoramento do microscópio ótico chegara a tal ponto que, em mãos hábeis, este era capaz de resolver estruturas situadas nos limites teóricos da visibilidade (cerca de 0,25 mícron). Os microbiologistas verificavam, então, existirem materiais infecciosos além desse limiar. Pasteur, por exemplo, buscou inutilmente o micróbio da raiva, e acabou desenvolvendo a vacina sem conhecê-lo, e sem conseguir cultivá-lo in vitro. Seu método para obter culturas do agente, in vivo, consistiu em introduzir o material infectado no cérebro de cães, depois coelhos. Após sucessivas passagens, obteve o que chamou de “vírus fixado”: as medulas espinhais dos animais inoculados continham culturas puras do agente causal, com máxima virulência.
O primeiro a recorrer à filtragem para separar micróbios dos líquidos em que estavam contidos foi Casimir Davaine, na década de 1860, quando estudava o bacilo do carbúnculo. Usou a placenta de porquinhos-da-índia para isolá-lo do sangue. O fisiologista suíço Ernst Tiegel usou filtros de argila não vitrificada (1871); Pasteur, filtros de gesso e, depois, vasos porosos de porcelana, até que em 1884 Charles Chamberland produziu um filtro de porcelana que se tornou equipamento de rotina nos laboratórios, sendo até mesmo comercializado para a filtragem de água doméstica.
Os bacteriologistas começaram então a verificar que microrganismos podiam atravessar o filtro de Chamberland, ou suas versões mais modernas (filtros de Berkefeld e Kitasato), e aparecer, do outro lado, como contaminantes do filtrado.
A historiografia aponta o russo Dimitri Iosifovitch Ivanovski e o holandês Martinus Willem Beijerinck como os descobridores dos agentes infecciosos filtráveis. Quando estudavam uma doença que produzia nas folhas do tabaco manchas semelhantes ao mosaico, por isso chamada doença do mosaico ou Mosaikkrankheit, verificaram que podia ser transmitida de uma planta a outra inoculando-se seiva extraída de folhas doentes. Como a infecciosidade da seiva era destruída por aquecimento prolongado a 80°C, tratava-se de um agente organizado (celular). Depois de atravessar o filtro de Chamberland, a seiva ainda era capaz de infectar plantas saudáveis (Ivanovski, 1892, p.67-70; 1942, p.27-30; Hughes, p.47).
Experiências similares levaram Beijerinck (1899) à conclusão de que o mosaico do tabaco era causado por um germe fluido, o Contagium vivum fluidum. Além disso, verificou que só eram acometidas as partes em crescimento das plantas, o que significava que o patógeno só se multiplicava em tecidos que estivessem sofrendo divisão celular.
Em sua tese de doutoramento, publicada em 1903 no Zeitschrift für Pflanzenkrankheiten, Ivanovski descreveu os supostos agentes do mosaico: minúsculas estruturas semelhantes a amebas que chamou de “zooglea,” isto é, massas de microrganismos de aspecto gelatinoso. Encontrara, também, “depósitos cristalinos” no citoplasma de células infectadas, que representavam, para Ivanovski, uma reação das células à irritação produzida pelos “parasitas”. Segundo Hughes (op. cit., p.60), o cientista russo descrevia, sem o saber, um vírus em forma cristalina.246
Em 1897, dois discípulos de Koch, Friedrich Johannes Loeffler, da Escola Veterinária de Greifswald, e Paul Frosch, do Instituto de Doenças Infecciosas de Berlim, foram incumbidos pelo governo alemão de investigar a febre aftosa. As técnicas bacteriológicas convencionais revelaram-se ineficazes para a identificação de seu agente etiológico. Em março de 1898, publicaram relatórios nos quais descreviam, pela primeira vez, a filtrabilidade de um “vírus animal”. A descoberta deu grande impulso às investigações sobre a etiologia de outras doenças que resistiam ao escrutínio dos bacteriologistas, como a varíola, a escarlatina, a febre amarela, o sarampo, o tifo e a peste bovina (Hughes, op. cit., p.64-5).
Quase à mesma época, Edmond-Isidore Etienne Nocard e Émile Roux, do Instituto Pasteur de Paris, divulgaram os resultados do estudo sobre a pleuropneumonia bovina247 no Congresso Internacional de Higiene e Demografia realizado em Madri, em 1898. O “vírus” fora cultivado sob condições muito especiais: pequenos sacos de colódio contendo exsudato pleural infectado e uma infusão de carne foram inseridos, cirurgicamente, na cavidade peritoneal de coelhos e lá deixados em incubação. Dias depois, o exame dos conteúdos dos sacos revelou “uma infinidade de pequenos pontos refrativos e móveis, de tal modo tênues que é difícil, mesmo depois da coloração, determinar sua forma de maneira exata”. Em 1903, Roux qualificaria o agente da pleuropneumonia como o menor membro microscopicamente visível de uma cadeia contínua de organismos diminutos, que se estendia até aqueles situados além do alcance dos microscópios (Hughes, op. cit., p.65).
O Congresso Internacional de Madri teve notícia de outro agente infeccioso dessa natureza: o do mixoma dos coelhos, descoberto por Giuseppe Sanarelli (1898) quando investigava uma doença que irrompera entre os animais do Instituto de Higiene que dirigia em Montevidéu. Seriam descritos mais tarde os agentes filtráveis e invisíveis da febre amarela (1901) e da poliomielite (1909).
