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Capítulo Doze

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Se dormir é o

Doce amigo da vida,

Então, por que tememos a morte?

Eu esperava dormir até tarde no dia seguinte. Mas como muitas coisas nesta vida, não era para ser. Eu, a casa inteira na verdade, fui despertada cedo.

A Tia estava pisoteando ao redor, zurrando como um burro irritado. Ela balançou todas as nossas shojis uma de cada vez. Eu podia ouvi-la batendo pelo corredor e gritando para todas nós nos levantarmos. Agora! Esse minuto!

Nós saímos correndo, envoltos em nada além de nossas vestes de dormir e o que restou de sonolência, tirando nossos cabelos da frente de nossos rostos e esfregando os olhos em uma tentativa de pelo menos parecer acordadas. Apenas as empregadas, que estavam sempre em primeiro lugar, vestiam-se adequadamente e pareciam aterrorizadas. Até mesmo Suzume parecia chateada.

A Tia enxotou todas nós em uma das grandes salas de recepção e nos sentamos no tatame, olhando uma para o outra com curiosidade. Nunca a Tia se permitiu ser vista em tal estado. Não só estava claramente agitada, como também não se preocupara em colocar uma peruca, e seus cabelos grisalhos caíam nas costas em uma trança adormecida. Acho que foi essa irregularidade que me perturbou mais do que qualquer outra coisa e senti medo nas minhas entranhas.

Finalmente, certa de que ela nos reuniu e tinha toda a nossa atenção, a Tia baixou-se cuidadosamente sobre uma pilha de futons e ficou olhando para todas nós. Cada uma, por sua vez, estava sujeita a seu olhar. Não posso falar pelas outras meninas, mas imediatamente me senti culpada, como se a Tia tivesse descoberto algo que preferiria manter escondido. Teria sido minha delicadeza para com Danjuro, talvez? Ou o meu desprezo pelo pobre Mori-san e seus esforços desastrados para me agradar? Fosse o que fosse, baixei os olhos antes do olhar da Tia.

Ela falou de repente, fazendo com que todas pulassem. – Carpi não está aqui.

Todas olhamos ao nosso redor e ficamos surpresas. Não, Carpi não estava. A ansiedade me apertava. Certamente Carpi não havia morrido. Não, a Tia dificilmente continuaria assim se tivesse. Mas obviamente aconteceu algo com ela. Kiku falou todos os nossos pensamentos em voz alta, mas suavemente, como se temesse a resposta.

– Aconteceu alguma coisa com ela, Tia?

No silêncio, o som da Tia rangendo os dentes era claramente audível. Foi um som horrível, pior do que alguém estralando os ossos dos dedos, e ajustei meus próprios dentes em resposta.

– Eu não tenho ideia – estalou a Tia. – Carpi foi embora. Ela fugiu.

A sala veio abaixo quando todas começaram a falar juntas. Não, ela não poderia ter feito isso! Ela estava muito doente! Por que fugiria? Para onde iria? Sentei-me em silêncio, pensando que acontecera de novo, que o passado voltara para me assombrar. Olhei para as outras, esperando que seus rostos espelhassem meu horror, mas todas pareciam simplesmente surpresas.

Nenhuma delas se lembrava do pobre Fumie? Certamente, não poderia ser a única que pensava nela? Mas parece que sim. Então me lembrei que Fumie era minha amiga e tinha pouco contato com as outras garotas.

A Tia bateu as mãos com força e obedientemente como crianças da escola, nós ficamos em silêncio. Mantive meus olhos no tatame, de repente com a certeza de que tudo isso era minha culpa. Seria a única que sabia que Carpi queria cometer suicídio? Foi a única que se recusara a ajudá-la? O que foi que ela disse? Não conte a mais ninguém. Sim, fui a única. Era a única que ela pediu para ajudá-la, a única que a traíra. Assim como traí Fumie. Agora ela fugiu. E foi tudo culpa minha. Novamente. Quanta culpa eu poderia suportar?

A Tia falou no silêncio. – Quando todas vocês a viram pela última vez?

– Ontem à tarde – emendou Kiku e olhou em volta para nós, e concordamos. – Ela veio nos ver para conversar, e parecia feliz naquele momento. Muito mais parecida com a antigo Carpi. Até disse que se sentia melhor.

Nós todos concordamos vigorosamente.

– Ninguém a viu mais tarde? A Tia olhou de um lado ao outro em nós. Todas balançamos nossas cabeças. – Midori! – pulei e tentei não parecer culpada.  – Midori, quando você veio ontem à noite do kabuki, percebeu se a porta de Carpi estava fechada?

O Alívio passou por mim. Fechei meus olhos e tentei me concentrar. Estava com pressa de chegar ao balneário, mas, mesmo assim, tinha certeza de que teria notado se a porta de Carpi estivesse aberta ou se uma lâmpada tivesse sido acesa em seu quarto.

– Não. – balancei a cabeça com firmeza. – Tenho certeza de que a porta dela estava fechada e a sala estava escura. Você notou alguma coisa, Suzume?

A empregada sacudiu a cabeça. – Não, senhora. Havia uma luz na pequena sala de recepção, mas isso era tudo.

Masaki assentiu e lembrou a Tia que ela estava entretendo um patrono.

A Tia falou forçosamente:

– Eu fui a última a vê-la, então. Falei com ela no final da tarde e a fiz beber um pouco de saquê. Disse que ia dormir por um tempo quando saí.

Nós esperamos, sem saber o que dizer. Carpi fugiu da Casa Oculta? Onde ela achou que iria? Quem iria escondê-la? Se Fumie não escapou, que chance Carpi tinha?

– Ela levou suas joias com ela e o dinheiro que escondera em seu quarto, que recebera de seus clientes ao longo dos anos. – franziu os lábios a Tia, falando mais para si do que para nós. – Disse a ela para dar para mim para que eu pudesse guardá-lo em segurança para ela. Deve ter planejado isso há algum tempo.

