As flores amam o sol quando
Elevam suas cabeças
Para a luz?
Suzume correu atrás de mim. Mesmo impedida pelo meu quimono, meu passo era muito mais longo do que o dela, então ela teve problemas para me acompanhar. Eu a ouvi ofegante, então pedi desculpas e diminuí meu ritmo.
Apenas algumas horas antes, tudo tinha sido estranho para mim, agora tudo estava claro. Não era exatamente um lugar comum, mas perdera seu fascínio. Tinha visto o kabuki, tinha passado a noite com o homem que já considerava meu amante. Senti que nada na minha vida seria o mesmo novamente.
Meu coração naufragou com o conhecimento de que estava indo para a prisão. No espaço de poucas horas, a Casa Oculta deixou de ser um lugar de segurança, de proteção e, de repente, tornou-se uma prisão. Pensei nas outras garotas e percebi, com uma sensação de choque, que elas também não precisavam da vigorosa proteção da Tia. Todas nós, com exceção do pobre Carpi, poderíamos sobreviver no Mundo Flutuante. Afinal, eu tinha andado pelas ruas em segurança, correto? Ninguém se escondera das minhas deformidades; ninguém atirou pedras ou cuspiu em mim. De fato, o samurai, sem dúvida um homem de riqueza e importância, marcou um encontro comigo. Ou pelo menos, ele achava que sim. Acima de tudo, Danjuro havia me honrado. Danjuro me chamara de Midori No Me-chan. Levantei meus olhos das pedras e olhei para as estrelas. Pareceu-me que as vi pela primeira vez. E brilharam para mim, somente para mim.
Ouvi um barulho vindo de algum lugar por perto. Acima do som de pessoas falando no topo de suas vozes, animais zurrando, piando e chilreando, e o inevitável bêbado cantando, havia algo mais. Podia ouvir o que soou como mesas sendo derrubadas, gritos, e ainda mais alto, risos. Suzume puxou minha manga, tentando me levar para a parede. Estava falando alguma coisa e seu rosto estava alarmado, mas não conseguia distinguir suas palavras pelo barulho. Balancei a cabeça, perdida no meu mundo de maravilhas.
Uma gangue de homens apareceu na esquina, vindo diretamente em nossa direção. A multidão se dividiu na frente deles, mas ainda assim, empurraram para o lado um ancião e uma mulher jovem apenas por diversão. Todos usavam espadas e estavam rindo. Aos meus olhos, não eram nada mais do que baderneiros. A Tia nunca deixaria tipos como esses entrarem na Casa Oculta, pensei.
Suzume deu um último e desesperado puxão na minha manga. Entendendo sua urgência, recuei contra a parede. Mas era tarde demais. O homem que liderava a gangue já estava quase na minha frente. Olhei para ele com interesse. E porque não? Tudo no Mundo Flutuante era fascinante para mim. Não sabia de nada, e ninguém, ninguém, além de Danjuro, me conhecia. Era uma inocente inverossímil nesse mundo desconcertante e fascinante e pensava estar invisível.
Logo aprendi que não estava.
– Oh, agora então, meninos. O que temos aqui? É um diabo estrangeiro, o que acham?
O líder parou na nossa frente olhando para mim. Ele era muito feio. Era alto, muito mais alto do que eu e de bem robusto. Mesmo através das linhas de seu manto caro, eu podia ver que era muito musculoso, ao contrário do meu adorável e esguio Danjuro e seu rosto. Olhei para ele e ainda tinha a coragem de me chamar de diabo estrangeiro? Embora seu cabelo fosse preto e liso, e sua pele da cor de um chá muito suave, suas feições eram marcadas. Seu nariz se projetava ferozmente e seus lábios eram muito cheios. Seus ossos da face eram ainda mais altos que os meus e seus olhos eram cinzentos, não pretos.
Suzume gemeu baixinho. Olhei para ela e fiquei surpresa ao ver que seu rosto estava da cor de um tofu. Uma sensação de desconforto começou a subir no meu corpo. Eu estava tão empolgada com a minha falta de reação nesse dia incrível que me tornara quase confiante. Todavia, Suzume sabia muito mais sobre esse mundo do que eu e, se estivesse preocupada, provavelmente eu também deveria estar. Estava tão empolgada com o tempo que passei no kabuki com Danjuro que senti que naquele momento era invencível. Certamente dentre todos os dias, será que algum deus me desejaria mal justo hoje? Endireitei meus ombros e olhei de volta para o líder da gangue.
– E quem é você para chamar outras pessoas de demônios estrangeiros? – retruquei – Olhou no espelho recentemente, olhou?
Suzume colocou a mão em sua boca e chorou de medo. De repente, consciente de que toda a rua ao nosso redor tinha ficado quieta, comecei a tremer. Talvez eu não fosse tão invencível quanto pensava. Mas já tinha ido longe demais para recuar. Levantei meu queixo e olhei o líder da gangue no rosto.
O silêncio na rua ao nosso redor era tão intenso que poderia ter chovido pedra que ninguém sairia para ver. Os olhos do homem se arregalaram e comecei a sussurrar uma prece silenciosa por mim e por Suzume, que não fizera nada. Vi a mão dele cair no cabo de sua espada e notei em um momento estranho de total clareza que o dedo mindinho naquela mão estava cortado ao meio. Típico, pensei irrelevantemente. Camponeses e nobres deveriam deixar suas armas no portão antes de entrarem no Mundo Flutuante. Mas primeiro os samurais e agora esse rufião estavam totalmente armados. Os deuses tinham obviamente decidido que eu tinha usado minha total quota de sorte por hoje. Ah, bem. Se fosse morrer, pelo menos morreria tendo saciado uma grande felicidade.