Como vimos, os trabalhos sobre a malária, a febre do Texas e a nagana transformaram os protozoários em principais suspeitos na causação de doenças com etiologias misteriosas. No Congresso Médico Internacional realizado em Berlim, em 1890, Koch já relacionava treze, entre as quais a varíola, a vacínia, a raiva, a influenza, o tracoma, a febre amarela e a peste bovina (todas atribuídas, no presente, a vírus). O leitor já se deu conta da dificuldade em demonstrar uma etiologia dessa natureza, uma vez que os protozoários têm histórias de vida complexas, envolvendo, em geral, um ou mais hospedeiros intermediários. Estruturas observadas no interior das células de indivíduos doentes foram, então, com freqüência, interpretadas como estágios do ciclo de vida de um protozoário. (Tais estruturas, hoje denominadas corpos de inclusão viral, constituem uma evidência visível dos vírus, os quais aparecem nos microscópios ópticos conjugados ao material que a célula hospedeira produz em reação à sua presença). Em 1893, Giuseppe Guarnieri descreveu aquelas encontradas no citoplasma de células localizadas nas lesões da varíola e da vacínia, atribuindo-as a protozoários que classificou como Cytoryctes variolae e Cytoryctes vaccinae. Interpretações similares foram elaboradas para a peste bovina, o herpes-zoster e outras doenças.
Segundo Stanislas von Prowazek (1907, p.336-58), autor da teoria dos “clamidozoários” [do grego, chlamys, manto], as inclusões eram microrganismos filtráveis que se desenvolviam intracelularmente, e que eram envolvidos num manto formado por material de reação celular. Inseguro, ainda, quanto à sua classificação, considerava-os mais próximos dos protozoários que das bactérias.
Em 1913, o dermatologista alemão Benjamin Lipschütz listou 41 doenças cujos agentes haviam sido identificados como filtráveis, dos quais 16 eram microscopicamente visíveis como corpos de inclusão. Situou estes últimos num grupo à parte, os Estrongiloplasma (Lipschütz, 1909, p.77-90). Somente em 1929, seriam inquestionavelmente relacionados aos vírus, por C. E. Woodruff e E. W. Goodpasture, autores de um estudo fundamental sobre a varíola aviária.
Nesse período, outra categoria de microrganismos foi incluída no rol dos vírus filtráveis: as riquétsias, que ocorrem como parasitos intracelulares do tubo intestinal de piolhos, pulgas, carrapatos e ácaros. O nome é uma homenagem ao patologista norte-americano Howard Ricketts (1871-1910), que identificou os primeiros microrganismos desse gênero. Algumas espécies são transmitidas pelos referidos animais ao homem e a outros mamíferos, produzindo doenças infecciosas chamadas riquetsioses, como o tifo exantemático, o tifo endêmico e a febre maculosa. A espécie tipo é a Rickettsia prowazekii, agente da primeira doença, transmitida pelo piolho. À época em que Lutz e Oliveira Castro publicaram seu artigo (1936), ainda eram identificadas aos vírus em razão do pequeno tamanho e por não poderem sobreviver fora dos seres vivos. Somente em 1939 seria proposta a primeira classificação da ordem Rickettsiales, por Gieszczykiewicz.248
Outra problemática nova nas pesquisas sobre vírus foi inaugurada em 1915, quando Frederick William Twort, da Universidade de Londres, descreveu uma substância filtrável que causava a lise de colónias bacterianas, condição que podia ser transmitida a culturas frescas por número indefinido de gerações. Constituía a primeira evidência de que as bactérias, como as plantas e os animais, eram suscetíveis a doenças. No final da Primeira Guerra Mundial, Felix d'Herelle (1917), do Instituto Pasteur de Paris, redescobriu aquela ação lítica num vírus filtrável dotado de propriedades antagonistas ao bacilo disentérico de Shiga. Denominou-o, então, bacteriófago, que significa, literalmente, ‘comedor de bactéria’. A descoberta despertou grande interesse pelo possível uso terapêutico desses vírus. A esperança não se realizou de todo, o que não os impediu de ocuparem lugar muito importante nos estudos sobre as relações entre vírus e célula hospedeira. Ao estudo dos bacteriófagos dedicou-se apenas um pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, João da Costa Cruz, que deu início a seus trabalhos logo após a descoberta de d'Herelle. Não viveu o suficiente para testemunhar a transformação que sofreram esses estudos com o advento da microscopia eletrônica e o concurso das técnicas e abordagens bioquímicas. Em 1923, desenvolveu a bacteriofagina para o tratamento das disenterias bacilares.249
Salomon Bayet (1986, p.53) sugere que se tomem os anos de 1918 e 1919 como o marco de encerramento da revolução pasteuriana. A data tem um sentido dúplice. Por um lado, assinala um êxito: durante a Primeira Guerra Mundial, o impacto das epidemias foi menor que em outras conflagrações, ficando o morticínio a cargo das forças beligerantes e suas armas. Em compensação, os microbiologistas viram-se desarmados pelo vírus da gripe espanhola. Quinze milhões de mortos foi o saldo desse combate planetário que expôs o calcanhar-de-aquiles da ciência dos micróbios. Não poderiam ser mais sugestivas as circunstâncias que marcaram a chegada da pandemia ao Rio de Janeiro, em outubro de 1918: entre suas primeiras vítimas estavam os participantes do Congresso Nacional de Medicina e da II Conferência Sul-Americana de Higiene, Microbiologia e Patologia, que se realizavam no recém-inaugurado edifício da Faculdade de Medicina, na Praia Vermelha. A debandada dos médicos foi o prólogo do cataclismo que se abateu sobre a cidade, só comparável, por seus efeitos materiais e psicológicos, ao terror semeado pela peste negra na Europa medieval. Aventou-se, até mesmo, a hipótese de ser essa doença a própria peste, em sua forma pulmonar, mas os médicos que haviam testemunhado a pandemia de 1893, muito menos grave, não hesitaram em diagnosticar a influenza.
