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Capítulo Nove

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Quando a neve

Derrete, será que

A terra lembra de seu beijo?

Recebi uma visita de Bigger muito cedo na manhã seguinte. Mal estava acordada quando ele entrou, rondando meu quarto e fazendo cócegas em Nekko com o dedo do pé. A gatinha o espalmou e tentou morder seu pé. Abaixei meu olhar e tentei não parecer feliz. Afinal, ninguém tinha direito de mais de um dia de imortalidade, e de volta ao mundo real da Casa Oculta, não tinha vontade de irritar Bigger.

Tinha sonhado, mas mal conseguia lembrar com o quê. O rosto de Danjuro se misturava com os samurais que me pararam na rua. Então, as feições do homem firme apareceram de repente, cobertas com a maquiagem branca do kabuki. Apenas seus olhos cinzentos brilharam para mim. Ele estava rindo ou me cobiçando? Não fazia ideia. Em um ponto, eu parecia estar no palco do teatro, representando o papel de um jovem. Estranhamente, esse era o único sonho que conseguia lembrar claramente. Somente esse! Mesmo que Danjuro tenha deixado extremamente claro que eu nunca poderia ser uma atriz de kabuki, era a única coisa que queria. Mesmo por cima do próprio Danjuro? Naquele momento, simplesmente não sabia. No final do dia, quando meu cérebro despertou um pouco, desprezei a ideia. Eu? Uma mulher? No palco do kabuki? Que absurdo! Que coisa louca até sonhar com isso! Claro que era Danjuro, meu talentoso e maravilhoso Danjuro, que eu queria.

Bigger ficou em meu quarto e colocou todos os meus desalinhados pensamentos em ordem. Respirei fundo e procurei me concentrar.

– Bem? Como foi? – perguntou Bigger. Morri de vontade de dizer “maravilhoso!” Mas abaixei meus olhos para o chão modestamente.

– Acho que Danjuro estava feliz comigo – falei.

– Ele mencionou Big?

Eu nem precisei pensar sobre isso. A resposta foi não, e disse com firmeza.

– Você tem certeza? – Bigger usou seu pé para me cutucar.

– Com certeza – assenti.  – Assisti se apresentar no kabuki, e depois me levou. Tudo o que queria falar era da peça e de sua parte nela.

Bigger grunhiu. Mantive meus olhos para baixo, desejando que ele saísse. Eventualmente, pensei que iria, mas em vez disso se agachou na minha frente, seus olhos estavam nivelados com os meus.

– Ele disse que queria ver você de novo?

– Não, não. Mas tenho certeza que quer. Ele me chamou de Midori No Me-chan! – falei desesperadamente.

Bigger me encarou firmemente, como se seu olhar pudesse penetrar em minha mente. Olhei de volta sem hesitação. Não ia mentir. Se fizesse isso, tinha certeza de que Bigger iria perceber a mentira e me puniria.

– Veremos. Vou descobrir em breve com Tia se ele te quer novamente. Se ele quiser, quando quiser, lembre-se de que quero saber tudo. Imediatamente.

Antes que pudesse dizer sim, Bigger se levantou e saiu. Pareceu-me que as próprias paredes deram um suspiro de alívio quando ele saiu. Queria convocar Suzume e perguntar como ela sabia tanto sobre o Mundo Flutuante, sobre o kabuki. Era um mistério para mim como a tímida e dócil empregada que existia na Casa Oculta podia se transformar numa criatura tão confiante e tagarela quando estava fora deste lugar. Era como se o corpo de minha Suzume tivesse sido possuído por completo, talvez um dos espíritos maliciosos de um conto de fadas. Como ela aprendeu tanto sobre o kabuki?

De repente, ocorreu-me que, quando ela me deixou na entrada, saiu correndo para encontrar nosso guia sem pensar duas vezes, como se soubesse exatamente para onde estava indo. E então, quando estávamos de volta ao nosso próprio lar, a nova Suzume desapareceu num piscar de olhos, e a pequena e tímida empregada voltou ao seu lugar. Antes que eu pudesse gritar por Suzume, houve uma batida suave na moldura da porta, o que me surpreendeu até o fim. Quem na Casa Oculta se incomodaria em bater em uma porta antes de entrar, particularmente em minha porta? Chamei “entre” no meio de um alvoroço, e todas as garotas se amontoaram. Kiku primeiro, com sua bajuladora cadela spaniel nos calcanhares dela e Carpi atrás dela. A minúscula Masaki estava entre Carpi e Naruko.