– Mas por que, Tia? – perguntou Naruko. – Por que fugiria? Ela não estava bem, por que ir agora?

Eu poderia te dar a resposta, pensei. Mas não vou. Apesar de que seria bom poder compartilhar minha culpa desta vez, para fazer com que todas se sintam mal por não notarem o quão doente Carpi realmente estava. Da mesma forma como não notei.

– Talvez tenha sido a doença dela que atrapalhou sua mente. – franziu novamente a testa a Tia. – Eu não sei. Nenhuma de nós saberá até que a encontremos. Eu já coloquei os Garotos para procurá-la. Eles a trarão de volta.

As palavras não ditas "e puni-la" pairavam no ar como estalactites de gelo. Apertamos nossas vestes um pouco mais, imaginando como nos sentiríamos se os Garotos estivessem em nossa trilha. Estremeci, de repente, ficou frio.

A Tia nos dispensou rapidamente. A vida na Casa Oculta continuaria normalmente, ela instruiu. Felizmente, por causa de sua saúde precária, Carpi não tinha fregueses reservados. O resto de nós não falaria sobre isso, mesmo entre a gente. Não mencionaríamos isso a ninguém. Até que Carpi retornasse, ela deixara de existir.

Apesar das firmes instruções da Tia, não pude acreditar que a vida poderia continuar normalmente. Voltei para o meu quarto e sentei-me, olhando para a parede. Kiku enfiou a cabeça pela porta e disse algo para mim, mas não entendi as palavras dela e não respondi. Ela suspirou para mim, mostrou a língua e me deixou sozinha.

Carpi. Carpi fugiu. Pediu minha ajuda e a neguei. Assim como eu havia negado a Fumie. Fumie, cujo nome era a mais bela de todas as gueixas: “O Poema da Glória”.

Fumie não era uma de nós. Ela morava na Casa de Chá Verde. Tocava shamisen, cantava, preparava a cerimônia do chá e sussurrava gracejos nos ouvidos dos deslumbrados clientes. Claro, ela teve seu mizuage, da mesma forma que o resto de nós, mas fora isso, nenhum cliente poderia comprar Fumie. Seu dinheiro poderia comprar sua inteligência, sua elegância, mas nunca seu corpo. Diferente de nós. Era deslumbrantemente linda. Na época, invejei sua beleza, mas nada mais. Ela era uma ave cativa assim como o resto de nós gueixas, fosse na Casa de Chá Verde ou na Casa Oculta. Éramos escravizadas. Todas em dívida com a Tia, uma dívida que nunca seria paga a menos que algum homem nos comprasse. E se isso acontecesse, simplesmente seríamos propriedade de um novo senhor.

Até hoje, não tenho ideia do que levou Fumie à Casa Oculta. Talvez ela estivesse entediada, talvez tivesse ouvido falar das gueixas da Casa Oculta e quisesse dar uma olhada na gente, mais ou menos como ir ao zoológico para inspecionar os animais exóticos enjaulados. De qualquer forma, a encontrei de pé, incerta, no corredor do lado de fora do meu quarto uma tarde e olhei para ela com tanto interesse quanto ela estava olhando para mim.

– Diabos, quem é você? – Fumie gargalhou. Eu tinha certeza de que ela havia mudado para “quem” de “o que” no último instante. Olhei para o quimono caro e a peruca elegante e decidi que ela tinha entrado ali por acidente. Não sei o que me possuiu, mas meu primeiro pensamento foi que eu tinha que tirá-la da Casa Oculta antes que a Tia a encontrasse e ficasse furiosa.

Fiz uma profunda reverência. – Eu acho que você não é daqui, gueixa – disse educadamente. – Por favor, permita-me mostrar-lhe...

Fumie apenas deu uma risadinha – Bem... não. Não sou exatamente daqui. Moro na Casa de Chá Verde. Meu nome é Fumie. Qual é o seu?

– Midori No Me.

Ela me olhou com enorme e natural interesse. Estava aturdida. Como ela achou o caminho através do pátio até nós? Nenhuma das meninas da Casa de Chá Verde veio nos ver. Ocasionalmente, em um belo dia, elas poderiam sentar-se no pátio interno conosco, mas era isso. Caso contrário, nossos mundos não se tocavam.

Isso foi antes de conhecer melhor Fumie, e percebi que ela sempre encontrava seu próprio caminho. Alternava demasiadamente alguns aspectos. Era inocente, irritante e fascinante. Era linda, espirituosa e talentosa. E ela sabia disso. Claro que sabia. Seus clientes diziam isso a cada dia e ela não tinha motivos para não acreditar. Ela até teve a Tia sob seu feitiço.

Quando tentei explicar-lhe que ela não deveria estar aqui, que a Tia ficaria zangada se a encontrasse, ela simplesmente deu uma risadinha. A Tia a amava, Fumie disse. Não se importaria, o que quer que ela fizesse.

Eu gesticulei para ela. A Tia a amava? Mas Fumie estava pegando meu braço e me levando de volta ao meu próprio quarto. Uma vez lá dentro, sentou-se no tatame, fazendo com que o movimento simples se parecesse com nada mais do que uma cabeça de flor se desdobrando ao sol da manhã. Acenou com a mão para que me sentasse com ela, e fiz o que fui instruída. Estava tão fascinada por ela, que nunca me ocorreu ficar aborrecida por ter entrado e tomado o meu quarto como se fosse sua dona.

Fumie era assim, e então entendi. Estava tão acostumada a conseguir tudo e qualquer coisa que queria, era uma segunda natureza para ela. Nem percebia que poderia estar ofendendo. Se alguém tivesse tentado repreendê-la, apenas teria rido deles.

Uma vez sentada, me encarou com muito mais polidez do que a educação indicava. Depois de um segundo ou dois, suas belas feições se enrugaram em descontentamento.