Supunha-se, na época, que seu germe era o Haemophilus influenzae, descoberto em 1892 pelo bacteriologista alemão Richard Pfeiffer. Pondo em dúvida essa teoria, Marques da Cunha, Olympio da Fonseca Filho e Octavio Coelho de Magalhães, do Instituto Oswaldo Cruz, deram início a novos estudos sobre a etiologia da gripe, que era também investigada por microbiologistas europeus e japoneses.250 Inventariando as pesquisas realizadas por ocasião da pandemia de 1918-1919, Lépine (1964) destacaria a obtenção de evidências de que os produtos contagiosos continham um vírus filtrável (Selter, 1918), transmissível aos Macacus cynomolgus e sinicus (Ch. Nicolle & Lebailly, 1918), resultados estes alcançados, independentemente, no Brasil, pelos três pesquisadores de Manguinhos, e no Japão, por Yamanouchi e seus colaboradores.
Outra linha de pesquisa viral do Instituto Oswaldo Cruz, que chegou a alcançar certa repercussão na década de 1920, foi desenvolvida por Antônio Cardoso Fontes, e dizia respeito à suposta filtrabilidade do bacilo de Koch (Mycobacterium tuberculosis). Maior importância tiveram os estudos sobre o mixoma dos coelhos, descrito por Sanarelli. Arthur Moses, em Manguinhos, e Alfonso Splendore, em São Paulo, confirmaram a filtrabilidade de seu agente. Aragão classificou-o entre estrongiloplasmas propostos por Lipschutz. Em artigo publicado em 1927, sugeriu a utilização do vírus para combater a superpopulação de coelhos na Austrália. A medida causou virtual destruição desses animais em algumas regiões desse país e da França. Em 1943, Sylvio Torres demonstraria que o vírus do mixoma era transmitido pelo Culex quinquefasciatus, e Aragão indicaria outros vetores: o Stegomyia aegypti e o Aedes scapularis.
Sally Hughes distingue três fases na história das pesquisas sobre vírus, no século XX. Até a década de 1920, estiveram direcionadas muito mais para as doenças virais do que para os vírus propriamente. Nas décadas de 1930 e 1940, ganharam crescente importância as análises bioquímicas desses microrganismos, que puderam ser observados com o auxílio de novas técnicas, especialmente a microscopia eletrônica e a cristalografia de raios X. A partir da década de 1950, essas e outras técnicas foram empregadas para elucidar a natureza essencial dos vírus nos níveis morfológico e celular, no âmbito de uma disciplina já independente, com seus objetos, métodos e espaços institucionais próprios.
Adolpho Lutz não viveu o suficiente para testemunhar isso, mas indiretamente deu contribuições importantes a um dos capítulos fundamentais da história da virologia.
No Brasil, os primeiros estudos nesse domínio foram realizados por Émile Roux, Paul-Louis Simond e A. Tourelli Salimbeni, do Instituto Pasteur de Paris, quando estiveram no Rio de Janeiro (1901-1905) para verificar as teses da comissão Reed, também a respeito da filtrabilidade do controvertido agente da febre amarela.251 Na realidade, como mostramos no primeiro livro do presente volume da Obra Completa de Adolpho Lutz, a hipótese preponderante nessa conjuntura relacionava a doença aos protozoários.
Em meados de 1914, William C. Gorgas, surgeon general do exército norte-americano, já consagrado como o “conquistador da febre amarela em Havana e no Panamá,” propôs à Fundação Rockefeller a erradicação dessa doença em todo o mundo.252 Segundo o plano consolidado em agosto daquele ano, eliminando-se alguns “focos-chave” onde procriava o Aedes aegypti, considerado o único vetor da doença, ela desapareceria.253 A campanha visaria apenas as larvas do mosquito, que se reproduzia nas proximidades das habitações humanas. Reduzindo-se o índice de infestação a um patamar igual ou inferior a cinco – isto é, as larvas do mosquito seriam encontrados em, no máximo, 5 por cento das casas visitadas -, a febre amarela se extinguiria tanto na aglomeração urbana expurgada como nas áreas menos povoadas do interior (Löwy, 1998-9, p.653).
Imagem ampliada do Aedes aegypti, transmissor da febre amarela. Acervo do American Museum of Natural History, de Nova York. LYONS & PETRUCELLI (1987), p.563.
