A palavra “contação” não consta (oficialmente) dos dicionários. E a novidade começa por aí. Já “estórias” é uma outra história. Tem gente que acha que tem de ser “história”. Não tem. Guimarães Rosa já o disse. Vide Primeiras estórias: “História, assim imponente, com ‘h’ deve ficar mesmo para a história do Brasil, história geral, fazer história, etc. E aquilo que é mais doméstico, pessoal, subjetivo, o acidental, o causo, o poema, o fantástico, o onírico, tudo isto é estória”.
E o inovador “contação” tem um vantagem: introduz logo a ideia de movimento, ação. E quem assistiu ao Simpósio Internacional de Contadores de Histórias, organizado por Benita Prieto, entre 28 de junho e 2 de julho, no Sesc Copacabana, que reuniu narradores do Brasil, dos Estados Unidos, de Moçambique, da Itália, da Espanha, de Portugal, da França e de Moçambique, entendeu ainda melhor a tal de “contação”.
Das 18 horas de sábado, 28, até as 18 horas de domingo, 29 (enquanto milhares de pessoas viam os gays e afiliados desfilando pela orla de Copacabana), no anfiteatro do Sesc, transcorria uma engraçada e calorosa maratona de contadores de estórias com dezenas de profissionais e muitos grupos de contadores que ultimamente, a exemplo do Morumbetá e Confabulando, proliferaram que nem grupos de rock e rap. Noite e madrugada adentro os contadores se revezavam na arena como Sherazades capazes de preencher milhares de noites com estórias sem-fim.
Estive ali assistindo e participando da mesa redonda “Mar de estórias”, ao lado da portuguesa Ana Maria Costa Lopes, do moçambicano Lourenço do Rosário, do almirante e historiador Max Justo Guedes, e como diria a professora Vera Sousa Lima, citando Gonçalves Dias, “Meninos, eu vi”.
De alguns anos a esta parte a contação de estórias ganhou corpo no Brasil e no mundo. Teve seu momento de expansão quando o antigo Proler (hoje assunto de várias teses universitárias) a partir de 1991 disseminou por todo o país essa prática como forma de implementar o gosto pela leitura e o consumo de livros. E ali no Sesc, grupos vindos seja de Caxias do Sul, de Macaé ou de Goiás testemunhavam a permanência daquele tipo de ação cultural.
Esse simpósio, que não foi o primeiro, e que cada ano mais cresce, além de congregar contadores de estórias de todo o país e de confirmar que o Brasil exerce uma liderança nesse setor, demonstrou que mesmo numa sociedade perpassada por altas tecnologias, a narrativa em sua forma mais primitiva, ligada à oralidade, mantém a mesma força que sempre teve quando ao pé do fogo os xamãs e os velhos contadores tribais narravam fatos e feitos.
Ninguém resiste a uma estória (até mesmo mal contada). Se alguém num banco, junto a nós, numa condução ou numa praça, está narrando algo a outrem, ou se alguém está contando mesmo que seja um fuxico qualquer, somos tentados a ouvir como se fosse o capítulo de mais uma novela. Tudo é narração. Sob formas as mais variadas, tudo é narração. Uma página de jornal é o folhetim de nossas esperanças e desgraças. A locução de uma partida de futebol pode ter virtualidades de uma epopeia. Nelson Rodrigues, quando escrevia sobre futebol, vivia comparando a vida e o jogo com Os irmãos Karamazov de Dostoiévski e a alguns trechos do Rigoletto de Verdi. Até o voo de uma gaivota pode nos narrar algo. O mover das ondas, uma profunda estória. Quem tem ouvidos ouça, quem tem voz, narre.
Por isso, eu dizia naquele encontro, que o cronista, esse espécime ainda mal estudado, por exemplo, é um contador sui generis, pois, enquanto muitos narradores estão tentando descrever ações, embates, peripécias, o cronista, a exemplo do poeta, tira do nada a sua matéria. E falar com o nada e sobre o nada é a suprema audácia. Narrar o nada, eis o sutil desafio. É que para o bom narrador a narração é linguagem pura. E o que seduz sempre é a peripécia da linguagem que desperta na mente do leitor fabulosos seres imaginários.
A enorme, animadíssima e participante audiência daquele Simpósio demonstrou que contador de estórias já virou uma profissão. Roberto Carlos, que outro dia apareceu no Jornal Nacional, ex-menino da Febem, outrora considerado irrecuperável, é um competente profissional nessa área. Maurício Leite, com sua ”mala de leitura”, tanto visita tribos de índios no Brasil contando, entre outras coisas, estórias de fadas e reis, que os índios, surpreendentemente, adoram, quanto percorre pequenas comunidades na África atuando com o apoio do Instituto Camões e do Itamaraty. Já foi matéria até do The New York Times. Atrizes como Maria Pompeu, Bia Bedran, Priscila Camargo e atores como José Mauro Brant, Jiddu Saldanha, Hélio Leite e Celso Sisto são exemplos de que se pode viver de contação de estórias. Não tardará muito para que os teatros, que são um espaço onde se conta estórias de uma maneira mais formalmente dramatizada, possam se abrir para esse tipo de profissional. Cursos já existem, como o de Gregório Filho no Paço Imperial, que regularmente recebe grande número de interessados. Se os contadores espontâneos têm recursos inatos, é possível desenvolver, como nos atores e nos escritores, técnicas que aperfeiçoem a interação com o ouvinte.
A contação de estórias, enfim, demonstra que há espaço para todos os que têm alguma coisa a dizer e sabem como dizê-lo. E numa sociedade em que a tecnologia afastou as pessoas, fazendo-as dialogar com máquinas que frustram e esfriam as relações, ouvir de corpo presente uma voz humana que nos fale de coisas imemorialmente simples e fundamentais é um acontecimento que deve ser celebrado e estimulado.
O Globo, 5/6/2003