– Todas as garotas estão aqui como você? – perguntou.

Perplexa, balancei a cabeça. – Não. Nós somos todas diferentes.

– Ah. – Fumie parecia satisfeita. – Bom... Qual de vocês tem duas cabeças, então?

Fiquei de boca aberta em descrença. Quem na terra era essa garota rude, essa que achou que poderia entrar aqui e tomar conta do meu quarto e nos insultar?

– Nenhuma de nós – disse indignada. – Do que você está falando?

Fumie fez beicinho. Diria que aquele olhar conquistaria qualquer patrono, mas não sou um homem e não sou burra.

– Nós ouvimos histórias na Casa de Chá Verde que todas vocês... gueixas na Casa Oculta são diferentes do resto de nós. Mas você parece quase normal. O restante delas são como você? Não há muito sentido em mantê-las trancadas, se forem.

A fúria gradualmente se transformou em diversão. Perguntei-me quantos anos ela tinha. Parecia alguns anos mais velha do que eu, talvez quinze ou dezesseis no máximo, mas havia algo nela que era essencialmente infantil. Escondi um sorriso e pensei, certo, Fumie. Você está procurando por aberrações, então aberrações que vou te dar.

– Ah, são as partes que você não consegue ver que são diferentes – olhou para mim com os olhos arregalados e os lábios ansiosos. – Não eu, entende, mas algumas das garotas são ... diferentes – lambi meus lábios, imaginando o quanto de absurdo ela acreditaria. – Algumas delas têm partes masculinas e femininas.

– Não! – Fumie estava tentando parecer horrorizada, mas só estava conseguindo parecer fascinada.

Balancei a cabeça vigorosamente. – Ah, sim. E uma de nós tem três seios. E ... e, – pensei em algo ainda mais bizarro. – E, bem, hesito em entrar em detalhes pessoais uma vez que acabamos de nos conhecer, porém eu mesma não sou a mesma que as outras mulheres.

Tentei transparecer que sabia. O olhar de Fumie correu pela frente do meu robe solto, e ela assentiu com sinceridade.

– Você é meio bárbara estrangeira, não é? Sim, ouvi contos sobre os bárbaros.

Fiquei muito grata por ela ter sido educada o suficiente para não perguntar mais. Estava fascinada por ela, essa pequena e linda boneca de uma garota com seus traços perfeitos e corpo esguio. Perguntou se eu gostaria que cantasse para mim. Balancei a cabeça, e ela se levantou imediatamente e cantou alguns versos de uma canção popular. Sua voz cantada era tão doce e perfeita quanto o restante dela.  Sorriu para mim com condescendência e eu queria não ter gostado, mas era impossível.

Todos amavam Fumie. Impossível não amar. Ou pelo menos assim pensei.

Por alguma razão, parecia ter gostado de mim, e depois daquele primeiro dia viajou muitas vezes quando não tinha um cliente. Como dissera, a Tia parecia não se incomodar, apenas me instruíra a me certificar de que Fumie não fosse visitá-la quando alguma de nós, gueixa da Casa Oculta, tivesse nossos clientes presentes.

As outras garotas a olhavam com tanta curiosidade e respeito como se tivessem sido pagas para isso. Eu podia vê-la se perguntando, será aquela a de três seios? Será ela uma das infelizes com partes íntimas masculinas e femininas? Eu teria explicado que só estava brincando, mas logo percebi que não adiantaria nada. Uma vez que Fumie colocava algo em sua cabeça, não havia volta.

Estranhamente, nenhuma das outras garotas parecia nem um pouco interessada em minha nova amiga. Ela não pertencia ao nosso mundo, e se escolhi me divertir com ela, então isso era da minha conta. De qualquer forma, não teria importado se elas tentassem ser amigáveis ​​com Fumie. Ela era a pessoa mais sincera que já conheci. Havia decidido que eu seria sua amiga, e isso era tudo o que importava. Além da ávida curiosidade, ela não tinha nenhum interesse nas outras garotas. Com exceção de Carpi, que a fascinou.

Fumie não chegaria perto de Carpi. Quando ela a viu, fez de tudo menos se esconder nas minhas costas, deve ter sido apenas alguma polidez genuína que a impediu de fazer isso. Mas ela me perguntava sobre Carpi constantemente. Ela nasceu assim? Como ela come, se veste, se higieniza quando vai ao banheiro? Há algo mais sobre ela ... estranho? Respondi abruptamente. Carpi suportou suas malformações com imensa dignidade, e Fumie deveria honrá-la e fazer o mesmo. Fumie ficou de mau humor por uma hora ou duas e depois voltou a tentar adivinhar qual das garotas tinha três seios. Finalmente decidiu que era Kiku, e nada do que eu dissesse poderia fazê-la mudar de ideia.

Apesar de sua beleza e aparente liberdade, Fumie era tão escrava quanto o resto de nós. Sempre estava feliz em falar sobre si mesma, e não demorou muito para me contar sua história. Tinha uma forte impressão de que parte dela era ricamente inventada, mas Fumie era muito convincente, e era impossível desvincular a verdade da pura ficção.

Ela havia nascido em uma propriedade rural em Kyoto. Seu pai era um funcionário público de alta patente e ela era a única garota entre quatro irmãos. Não precisava dizer que fora uma criança mimada, isso era óbvio. Quando criança, se divertiu com o melhor de tudo. Tinha uma boa voz natural para cantar - isso era um fato, sem falsa modéstia - e seu pai a tinha ensinado shamisen para que pudesse cantar e tocar para ele à noite. Ela ficou surpresa por eu poder ler e escrever; o pai dela nunca viu necessidade de realizações tão pouco femininas, mas Fumie não se incomodou em questionar isso. Afinal, era sobre ela que estávamos falando, e esse sempre foi o assunto favorito de Fumie.