A Primeira Guerra Mundial obrigou a Rockefeller a adiar a execução daquele plano. Decorreram dois anos até que uma comissão iniciasse a identificação dos focos-chave no continente.254 Em julho de 1918, outra comissão foi enviada ao Equador para investigar aspectos ainda obscuros da febre amarela, especialmente sua etiologia.255 Essa parte ficou a cargo de Hideyo Noguchi (1876-1928), bacteriologista do Rockefeller Institute for Medical Research, em Nova York. Em Guayaquil, nessa época capital do Equador, descobriu um microrganismo que julgou ser o agente da doença. Chegou a ele por meio da sífilis, cujo germe fora descoberto em 1905, por Fritz Richard Schaudinn. Os institutos bacteriológicos do mundo inteiro debruçaram-se então não apenas sobre o Treponema pallidum, mas sobre outros membros da família das espiroquetáceas, e verificaram serem os causadores de outras doenças no homem e em animais, entre elas a de Weil (de Adolf Weil, 1848-1916), hoje mais conhecida como leptospirose. Noguchi, que conhecia muito bem esses micróbios, ficou a princípio impressionado com a semelhança entre o germe encontrado no sangue e nos tecidos das vítimas da febre amarela e o da doença de Weil (Leptospira icterohaemorrhagiae). Finalmente, decidiu que o Leptospira icteroide era uma espécie diferente de espiroqueta. Até o final de 1919, publicaria onze artigos sobre a etiologia da febre amarela no Journal of Experimental Medicine (Eckstein, 1931; Clark, 1959; Plesset, 1980).
Àquela altura, seu laboratório, em Nova York, já produzia quantidades substanciais de soro curativo em cavalos, e vacina com leptospiras mortos (Cueto, 1993; Solorzano, 1994). Noguchi rapidamente conquistou adesões de peso na comunidade científica internacional. Houve, porém, desde o início, vozes dissonantes, especialmente a do cubano Mario Lebredo, diretor do Instituto Finlay. Em 1923, quando foram formalizados os entendimentos entre o governo brasileiro e a Fundação Rockefeller, no tocante à campanha contra a febre amarela no país, Noguchi e um assistente, o dr. Henry R. Muller, rumaram para Salvador com um carregamento de microscópios, vidraria e animais de experiência, tudo em caixas à prova de mosquitos. Carlos Chagas já enviara pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz à capital baiana, onde a febre amarela era endêmica. Segundo Fonseca Filho, não conseguiram observar o que Noguchi descrevera. Pesquisadores de São Paulo tampouco.
Era tal, porém, o prestígio do grande pesquisador japonês … que, se pode dizer, ninguém acreditava … que o insucesso das pesquisas pudesse ser devido à inexistência do leptospira nos casos de febre amarela examinados. Todos pensavam, e muitos francamente o diziam, que fosse ele devido à inexperiência dos pesquisadores de Manguinhos, e à sua falta de preparo num campo de trabalho inteiramente novo, como era o dos leptospiras. (Fonseca Filho, 1974, p.33-6)
Uma exceção foi Adolpho Lutz. Embora estivesse voltado para outros objetos de pesquisa, estudara já a biologia das Spirochetaceae e tinha grande experiência com a febre amarela. Afirmava que se tivesse por agente um microrganismo daquela família, ele o teria visto. No livro 1 do presente volume de sua Obra Completa (p.691-5), reeditamos resumos elaborados por Bertha Lutz, sua filha e assistente, de comunicações publicadas por Noguchi em 1919. A correspondência de Adolpho Lutz com Wilhelm. H. Hoffmann mostra que o brasileiro estava atento àquela controvérsia (BR. MN. Fundo Adolpho Lutz, pasta 215).
Em carta escrita de Havana, em 17 de dezembro de 1922, este lamentava o fato de Lutz não haver podido comparecer ao IV Congresso Latinoamericano que se reunira lá aquele ano. “Não aprendi nada de novo sobre febre amarela, e como também Noguchi silenciava, muitos especialistas têm ainda dúvidas consideráveis quanto a sua Leptospira. O que mais me surpreende é ele não apresentar nada de novo em 4 anos, em uma questão de tamanha importância, e ainda podendo dispor de recursos ilimitados.” Em 27 de fevereiro de 1923, pouco tempo antes da chegada do bacteriologista japonês ao Brasil, Hoffmann escreveu:
Se houver agora oportunidade de se estudar a febre amarela no Brasil, acredito que a questão da leptospira deveria ser novamente levantada, com todos os meios. Penso que aquela cepa de Noguchi, que testei, não é, de jeito nenhum, o agente causador da febre amarela. E pelo que sei, a maioria dos conhecedores da febre amarela ainda duvida dos icteroídeos sem que Noguchi tente apresentar novas provas.256
Hoffmann, que se ocupava também da anatomia da febre amarela (carta de 21.9.1924), recebeu de Lutz “observações sobre a atrofia aguda do fígado,” e pediu-lhe permissão para fazer referência a elas num trabalho que estava preparando. “Também penso que seja mais fácil dar o diagnóstico pelos sintomas clínicos do que através do quadro anatómico, mas quanto mais raras ficam as epidemias e também os casos isolados, mais importância ganha cada recurso que ajude no diagnóstico” (carta de 14.11.1924).257
O tema continuou a freqüentar a correspondência entre ambos, e em 11 de julho de 1926 Hoffmann agradeceria “interessantes informações referentes à epidemiologia da febre amarela”. A partir dos dados fornecidos por sua vasta rede de correspondentes, Hoffmann (1936; 1937) foi um dos primeiros a mapear as zonas endêmicas da doença na África, estudando também as da América do Sul e Central (Báez, 1951, p.2-13). Em 1934, quatro anos após a publicação de “Reminiscências da febre amarela em São Paulo”,258 quando os conhecimentos sobre ela haviam já sofrido a revisão radical que analisaremos a seguir, Adolpho Lutz externaria a opinião de que a doença fora novamente introduzida no Brasil a partir da África. Escreve Hoffmann:
É extraordinariamente interessante, e seu parecer é decisivo nessa questão, já que ninguém tem uma experiência semelhante à sua. Também sou da mesma opinião, e já antes da nova eclosão no Rio alertei nas minhas publicações para o perigo que ameaça o porto brasileiro, decorrente do grande foco no oeste da África. Esse foco continua a expandir-se, como é natural, e já alcançou também o leste da África. Naturalmente constitui também para o Brasil um perigo constante. (Carta de 30 de maio de 1934.)
