Essa esfuziante e necessária Bienal do Livro (2005), lá no Rio Centro, é ao mesmo tempo uma festa da inteligência, mas, claro, uma festa do comércio. O livro, aliás, desde a descoberta da imprensa deixou de ser um objeto sagrado, peça única, para democraticamente ser (também) um bem público. E isso aconteceu logo-logo, mesmo quando Gutenberg estava vivo, pois de 1456 quando surgiu a nova forma de impressão com os tipos móveis, até 1500, cerca de 35 mil títulos foram impressos. Já na última Bienal, no Rio, foram vendidos 1,6 milhão de livros, aproximadamente 400 mil unidades a mais que na edição anterior. Houve também um aumento de 13% nas vendas com a frequência de 560 mil visitantes, dos quais 200 mil escolares. Esperemos as estatísticas de 2005.
E estava eu aqui remoendo algumas coisas que andei lendo, outras que andei pensando sobre a questão do livro hoje. Por exemplo. As pessoas entram em livrarias e às vezes não se dão conta de que as livrarias passaram por uma grande transformação. O comércio do livro hoje se converteu em algo muito complexo. Se antes já não era coisa para amador, havia, no entanto, um certo romantismo, como ao tempo de José Olympio e Ênio Silveira. Agora, até mesmo os profissionais que se cuidem. Hoje as grandes redes de livraria exercem forte influência no mercado: a Livraria Leitura tem 28 lojas, a Saraiva, 30, a Siciliano, 57 e a Livraria Curitiba outras 14 lojas.
Por outro lado, as livrarias tendem a praticar cada vez mais as técnicas de venda usadas pelos supermercados, nos quais especialistas estudam milimetricamente a altura em que deve estar o produto, em que prateleira, se perto ou longe do caixa etc. Nos supermercados há estrategistas para arrumar os produtos e trocá-los de lugar para seduzir o comprador. O cliente vai passando, pensando que as coisas são expostas ao acaso, mas está sendo guiado por sofisticadas práticas de comunicação e venda. Lembro-me de um estudo que dizia que a cor amarela nas embalagens, por exemplo, chamava mais a atenção que outras. E está provado que produtos à altura das mãos e dos olhos vendem mais. É baseado nisso que especialistas constataram que no pequeno varejo, incluindo as livrarias, a pessoa pode comprar 30% a mais do planejado, se no ponto de venda houver umas artimanhas sedutoras? E que nos hipermercados pessoas podem comprar até 80% a mais do programado se os apelos foram eficientes?
Pois há muito que as livrarias descobriram que não apenas time is money, mas também que o espaço é dinheiro. Os 2 ou 10 centímetros na estante, ocupados por um livro que não vende, são perda para o proprietário. E hoje os livros expostos na vitrina ou em certas mesas mais visíveis não obedecem apenas a uma sugestão do dono da livraria, mas a um acordo comercial feito com o editor.
O autor tende a achar que se seu livro for bem escrito e atender a um determinado objetivo proposto vai andar sozinho. É mais complicado. Suponhamos, então, que seu livro conseguiu chegar à livraria, o que já é um sucesso. É como o salmão que já passou pela mais alta cachoeira para a desova. É bom, mas não é tudo. E existe, há 66 anos, uma entidade chamada Popai (Point of Purchase Advertising Internacional), que estuda as estratégias de expor o livro no ponto de venda. No Brasil tal atividade vem de 1998.
A Câmara Brasileira do Livro na Panorama editorial de março deste ano traz interessantes matérias sobre a “força do best-seller” e sobre as estratégias de venda. No contexto brasileiro, segundo Sérgio Machado, da Record, um livro que venda 20 mil exemplares com certa rapidez é um best-seller. Marcos Pereira, da Sextante, especifica que 100 mil é um bom patamar para um best-seller de ficção, mas a não ficção, com 30 mil, é também sucesso. Já os de autoajuda valem mesmo a partir de 200 mil exemplares. Existe uma categoria outra – a do long seller –, o que vende permanentemente. No caso, 200 mil em dez anos faz um clássico, segundo os editores.
No entroncamento de números e estatísticas, um tema que mereceria mais análise é o fosso entre venda e leitura de livros. Livro vendido não significa livro lido. E tanto o governo quanto os editores não deveriam ficar inteiramente satisfeitos apenas diante das estatísticas de venda ou de números de títulos publicados. Digo isso porque fiquei estarrecido quando li que uma sondagem feita nos Estados Unidos revelou que 92% dos livros não foram lidos até o fim. Como se vê, a dificuldade não é só com livro de Joyce ou Guimarães Rosa. As pessoas compram porque fulano falou ou porque viram na lista ou assistiram a uma entrevista do autor. Quem sabe, até a capa pareceu interessante? Mas ao começarem a ler, pronto, empacam. E o livro fica perambulando pelos móveis da casa como um objeto não identificado. Daí que seria revelador saber que livros estão sendo lidos inteiramente até o fim e por quem.
Esse tema leva a um outro, igualmente instigante. Um dos tópicos levantados por vários editores é a questão da “fidelização”. Por exemplo, os que viraram “fiéis” leitores de Harry Potter e Senhor dos anéis. Diz-se que leitores do primeiro migraram depois para o segundo, e que com isso adubou-se um público leitor sobretudo na faixa jovem. Seria uma pesquisa interessante saber para quais livros migraram esses leitores depois daquelas leituras. Migraram ou minguaram?
Segundo dados do Índice Nacional de Analfabetismo Funcional (Inaf) elaborado pelo governo, se a estatística dos analfabetos propriamente ditos parece ter caído para 9%, a estatística dos analfabetos funcionais chega a 60%. E acresce um dado inquietante: sem falar em cerca de 2 mil cidades que não têm bibliotecas públicas, 89% dos municípios não têm livraria alguma. Isso é alarmante. Significa que estamos explorando só 10% de nossa capacidade de produção de livros e leitura; significa que os 400 milhões de livros editados e os 50 mil títulos surgidos a cada ano poderiam ser multiplicados gerando riqueza, criando empregos e transformando nossa sociedade numa sociedade leitora.
O Globo, 14/5/2005