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Estava combinado António ter uma aula comigo na terça-feira, dia 23 de maio. Mas na manhã desse dia deixou-me uma mensagem no atendedor automático dizendo que estava doente e que tinha de cancelar. Pela voz, pareceu-me bem. Devolvi-lhe a chamada, mas não atendeu. Não fiquei preocupado.
Na quarta-feira, uma secretária do Conservatório veio ter comigo a meio de uma aula. Disse-me que o pai de António tinha acabado de telefonar. O miúdo estava no Hospital de Santo António com sintomas de zona.
– Mas normalmente não se vai para o hospital por causa disso – respondi.
Ela encolheu os ombros.
– Deve ter sido um ataque muito forte.
Anotei o número do quarto e fui vê-lo à hora da visita, quatro da tarde. Cruzei-me com o médico dele, um homem baixo com ar desleixado e barba mal aparada, no hall que levava ao quarto de António. Chamava-se Silva. Disse-me em tom tranquilizante que António estava com zona e gripe ao mesmo tempo. Tinha sido hospitalizado para prevenir uma pneumonia. Não corria qualquer perigo imediato.
Fiquei aliviado.
A seguir confidenciou-me que tinha mandado fazer um teste de VIH e que dali a uma semana já teria resultados.
Imaginem o coração a despenhar-se e a cair-nos aos pés.
Acordei numa cama de metal. Uma enfermeira de pele pálida e mãos borrachosas afagava-me o rosto. Trouxe-me um copo de água.
Tinham-me posto uma gaze na testa. Conseguia senti-la.
– Bateu com a testa no chão – informou-me ela. – Não lhe toque.
A ferida foi limpa e desinfetada.
Apanhei um táxi para casa sem ter visto António.
Não conheces o meu amigo Pedro, porque tinhas medo de conhecer qualquer um dos professores da minha escola, não fossem eles ficar com a ideia de que tu e eu éramos amantes. Mas deves ter-me ouvido falar dele.
Um metro e cinquenta e oito de altura.
Uruguaio.
Camisolas e jeans coloridos. Sandálias de couro sobre pés nus quando está calor; sandálias com meias brancas de lã quando está frio.
Um nariz azteca em gancho; narinas dilatadas quando toca guitarra.
Hétero. Quero dizer, hétero mesmo. Não como tu, porque não precisa de fingir a explosão no cérebro quando o seu desejo vai ao encontro do mundo antimaterial de uma sombra húmida de mulher.
Incomoda-te a minha linguagem?
Ótimo.
Na quinta à tarde, depois das aulas, Pedro apresentou-me a um brasileiro chamado Ricardo. Encontrámo-nos na sala de chá do Museu de Arte Contemporânea do Porto. Mandámos vir scones e Earl Grey. Sentámo-nos lá fora, ao sol, debaixo do magnífico caramanchão de glicínias que tu achavas demasiado exuberante porque tens o medo da exposição que assola todos os que não saem do armário. Rimos à gargalhada como americanos em férias e brincámos com ditos jocosos o melhor que pudemos. Ricardo tem olhos verdes amendoados, um rosto magro e astuto, e cabelo preto e comprido apanhado atrás num rabo de cavalo.
A mãe é japonesa e o pai, brasileiro.
É professor de História num liceu do Bairro Vila Indiana de São Paulo.
Gosta de ir a festas de carnaval com máscaras de nariz comprido e pontiagudo.
Não consegue dormir se tiver um único mosquito no quarto.
Gosta do silêncio de Portugal.
Quando o vi pela primeira vez, estava sentado a uma das mesas na sala de chá do museu. Emanava uma confiança e elegância naturais que me fizeram sentir inveja. Admito que teria gostado de dormir com ele. Talvez porque ainda tivesse a gaze na testa e me sentisse tão ansioso.
Parei de o desejar mal abriu a boca. Apesar do sotaque brasileiro e o rabo de cavalo, falava com a gravidade de um intelectual europeu. Disse que tinha quarenta e um anos e que era a primeira vez que vinha a Portugal. Quando lhe perguntei porque escolhera ser professor de História, respondeu que o irmão mais velho fora morto pela polícia de segurança da ditadura brasileira em 1969.