A maré montante das observações contrárias a Noguchi não parou de crescer.259 O golpe final foi desferido pela West African Yellow Fever Commission, da própria Fundação Rockefeller, composta pelos doutores Adrian Stokes, Johannes H. Bauer e N. Paul Hudson. Em 1925, instalaram-se em Lagos, capital da Nigéria, com o propósito de isolar o Leptospira icteroides. Até maio de 1927, estudaram bacteriologicamente dezenas de casos de febre amarela, e inocularam cerca de mil porquinhos-da-índia. Nenhum morreu com lesões típicas da doença. Foram igualmente infrutíferas as experiências feitas com coelhos, ratos, cães, gatos e cabras. A comissão teve de buscar um animal que se prestasse ao estudo da febre amarela reinante na África ocidental. Stokes foi vitimado por ela pouco antes da publicação, em janeiro de 1928, do trabalho que mudaria o rumo das investigações (Stokes, Bauer & Hudson, 1928, p.103-64). A doença foi transmitida, com sucesso, a Macacus rhesus originários da Índia, e com relativo sucesso a Macacus sinicus, da mesma procedência. Comprovaram aqueles investigadores a ausência de espiroquetas ou leptospiras nos tecidos ou no sangue dos animais infectados, mas descobriram um vírus filtrável, com o qual obtiveram numerosas transmissões bem-sucedidas pelo Aedes aegypti.260
A epidemia que grassou no Rio de Janeiro em 1928-1929 pôs a pique a teoria dos focos-chave que norteava a campanha da Fundação Rockefeller no Brasil. Multiplicavam-se as evidências de que a febre amarela estava disseminada pelo interior do país. O vírus permanecia sujeito a inúmeras incógnitas, e o diagnóstico da doença dependia da interpretação de sinais clínicos, que podiam ser enganosos, ou da observação de lesões nos órgãos e tecidos, só reveláveis após a morte do doente.
Quando os estudos sobre febre amarela incorporaram o rhesus como seu principal modelo animal, já havia uma lista de mais de 65 doenças imputadas aos “vírus filtráveis”. Em meados dos anos 20, fora confirmada outra característica importante dessa classe de microrganismos: sua dependência de células vivas para se reproduzir (Hughes, 1977, p.93-108). Em 1930, Max Theiler, da Escola de Medicina de Harvard, fez uma descoberta fundamental:261 mostrou que o camundongo branco, habitualmente refratário à febre amarela, era capaz de contrair a infecção quando inoculado por via intracerebral. Morria de encefalite, sem apresentar lesão em outro tecido que não fosse o do sistema nervoso central. O vírus assim ‘fixado’ ficou conhecido como ‘neurotrópico’, por se comportar de forma diferente do vírus conhecido como viscerotrópico, isto é, causador das lesões em vísceras como o fígado, que serviam para o diagnóstico da doença nos cadáveres de humanos e primatas (Soper, 1937, p.381).
Em 1931, Alice Woodruff e Ernest W. Goodpasture, patologistas da Universidade Vanderbilt, conseguiram cultivar o vírus da varíola das aves na membrana cório-alantóide de embriões de galinha em crescimento. Essa técnica logo se disseminou pelos laboratórios de virologia, já que os ovos embrionados eram um hospedeiro mais barato e fácil de manipular que os animais de experiência – possuíam várias membranas suscetíveis a infecção por diferentes vírus.
Tais descobertas permitiram o desenvolvimento de uma vacina eficaz contra a febre amarela nos anos 30 e revolucionaram também os métodos diagnósticos.