– De joelhos, gueixa – chiou o homem.
Pensei sobre isso. Realmente pensei. Estava olhando a morte literalmente no rosto, e meus pensamentos estavam ordenados, claros e inflexíveis. Decidi que se esta noite fosse a vontade dos deuses que eu morresse, então não morreria de joelhos. Eu, que nunca tive escolha em minha vida, teria uma agora na forma de morrer.
– Não – disse simplesmente. – Se você vai me matar, então siga em frente. Mas não vou me ajoelhar nessa rua imunda e estragar meu quimono.
– Vai ficar sujo quando tiver seu sangue sobre ele – rosnou o homem. Lembrei-me do personagem perverso na peça de Danjuro, aquele que fazia cara feia o tempo todo e se pavoneava pelo palco como se fosse o dono. A semelhança era tamanha que senti risos se acumulando em minha garganta. Aquele homem não tinha sido nada além de um valentão; seu personagem era muito exagerado para que o público soubesse que ele era o vilão. Eles também sabiam que ele não iria triunfar, mas acabaria por receber seu castigo ao ser desmascarado pelo tolo que realmente era.
– Eu já vou estar morta, então não vou me importar muito – falei, tentando desesperadamente não rir, embora, a essa altura, houvesse realmente uma ponta de histeria em minhas palavras. Esperava, além da esperança, que Suzume fosse poupada e que relatasse sobre minha tragédia para Danjuro. Talvez, se eu tivesse muita sorte e ele ficasse tão comovido que começasse uma peça sobre o meu terrível fim.
Observei o líder da gangue começar a sacar sua espada e depois hesitei. Não olharia para longe, decidi. Veria o golpe chegando. Levantei meu queixo.
Sem aviso, ele colocou a espada de volta na bainha e soltou com um grande rugido de riso. Todos os que nos cercavam juntaram-se de modo bajulador, embora eu tivesse quase certeza de que algumas pessoas da rua estavam decepcionadas por terem sido enganadas por esse “espetáculo”.
Continuei a olhá-lo. Ele se inclinou para frente, de modo que a ponta de seu nariz tocou o meu. Seus olhos, tão próximos, eram muito estranhos. As íris eram cinza-claros, mas as pupilas eram enormes e o preto mais profundo que já vira. Seus cílios eram tão longos e grossos que pareciam quase femininos.
Por um longo momento, os olhos cinzentos encararam os olhos verdes.
– Bem, agora... Como de um demônio estrangeiro para outro, como devo te chamar, gueixa? – ele estava rindo de mim, apesar de não ter nenhum traço disso em seu rosto, estava rindo de mim.
– Meu nome é Midori No Me – disse com o maior decoro que pude. Abruptamente, minha bexiga traiçoeira estava ameaçando me trair e eu precisava desesperadamente urinar.
– Combina com você – ele sorriu e recou. – Meu próprio nome, infelizmente, não combina tanto comigo. Eu sou Yoshida Akira. Se eu quisesse prestar meus humildes respeitos a Midori No Me-san, onde a encontraria?
Puxei o ar pelo nariz. Acabou que eu não morreria, afinal de contas! Verdadeiramente, um dia milagroso.
– Se Akira-san quiser me encontrar, então só precisa ir à Casa de Chá Verde na Rua Willow. É claro que primeiro precisaria marcar uma entrevista, mas tenho certeza de que, para um homem na posição de Akira-san, isso não seria um problema.
Seus lábios se contorciam como se ele estivesse tentando controlar o riso ou a raiva.
Observei com interesse, em vez de medo. Hoje, parecia que eu era o animal de estimação dos deuses e nem mesmo este galo se pavoneando ia me prejudicar.
– Acho que é hora de meu passarinho voltar para o ninho – disse ele.
Sim, ele definitivamente estava tentando não rir. Ficou um pouco de lado e reverenciei com a cabeça graciosamente enquanto me afastava da parede e passava por ele. Eu o ouvi sussurrar algo para um de seus membros, e tenho certeza de que o homem nos seguiu até a Casa Oculta.
Suzume me seguiu até meu quarto e começou a preparar chá para mim. Notei que as mãos dela estavam tremendo. Esse gangster de fachada realmente a incomodou tanto? Ela falou baixinho enquanto esperava a água ferver.
– Você teve sorte, Senhora. Akira-san poderia ter te derrubado na rua e ido embora sem punição. Deve ter gostado de você.
– Esse rufião? – sorri, pensando que ela estava exagerando. Suzume olhou para cima da bandeja de chá e eu fiz uma careta. Minha pequena criada parecia aterrorizada. Isso era tão diferente dela que comecei a me preocupar.
– Quem é ele, afinal?
– Akira-san é o líder do Ishikawa-ikka yakuza.
Mordi meu lábio. Mesmo na Casa Oculta, sabíamos sobre as gangues da yakuza. Criminosos que detinham imenso poder e eram temidos em toda a Edo. Esta gangue em particular foi considerada a mais terrível de todas. E eu, uma mera garota, desafiei seu líder, fazendo com que ele ficasse sem chão em público. No entanto, era improvável que o visse novamente.
Peguei a xícara de chá e bebi. Decidi que não me importava. Em um espaço de poucas horas, saboreei glamour e amor. Tinha pairado entre a vida e a morte em si. Na verdade, realizei minha própria apresentação de kabuki.
Como poderia um gangster sem cultura competir com isso?