Os pássaros em meu telhado
Voam para longe.
Poderia eu segui-los...?
Carpi havia me encontrado e me levado ao balneário no início da tarde. Ela tinha supervisionado criticamente enquanto as empregadas colocavam água quente em cima de mim, ensaboavam-me da cabeça aos pés e enxaguavam uma e outra vez até que ela estivesse satisfeita. Por fim, ela retirou seu próprio quimono e gesticulou para mim para subir na banheira com ela, mesmo relutantemente, permitindo-me ajudá-la a descer os degraus escorregadios.
Nós duas estávamos de pé com a água quente na altura do queixo. Em poucos segundos, minha pele ficou como uma lagosta vermelha devido ao calor implacável. Carpi suspirou com exuberância, espreguiçou-se e virou-se para me encarar.
– Há mais alguma coisa que queira saber?
Eu balancei a cabeça. Por causa de minha ignorância, não tinha ideia do que perguntar. O que havia para saber, afinal? A Tia já havia me explicado o que estava para acontecer. Quando meu danna chegasse, ele seria levado para a casa de banhos onde as empregadas lhe dariam banho cuidadosamente. Uma vez que ele estivesse pronto, iria para a Casa Oculta e seria conduzido pela Tia antes da festa. Carpi, Kiku e Masaki entrariam na sala comigo. Naruko, ainda sendo uma maiko, seguiria mais tarde sozinha.
Todas nós curvaríamos ao meu danna e nos sentaríamos ao seu comando. Comida seria trazida quando ele pedisse. Masaki provavelmente seria escolhida para tocar o shamisen. Kiku e Carpi flertariam educadamente com meu danna. E também comeríamos e beberíamos, ao seu sinal.
Até esse momento, nada seria esperado de mim exceto sentar e rir de qualquer gracejo que ele pudesse fazer. Eu podia olhar para ele com reverente adoração, é claro, e se ele quisesse que eu dançasse ou tocasse o shamisen ou cantasse, poderia fazê-lo, mas somente se ele pedisse. Também existia o momento quando a Tia achasse que era a hora certa ou se porventura meu danna ficasse impaciente por algum motivo e deixasse claro que gostaria que ficássemos a sós, a Tia ficaria de pé e, juntamente com as outras garotas, se despediriam. As empregadas limpariam os pratos e os fogareiros a carvão e trariam a roupa de cama para transformar a sala de banquete em um quarto.
Então meu mizuage começaria.
Embora, pelo menos em princípio, ficássemos sozinhas, eu sabia que a Tia estaria do lado de fora do quarto, em algum lugar muito próximo. Ela certamente seria capaz de ouvir tudo. Conhecendo-a, diria que se certificaria de que também pudesse ver tudo. Eu só podia rezar para que ela estivesse sozinha e não convidasse nenhum patrono especial para assistir ao meu defloramento. Eu nunca pude saber se ela tinha, é claro, mas o pensamento me fez sentir mal.
Satisfeita por estarmos limpos, Carpi saiu da banheira, deixando-me prosseguir. As empregadas secaram-nos com cuidado, e então Carpi me empurrou para o quarto para cuidar da minha maquiagem.
Eu estava acostumada com a maquiagem espessa e branca exigida de uma maiko, mas aquele dia ficaria mais espessa do que o normal. Contive uma risada histérica enquanto me perguntava se meu danna me reconheceria por baixo de todo o “revestimento”.
Carpi me fez sentar no colchonete e franziu os lábios enquanto olhava para o sortimento de frascos e garrafas colocados no tatame.
– Permaneça sentada! – ela ordenou. Eu balancei a cabeça, sem pensar, e recebi um rápido tapa do seu pé esquerdo como recompensa por ousar me mover.
Eu odiava quando Carpi me tocava em qualquer lugar, especialmente no meu rosto. Fechei os olhos e tentei fingir que era Kiku, ou a Tia, que estava enxugando minha pele. Não funcionou. Ainda me sentia um pouco doente. Mas eu continuei, conforme as instruções.
Carpi acenou com a cabeça para o frasco de creme de camélia e a empregada pegou-o rapidamente, dando um tapinha no frasco, esfregando-o suavemente em meu rosto e pescoço. Nem ao menos uma lasquinha de creme de rouxinol incrivelmente caro para mim! As pessoas mais abastadas diziam que as poções feitas de esterco de rouxinol clareavam e iluminavam a pele como nada mais faria. Estava grata por não ser rica o suficiente para poder usar em mim. O pensamento de esfregar o unguento feito de excrementos de pássaros na minha pele não fez nada bem para o meu estômago qua já estava enjoado.
Satisfeita por minha pele estar pronta, Carpi grunhiu e a empregada recuou, mas ficou por perto, pronta para os comandos de Carpi.
Carpi se inclinou para a frente, uma pequena frasco apertada entre o dedo indicador e o polegar. Com os outros dedos, ela ergueu minhas pálpebras as deixando bem separadas. O frasco foi levado lentamente em direção ao meu olho e uma única gota do líquido espesso pingou. Era gelada e ardia. A ação foi repetida em meu outro olho. Dentro de um minuto, tudo a qualquer distância ficou desfocado. Eu pisquei.
