Artigo 3

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O símbolo e a psicologia

 

A característica fundamental do acto intelectual racional é a reversibilidade. Quando o acto afectivo é racionalizado, esquematizado pela razão, torna-se reversível, pois podemos pensar com inversão da cronologia.

O pensamento simbólico, em sua eclosão, é de origem genuinamente afectiva, pré-lógico (no dizer do sociologismo), e os símbolos têm sua origem no subconsciente. O símbolo só se torna consciente quando a razão já funciona.

No pensamento simbólico, o símbolo está incorporado no esquema afectivo. Só a razão despoja a pouco e pouco o simbólico, extraindo as notas estranhas ao simbolizado, para construir o esquema abstracto-noético-eidético.

Na fase de predominância racional, os esquemas abstractos racionalizados estão libertos em grande parte da gama simbólica de sua primeira formação.

Os anteconceitos, que estudamos na “Psicogênese”, estão ainda eivados da camada fáctica (da capa hilética para Husserl) referindo-se a singularidades é que se universalizam. Lembremo-nos do arroio-do-Menino, do cavalo-Relâmpago, que servem, depois, não só para nomear todos os arroios que a criança vê, e todos os cavalos, mas para considerá-los como o mesmo arroio e o mesmo cavalo, embora sob figuras um tanto diferentes.

A criança não vai considerar como outro exemplar, mas como o mesmo, que aparece proteicamente. Vivendo a criança, como vive, o protéico, este, não é ainda, para ela, uma negação da imutabilidade, conceito que só posteriormente, em oposição à intuição, irá a razão estructurar.

Por isso a criança admite que é o mesmo, embora na aparência revele diferenças. É que, na primeira fase, há na criança, realmente, este proceder: sua atenção fixa-se mais sobre o semelhante.

O homem primitivo tinha, para sobreviver, de prestar mais atenção às semelhanças e secundariamente às diferenças. Não que intuitivamente não as captasse por igual, mas axiologicamente, atendendo à conveniência da vida (tese pragmatista, concreta e segura aqui), era obrigado a cuidar das semelhanças para guiar-se ante a heterogeneidade dos fatos. Para a criança, a semelhança é a presença do mesmo indivíduo.

O primeiro esquema fáctico procede, então, como generalizador, serve para generalizar fatos diversos mas semelhantes.

Esta é a primeira providência, a primeira jornada, o primeiro lanço do caminho, para alcançar o conceito, cuja estructuração abstracta prosseguirá crescentemente por acção da razão, despojadora das diferenças, para terminar no conceito rígido, lógico-formal, que somente considerará a actualidade das notas imprescindíveis essenciais.

Essas singularidades se universalizam a pouco e pouco até alcançar a obra acabada da razão, o conceito despojado de toda capa hilética, de toda facticidade heterogênea, para reduzir-se a um esquema abstracto de esquemas abstractos estructurados, pois o conceito encerra significações. Estas, por sua vez, acabam por formalmente ser outros tantos conceitos, que são outros tantos esquemas abstractos, que se estructuram em conjuntos esquemáticos abstractos, conceitos mais gerais.

Essa é a acção despojadora, anti-singularizante e anti-heterogeneizante da razão, que examinamos em “Filosofia e Cosmovisão”.

Os esquemas páthicos não têm essa homogeneidade dos esquemas abstractos da razão. Há neles vivências que são fundadas em singularidades, por isso mais simbólicas. Se a assimilação de um facto ao esquema racional, que é abstracto e homogeneizante, dá-se pelas homogeneidades, pela adequação meramente formal do que na singularidade do facto se refere ao esquema abstracto, – pois só se considera o singular como símbolo do esquema abstracto ao qual está seriado, – a assimilação se dá de esquema abstracto para esquema abstracto. Só o homogêneo é assimilado.

A assimilação no esquema páthico, – como este ainda é singular e tem singularidade, apesar da acção despojadora que a razão exerce sobre os nossos afectos, – é simbólica, vivida como realidade.