Sua mãe morreu depois de dar à luz seu irmão mais novo. Olhei para ela, incrédula, enquanto afirmava o fato sem rodeios e depois tagarelava mais sobre o resto de sua história. Muitas vezes pensei em minha própria mãe. Perguntava-me onde estava. Se ainda estivava com seu bárbaro estrangeiro, meu pai desconhecido. Se ela estava feliz ou se já se perguntou sobre mim, sua filha abandonada. Ocasionalmente, se tivesse certeza de que não seria interrompida, mantinha conversas imaginárias com ela, fazendo todas as perguntas que fiz a mim mesmo. Estranhamente, ela me dava respostas diferentes a cada vez. Mas Fumie parecia totalmente despreocupada com a própria mãe. Talvez tenha sido porque ela estava morta. Fumie não precisava se perguntar onde estava, o que havia acontecido com ela. Duvidava que Fumie nunca tivesse pensado em alguém além de si mesma. Claro, isso era outra coisa que eu estava errada, mas na época não tinha ideia.

De qualquer forma, lá Fumie estava com um pai e quatro irmãos, mas sem mãe. Seu pai logo arrumou outra esposa, como era natural, e foi essa esposa quem ocasionou a queda de Fumie. Aquela mulher, como Fumie se referia a ela, era de uma classe muito mais baixa que seu pai. Era a jovem viúva de um comerciante rico que trouxe não apenas riqueza para o sindicato, mas duas filhas dela mesma. De acordo com Fumie, suas novas irmãs eram simples e sem talento. Sua nova mãe estava com inveja de sua linda e inteligente nova filha.

Logo depois que seu pai se casou novamente, Fumie percebeu sua vida mudando. Seu pai não tinha mais tempo para ouvi-la tocar e cantar. Na verdade, parecia ter perdido todo o interesse em sua única filha. Desconcertada, Fumie começou a andar ao redor dele, como ela disse, "tentando fazer com que me amasse de novo", mas acho que ela só conseguiu irritá-lo com seus contínuos pedidos de atenção. De qualquer forma, depois de alguns meses, Fumie foi convocada pelo pai e apresentada a uma mulher mais velha que nunca vira antes.

– Ela estava muito bem vestida – disse Fumie. – Mas de uma maneira particularmente vistosa, e usava alfinetes demais em sua peruca. Papai disse que ela deveria ser minha nova mãe bem como eu precisava obedecer o que ela dissesse. Estava perplexa. Já tive minha própria mãe e a nova esposa do pai, então por que eu precisava de outra mãe? A mulher acenou para que eu fosse até ela e colocou seu rosto tão perto do meu pude sentir sua respiração. Ela foi muito rude, mas meu pai disse que deveria fazer o que me foi dito, então fiquei parada enquanto ela cutucava e cutucava em mim. Finalmente perguntou ao meu pai se eu era virgem, e ele ficou muito zangado e disse, claro, que eu era. Eu não tinha ideia do que ela quis dizer. De qualquer forma, disse que eu faria e meu pai me disse que iria com ela, que seria treinada como uma gueixa, e ficaria muito famosa e teria muitos homens que iriam querer se casar comigo.

Fumie sorriu maliciosamente, ergueu o queixo, tocando para uma plateia invisível.

– Então eu fui com a mulher que me trouxe para Edo. Não fiquei com ela por muito tempo. Depois de algumas semanas, a Tia veio dar uma olhada em mim e levou-me para a Casa de Chá Verde, e aqui estou eu. Papai estava certo, claro. Sou uma gueixa, sou famosa e muitos clientes me querem para si. Ela tocou o rosto num gesto estranho, como se seus dedos pudessem confirmar o que já sabia, que era realmente bonita. Os mesmos dedos foram até a peruca e afagaram um lindo pente vermelho. Vendo-me olhando para ela, sorriu, mas não muito abertamente. Era importante não desfazer o rosto cuidadosamente inventado.

– Meus pentes vermelhos são feitos de bicos de guarda-rios. Eles são absurdamente caros. Um patrono me deu um conjunto, dois para cada dia da semana. Não são lindos?

Balancei a cabeça, embora em particular sentisse que o bico do guarda-rios teria ficado muito melhor se eles ainda estivessem presos ao guarda-rios. Eu não invejei o troféu de Fumie. Se fossem meus, sempre me sentiria culpada pelos belos pássaros que haviam sido abatidos por meu capricho.

Confundindo minha falta de entusiasmo com a dúvida sobre seus pentes, Fumie fez beicinho e repetiu suas palavras. – Eu sou muito famosa, você sabe. Patronos vêm de todos os cantos de Edo por mim. A Tia disse que recebi a maior taxa paga por um mizuage.

Ela parecia totalmente despreocupada por qualquer lembrança de seu mizuage. Nem, infelizmente pensei, parecia entender que ter muitos clientes não era exatamente a mesma coisa que ter muitos homens fazendo fila para se casar com ela. Todavia, Fumie era tão superficial que me perguntei se compreendia a diferença. Certamente, parecia pouco desolada por ter sido separada de sua família.

Estranhamente, Fumie de repente parou de me visitar. Fiquei surpresa no começo, mas depois dei de ombros. Sem dúvida, Fumie se cansara de mim ou talvez recebera um cachorrinho de estimação ou macaco que ocupara meu lugar.

Eu estava errada sobre isso também.

Quando Fumie voltou para a Casa Oculta, um cego poderia ter visto que algo havia acontecido com ela. Sempre linda, agora estava radiante e mal podia conter sua felicidade. Assim que meu shoji foi fechado, ela deixou escapar que estava apaixonada. Meu coração desmoronou.

– Um de seus clientes? – perguntei esperançosamente.

Fumie riu de mim. – Aqueles homens velhos? Claro que não! Ele é um estudante. Pouco mais velho que eu. De uma família muito boa. Tão lindo, Midori! Eu me apaixonei por ele no momento em que o vi, e ele sente o mesmo por mim.

