COMO DEUS FALA AOS HOMENS

Houve um tempo em que Deus falou em hebraico.

Houve um tempo em que Deus falou em grego.

Depois começou a falar em latim.

E a partir daí falou em muitas línguas, aliás, até mesmo em dialetos.

Atualmente há quem garanta que ele fala em inglês.

Em português, Deus começou a falar em 1719, quando João Ferreira de Almeida traduziu o Novo Testamento.

Agora acabo de receber uma nova versão das palavras de Deus – Bíblia Sagrada – nova tradução na linguagem de hoje, elaborada pela Sociedade Bíblica do Brasil. Foram doze anos de trabalho de uma equipe de especialistas coordenados por Rudi Zimmer, pastor luterano, especialista em hebraico e aramaico, professor de grego, latim, hebraico, teologia e história das religiões.

A NTLH, ou seja, a Nova Tradução na Linguagem de Hoje, segundo o chefe da equipe, procurou simplificar o vocabulário e atualizar certas expressões. Assim, enquanto a clássica tradução de Almeida tinha 8,38 mil palavras diferentes, essa NTLH tem 4,39 mil, aproximando o texto do vocabulário de um brasileiro de cultura média. Desse modo, foram afastadas do texto expressões como “cingindo os vossos lombos”, “recalcitrar contra os aguilhões” etc.

Eu pessoalmente senti aí falta da palavra “estultícia”. Meu pai, citando Provérbios 22, 15, vivia nos advertindo que só a vara de marmelo tira a estultícia do menino. No entanto, na versão nova em vez de “estultícia” aparece “tolices”. Ora, cometer uma “estultícia” era mais relevante, parecia que estava realmente infringindo uma regra e merecendo punição, pois “tolice” qualquer criança faz.

Quando menino e jovem fui um contumaz leitor da Bíblia. Cada um dos cinco irmãos tinha sua Bíblia. A mãe tinha sua Bíblia. O pai abria sua imensa Bíblia e lia imensos salmos na hora das refeições. Ele tinha também uma Bíblia em Esperanto e achava que essa era a língua capaz de resolver a questão da babel linguística e moral da humanidade.

Na modesta igreja metodista de São Mateus, lá em Juiz de Fora, fazia­-se “concurso bíblico”. Crentes, de todas as idades, iam para o palco e, como nesses programas de desafio cultural na televisão, alguém lançava no ar o desafio. Dizia o nome de um livro da Bíblia, o número de um capítulo e de um versículo e tínhamos de recitar seu conteúdo. Por exemplo, se alguém dissesse: “Provérbios, capítulo 18, versículo 16, a gente imediatamente retrucava:

O presente que o homem faz alarga­-lhe o caminho

e leva­-o perante os grandes.

Mas, de acordo com a nova versão, onde se lia aquela frase, está agora uma outra parecida:

Você vai falar com alguém importante?

Leve um presente, e será fácil.

Como se vê, a versão atual ganhou em clareza. Fazer lobby é coisa antiga. Não podia ser mais direto, só faltou dizer de quanto deve ser a comissão.

No entanto, se nesse certame bíblico, alguém me desafiasse dizendo: “Provérbios 23, 1”, a atual versão me faria dizer:

Quando você for jantar com alguém importante,

não se esqueça quem ele é.

Mas prefiro a versão antiga, sobretudo mais precisa no estado em que vivemos:

Quando te assentares a comer com um governador

atenta bem para aquele que está diante de ti.

Curiosamente, neste fim de semana li notícia de que a letra do “Hino Nacional Brasileiro” também já foi mexida atendendo ao desejo de simplificação. À época da ditadura de Vargas chamaram Manuel Bandeira para atualizar a letra original. Reconheça­-se que não dava para mexer muito, porque esse hino sem os enigmáticos “lábaro que ostentas estrelado” e o “verde­-louro dessa flâmula” já não seria o mesmo.

Na atual versão da Bíblia os tradutores alteraram até a forma como o nome de Deus aparece no Antigo Testamento. E onde havia “Deus Eterno” ou “Eterno”, há agora “Senhor Deus”, “Deus, o Senhor”, o que modificou 7 mil passagens.

Na verdade, estava acostumado a uma série de expressões poéticas na Bíblia de minha infância. O salmo 42, então, começava assim:

Como suspira a corça pelas correntes das águas

assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma.

Mas a versão atual diz:

Assim como o corço deseja as águas do ribeirão,

assim também quero estar

na tua presença, ó Deus!.

Confesso que me sentia melhor com uma alma feminina, como uma “corça”. Além do mais, “ribeirão” me remete para um córrego meio sujo, enquanto “correntes das águas” me fazia sentir mais cristalino.

Igualmente me compungia mais quando no livro de II Samuel (capítulo 18, versículo 33) o rei Davi, ao saber da morte de seu filho Absalão, desesperado e vagando em seu palácio dizia:

Meu filho Absalão, meu filho, meu filho Absalão!

Quem me dera que eu morrera por ti, Absalão,

meu filho, meu filho.

No entanto, a nova versão é mais seca e objetiva, sem aquele “quem me dera, eu morrera” convertido em “Eu preferia ter morrido”.

Entendam­-me, não estou criticando, que para isso não tenho competência, mas tão somente lembrando o eco que a linguagem antiga largou no meu espírito, possivelmente insuflando­-me no caminho da poesia.

Traduzir é tarefa para santos ou penitentes. Aíla de Oliveira Gomes, por exemplo, acaba de traduzir Rei Lear de um dos santos da literatura, Shakespeare. E o fez com competência eclesiástica. Já outros, e há alguns casos crônicos em nossa literatura, apresentam­-se como “transcriadores”. Ou seja, não traduzem. Como brilhantes parasitas, fazem sua obra dentro da obra alheia.

Correndo todos os riscos de ser mal compreendido, tenho de revelar que Deus falava mais bonito na minha infância. Expressava­-se por enigmas, parábolas e metáforas, que não entendendo eu, achava­-as belas e sedutoras. Aliás, as religiões se fundaram a partir do mistério da linguagem. As religiões e as artes. A poesia está nas dobras, nas elipses.

Mas como os homens estão ficando cada vez mais estúpidos, e com o ouvido cada vez mais poluído, Deus tem sido obrigado a ser cada vez mais direto.

Mas quanto a mim, Senhor, pode continuar a falar por enigmas.

Que só um enigma pode outro enigma esclarecer.

O Globo, 20/12/2000