Olhei para elas com surpresa cuja profundidade se tornou em algo muito parecido com temor quando olhei para Carpi. Permanecia tão envolvida na surpreendente reviravolta que estava ocorrendo em minha vida que não tinha olhado para Carpi por muitas semanas. Eu estava vagamente ciente de que havia perdido peso recentemente. Na verdade, pretendia falar com ela sobre isso, mas parecia que Carpi estava naqueles dias, e eu nunca ousara me intrometer em seu quarto sem ser convidada. Agora, vi que não havia perdido peso; em vez disso, parecia que estava sumindo. Nunca que gorda é a melhor das opções, mas agora estava magra como um junco e, tal como, parecia-me que a mais leve lufada de vento a curvaria em duas. Parecia se mover sem a antiga graça e vigor, quase como se fosse uma mulher velha e cansada, em vez de uma mulher jovem e sadia.

Mas Kiku estava falando comigo, então desviei meu olhar de Carpi.

– Vá em frente, então. Nos diga. O que aconteceu? Como foi? Você realmente foi ao kabuki? Como foi com Danjuro? Qual brincadeira ocorreu?

Apesar das minhas preocupações com Carpi, fui forçada a rir. Todas as garotas estavam falando ao mesmo tempo, repetindo as perguntas de Kiku.

– Curiosidade matou o gato – disse presunçosamente.

– Não será isso que vai matá-la se você não contar!

Kiku tentou disfarçar, mas seu rosto estava iluminado com interesse genuíno. – Calem a boca, todas vocês. Deixem Midori No Me contar isso à sua maneira.

Olhei para a borda de rostos ávidos em minha volta e pisquei. – Por onde querem que eu comece?

– Do começo, é claro. Assim que você saiu pela porta.

Essa era Carpi, de volta ao seu antigo e amargo eu. Graças aos deuses.

Então comecei do começo e contei tudo. Ou pelo menos quase tudo. Por alguma razão, omiti o homem rude e malvado que me abordara no caminho de casa. De qualquer forma, ele não importava. Talvez tenha sido por isso que o deixei de fora.

As garotas eram um excelente público. Deliraram quando disse a elas sobre o samurai e ficaram ávidas por detalhes de meu desempenho. “Como foi o teatro?” Eu tinha uma caixa privada, só para mim. “Perto do palco?” Não! Foi só mencionar o nome de Danjuro, então, comida e bebida apareceram. “Alguma coisa que eu gostasse?” Não queria nem um pouco desiludi-las acrescentando que estava nervosa demais para comer qualquer coisa, exceto uma tigela de macarrão. E, com muitos olhares astutos entre elas... “Como foi o desempenho de Danjuro?” “Tão bom quanto no kabuki!”

Falei tanto até ficar rouca. Finalmente, as meninas ficaram satisfeitas e sentaram-se, olhando para mim como se eu fosse uma criatura exótica que vagasse pelo meio delas sem ser notada. Decidi me arriscar e fazer a pergunta que estava me incomodando desde o momento em que saí da Casa Oculta e dei meus primeiros passos no Mundo Flutuante.

– Kiku, há algo que não entendo.

Kiku tomou um gole do chá verde que Suzume levara sem ser solicitada e acenou com a mão em um sublime gesto. – Pergunte – disse benignamente.

– Eu não entendo porque tudo estava tão bem. Não quero dizer com Danjuro. Quero dizer, fora da Casa Oculta.

As garotas trocaram olhares e depois viraram para mim, obviamente confusas. Kiku levantou as sobrancelhas e encolheu os ombros.

– Por que não deveria estar tudo bem? Você andou modestamente, não foi? Manteve a cabeça abaixada? Se certificou que Suzume estava atrás de você?

– Sim, claro que sim. Mas a Tia sempre dizia que eu era tão deformada que, se saísse, as pessoas cuspiriam em mim para evitar a má sorte. Que, provavelmente, teria coisas jogadas em mim. No mínimo, todos zombariam e ririam de mim. Mas eles não fizeram nada. O honrado samurai estava até interessado em mim. E sei que estava em uma caixa no kabuki, mas ninguém prestou atenção em mim lá. A Tia sempre disse que a Casa Oculta era o único lugar onde eu estaria segura. Que nem mesmo o Mundo Flutuante seria seguro para mim ou para qualquer uma de nós.

Olhei esperançosa cara a cara. A princípio, seus rostos estavam inexpressivos, depois uma estranha inquietação começou a aparecer em todas elas. Cada vez mais intrigada, olhei ferozmente para Kiku.

– Kiku, por que não aconteceu como a Tia disse que seria?

Kiku lambeu os lábios e olhou para as outras meninas. Obviamente, elegeram-na como porta-voz, todas concordaram com o incentivo, mas permaneceram em silêncio.