Poderia ter desestruturado a boba cadela. Não que isso teria surtido algum bom resultado, é claro. Uma vez que a mente idiota de Fumie estava decidida, nada poderia dissuadi-la.

– Bem, isso é ótimo para você – eu disse cautelosamente. – Mas não há muita coisa que você possa fazer sobre isso, correto? Quero dizer, você deve tudo à Tia. A única maneira que você pode sair da Casa de Chá Verde é se um danna te comprar.

Um pensamento repentino me surpreendeu, e me perguntei esperançosamente:

– Você diz que ele é de uma boa família? Ele é rico o suficiente para comprar você?

Fumie deu uma risadinha. De maneira encantadora, claro. – Ah não. Ele não tem dinheiro próprio. Apenas o que seu pai lhe dá. Não terá muito dinheiro até sair da universidade.

Olhei para ela em descrença. Poderia até Fumie ser tão idiota? Pelo menos aparentemente poderia. Ela se remexeu alegremente.

– Nós nos encontramos no rio quando eu estava em um passeio com um patrono. Senti-o me observando e ele nos seguiu de volta à Casa de Chá Verde. Ele não podia pagar uma gueixa, claro, certamente não a mim, mas se esgueirou, esperando até que eu o visse pela janela, e foi isso. Nós conversamos e emprestei-lhe algum dinheiro para que pudesse entrar pela porta da frente e me comprar por aquela noite.

Mesmo para Fumie, isso era demais. Pagou o menino para comprar seus serviços? Eu queria bater minha cabeça no chão.

– Vamos fugir, Midori. Quando estivermos juntos por alguns dias, a Tia terá que aceitá-lo, e seu pai também. Quando nos casarmos, o pai dele permitirá que receba sua herança mais cedo, então teremos muito o que viver. Tenho tudo programado.

Fui de exasperada para horrorizada no espaço de poucas palavras. – Não, Fumie, não. Isso não vai funcionar. A Tia nunca vai deixar você ir. Ela vai te encontrar e te trazer de volta e te castigar. E o pai do garoto nunca permitirá que ele se case com uma gueixa. Este é um papel do kabuki, não da vida real. Escute-me por favor.

Mas Fumie não me ouviria. Ela jogou de lado todas as minhas preocupações e disse que eu estava com ciúmes dela. Escondi minha cabeça com minhas mãos em prantos, mas ainda assim Fumie não me ouvia. Para piorar, ela queria que eu a ajudasse.

Ela havia arquitetado um plano bobo pelo qual ficaria escondida no meu quarto até que toda a Casa de Chá Verde estivesse em silêncio. Uma vez que estivesse seguro, eu a deixaria sair da Casa Oculta e seu garoto estaria esperando por ela. Eles então fugiriam juntos, saindo do Mundo Flutuante. Disse que não funcionaria, foi em vão. Que mesmo se eu pudesse tirá-la do Casa Oculta sem ser vista, não sairia do Mundo Flutuante. Os portões eram fechados à meia-noite e só abriam para deixar os clientes saírem ou que uma gueixa fosse levada de volta à sua Casa de Chá.

Ela simplesmente olhou para mim teimosamente. – Não me importo com o que  você  diz.  Farei   isso!  Quer  me  ajude   ou  não.

Ela se levantou e saiu e foi a última vez que vi Fumie.

Nós ouvimos a história, é claro. De alguma forma, ela se evadiu da Casa de Chá Verde. Mas seu pretendido não estava esperando por ela, e uma vez fora, sozinha, Fumie não tinha ideia do que fazer ou aonde ir. Ela se afastou, provavelmente procurando por seu amante, e viu-se de volta ao rio, no mesmo local onde o vira pela primeira vez. Simplesmente ficou lá a noite toda. Foi lá que os Garotos a alcançaram. Deve ter sido verdade que a Tia a amava, quando soubemos que os Garotos haviam sido instruídos a devolver Fumie e tratá-la gentilmente. Se eles obedeceram as instruções ou não, ninguém jamais descobrira.

Fiel ao seu credo de garantir que todos a notassem bem até o último minuto de sua vida, Fumie viu os Garotos se aproximarem dela e conseguiu subir no parapeito da ponte, onde ela oscilou, gritando para que a deixassem em paz ou ela iria pular. Naquela época, é claro, uma grande multidão havia se acumulado.

Aparentemente, os Garotos tentaram colocar um pouco de juízo na cabeça dela, mas assim que chegaram perto, Fumie executou sua ameaça e pulou.

Até hoje, acho que ela não tinha intenção real de cometer suicídio. Porém, ao contrário de uma água razoavelmente rasa que Fumie antecipara, o rio naquele ponto se transformou em uma bacia profunda. Pior ainda, a água estava entupida de ervas daninhas, ervas daninhas que seguravam e retiam o que quer que capturassem. Seu quimono e as roupas de baixo eram pesadas, e em poucos segundos ela havia afundado abaixo da água. Ela não sabia nadar, é claro, mas não faria diferença se pudesse. O rio a queria e o rio a levou.

Ouvimos dizer que os Garotos desceram rapidamente para a margem do rio e mergulharam. Deviam estar verdadeiramente aterrorizados com a ira da Tia porque também não podiam nadar. Mas não foi nada bom. O rio não estava prestes a desistir de seu prêmio facilmente, e foi quase uma semana depois que o corpo da pobre Fumie apareceu, bem abaixo dos arredores de Edo.

Ela havia deixado o Mundo Flutuante depois de tudo, mas não como esperava.

A morte de Fumie rendeu fofoca para as garotas por semanas. Embora elas não a conhecessem de verdade, não conseguia entender como poderiam tratá-la tão levianamente. Eu estava profundamente chateada, tanto pela pobre e boba Fumie quanto pelo que vi como minha parte na tragédia.

