Bogotá – Da Colômbia os jornais falam horrores mas eu vi lá, de novo, na área da cultura, coisas que me comoveram.
Todo mundo sabe que o país está dividido em três partes e poderes: o poder legal, o poder das drogas e o poder da guerrilha. Todo mundo sempre se refere à Colômbia como um país violento, e na semana em que lá estive, jornais e televisões de todo o mundo retransmitiram aquele fato terrível: na Faculdade de Medicina de Barranquilla, os zeladores costumavam matar os catadores de papel e vender seus corpos para estudo. Um dos catadores de papel escapou com vida, chamou a polícia e houve aí um escândalo dos diabos. O depoimento do que escapou coloca no chinelo qualquer filme de horror que as televisões insistem em passar, mas que já não nos comovem mais, porque o horror de nosso dia a dia é bem pior.
Cada país tem suas formas de violência. Mas, já no avião, indo para Bogotá, eu ia anotando uma informação igualmente preciosa: a Colômbia é a segunda maior exportadora de flores do mundo. E mais: tem mais de 2 mil espécies de orquídeas e mais de 3 mil a serem classificadas.
Diante de tanta orquídea, a violência tem de ceder. E tem de ceder também diante do livro e da leitura, orquídeas que perfumam a vida de qualquer um.36
E já que falei de livros e leitura, introduzo logo uma comparação para nos deixar embaraçados. Os colombianos pegaram uma ideia brasileira, que aqui em nosso país nunca saiu do papel37, e a colocaram em prática. Refiro-me a um projeto que pressupunha que editores e fabricantes de papel dariam 1% do valor dos negócios com papel de livro para constituir um Fundo Nacional de Incentivo à Leitura. Com esse dinheiro, que no Brasil poderia variar em torno de US$ 1 milhão ao ano, íamos nos enriquecer de duas maneiras: a cultura se enriqueceria com a divulgação do livro e da leitura, com a consequente melhoria do nível de participação na cidadania, e os editores e papeleiros iam acabar se enriquecendo mais, porque haveria aumento de consumo de livros.
Mas aqui a coisa vai a passos de cágado. Lá, o Fundalectura, dirigido por Silvia Castrillon (que confessa orgulhosamente ter-se inspirado nos projetos brasileiros) vai às mil maravilhas. A primeira-dama do país é a presidente da organização, os papeleiros e os editores colombianos deram o dinheiro prometido e já estão vendo os resultados positivos da grande campanha nacional de incentivo à leitura. O governo botou dinheiro no programa, e soldados do Exército ajudam no empacotamento de livros para seiscentas bibliotecas do país.38
Mas a Colômbia tem mais. Tem uma esplêndida biblioteca, Luis Ángel Arango, dirigida por Lina Espitaleta, toda informatizada, financiada pelo Banco da República, que recebe 13 mil estudantes por dia. E aí há magníficos espaços para exposição e cursos. O Banco da República desempenha um papel importantíssimo na cultura do país. A Colômbia também hospeda e financia grande parte do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe (Cerlalc).39 Mas entre as coisas originais no país está a Casa de Poesia Silva: uma beleza de casa colonial no meio da área histórica de Bogotá, dirigida pela poeta María Mercedes Carranza. Há ali uma livraria, uma fonoteca com poemas gravados em várias línguas, ali ocorrem conferências, depoimentos; enfim, aquela casa é um centro de gravitação da poesia. Ali a poesia do país encontra seu ponto de referência. Quem sabe isso se realiza aqui também um dia?40 Porque de nada adiantará termos algum dia a inflação zero se não tivermos poesia.
Depois de vários dias na Colômbia, sigo para a Venezuela a convite de Virginia Betancourt, que organizou no país o melhor Sistema Nacional de Biblioteca do continente. Há dezessete anos dirigindo a Biblioteca Nacional, Virginia é uma figura carismática. As pessoas preferem ir trabalhar com ela, ganhando metade do que ganhariam em outras empresas, porque há uma grande paixão pelo trabalho.
Durante 24 horas visitei quase uma dezena de bibliotecas, as mais variadas, tanto as inseridas em favelas quanto em grandes parques. É tudo primoroso. E ela tem uma bela frota de bibliobus que percorre os bairros e o país levando livros para as comunidades carentes. Esses ônibus têm equipes de contadores de estórias que trabalham o imaginário através da leitura. No Brasil temos algo parecido esparsamente por aí, mas falta quem financie um programa nacional de bibliobus a ser gerenciada pelo Sistema Nacional de Bibliotecas.41 Além dos pequenos ônibus necessitamos também de bibliobarcos para percorrer a região do Amazonas e a do São Francisco, a do Pantanal etc.42
Quem sabe se Deus na sua infinita misericórdia não se lembra de nós?
Não é questão de dinheiro exatamente. Esses países são pobres se comparados ao nosso. É tudo questão de saber priorizar onde colocar os recursos. Quem aplica em livro, leitura, pesquisa e informação está muito mais perto de superar suas crises.
Além do mais, suspeito que temos um número muito maior de orquídeas.
O Globo, 22/3/1992
36 Em 2009, portanto, dezessete anos depois desta crônica, devido ao êxito do programa social e de leitura dos colombianos, o governo do estado do Rio de Janeiro e autoridades do Ministério da Cultura foram a Bogotá e Medellín para aprender como lidar com a violência.
37 Inúmeras vezes me reuni com a direção da Câmara Brasileira do Livro sobre esse assunto, chegamos a elaborar um documento que foi assinado na presença do presidente Collor quando ele visitou a Biblioteca Nacional, mas a CBL se desinteressou do assunto.
38 Visitei o Fundalectura em Bogotá e vi o programa e a distribuição dos livros para as seiscentas bibliotecas.
39 Em certo momento em que ocupei cargos no conselho e na direção do Cerlalc fiz, em vão, gestões para trazer essa instituição para o Brasil, o que agilizaria a maior integração brasileira com seus vizinhos.
40 Comecei a gestão para uma Casa da Poesia no Brasil, mas diante das querelas miúdas entre certos poetas, desisti.
41 O programa Leia Brasil de Jason do Prado, financiado pela Petrobras, desenvolveu nessa década de 90 um belo trabalho com uma frota de ônibus-bibliotecas percorrendo o país.
42 Projetos para o Amazonas e o São Francisco chegaram a ser iniciados pelo Proler nessa época através de contatos com a Marinha brasileira.