Na epidemia de 1928, já se utilizou a chamada “prova de proteção” ou de “neutralização” para o diagnóstico retrospectivo. Sabia-se que o soro dos amarelentos que conseguiam se restabelecer continha anticorpos capazes de proteger um organismo não imune. Então, para saber se determinado indivíduo contraíra ou não a doença, inoculava-se seu soro num macaco e, em seguida, verificava-se se este resistia ou sucumbia à infecção induzida pela inoculação subseqüente do vírus. Após a descoberta de Theiler, a técnica pôde ser usada em larga escala com camundongos. Outro método de diagnóstico retrospectivo – o necroscópico, realizado em cadáveres – teve de ser adaptado a novo contexto socioespacial. A técnica executada por patologistas em hospitais dos centros urbanos foi convertida num método passível de ser difundido em regiões onde inexistiam profissionais de saúde, e onde a violação de cadáveres era infração muito séria aos códigos sociais de conduta. A necessidade de um instrumento que permitisse a leigos efetuar a operação, de forma rápida, levou ao desenvolvimento do “extrator de fragmentos de vísceras de cadáveres” ou, simplesmente, viscerótomo (Franco, 1968, p.116-9). Em 1931, postos de viscerotomia começaram a ser instalados em numerosos pontos do Brasil, ao mesmo tempo em que se iniciavam os estudos sistemáticos sobre a distribuição da imunidade à febre amarela por meio das provas de proteção. Os patologistas dos laboratórios de febre amarela da Bahia e, depois, do Rio de Janeiro passaram a receber e processar quantidade crescente de amostras de fígado e sangue (“Ligeiros dados sobre os 25 anos…,” p.11) -, e foi no curso dessas investigações que Henrique Penna descobriu a leishmaniose visceral no Brasil, como já relatamos.
Viscerótomo. Acima, fragmentos de fígado retirados de três cadáveres, e aspecto lateral de um viscerótomo. Abaixo, detalhes ampliados do instrumento. STRODER (1951), p.590.
Os dados assim obtidos passaram a nortear o novo programa de combate à febre amarela estruturado por Fred Soper, diretor-geral do Serviço de Febre Amarela desde junho de 1930: a confecção de mapas e estatísticas, o combate ao Aedes aegypti nas cidades e povoações rurais, o uso da vacina assim que ela se tornou tecnicamente factível, as investigações zoológicas e entomológicas visando identificar outros vetores e hospedeiros da febre amarela, especialmente depois que a modalidade silvestre foi reconhecida.
Entre 1930 e 1932, diversos casos suspeitos foram registrados em Santa Teresa, município do Espírito Santo onde o Aedes aegypti não era encontrado. A característica mais notável daquela região ocupada por esparsas habitações humanas, imortalizada por Graça Aranha no romance Canaã, são os vales íngremes e estreitos formados pelo Santa Maria e por outros rios que descem as encostas verdejantes da serra para afluírem ao rio Doce, na parte central do estado. Lembram muito a paisagem da Serra de Cubatão, onde Adolpho Lutz descobrira a malária das florestas.
Fred Soper, Henrique Penna, E. Cardoso, J. Serafim Jr., Martin Frobisher Jr. e J. Pinheiro iniciaram minuciosa investigação no vale do Canaã (Franco, 1969, p.124). Em 1933, apresentaram a “explicação mais lógica” para a epidemia que grassava lá: de tempos em tempos, o vírus era introduzido no vale a partir de áreas próximas com Aedes aegypti, onde a febre amarela grassava de forma endêmica mas silenciosa. Nas matas da região, o vírus era transmitido por um ou mais vetores muito disseminados, porém ineficientes, já que os casos nunca alcançavam densidade comparável à das epidemias urbanas. Das espécies de mosquitos incriminadas em laboratório como potenciais vetores, somente o Aedes (Ochleratatus) scapularis Rondani, e o Aedes (Taeniorhynchus) fluviatilis Lutz, existiam na área em número suficiente para merecer consideração (Soper et al., 1933, p.585).
Fred L. Soper, diretor do Serviço de Febre Amarela da Divisão Internacional de Saúde na América do Sul e chefe do escritório regional da Fundação Rockefeller no Brasil. Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação, Fundo Fundação Rockefeller.
As observações feitas no vale do Canaã exigiam a revisão de concepções basilares sobre a febre amarela. Ela não dependia só do Aedes aegypti, não era necessariamente uma doença urbana, nem sequer uma doença domiciliar. “Pode persistir numa comunidade rural por meses e desaparecer espontaneamente, devido a alguma falha do hospedeiro intermediário, deixando larga percentagem da população local não imune” (ibidem, p.584-5).
O alcance da febre amarela que Soper mais tarde denominaria “silvestre” foi realçada por estudo feito no vale do Amazonas, em 1932, pelo dr. Gastão Cesar, do Serviço de Febre Amarela: lá ele obteve 35,6 por cento de testes de proteção positivos nas amostras de sangue colhidas entre os indígenas, sem encontrar um foco sequer de Aedes aegypti (Franco, 1969, p.124).
Desenho que ilustra a “urbanização” da forma silvestre da febre amarela, apontando os vetores e agentes responsáveis pelo ciclo da doença. STRODER (1951), p.536.