– É uma essência feita de uma flor – disse Carpi rapidamente. – Não se preocupe, vai sumir de manhã. Enquanto isso, faz suas pupilas parecerem enormes e seus olhos parecerem ainda mais verdes, se é que isso for possível.
Ela sentou-se sobre as ancas e assentiu em evidente satisfação.
A base rosa veio em seguida. Carpi colocou isso em si mesma e fechei meus olhos quando senti seu toque, tentando não me contorcer. Subsequentemente, um acabamento branco, passando rapidamente antes que secasse. Por um momento insano, pensei em dizer a Carpi que eu mesmo faria isso, mas minha língua se recusou a proferir tais palavras e, simplesmente, sentei-me em silêncio, sofrendo o toque dela.
Posteriormente, foi a vez do carmim, destacando minhas bochechas. Apesar do fato de meus olhos estarem bem fechados, Carpi indicou para mantê-los bem fechados enquanto ela soprava pó branco nas sobrancelhas e nas pálpebras. Minhas próprias sobrancelhas estavam completamente escondidas pelo pó e eu podia sentir a respiração de Carpi no meu rosto enquanto ela se inclinava para frente para desenhar minhas novas sobrancelhas no lugar. Tinta vermelha primeiro, depois preta por cima, com apenas um pequeno resquício de vermelho na parte externa.
– Abra! – disse Carpi; e apressadamente abri meus olhos, tentando não piscar na repentina luz que surgira. Com o menor dos pincéis, ela delineou meus olhos com vermelho, que foi, assim como minhas sobrancelhas, então coberto de preto.
Tive que fazer beicinho. Em um segundo ou dois, meus lábios estavam vermelhos brilhantes. Carpi sentou-se para considerar seu trabalho e assentiu:
– Você vai conseguir! Você ainda pode dizer que é uma Bárbara, mas, novamente, suponho que é por isso que seu danna está pagando. Coloque sua cabeça para trás.
Fiz o que me foi dito e Carpi pegou o pincel grande de novo para passar a pasta branca sobre minha garganta e meu peito, descendo até a encontrar minha roupa de baixo. Virei-me automaticamente, rezando para que eu estivesse fazendo o certo.
Finalmente, ela gesticulou para que me virasse para que ela me pintasse dos ombros até a nuca de meu pescoço com uma linha fina, deixando apenas uma tira da minha própria carne aparecendo na minha espinha. Os homens japoneses acham que a nuca é especialmente erótica, muitas vezes mais do que os seios de uma mulher, então essa parte da pintura tinha que estar perfeita.
Por fim satisfeita, Carpi acenou para a empregada para me trazer um espelho. Eu olhei para suas profundezas, maravilhada. Realmente era eu quem estava lá? Essa pintura, boneca anônima, foi quem olhou para mim do espelho cuja imagem real era meu próprio rosto? Fascinada, estendi a mão para tocar minhas bochechas e recebi um assobio agudo de Carpi.
– Não se atreva! Você realmente acha que eu passei por todos esses percalços para você estragar tudo?
Eu murmurei minhas desculpas.
– Vamos. Venha para te vestirem.
Eu fiquei de pé, nua e ainda rosada pelo calor da banheira, enquanto Carpi gritava para as empregadas domésticas me vestirem adequadamente.
Primeiro, as meias tabi. Eu me senti incomodada, e demorou uma década para a empregada colocar meu dedão do pé de forma correta pé na parte dividida da meia. Lembro-me de rir na primeira vez em que vi uma meia ocidental e achei estranho que não houvesse lugar separado para o dedão do pé. Habitualmente me perguntava se os bárbaros não tinham o dedão do pé separado... Mas naquele dia, eu teria dado muito por um par de meias ocidentais; teriam sido muito mais fáceis de colocar. Carpi franziu a testa pela minha falta de jeito e, de repente, eu estava com as meias inseridas corretamente.
A empregada me ajudou a vestir a camiseta e a susoyoke – saia usada como peça íntima feminina – com estampas vermelhas e amarrou-as, como nos nós das gravatas, com o Koshihimo – um cinto de seda fino – na cintura para mantê-las no lugar. Depois, foi colocada uma larga faixa sob o koshihimo. Então, meu lindo e sedoso quimono.
Esta foi a primeira vez que o vi, e era muito bonito. A Tia buscou a simplicidade; era de seda verde com um padrão sutil de bordado intrincado em um tom ligeiramente mais claro. Se a escolha da cor era para combinar com meus olhos ou se era uma brincadeira com meu nome, eu não fazia ideia. Tudo o que eu sabia era que aquele quimono era de longe a coisa mais linda que eu já possuíra. Naquele momento, eu nem me importava que passaria o resto da minha vida profissional pagando por isso, bem como todos os quimonos que viriam posteriormente. Mas aquele era meu!
A empregada levou a mão, juntamente com o quimono, ao meu redor, passando o lado direito sob o esquerda e fechando-o com outro nó estilo gravata na cintura. Logo, uma faixa abaixo, e então um obi largo que cruzou pela minha cintura duas vezes com um nó amarrado na parte de trás; as extremidades do obi voltou-se para a frente, onde eles foram amarrados com tanta força que eu tive que lutar para conseguir respirar.