Uma e outra vez me perguntava, se a tivesse ajudado teria sido diferente? Ela ainda estaria viva? O pensamento não me daria paz. Eventualmente, decidi que era minha culpa. Poderia não ter matado Fumie, mas se tivesse cedido e a ajudado, ela não estaria morta.

Minha culpa. Tudo minha culpa.

Ironicamente, no fim das contas, foi a realista Carpi que me impediu de me preocupar com a sepultura de Fumie.

– Por que você está deprimida? Não me lembro quando vi pela última vez seu sorriso.

Olhei para ela indignada. – Parece que você esqueceu que Fumie era minha amiga. Eu me culpo por estar morta.

Carpi olhou para mim, franzindo a testa, e então sua expressão suavizou-se um pouco. Foi o suficiente. Comecei a contar a história de Fumie e como ignorei seu pedido de ajuda. Quando terminei, Carpi sacudiu a cabeça.

– Isso não teve nada a ver com você – disse ela com firmeza. – Se tivesse conseguido mantê-la escondida e conseguisse sair, seu pretendido ainda não estaria lá, estaria? E você conhecia Fumie melhor que o resto de nós. Você realmente acha que alguma vez teria entrado em sua cabecinha vazia e feito com que voltasse para a Casa de Chá Verde? Isso teria sido muito brando para ela. Ah não. Não importa o que, ela teria se regozijado disso. É aquele desgraçado, que ela achava que estava apaixonada, quem deveria estar chorando. Você sabia que ele estava prometido a outra garota todo esse tempo? Balancei a cabeça, incrédula.

– Bem, ele estava. Seu pai havia arranjado o casamento anos atrás. Ele nunca teve qualquer intenção de fugir com Fumie. Simplesmente não podia acreditar na sua sorte quando ela se apaixonou por ele.

– O bastardo! – eu disse amargamente.

Carpi sacudiu a cabeça. – O que você poderia esperar? Nós vivemos no mundo dos homens. Não importa como, estamos sempre à disposição. Se fôssemos nobres e livres, ainda assim seria de se esperar que nos casássemos com quem quer que nosso pai quisesse, não importando quão velho e feio fosse o homem. Lembre-se disso, Midori No Me. Pelo menos somos pagas pelos nossos serviços. Ganhamos mais do que a maioria das mulheres.

Ela se inclinou para frente e esfregou sua bochecha contra a minha e sorri, embora com tristeza. Mas estava eternamente grata pelo bom senso dela.

E agora a história se repetiu. Ainda não conseguia acreditar que Carpi, de todas as pessoas, havia fugido. Não somente isso, mais uma vez, eu havia negado ajuda a uma amiga.

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Os Garotos a encontraram. Carpi foi encontrada e levada de volta no final da tarde, dois dias depois de ter desaparecida. Ficamos todas surpresas por ela ter evitado ser capturada por tanto tempo. Apesar de todos os avisos da Tia, a fofoca se filtrou imediatamente. Carpi fora encontrada morando com uma tribo de burakumin errante nos arredores de Edo. Não se sabia se ela tinha chegado tão longe sozinha ou se tinha sido levada pelos burakumin.

O que descobrimos foi que a Tia tinha falado com ela e Carpi dissera-lhe que voltaria a fugir assim que tivesse a oportunidade. Ouvi isso de Suzume, que estava consertando um rasgo em um quimono na sala de estar da Tia, quando os Garotos trouxeram Carpi de volta. Fui atingida pela culpa. A pobre Carpi havia voltado para as únicas pessoas que já cuidaram dela. Pelo menos, cuidava dela melhor do que eu.

Nenhuma de nós ousou deixar nossos quartos. Mesmo que Carpi fosse, fora, a favorita da Tia, mesmo que estivesse doente, teria que ser punida. A Tia não iria, não poderia deixá-la sair ilesa. Cumpriria com seu dever de punir Carpi e nada diminuiria essa punição.

Então nos sentamos em nossos quartos, com os dedos em nossos ouvidos, nossas cabeças enterradas em nossos futons enquanto tentávamos não ouvir os gritos de Carpi. A Tia tinha deixado os Garotos à vontade com ela. Ambos.

Senti a dor de Carpi ainda mais do que as outras garotas. Eu soluçava, desejando ter feito o que Carpi havia pedido. Pelo menos tinha ajudado, sem dor, a aliviar seu caminho de um mundo que se tornara um anátema para ela. Desejei não ter falhado com ela, assim como falhara com Fumie. Senti toda crueldade que os Garotos infligiam nela em meu próprio corpo.

Quando Carpi não teve mais fôlego para gritar e só pôde soluçar, esperei até ter certeza de que os Garotos tinham ido embora. Por mais que eu quisesse correr para Carpi, gritar com eles para pararem, para deixá-la em paz, não conseguiria me mexer, sabendo perfeitamente que, se tentasse interrompê-los, se voltariam para mim, alegremente.

Odiei os dois mais do que qualquer outra pessoa em minha vida, e prometi que, se estivesse em condições, iria vingar minha Irmã mais velha a cada momento de dor que infligiram a ela.

Quando ouvi que os Garotos saíram, rindo juntos, me forcei a levantar e ir até Carpi. Eu estava estranhamente feliz por estar sozinha e pelas outras garotas não terem ousado vir. Apenas a pequena Suzume se juntou a mim na porta de Carpi e nos olhamos com medo antes de nos atrevermos a entrar.

Carpi se enrolou na cama e ficou tão imóvel parecendo que estava morta. Nós nos ajoelhamos ao lado dela, uma de cada lado, e puxei o futon superior para longe do rosto dela gentilmente. Por um momento, achei que não estava respirando. Fiquei feliz por isso. Fiquei feliz por ela. Então percebi que estava errada, que estava respirando, mas muito superficialmente. Com muita cautela.