Vasto programa de investigação envolvendo virologistas, zoólogos e entomólogos prolongou-se até, pelo menos, a década de 1950, com intensa troca de informações entre os pesquisadores que atuavam nos continentes americano e africano.262 Como vimos, já em 1903 Lutz levantou a suspeita de que outros mosquitos além do Aedes aegypti podiam transmitir o vírus.263 Essa hipótese foi confirmada por Bauer e Hudson em 1928 (p.261-82), quando mostraram ser possível infectar, em laboratório, o Aedes luteocephalus, o Aedes apicoannulatus e o Erepmopodites chrysogaster. Os estudos sobre os insetos hematófagos das localidades afetadas pela febre amarela silvestre a princípio não foram muito frutíferos (Soper, 1939a, p.18; 1939b, p.10). Em 1938, o vírus foi isolado em macacos picados por Haemagogus capricorni e por Aedes leucocelaenus, e em camundongos nos quais se tinha inoculado um grupo de Sabethines (Shannon, Whitman & França, 1938, p.110-1). Diversos mosquitos tinham sido artificialmente infectados, mas somente as três espécies apresentavam a infecção natural. Foi então que na Colômbia se verificou que grande quantidade de mosquitos era encontrada na copa das árvores (Soper, 1942, p.5). Novas metodologias de captura levariam ao reconhecimento de muitas outras espécies associadas à transmissão da febre amarela – neste caso, especialmente as do gênero Haemagogus – e de outras arboviroses (Consoli & Oliveira, 1994, p.102-34).
Esse esforço planetário de reconhecimento dos transmissores da febre amarela e de doenças hoje qualificadas como emergentes ou reemergentes não seria possível sem o árduo trabalho de Adolpho Lutz e de outros pioneiros da entomologia médica. Esperamos que a apresentação histórica do presente livro tenha demonstrado o papel fundamental desempenhado por Lutz na gênese e consolidação desse campo científico. Dos quase duzentos trabalhos que publicou durante sua vida, mais de cinqüenta diziam respeito aos insetos, especialmente dípteros hematófagos que poderiam servir de vetores para doenças do homem e de outros vertebrados.
Adolpho Lutz foi antes de tudo um sistemata, com visão ecológica moderna e inovadora. Estudou quase todos os grupos de Diptera envolvidos na transmissão de doenças, abordando-os, muitas vezes, num momento em que sua ‘periculosidade’ era ainda uma hipótese apenas. A sólida formação como zoólogo e parasitólogo permitiu-lhe produzir ricas análises sobre as relações entre os dípteros, os agentes patogênicos que abrigavam e os animais que serviam, também, de hospedeiros não apenas a esses parasitas ou microrganismos, como, em certos casos, aos próprios insetos. Darwinista desde seus primeiros trabalhos em história natural (cladóceros), como mostramos no primeiro livro de sua Obra Completa, Lutz foi capaz de trabalhar com maestria essa problemática medular da medicina tropical. Superando a tradição da taxonomia lineana, praticada por mais de um século nos gabinetes de história natural, adotou uma abordagem holística de seus objetos de pesquisa, que lhe permitiu descrever, de um lado, as complexas interações dos insetos com a fauna e a flora que os cercam, e de outro, o modo como se reproduzem e desenvolvem, e como seus ciclos de vida se ligam aos de outros organismos vertebrados ou invertebrados, em processos que não dizem respeito necessariamente a doenças. Os exemplos mais bem acabados dessa capacidade de ver o todo talvez sejam os trabalhos que publicou sobre a malária silvestre e sobre a fauna de rios, cachoeiras e manguezais.
A especificidade etiológica, tão importante para os bacteriologistas que promoveram a revolução pasteuriana, tem seu correlato na obra de Lutz: seu esforço pioneiro para demonstrar que determinados ectoparasitas só podem se desenvolver em hospedeiros específicos. Como vimos em livro anterior de sua Obra Completa, concernente aos estudos sobre protozoários, Adolpho Lutz leva essa problemática darwiniana da coevolução ao plano dos parasitos de parasitos.
A esta altura do inventário de sua obra, podemos concluir que, nos ciclos biológicos que têm relação com a transmissão de doenças, Lutz aprofunda muito mais o estudo dos hospedeiros (insetos, moluscos, anfíbios etc.) do que dos hóspedes, sejam eles helmintos, bactérias, protozoários ou, mais modernamente, os vírus. No prefácio ao livro concernente à Febre amarela, malária & protozoologia, o professor Erney Felício Plessmann de Camargo chama atenção para esta característica do cientista: “o marcado interesse na cadeia epidemiológica, nos ciclos de vida e transmissão dos parasitas mais do que na sua morfologia e estrutura” (p.15). Lutz produziu trabalhos pioneiros sobre protozoários, mas não foi um protozoologista do fôlego de um Hartmann, um Prowazek ou um Chagas, para mencionar apenas aqueles com quem conviveu no Instituto Oswaldo Cruz. No entanto, em entomologia, Lutz foi fundo na produção de análises e estruturas de classificação que dessem sentido ao vasto trabalho de reconhecimento e descrição de espécies em curso, a cargo de “caçadores de insetos” (para parafrasear Paul de Kruif) mais ou menos profissionalizados, atuantes em todos os quadrantes do globo. No campo da entomologia médica, Adolpho Lutz ombreia com os grandes vultos de seu tempo.
Os numerosos epônimos associados a ele são um indicador disso. Sua obra continua a ser indispensável aos entomologistas que atuam no presente, os quais, com freqüência, nela encontram agudas observações e criativas soluções que vão ao encontro dos problemas colocados pela pesquisa do tempo atual.