E foi isso. Eu estava vestida. Estava pronta.
Eu olhei para Carpi, desesperada por sua aprovação. Ela se levantou e espreguiçou-se, andando ao meu redor. Empurrou e puxou o obi e deu outro puxão no meu quimono na parte do pescoço. Eu fiquei parada, tentando não demonstrar minha insatisfação. Finalmente, para meu alívio, ela afastou um pouco.
– Seus seios ainda continuam grandes demais, até no quimono – indicou Carpi.
Eu olhei para baixo na direção deles e ela estava certa; eles ainda estavam grandes.
– E não podemos fazer nada no que diz respeito a você ser tão alta. Não, não cairão. Apenas faz seus seios parecerem ainda maiores. Seu nariz é muito grande também. E quanto aos seus olhos... Deixa pra lá. Seu danna sabe quem ele escolheu – alfinetou ainda mais.
Caso fossem de qualquer outra pessoa, as palavras teriam sido dolorosamente rudes, mas de Carpi, elas eram simplesmente questões corriqueiras. Ninguém, é claro, jamais ousaria fazer o mesmo tipo de comentário para ela. Como se tivesse lido minha mente, ela acrescentou:
– Nós somos todas iguais aqui na Casa Oculta. Todas nós estamos erradas.
Vindo de Carpi, era quase um conforto.
As iguarias estavam espalhadas nos tatames. A festa deve ter custado ao meu danna o olho da cara, sem mencionar a taxa para mim. A esteira estava cheia e transbordando de pratos, lulas grelhadas, algas, frutas, macarrão de todos os tipos, carne e, dominando tudo, uma enorme travessa de peixe fugu, cortado tão fininho que, quando você segurava um pedaço, era possível enxergar do outro lado da fatia.
Teruki-san gesticulou de forma generosa para mim e peguei uma fatia do peixe, inclinando a cabeça em gratidão por sua generosidade, embora eu realmente nunca sentia nada de especial nessas comidas. Poderia, claro, matar alguém se não tivesse sido preparado muito bem, mas a única coisa que me fez foi deixar meus lábios levemente entorpecidos.
Comi o mais devagar que pude, como se, ao fazê-lo, pudesse adiar o momento em que a comida terminaria e Teruki-san decidiu que tinha chegado a hora de receber o prato principal pelo qual ele investiu seu dinheiro.
Os biombos haviam sido empurradas para trás para fazer um grande quarto de doze tatames, de modo que houvesse muito espaço para todos nós. A Tia sentou ao lado de meu danna e estava inclinada em direção a ele, rindo ricamente de algum gracejo que ele havia feito.
Eu estava flanqueada de cada lado por Carpi e Kiku, ambas vestidas com seus melhores quimonos e obi. Quando Teruki-san olhou para Kiku, ela sacudiu o leque e retrocedeu um pouco atrás deste, rindo educadamente. Mesmo que os olhos de Kiku estivessem quase escondidos em dobras de gordura, eles eram incrivelmente lindos, perfeitamente amendoados e cintilando com uma luz que parecia vir de alguma fonte que apenas Kiku tinha ciência. Teruki-san sorriu para ela e balançou o dedo maliciosamente.
Fiquei imaginando quanto de saquê ele bebeu antes de chegar a ir até nós. Ele já estava indo para sua segunda garrafa, e mesmo quando pensei nisso, ele olhou para o copo e o estendeu. Masaki pegou o frasco e o levou ao forno de carvão para reabastecê-lo. Uma empregada colocou imediatamente outro frasco em outro forno para ter certeza de que estaria pronto quando ele precisasse. Com muito brio, Teruki-san fez um gesto para Masaki para encher uma xícara para mim.
Tomando seu gesto como um sinal, Tia cruzou seus dedos apontando em minha direção e, imediatamente, direcionando-me para frente, suavemente, com os dedos. Minhas pernas tremiam tanto que eu sabia que ficar de pé estaria fora de cogitação, e então me arrastei de joelhos, com a cabeça abaixada. Teruki-san pareceu gostar disso, uma vez que aplaudiu e assentiu.
Quando me aproximei, Masaki virou-se para Teruki-san e curvou-se, apresentando a taça que ela havia feito para mim. Com o que imaginei ser “honra de bêbado”, ele agarrou a xícara e tomou três goles deliberados e barulhentos. A Tia sorriu largamente. Ela se inclinou para frente e pegou o copo dele, entregando-o para mim. Na minha vez, tomei três goles cautelosamente, que esvaziaram a taça.
Sem saber o que fazer a seguir, simplesmente permaneci agachada, segurando o copo com os dedos. Pareceu-me que o silêncio pairou no ar e que todos estavam me encarando.
Não vou falar do que se seguiu de novo.
Está feito, e o que está feito nunca poderá ser desfeito, assim como o tempo não pode ser revertido. Eu nunca serei uma maiko novamente bem como pura. Mas pelo menos eu nunca terei que sofrer outro mizuage.