Com a ajuda de Suzume, arrumei a cama. Carpi estava nua e lágrimas escorriam pelo meu rosto quando percebi a dor que os Garotos tinham infligido em seu pobre corpo. Eles tinham sido cuidadosos em não deixar nenhum hematoma, nenhum corte, mas Carpi estava sangrando gravemente tanto em suas partes íntimas quanto em seu traseiro. Sem perguntar, Suzume se levantou e correu para trazer uma tigela de água quente e panos, e fizemos o melhor para limpar e acalmar Carpi.

Eventualmente, ela abriu os olhos e tentou falar. Eu a silenciei e assenti.

– Irmã mais velha. Sinto muito. Sinto muito mais do que eu posso dizer. Se tivesse te ajudado quando você me pediu, isso não teria acontecido.

Carpi balançou a cabeça lentamente e colocou a mão no meu braço. Minha culpa dobrou. Carpi estava tentando me acalmar, para me dizer que não era minha culpa.

– Isso não vai acontecer novamente. Prometo. Não vou falhar com você desta vez.

Carpi fechou os olhos e respirou ruidosamente pela boca. Percebi, com uma pontada de pena e raiva, que um dos dentes da frente dela tinha sido quase retirados e estava empurrando para o lado sua gengiva. Mais uma pequena ferida na panóplia dos grandes.

Olhei para Suzume, desejando que ela ajudasse. Olhou para Carpi severamente e assentiu.

– O que você precisar, Midori No Me. Vou ajudar. Sorriu timidamente.

– Afinal, não importa o que os Garotos fizeram comigo, não sentirei nada.

Segurei a pobre mão inválida de Carpi, a beijei, ela suspirou profundamente.

Peguei Suzume e expliquei em outro local, em segredo, como eu deixara Carpi em maus lençóis. Ela não se incomodou em tentar me fazer sentir melhor, mas simplesmente disse que desta vez teriam duas, e nós duas poderíamos ajudar Carpi a ir para o outro mundo. Fiquei tão aliviada. Quase chorei de novo.

Embora as outras garotas soubessem que eu estivera com Carpi, não me perguntaram nada. Era como se Carpi já estivesse morta para elas. Talvez estivesse. De qualquer forma, rezei de joelhos para os deuses da casa da Tia que Suzume e eu estávamos fazendo a coisa certa e que teríamos sucesso.

Dei a Suzume algumas moedas do pequeno estoque que recebi de presentes de meus clientes, e ela disse que iria ao farmacêutico assim que pudesse sair. Eu teria voluntariamente ido, mas Suzume disse que seria melhor se ela fosse. Minha ausência seria notada, a dela não seria. Apesar de suas palavras confiantes, eu estava quase doente de nervosismo quando ela voltou.

Estava determinada que, desta vez, tudo seria feito corretamente, que Carpi morreria com dignidade e sem dor. Certamente já havia sofrido o suficiente.

Suzume e eu rastejamos para o quarto dela naquela noite, quando todos os demais foram para a cama. Era muito tarde, já que várias garotas haviam entretido os clientes até a madrugada. Provavelmente era apenas minha imaginação, mas tinha certeza de que cada uma delas estava acordada e prendendo a respiração na privacidade de seus próprios quartos. Reservei uma oração rápida pelos meus próprios interesses, pedindo aos deuses que fizessem com que guardassem qualquer conhecimento que tivessem para si mesmos.

Carpi estava esperando por nós. Quando deslizei a shoji para abrir, ouvi-a suspirar, quieta como um bebê farejando feliz em seu sono. Sabendo que estava dando boas-vindas à morte mais do que nunca na vida, isso fez as lágrimas borrarem meus olhos, mas pisquei jogando-as para longe. O maior presente que podíamos dar à minha Irmã mais velha era o da morte, e não poderia haver volta agora.

Suzume me ajudou a deixar Carpi confortável em seu futon. Tão certo ela estava de que viríamos que tinha deixado seu obi sobressalente ao lado de sua cama. Envolvemo-lo com cuidado em torno de suas pernas, amarrando-o frouxamente, numa tentativa de fazer com que parecesse que ela tinha conseguido por si mesma. Era tradição para um suicida amarrar suas pernas para manter seus corpos retos. Uma cortesia para quem os encontrava. Carpi ficou imóvel, observando-nos com calma.

Suzume preparou um cachimbo de ópio para ela, e Carpi o pegou com avidez. Quando ela entrou no sono, o sono que seria eterno, misturei o destilado de flores que Suzume comprou com saquê e segurei-o nos lábios de Carpi. Engoliu todo o conteúdo de um gole e deitou-se com um suspiro.

Nós nos sentamos em nossas coxas e cada uma segurava em uma das mãos de Carpi, as mãos que eu sempre achara tão repugnante em sua vida, e esperei até que seu aperto esmorecesse. Quando tínhamos certeza de que ela havia parado de respirar, ficamos de pé e inclinei a taça vazia de lado pelo ombro dela, como se ela tivesse bebido dela onde repousava no chão. Deixamos a garrafa de veneno vazia ao seu lado.

Nós rastejamos para longe como fantasmas silenciosas, e senti o espírito de Carpi, livre de suas correntes mundanas, passar por mim alegremente no corredor.

Fiquei muito feliz.

Havia um inferno para pagar na manhã seguinte. Se eu tivesse pensado que estava ruim quando a Tia descobriu que Carpi havia fugido, não era nada comparado à sua fúria agora. Uma de nós, ela sibilou, ajudou Carpi a cometer suicídio. Mesmo que tivesse conseguido fazê-lo sozinha, nunca teria conseguido comprar o veneno. Ela não tinha nada com ela quando os Garotos a compraram de volta, a Tia tinha certeza disso.