E eis porque, ao querermos reduzir a sinais o que sentimos encontramos, naturalmente, a deficiência dos signos verbais, já escoimados pela razão da sua heterogeneidade.

O artista, como afectivo que é, tem de lançar mão do símbolo como meio que lhe oferece suficiência capaz de transmissão, pois tem ele uma grande capacidade de referência ao singular, enquanto o esquema abstracto, assinalado pelo termo verbal, tem-no menos. Mas como o artista (na literatura pelo menos) não pode deixar de usar sinais verbais, vê-se obrigado a coordená-los de modo que ultrapassem sua rígida esquematização abstracta e possam receber um conteúdo vivencial, para poder expressar o que deseja. Por isso o estructura em símbolos, força um conteúdo não meramente abstracto aos termos, mas fáctico, singular, “esta vivência... aquela vivência”.

Quer queira, quer não, o artista torna-se um criador de símbolos por necessidade de expressão, se quer expressar alguma coisa.

E, na criação desses símbolos, não entra apenas o consciente, nem é apenas o operatório, intelectualizado que domina completamente (se é um grande artista), pois símbolos secundários e até de mais longínquos planos estão contidos na sua expressão.

Toda a natureza é símbolo. Podemos enquadrar a natureza dentro de esquemas abstractos racionais. Mas teremos, de qualquer forma, que despojar os fatos da sua heterogeneidade e singularidade para que sejam eles símbolos de esquemas abstractos criados pelo homem. Mas a natureza é símbolo sempre, quer dos esquemas operatórios, quer de outros que pertencem à ordem cósmica.

A razão, com seus esquemas, permite que façamos uma esquematização da natureza. Apanha-a por um ângulo, não porém na sua singularidade.

Uma visão dialéctica (concreta portanto), no tocante à simbólica, teria de ver a realidade como símbolo dos esquemas abstractos do homem, mas sabe que, como tal, não se inclui nesse esquema, mas apenas no que está no esquema. O que resta, o que está à parte, é da singularidade, que por sua vez cabe em outros esquemas abstractos, e assim sucessivamente.

Vê-se bem claro que a razão não actua totalmente contra o cósmico quando o esquematiza em esquemas abstractos. Sua acção acósmica está no excesso do despojamento que a leva aos vazios, aos conceitos sem conteúdos, como os de Tempo e Espaço, que estudamos em “Ontologia e Cosmologia”.

A razão é assim uma serva da vida, e não a vida uma serva da razão. Reduzir a vida a esquemas abstractos seria negá-la. A razão é uma auxiliar poderosa do nosso conhecimento, e não a única, como o desejam os racionalistas.

Vê-se, deste modo, como nos ajuda a simbólica a compreender os excessos dos racionalistas, que ameaçaram reduzir o nosso mundo a apenas formas abstractas lógicas, como desejaram certos matemáticos reduzi-lo a formas abstractas matemáticas quantitativas.

E para tanto, ambos tiveram que afastar-se, com risco grave para o conhecimento, da intensidade, para actualizar apenas o aspecto extensista, o que os levou a uma visão predominantemente quantitativa, no afã de encontrar a homogeneidade absoluta, que não se encontraria, absolutamente, na abstracção, mas na maior das realidades, que é a do ser, como já vimos em “Ontologia e Cosmologia” e em “O Homem Perante o Infinito”[59].

Em conclusão: o símbolo, na arte, como na própria filosofia, na religião etc., é o meio de transmitir o intransmissível, por processos operatórios, racionais ou com o intuito de provocar uma pathência mais viva. A singularidade estética ou divina é sempre intransmissível. Só o símbolo pode falar por ela, porque a expressa melhor que os conceitos abstractos.

Eis porque, na arte, como nas religiões, o símbolo é vivo... E porque é vivo, morre. Mas também conhece ressurreições.

Um símbolo, quando vivido estanquemente de seu simbolizado, tende a despojar-se dele, que é seu conteúdo significante, e tende a morrer.

E morre também quando, do significado, conhecemos ou julgamos conhecer atributos que o símbolo já não contém.