– Você nasceu aqui, não foi? – balancei a cabeça, perplexa. O que isso tem a ver? – O resto de nós começou a vida lá fora, Midori. Nós temos um pouco de vantagem sobre você. A Tia diz-nos a mesma coisa. Que estamos seguras aqui. Que o Mundo Flutuante não é lugar para nós. Que as pessoas lá nos tratariam como aberrações. Mas a diferença é que sabemos que a Tia não está exatamente dizendo toda a verdade.

Ela fez uma pausa e as meninas assentiram. Balancei a cabeça, ainda mais intrigada agora do que antes. Kiku revirou os olhos em desespero e Carpi tomou a frente.

– A Tia precisa nos manter aqui – disse ela sem rodeios. – Ela diz essas coisas para nos assustar, nos fazer depender dela. Ela não percebe que queremos estar aqui. Que a vida dentro da Casa Oculta é muito mais fácil, muito mais agradável do que nunca foi para nós do lado de fora. Então nos conta todos os contos de fadas sobre o quanto é ruim lá fora. O único problema é que não percebe que sabemos. Nós apenas deixamos que conte suas histórias de horror para agradá-la.

Fiquei chocada. A Tia, a única pessoa estável em toda a minha vida, a única mãe que realmente conheci, me contou mentiras? Balancei a cabeça.

– Carpi, isso não pode estar certo. Você me disse como foi trancada em uma gaiola e exposta em pequenas viagens. Não aconteceria a mesma coisa com você se você saísse agora?

Carpi mordeu o lábio e balançou as mãos. O pequeno gesto de desespero quebrou a tensão e todas nós rimos, mais por alívio do que por humor.

– Eu não acho que aconteceria isso. É difícil explicar, mas você tem que lembrar que fui exposta minimamente, fora do caminho das vilas. Metade das pessoas achava que os burakumin eram diabos de qualquer forma, então eu era apenas uma petisco extra. Vamos encarar os fatos, se você colocar um macaco em uma gaiola, as pessoas param e olham apenas porque está atrás das grades. Você viu como os homens se aglomeravam em torno das prostitutas atrás das grades, não é? Viu como eles ficaram olhando para elas?

– Bem, sim. Mas isso não é a mesma coisa, ou é?

Os rostos ao meu redor assentiram. Naruko se inclinou para frente e falou hesitante, com seu japonês singular estranhamente encantador.

– Midori-chan. Onde nasci na China, uma mulher estranha morava em uma das aldeias locais. Ela tinha duas cabeças. Isso, duas! – insistiu, embora ninguém estivesse discordando dela. – Ela nasceu assim. Duas cabeças, dois corpos, quatro pernas, mas ambas se juntaram do seus seios a seus quadris. Tinha quatro braços também, mas dois deles eram sempre mantidos atrás das costas. Ela sempre disse que não era “uma” pessoa, mas duas. Comentou que a outra era sua irmã. Mas esta nunca falou. Foi tudo muito estranho. Mas de qualquer maneira, essa mulher realmente se casou. Dois irmãos na aldeia se casaram com ela, ou elas, no entanto, pense sobre isso. E ela, elas, tiveram bebês. Ambas tiveram, com uma semana de diferença. Os bebês eram perfeitamente normais. Eram garotos grandes e fortes. – assentiu vigorosamente, Naruko. – Mas fato é que ninguém lembrou sobre ela, sobre elas, depois de um tempo. Os estranhos se maravilhavam com ela, mas ninguém na aldeia se importava. Acho que é o mesmo com a gente. Podemos não ser como todo mundo, mas no Mundo Flutuante, acho que ninguém se importaria muito.

– Eles se importam o suficiente para separar um bom dinheiro para nós – disse Carpi abruptamente. – E essa é a única coisa que importa. Olha, Midori. Se fosse você, não acreditaria em tudo que a Tia lhe disser. Estamos todas a salvo aqui, estamos bem cuidadas. Essa é a coisa principal. Se o seu Danjuro quiser tirar você deste lugar, então tudo ótimo. Se ele não, eventualmente, alguém vai.

Sua voz era estranhamente amarga, em desacordo com o que estava dizendo. Mas todas as outras garotas estavam assentindo e sorrindo, então decidi que era eu quem estava imaginando a amargura. Ainda estava profundamente chocada ao pensar que a Tia tinha mentido para mim todos esses anos.

Foi Kiku, como sempre, que teve o bom senso de terminar a discussão.

A Tia provavelmente está tentando protegê-la do mesmo destino que sua mãe – ela disse calmamente. – Afinal de contas, nenhuma de nós ouviu uma palavra sobre ela desde que deixara o Mundo Flutuante. Não quero incomodar você, Midori, mas se acha que o Mundo Flutuante é ruim, como deve ser o lado de fora? Fora de Edo em si; em outro país, mesmo...?