Se quem quer que tenha feito isso não confessasse agora, ela puniria todas nós. Cada uma seria dada aos Garotos uma por vez. Eles ficariam felizes em nos ensinar uma lição. A pequena Masaki começou a chorar, sem dúvida antecipando a dor que os Garotos infligiriam em seu minúsculo corpo. Até mesmo Kiku estava mordendo o lábio e parecendo apavorada. Não estava bom, pensei. Teria que admitir. Não importasse o que os Garotos fizessem comigo, não poderia viver comigo mesma se deixasse o resto das garotas sofrer pelo que eu fizera.

Quando eu estava prestes a levantar a cabeça e confessar, Suzume ficou de pé. Ela estava com as mãos grudadas na frente do rosto, a cabeça abaixada. Toda a sua postura era eloquente de terror.

– Tia, fui eu. Sinto muitíssimo. Não sabia! – sua voz se ergueu em um lamento de tristeza. A Tia olhou para ela incrédula.

– Você Suzume? Você deu veneno a Carpi? Por quê? Como?

– Não, eu não dei a ela. Ou pelo menos não exatamente. Carpi me contou que os Garotos a machucaram muito, e pediu que pegasse algumas coisas no farmacêutico para aliviar a dor. Era a mesma coisa que a gueixa usa em seus olhos, para fazer as pupilas grandes, no entanto, não achei que poderia haver algum problema nisso. Então, comprei um pouco para e dei para ela e agora está morta e é tudo culpa minha.

A voz de Suzume se elevou em um gemido. Mesmo sabendo o quão boa atriz ela era, quase acreditei nela. Lágrimas escorriam pelo seu rosto e ela caiu de joelhos na frente da Tia batendo a cabeça no chão. O rosto da Tia era um assombro só. A descrença perseguiu a raiva em seu rosto, ambas finalmente dando lugar a algo que parecia mais com alívio. E foi certamente alívio que senti pairando sobre o restante das meninas.

– Entendo. De que forma era o veneno, Suzume?

Suzume levantou a cabeça, com uma expressão de perplexidade surgindo debaixo das lágrimas. – Estava em uma garrafa, Tia – disse inocentemente.

A Tia lançou-lhe um olhar firme e eu mentalmente gritei para Suzume não exagerar.

– E o que estava na garrafa, criança? Pó? Líquido? Casca que teve que ser esfregada?

O rosto de Suzume se esclareceu. – Era um líquido, Tia. Levei-o para Carpi e ela pediu-me para derramar um pouco em um copo com um pouco de saquê. Disse-me para colocar o copo no futon e deixá-la. E assim eu fiz. Ah, fiz um cachimbo também, como ela pediu.

A Tia assentiu. Por mais que tentasse, não podia dizer pela expressão dela se acreditava ou não em Suzume. Se não acreditasse, então decidi que seria minha vez. Fosse com os Garotos ou não.

– Entendo. E quando você saiu de Carpi, onde estava seu obi?

Tentei fingir que não estava olhando para Suzume como se minha vida dependesse da resposta dela, o que provavelmente aconteceu. Ambas as nossas vidas, pensando bem. Estranhamente, me senti muito calma. Se eu morresse, pelo menos a minha Irmã mais velha estaria esperando por mim. Por nós duas. Suzume franziu a testa, como se estivesse dando à pergunta estranha uma séria consideração.

– Carpi estava vestindo o roupão de dormir, por isso não foi fixada uma faixa.

Ela apertou os olhos, como se estivesse tentando recordar a cena. Sua boca abriu e fechou, como se um pensamento tivesse acabado de surgir.

– Eu sei. Seu quimono estava pendurado na parede, e seu obi ... seu obi estava no chão, não muito longe do futon. Como se estivesse pendurado no quimono e tivesse escorregado do cabide.

Ela sentou-se e olhou para a Tia com uma expressão esperançosa. A Tia olhava para ela de um jeito que me faria tremer e confessar meus pecados, mas não teve efeito algum na astuta Suzume.

– Entendo. Bem, parece que Carpi de alguma forma conseguiu amarrar seu obi ao redor de suas pernas. O líquido que você deu a ela era um veneno, Suzume, então você a ajudou a se matar.

A boca de Suzume se abriu e ela gemeu alto. A Tia franziu a testa e acenou para ela ficar quieta.

– Não foi sua culpa, criança – fechei os olhos em alívio. – Se Carpi estivesse determinada a cometer suicídio, teria conseguido de uma forma ou de outra. Tem certeza de que não disse nada para você?

O rosto de Suzume era a imagem da inocência. Ela balançou a cabeça vigorosamente. – Ela não teria falado comigo sobre isso, Tia – disse na maior simplicidade. – Não para uma empregada.

– Isso é verdade – admitiu a Tia. Por sua vez, ela olhou para o resto de nós.  – Ela não disse nada para o resto de vocês meninas? Nada mesmo?

Todas nós balançamos nossas cabeças com firmeza. Pedi desculpas a qualquer deus que estivesse escutando a mentira.

– Nenhuma de nós teve a chance de falar com ela antes da noite passada – Naruko disse timidamente. – Não tínhamos ideia. Nenhuma mesmo.

A Tia respirou fundo e se levantou, apoiando-se na bengala. – Você vai esquecer isso. Todas vocês. Não quero ver aqui lamentos sobre o suicídio de Carpi. Esta é uma casa de alegria, não de tristeza. E você, Suzume. O seu mizuage é em breve, não é?

– Sim – resmungou Suzume sem levantar o olhar do tatame.

– Bem, suponho que você não sabia o que estava fazendo. Mas no futuro, você vai me dizer antes de levar qualquer recado para uma gueixa. Como sempre, vou ter que pensar muito em um danna adequado para seu mizuage.

Ela saiu sem dizer mais uma palavra e todas nos sentamos, mudas. Ninguém ousou olhar para as outras, mas sabia que todas sabiam que eu havia ajudado Carpi a partir deste mundo.

Estava intensamente grata por todas terem permanecido em silêncio. Foi mais do que esperava. Diante da ameaça dos Garotos, fiquei imaginando se teria tanta coragem.