Ainda assim, Adolpho Lutz é produto e agente de um tempo histórico determinado. Sua trajetória profissional, da década de 1880 à de 1930, é determinada pelos grandes desafios médicos e sanitários do período e pela dinâmica conflituosa dos países que disputavam o domínio sobre o mundo, havendo, como mostramos, relação direta entre os interesses dos entomologistas e a dos impérios consolidados ou em formação. Grã-Bretanha e Estados Unidos parecem deter a hegemonia nas pesquisas entomológicas. Aí e em outros países, elas são norteadas, de um lado, pelas descobertas concernentes à etiologia e ao modo de transmissão de doenças humanas e animais feitas por médicos ligados a instituições biomédicas ou veterinárias; de outro lado, pelos interesses territoriais de governos e empresas envolvidos na ofensiva colonial ou neocolonial que culminaria na guerra de 1914-1918. Como vimos, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos as pesquisas entomológicas foram executadas principalmente por profissionais e instituições que tinham acumulado considerável experiência na chamada entomologia ‘econômica’, voltada para pragas agrícolas.264
No Brasil, embora houvesse algum trabalho acumulado nesse terreno, sobretudo no Museu Nacional do Rio de Janeiro, a entomologia direcionada para as patologias humanas e animais desenvolveu-se graças ao engajamento de médicos que acumulavam expertise no estudo de bactérias, protozoários e outros parasitos patogênicos. Os primeiros lugares importantes para a entomologia médica brasileira foram os institutos Bacteriológico de São Paulo e Soroterápico de Manguinhos. A transformação deste último em Instituto Oswaldo Cruz, em 1908, marcou o início da especialização de seus quadros, processo que só ganhou densidade nos anos 30, quando profissionais egressos das Faculdades de Medicina passaram a encontrar suficientes colocações para exercer o ensino, a pesquisa e os trabalhos de campo exclusivamente no âmbito da especialidade. Alguns dos médicos adestrados no estudo de insetos transmissores de doenças -Arthur Neiva e Costa Lima, por exemplo – tiveram participação decisiva, nos anos 20 e 30, no fortalecimento da entomologia agrícola e na renovação de tradições de pesquisa nessa área, um tanto enrijecidas nos museus de história natural.
Um dos traços característicos de Manguinhos, à época em que Adolpho Lutz se transferiu para lá, era a reduzida divisão e especialização de trabalho. Com raras exceções, cada ‘cientista’ executava, a um só tempo, a pesquisa, as rotinas de produção de soros e vacinas e as atividades pedagógicas, sem deixar de desempenhar os papéis de clínicos e sanitaristas. Seus auxiliares de laboratório eram igualmente polivalentes: cuidavam da limpeza e até mesmo de operações qualificadas como a classificação de lâminas ao microscópio. As gerações que ingressaram em Manguinhos nas décadas de 1920 ou 1930 encontraram uma instituição já departamentalizada, com graus mais ou menos elevados de especialização nas disciplinas que abrigava.265
Qualificado, com razão, como “naturalista genuíno da velha escola darwiniana” (Comissão do centenário, p.11), Adolpho Lutz viveu sempre contra essa corrente da especialização. Mesmo durante o tempo em que foi fecundo entomologista, não deixou de explorar as outras áreas médicas e zoológicas em que deixara, e deixaria ainda, contribuições notáveis. Em seus últimos anos de vida, a escolha dos anfíbios como objeto principal de pesquisa deveu-se à dificuldade crescente de visão.266
Todos os cientistas que conviveram com ele contam casos pitorescos com a intenção de ressaltar o caráter metódico e rigoroso de Adolpho Lutz tanto nos assuntos profissionais como nas condutas cotidianas, inclusive o cacoete de linguagem, o “precisamente,” que acentuava a singularidade daquele homem germânico em meio à tolerância e permissividade tão características de nosso meio. Tais idiossincrasias, aliadas à proverbial memória e erudição, certamente favoreceram o trabalho minucioso e sistemático com os insetos. A esta altura de sua obra, talvez possamos apontar outro traço característico da personalidade de Lutz: a aversão às controvérsias e aglomerações, o que o leva a abandonar ou contornar toda a área de pesquisa desde o momento em que ela passa a atrair muita gente. É significativo o fato de que não tenha demonstrado interesse algum pelo grupo ao qual pertencia o transmissor da doença de Chagas, a grande questão que mobilizou quase todos os pesquisadores de Manguinhos a partir de 1909. Como diz Hugo de Souza Lopes:
A entomologia aqui foi realizada primeiro pelo Lutz, que tinha montões de trabalhos, mas ele era um compartimento à parte, ninguém o incomodava. Trabalhava muito, não tinha outra atividade que não fosse pesquisa. Havia no Instituto verdadeiros tabus: “Ah, isso vai incomodar o Lutz.” … Então, o Lutz e a entomologia dele eram coisa à parte. É verdade que ele tinha trabalhos com o Costa Lima. Admiravam-se muito. E com o Neiva, também.267
“O Lutz não formava ninguém. Era um solitário” – acrescenta Wladimir Lobato Paraense -, “trabalhava com o Neiva, que era do nível dele … era um sujeito que podia discutir se Chrysops era masculino ou feminino, e o Lutz o levava a sério”.268
Talvez possamos concluir esta apresentação histórica dizendo que Adolpho Lutz foi, antes de tudo, um desbravador, e ainda que não tivesse o talento de Oswaldo Cruz ou Arthur Neiva para formar escolas, legou a eles e às gerações seguintes uma obra que constitui, indiscutivelmente, a pedra angular da entomologia médica brasileira.