Todas nós ficamos em silêncio, considerando as palavras dela, e eu estremeci. Estava certa, é claro. O Japão havia sido isolado do mundo exterior por muitas centenas de anos. Sabíamos pouco sobre os bárbaros estrangeiros e o que sabíamos era terrível. Não eram como nós. Eles não eram apenas estrangeiros, mas estranhos de maneira que não poderíamos compreender. Tudo sobre eles era estranho; suas línguas eram bárbaras, sua moral ainda pior. Não é a primeira vez que fiquei imaginando o que poderia ter convencido minha linda e talentosa mãe a fugir com um desses monstros. Penso que nunca descobriria. Somente a Tia e os Garotos estavam aqui quando nasci, e eles nunca falaram sobre o “voo” de minha mãe da Casa de Chá Verde. Nem mesmo Big, que me atormentava de todo forma que pudesse, jamais se referiu à minha mãe.

De repente, me senti muito feliz pelas meninas que estavam ao meu redor. Elas, e a Tia - apesar de suas mentiras bem-intencionadas - eram minha família. Senti uma onda de gratidão por todos e sorri em agradecimento.

Obviamente aliviadas por estarem no final da séria discussão, as garotas se esticaram, bocejaram e se levantaram. Carpi levantou-se com sua graça atlética habitual e Kiku foi erguida por Naruko na frente e recebeu um empurrão pelas costas da pequeno Masaki. Elas saíram, resmungando com bom humor que nada proveitoso lhes aconteceu. Algumas pessoas, disse Masaki, eram indevidamente favorecidas pelos deuses.

Na porta, Kiku fez uma pausa para uma palavra final. Falou muito baixinho, só em meus ouvidos.

– Não é tão ruim aqui, Midori. Não é tão ruim assim. Nós temos a Tia e os Garotos para nos proteger. Somos bem alimentadas e aquecidas. Todas as gueixas e cortesãs em todo o Mundo Flutuante não estão melhor do que nós, lembre-se disso. Somos todas escravas. Mas pelo menos nossa jaula é feita de seda.

Ela sorriu, estalou os dedos para sua cadela spaniel e deslizou silenciosamente com sua graça habitual.

Esperei até que as vozes das garotas sumissem antes de bater palmas para Suzume. Se hoje foi a hora da curiosidade ser satisfeita, então deixe que Suzume me explique o que aconteceu com ela no momento em que saiu da Casa Oculta.

Ela veio em seu habitual trote, uma bandeja com um aquecedor de comida, bule de chá e um copo em suas mãos. Ela colocou na minha frente e se ajoelhou, com a cabeça baixa. Mais uma vez, fiquei desconcertada com a mudança nela. Essa era realmente a garota que me guiara pelo labirinto do Mundo Flutuante tão habilmente, então, com muita confiança?

– Suzume, pare com isso!

Ela manteve a cabeça baixa, mas passou as mãos em volta uma da outra em um gesto humilde. Não estava interessada em nada disso. Queria saber qual Suzume, se alguma delas, era real.

– Suzume, você não foi nada dócil ontem quando estávamos do lado de fora. Fale-me sobre você. Como veio para cá.

Vi que ela estava me espiando por baixo de seus cílios bem como percebi que era na verdade uma garota muito bonita. Não era que simplesmente não tivesse percebido, e sim que ela era normalmente tão discreta que simplesmente passava despercebido. Ela estava tentando não rir? Achei que estava.

– Desculpe-me, Midori No Me-san. Fiz errado ontem?

– Você sabe que não. Eu nem teria encontrado meu caminho para o teatro kabuki sem você. – vi seus olhos se iluminarem ao mencionar o kabuki e aproveitei minha chance. – Você já esteve no kabuki antes, não?

– Trabalhei lá, quando era criança – disse simplesmente. Olhei para ela surpresa e, sim, enciumada. Suzume realmente tinha trabalhado no maravilhoso kabuki? Era como se o mero pensamento do teatro tivesse destrancado um lugar oculto dentro dela e começasse a falar sem maiores incentivos.

Eu me servi de uma xícara de chá verde. Suzume deveria ter feito isso por mim, mas eu estava relutante em interromper o fluxo de palavras dela. Quanto mais falava, mais fascinada me tornava. Na verdade, pensei, Kiku estava certa quando disse que havia lugares piores do que a Casa Oculta.

– Nasci  no Mundo Flutuante.

Suzume sentou-se em suas ancas e falou para o canto da sala, em algum lugar atrás do meu ombro esquerdo.

