Uma das primeiras pessoas que encontrei naquele casarão colonial foi Ivo Pitanguy. Em vez de um “Como vai”, disse-lhe declamativamente: “Ivo Torres Heredia,/ hijo y nieto de Camborios,/ va a Sevilla ver los toros”.
E mal termino esses versos de Lorca, adaptados, ele já retoma o poema, como se fosse um desafio: “Moreno de verde luna,/ anda despacio e garboso”. Me entusiasmo com o repto aceito, e continuo: “A la mitad del camino/ cortó limones redondos/ y los fué tirando al agua/hasta que la puso de oro”.
Há algum tempo num encontro de escritores na terra de Lorca – Granada (Espanha) – me dei conta de que estávamos todos nos comunicando através de versos. Um dizia Neruda: “Sucede que me canso de ser hombre”. Outro acrescentava: “Puedo escribir los versos más tristes esta noche”. Se um citava Antonio Machado: “Caminante, no hay camino el camino se hace al caminar”, outro ponderava: “Hoy es siempre todavía”.
Somos a última geração letrada. Uma geração que se comunica através de senhas literárias, como está em O encontro marcado de Fernando Sabino. Para nós esses textos eram moedas, modo de intercambiar sentimentos e perplexidades. Tê-los na memória era uma forma de ter companhia e contato com uma seiva antiga chamada cultura. As novas gerações hoje são diferentes. Como os que ostentam camisas cujos dizeres ignoram, muitos têm na memória apenas essas canções banais fruto de marketing.
No Instituto Granbery – lá em Juiz de Fora, onde Itamar (ex-presidente) e Gabeira (ex-terrorista) também estudaram –, havia uma meia dúzia de grêmios literários, concurso de oratória e declamação. Naquele tempo, em que pedagogicamente a memória era relevante, havia o temido exame oral. Ah! as crestomatias arcaicas! “A última corrida de touros em Salvaterra”, “O estouro da boiada” e os poemas tipo “O pequenino morto” e “Navio negreiro” a arrancar lágrimas que nem telenovelas hoje.
Outro dia, por causa de uma crônica, um vizinho foi caminhando comigo em direção à feira dizendo Camões e Raimundo Correia. Era um cidadão médio, absolutamente normal. Minha mãe recitava Casimiro de Abreu e Bilac. Meu pai, meus tios, embora pobres, tinham memória literária.
Paulinho Lima (da Editora Luz da Cidade) que já produziu dezenas de CDs de literatura, pediu-me para organizar um com esses poemas antigos que a gente sabia de cor. Où sont les neiges d’antan?, nos arguiria Villon? Como quem colhe flores ou distribui moedas, dizia-se “Le lac” de Lamartine, “La mort du loup” de Vigny ou “Oh Captain! My Captain”, de Whitman.
Creio que fomos a última geração letrada. O iletrismo e a iliteratura só aumentam. Ah, se os que não leem soubessem que quem lê vive duas vezes: a vida real e uma outra que parece imaginária, mas que é indelevelmente real.
Estado de Minas/Correio Braziliense, 26/11/2002