Há ressurreições quando reencontramos no símbolo as notas do simbolizado, depois de termos passado por um período de desconhecimento.

Podemos, assim, compreender a ressurreição de símbolos religiosos, que por um longo período perderam sua força simbólica de expressão.

O atribuir-se vida e morte ao símbolo significa apenas uma analogia com o orgânico.

A impossibilidade de expor alguma coisa com mais clareza, que permita melhor acomodação de quem nos ouve, leva-nos ao símbolo, pois, por meio dele, desejamos transmitir o que é relativa ou absolutamente desconhecido a outrem.

A vida de um símbolo depende de sua significabilidade. À proporção que essa significação é clareada, que a visão do simbolizado se torna mais clara, o símbolo começa a desaparecer. Terá uma significação histórica, como vemos em tantos símbolos religiosos e também aqueles que se referiam a fatos que a ciência, posteriormente, tornou-se capaz de clarear.

Do mesmo modo o símbolo, exotericamente considerado, o é para quem está exotericamente colocado, pois, para os iniciados, conhecido o simbolizado, estes não mais precisam daquele.

O símbolo do conhecido torna-se sinal. O símbolo do conhecido contém em si o já contido.

Podemos ver esse aspecto semeiótico, psicologicamente, em certos esquemas, como o de perseguição, o de abandono, que se revestem simbolicamente por uma série de sintomas, cujo significado simbólico o paciente desconhece. Para o psicologista tais símbolos são apenas sintomas, tornam-se apenas elementos do conjunto da semeiótica. Conhecido o esquema, tais símbolos tornam-se apenas sinais.

Assim toda teoria científica, enquanto se forma em torno de hipóteses, é símbolo (é uma caracterização antecipada de uma ordem de coisas ainda essencialmente desconhecida, como nos mostra Jung). Ao fundamentar-se, morre o aspecto simbólico, para surgir o simbolizado.

Mas toda e qualquer hipótese científica, depois de devidamente comprovada, reduzida a leis, ao passar para a categoria das manifestações legais da ciência, ainda é símbolo da ordem universal. Dessa forma, a ciência, como a própria filosofia nunca se afastam totalmente do símbolo, embora um símbolo, de uma plano passe para outro, mas no qual ainda é símbolo de outro simbolizado, até alcançar o Simbolizado Supremo, que a análise dialéctica simbólica, com o auxílio da metafísica, terá de empreender nessa verdadeira marcha mística, nessa penetração no oculto, que já tivemos ocasião de examinar, no capítulo sobre o nosso conhecimento de Deus, do livro “O Homem Perante o Infinito”.

O símbolo social é vivo quando é primitivo, quando a sua omnipresença não suscita a menor dúvida. O símbolo social, como mostra Jung, tem uma significação social para o indivíduo, tão grande como o tem esse símbolo para uma colectividade.

É preciso não confundir os sintomas com os símbolos. Os sinais sintomáticos são apenas mostras, e não símbolos. Um descontentamento popular, na história, mostra-nos muito da desordem econômica, etc., que possa existir. Mas uma catedral gótica é símbolo de uma alma cultural, como o é uma múmia egípcia ou uma ponte romana, ou as autobiografias do século dezoito em diante, ou o aerodinâmico nas formas funcionais de nossas realizações de massa.

O neurótico, por exemplo, tem tendência a fazer essa confusão, ao considerar como sintoma o que é meramente símbolo.

O símbolo revela sempre dois aspectos:

1) racional – acessível à assimilação dos nossos esquemas abstractos intelectuais, que permitem explicá-lo, dizer o que é;

2) irracional – que é de origem páthica, inacessível a tais esquemas, o qual representa vivências que a nossa consciência vigilante não estructurou ainda em esquemas racionais.

Tais aspectos nos levam à necessidade de estudar, quanto à Simbólica, o tema da consciência e da inconsciência, o que faremos logo após o exame do tema da participação, e ao método dialéctico-simbólico, que precisamos usar.