– Meu pai era um calígrafo, um dos melhores de toda a Edo. Sua caligrafia era muito bonita e ele sempre tinha mais trabalho do que conseguia. As pessoas lhe pagavam muito bem para escrever cartas para elas, para redigir pergaminhos. Até os nobres se aproximaram dele; era muito conhecido.

– Eu era a terceira filha nascida dele com minha mãe. Ele não tinha filhos, o que evidentemente era uma grande tristeza para os dois. O pai teria estado em seu direito de afastar a mãe por sua incapacidade de lhe dar filhos homens, mas ele nunca consideraria essa possibilidade. Disse que sabia que minha mãe era a única para ele no momento em que a vira, e se era seu carma não ter filhos, então também era dele.

Devo ter ofegado em surpresa com isso porque Suzume assentiu com a cabeça vigorosamente.

– Ele era um homem bom quando era bem pequena. Nem sequer teve uma amante. Minhas mãe disse que ele deveria, é claro, e então se a amante dele tivesse um filho homem, o menino poderia ser adotado pela família. Mas ele não quis saber disso. Quando cresci, as mãos do meu pai começaram a dobrar. Começou a sentir muita dor nos dedos e, por fim, suas mãos ficaram tão feridas que sua caligrafia começou a piorar. Visitou o médico, é claro, e ele receitou ervas e cascas amargas para meu pai, tanto para esfregar em suas mãos quanto para beber. Mas isso não adiantou. Dia após dia, suas mãos se tornavam cada vez mais inúteis. Seus clientes começaram a procurar outras pessoas e nossa renda diminuiu. Nós não éramos exatamente pobres, porque minha mãe sempre foi muito cuidadosa, então tínhamos algumas economias guardadas.

– Mas no momento em que começou a perder sua habilidade, parecia que meu pai começou a mudar. Começou a repreender a mãe, dizendo-lhe que foi ela quem comprou a má sorte da família. Bateu nela bem como em nós, suas filhas também. Acho que eram as gritarias e insultos que aborreceram a mãe mais do que a surra. Afinal, as esposas devem esperar ser espancadas, pelo menos ocasionalmente. Eventualmente, tudo se tornou demais para minha mãe e ela cometeu suicídio pulando no rio. Amarrou as pernas primeiro, para ter certeza de que não conseguiria nadar e manter o corpo puro quando fosse encontrado. Ela deixou uma nota para o pai, pedindo desculpas por ser uma esposa ruim e ter levado azar para toda a família. Ela pediu que ele arrumasse outra esposa, dizendo que ainda não era tarde demais para ter filhos homens.

Suzume endireitou as costas e ficou em silêncio por um momento. Eu queria incitá-la a continuar, mas depois vi que ela tinha lágrimas nos olhos, então esperei. Agora que havia começado, ela contaria sua história em seu próprio tempo. Além disso, se eu falasse, ela poderia perceber que estava falando comigo de igual para igual novamente e pararia. Eu estava intensamente curiosa para ouvir o resto de sua história.

– Todas nós pensamos que o pai arrumaria outra esposa ou amante. Mas não o fez. Conversando sobre isso entre nós, decidimos que a morte da mãe tinha sido a quebra do ramo final que havia apoiado nosso pai. Foi somente com a morte dela que ele se lembrou do quanto a amou.

Então, ao invés de trazer uma mulher de fora, levou a minha irmã mais velha para sua cama como sua esposa.

– Ela estava orgulhosa de ser escolhida, é claro, e fez o melhor que pôde. Mas ela não era nossa mãe, embora parecesse muito com ela. Papai continuava zangado com todas nós, nada do que fazíamos o agradava. Ele nos ensinara a ler e a escrever e, antes que mamãe morresse, até dissera que, se eu fosse menino, poderia tê-lo seguido nos negócios da família, minha caligrafia era muito boa. Mas eu era apenas uma garota, então não havia chance de isso acontecer. Tentei ajudar, e por um tempo pareceu que tudo ia ficar bem. Ele me instruiu sobre como escrever no mesmo estilo que escrevia e começou a usar minhas habilidades como se fossem suas. Alguns de seus antigos patronos começaram a voltar para ele e nos tornamos prósperos novamente.

– Tudo finalmente deu errado quando minha irmã ficou grávida. Ela perdeu a criança quando estava com quase oito meses de gravidez e morreu de febre logo depois. Era um menino, e esse parecia ser o fim para o pai. Ele ficou fora de si, se enfureceu e gritou. Disse que éramos todas nós, as mulheres da casa que havia jogada praga nele. Que era tudo culpa nossa, ele não poderia ter filhos. Eventualmente, disse que nós o havíamos amaldiçoado. Nós estávamos aterrorizadas, assustadas por nossas vidas. Minha irmã e eu tentamos fugir e nos esconder, mas ele nos encontrou e nos espancou até que mal conseguíamos ficar em pé.

Suzume ficou em silêncio de novo e não adiantou, tive que perguntar.

– Carpi diz que você não pode sentir dor. Isso é verdade? Doeu quando seu pai bateu em você?

Ela olhou para mim com curiosidade e depois deu de ombros. Seu rosto estava confuso.

– Minha irmã chorou quando papai nos espancou. – franziu a testa. – Perguntei por que ela estava chorando e disse que era porque se machucou. Eu não entendi o que quis dizer. Achei difícil andar, pois minhas pernas pareciam não querer endireitar onde o pai tinha batido com uma vara nos meus joelhos, mas isso era tudo. Perguntei-lhe novamente: – Por que você está chorando? E ela estendeu os braços para mim. Eles estavam pretos e verdes com hematomas, mas eu tinha as mesmas cores em meus braços, costas e pernas, então pensei que ela estava chateada porque sua pele estava desfigurada. – Não se preocupe – eu disse – eles vão desaparecer.

– Eu sei! – choramingou. – Mas eu machuquei.

– Ainda não entendi o que ela queria dizer. Eu me lembrei de quando tinha quebrado meu pulso anos antes, e o médico tinha dito que menina corajosa eu era quando não chorei. Mas por que deveria ter chorado? Por que minha irmã estava chorando?

Suzume olhou para mim com assombro e respirei fundo. – É verdade então. Você realmente não sente dor. Carpi estava certa.

– Não sei. – Suzume franziu a testa. – Eu não sei o que é dor. É ruim? Se for, por que iria querer sentir isso?

Deixei que minha boca, aturdida, entoar. – Você deve pelo menos saber o que é! – eu disse com firmeza. – Como você se sentiu quando quebrou seu pulso?

Suzume pensou por um longo tempo e depois disse: – Meu braço parecia muito estranho. Não conseguia fazer minha mão se mover como deveria, e o osso ficou exposto preso na minha pele. É isso que significa dor?

Olhei para ela, perdida em palavras e balancei a cabeça. Percebendo minha confusão, Suzume se inclinou para a frente e analisou meu rosto, levando seu lábio inferior para dentro da boca. Finalmente, ela disse: – Se eu tivesse nascido cega, como você descreveria as cores para mim?

Estava certa, é claro. Não seria capaz. Então era verdade. A pequena Suzume não sentia dor. Senti um súbito espasmo de compaixão por ela. Pode parecer que se sairia muito bem na Casa Oculta, mas sabendo do que alguns de nossos patronos eram capazes, temia por ela. Às vezes, um grito muito alto era a única coisa que poderia detê-los. Como Suzume saberia quando chegara a hora de gritar?

Nós duas ficamos em silêncio por um momento, perdidas em nossos pensamentos. Então percebi que ainda não sabia como Suzume conhecia tão bem o Mundo Flutuante, então pedi que continuasse. – O que aconteceu com você, Suzume? Como você acabou aqui?

– Nós duas, minha irmã restante e eu, pensamos que o pai a levaria em seguida, no lugar de nossa mãe e irmã morta. Mas isso não foi assim que aconteceu. Papai começou a beber muito, e ele foi rude com os clientes que nos restavam. Bem, ninguém iria suportar isso, então não demorou muito para que tivesse usado todo o dinheiro que eu tinha conseguido e quase todas as suas economias também. Lembro-me muito bem do dia em que ele vendeu minha irmã. Ele ficara sóbrio por alguns dias e, uma tarde, desapareceu e voltou com uma velha. Ela nos examinou, minha irmã e eu, depois saiu e conversou com o pai por algum tempo. Quando ele voltou, disse à minha irmã que ela deveria ir com a velha. Descobri mais tarde, quando vi minha irmã por trás da grade de um dos bordéis na rua principal do Mundo Flutuante, que ele a vendera como uma prostituta.

– Depois que minha irmã foi, meu pai ficou bêbado por uma semana inteira. Quando ficou sóbrio, começou a olhar para mim de uma maneira estranha, e percebi que tinha a intenção que eu ocupasse o lugar da minha mãe. Suponho que deveria ter ficado e cumprido meu dever com ele, mas algum demônio entrou em mim e quanto mais pensava sobre isso, mais decidia que não queria acabar como minha pobre irmã mais velha. Então eu fugi.

Suspirei. Suzume, um pouco mais que uma criança, uma menina, fugiu? Perguntas fervilhavam na minha boca. Onde ela esteve? Como sobreviveu? Por que não morreu de fome ou acabou em um bordel sozinha? Adivinhando minhas perguntas, Suzume continuou.

– Você tem que lembrar, nasci e cresci no Mundo Flutuante. Havia feito recados para o pai desde que pude andar. Sabia o meu caminho bem o suficiente. Eu não tinha dinheiro, mas encontrei um lugar para me abrigar perto do kabuki. Nos primeiros dias, implorei. Isso foi o suficiente para comprar macarrão e água. Então alguém deixou a porta aberta na parte de trás do kabuki, e entrei. No começo, só queria me aquecer. Mas então vi os atores ensaiando, e me apaixonei por isso. A cor, o som, toda a vida da coisa. Foi maravilhoso.

Balancei a cabeça vigorosamente, entendendo perfeitamente. Eu me senti do mesmo jeito.

– Bem, havia muitos lugares para uma criança pequena se esconder no kabuki. Eu me escondi lá por dias, furtando cozinhas quando podia, implorando do lado de fora quando não conseguia. Claro, alguém me pegou no final, mas comecei a chorar e caí de joelhos, implorando para que me deixassem ficar. Eu poderia ajudar, eu disse. Poderia lavar e limpar. Reparar os trajes. Cozinhar. Ajudar a escrever os anúncios. O homem que me encontrou, mais tarde descobri que era funcionário do teatro, assistente do gerente, riu quando eu disse que podia ler e escrever. Mas insisti que podia, e, como brincadeira, me deu um cartaz anunciando a última produção e disse para copiá-lo. Eu me lembro claramente da peça; foi Kanadehon Chushingura - A Vingança dos Quarenta e Sete Ronins. Copiei na minha melhor caligrafia e o homem ficou espantado. Arrastou-me para ver seu chefe que por sua vez me disse para copiar um cartaz. Fiz isso, e os dois homens se entreolharam.

– Bem, Mineko – começou. Mineko era meu nome na ocasião, entende?!

– Parece que você não está dizendo mentiras. 

Ambos os homens olharam para mim por tanto tempo que fiquei desconfortável. – Onde está sua família?

Respirei fundo e menti. – Minha mãe está morta, senhores. Cometeu suicídio no ano passado. Meu pai morreu de febre há pouco tempo, junto com minha irmã. Estou sozinha no mundo.

O gerente tinha lóbulos de orelhas muito longos, que ele costumava acariciar quando estava pensativo. Então fez isso.

– Bem, se você não tem mais para onde ir, parece-me que você poderia ser útil para nós aqui. – ergueu as sobrancelhas para o subgerente, que assentiu vigorosamente. – Em troca da caligrafia que necessitamos, permitirei que você more aqui e seja alimentada pelas comidas do teatro. O que você me diz?

– Eu caí de joelhos e beijei a barra de seu robe. Senti como se todos os meus sonhos tivessem se tornado realidade. Foi-me dado um cubículo para dormir e permissão para comer e beber na cozinha sempre que precisasse. Fiquei feliz em copiar os cartazes para eles, e depois de um tempo, até tive permissão para fazer alterações nos roteiros de novas peças, já que os atores frequentemente queriam mudanças feitas após os primeiros ensaios. Sempre que eu tinha um tempo livre, observava o kabuki. Amei cada momento das peças, não importava se era uma tragédia ou uma comédia. Eu tinha uma memória muito boa e, muitas vezes, quando estava sozinha, representava uma das peças em meu pequeno espaço privado.

Pela primeira vez, Suzume, ou, suponho que agora deveria chamá-la de Mineko, parecia desconfortável. Percebi que ela achava que eu iria rir dela por fazer algo tão bobo quanto isso, porém, entendi perfeitamente. Tinha lido os roteiros da peça que tinha visto centenas de vezes em minha mente, mas a cada vez, era eu quem estava no palco, eu que estava sentindo as reverências e agradando a multidão. Eu assenti.

– Sim – falei. – Eu sei. Entendo como você se sente. Ah, Mineko se ao menos tivéssemos nascidos homens. O que poderíamos ter feito?

Nós duas suspiramos com o pensamento.

– Você deve ter visto Danjuro se apresentar? – perguntei.

Mineko assentiu. – Muitas vezes. Ele não me notava, é claro. Na verdade, sempre duvidei que Danjuro visse algo além do teatro. Os outros atores frequentemente falavam dele. Disseram que ele era tão dedicado, se alguém não se certificasse de que tinha comido ele teria morrido de fome porque esqueceria qualquer coisa que não se referisse ao kabuki.

Eu resplandecia de orgulho. Esse ator maravilhoso, esse homem dedicado, tinha notado a mim, a feio meio-bárbara Midori No Me! Estava interessado o suficiente para me mandar vê-lo se apresentar. Suspirei feliz.

– Eu também vi Big – disse, Mineko, calmamente. Olhei para ela e coloquei meu dedo nos meus lábios temendo o pior. Ela assentiu e falou muito suavemente. – Ele costumava assistir às apresentações e depois ir aos bastidores para ver Danjuro. Às vezes, ele persuadia Danjuro a sair para uma casa de chá com ele ou em algum lugar para beber saquê. Big sempre fingia que era louco pelo kabuki, mas acho que mentia. Só estava interessado em Danjuro. Acho que estava apaixonado desde o começo.

– E Danjuro? – sussurrei com urgência. – Como se sentia sobre Big?

Mineko deu de ombros. – Acho que ficou vagamente lisonjeado de que esse homem bonito fosse tão obcecado por ele. Mas também penso que, assim que Big saia pela porta, esquecia que ele existia. Você sabia que foi Big quem apresentou Danjuro a Casa Oculta?

Olhei para ela com espanto, balançando a cabeça.

– Foi. Eu estava por perto quando Big tentou ser amigo de Danjuro depois de uma nova apresentação. Danjuro interpretou os dois principais papéis femininos, e ele sentiu que suas performances não eram tão realistas quanto gostaria, o que o aborreceu. Big tentou convencê-lo a sair desse estado, mas nada funcionou. Eventualmente, ouvi Big falar para ele que precisava se misturar com algumas mulheres reais, mulheres que tinham conhecido a verdadeira tristeza em suas vidas, para obter inspiração, e que ele iria levá-lo em algum lugar que lhe interessaria. Ouvi o nome da Casa Oculta ser mencionado, mas depois fui expulsa.

Ela franziu a testa e eu estava quase ansiosa de curiosidade. – Vá em frente – insisti. – Termine sua história. Como você veio do kabuki até aqui?

– Foi meu pai. – a boca de Mineko curvou para baixo nos cantos. – Ouvi dizer que estava muito doente, à beira da morte e estava chamando por mim. Então, como uma tola, senti que tinha que ir para casa, vê-lo antes que morresse. Não havia nada de errado com ele, além do fato de que não tinha dinheiro para comprar saquê e estava de mau humor. Assim que cheguei em casa, ele me pegou e me trancou em um armário. A próxima coisa que lembro foi a Tia que estava abrindo a porta e papai insistindo para que ela me beliscasse com força como ela gostava. Foi o que fez, e depois seguiu-se com uma pancada forte de sua bengala. Eu apenas olhei e ela riu. Então se virou para meu pai, parecendo satisfeita.

– Parece que você estava certo – disse ela. – Não sente dor. Quantos anos ela tem?

– Doze, senhora. Ela também sabe ler e escrever.

– Não é útil para mim. Ela pode tocar algum instrumento? – Papai sacudiu a cabeça com relutância, mas depois lembrou. – No entanto, ela tem uma boa voz e consegue dançar. Mostre a moça, Mineko.

– Eu me arrastei para fora do armário e fiz o que me foi-me dito. Dancei alguns passos e cantei o refrão de uma das peças do kabuki. A Tia sorriu ironicamente e disse que eu sabia bem. Perguntou se eu estava bem como um todo e papai disse que sim.

– E foi isso. Pegou-me pelo braço e me comprou levando-me para a Casa Oculta. Ela disse que eu trabalharia como empregada no começo, e então, quando tivesse aprendido um pouco dos caminhos da Casa, que poderia me tornar uma gueixa, como o resto das garotas.

Mineko sabia exatamente o que isso significava? Ela olhou para mim com desdém. Claro que sabia.

– Eu vou aprender a cantar e dançar como uma gueixa faz. Vou flertar atrás do meu leque e fazer os clientes se sentirem espirituosos e bonitos. E quando tive passado pelo mizuage, vou aprender a ofegar e a gemer quando colocarem sua árvore de carne dentro de mim como se estivessem me partindo em duas com suas juventude “esmorecidas”.

Estava dividida entre diversão e aborrecimento. Não importava o que Mineko tivesse passado, não tinha o direito de falar comigo assim, como se fôssemos iguais. Mas de repente, Mineko voltou a ser Suzume, o olhar dela estava voltado para o chão.

– Quando chegar a hora da minha mudança, você será minha irmã mais velha, Midori-chan? – falou humildemente. Eu sorri, sabendo que nunca seria capaz de ficar brava com Mineko por muito tempo.

– Claro que serei – afirmei. – Claro que vou.