Desde o assassínio do irmão, Ricardo passara a interessar-se por tudo aquilo que o recordasse dele, considerando vital não se esquecer de nada, nem mesmo do seu cheiro.
Foi a expressão que ele usou: nem mesmo do seu cheiro.
Parei de beber o chá. Olhámos fixamente um para o outro. Seria o reconhecimento de uma alma gémea?
Essa preocupação com a memória levara Ricardo a investigar a História.
– Porque está o cavalo de Troia tão fixo na nossa mente? – perguntou-me. – Porquê Auschwitz? O que foi que nós esquecemos, e porquê?
– Não sei – respondi. – Qual é a razão?
– Também não sei. Ainda estou buscando a resposta. Essa é uma das razões por que aqui estou.
Recomecei a beber o chá. Fixei-o de olhos semicerrados, desconfiado, como se escondesse qualquer coisa.
– Não tenho mesmo uma resposta – repetiu.
– Alguém quer lançar uma hipótese? – perguntou Pedro.
O brasileiro comeu o resto do scone, levou uma mão à cabeça e pôs-se a puxar o rabo de cavalo. Olhou diretamente para Pedro e disse:
– Acho que tem a ver com a nossa perceção do tempo como uma coisa através da qual nos movemos. Acredito que nos lembramos, porque, se não nos lembrássemos, deixaríamos de nos aperceber do tempo dessa maneira. Seria como uma coisa estática. Por outras palavras – acrescentou, irritado consigo mesmo por ser tão obscuro –, fazemos um contrato connosco próprios. – Olhou fixamente para mim. – Dizemos: «Vou-me lembrar do meu irmão, ou dos meus pais, ou de qualquer acontecimento terrível.» E porquê? Para podermos continuar a avançar para o futuro. Se não assumíssemos esse compromisso, ficaríamos presos num mundo em que o tempo deixou de correr. E os seres humanos não conseguem viver assim.
Agora eu estava mais interessado nele do que nunca, porque conseguia ver que era tão louco como eu.
– Então, e porquê Portugal? – perguntei. – O Brasil não tem história que chegue para si?
– Descobri recentemente que o meu pai e os seus antepassados eram judeus… judeus de Portugal que passaram séculos escondendo suas crenças.
Seria esta mais uma coincidência a ligar-nos? Com um significado oculto?
Qual quê?!
Pedro apresentara-nos precisamente por essa razão. Todos os exilados políticos da América do Sul são casamenteiros natos sem emenda possível.
Nessa altura, a confissão de Ricardo irritou-me, porque andava farto da História dos judeus. Por isso, fui um pouco grosseiro e pensando nos nossos irmãos mortos, atirei:
– Com tudo o que temos vivido, quem se rala com o que aconteceu aos nossos antepassados há já tantos anos?
Pedro pôs-me a mão no braço, como um progenitor que suplica ao filho que seja razoável.
– O que sabes tu sobre a Cabala? – perguntou. – Esse é que é o verdadeiro interesse do Ricardo.
Revirei os olhos.
– Não vale nada. Se queres uma filosofia útil, lê os livros do Stephen King.
Pedro franziu-me o sobrolho porque é delicado, inteligente e não gosta de que eu diga palavrões nem coisas estúpidas.
– Achas que os enigmas do Zohar ajudaram os judeus a escapar à Inquisição? – inquiri. – E os manuais de Joseph Ashkenazi… impediram os meus tios-avós de ir parar aos campos da morte? Será que um amuleto com um nome secreto de Deus ajudou verdadeiramente quem estivesse a morrer de sida?
– A esperança… – respondeu Ricardo. A voz dele era ansiosa. Agarrou na chávena de chá como se planeasse fechar a mão e esmagá-la. Cheguei-me atrás na cadeira, esperando que não me atirasse com estilhaços de porcelana. – Há muito tempo, precisei de uma filosofia qualquer que me vinculasse à esperança – disse. – E não tinha uma. Essa é outra das razões por que estou aqui. Não foi só meu irmão. A polícia de segurança me deteve pouco depois de o deter a ele e me levou para uma casa perto de Iguape. Queriam que eu lhes dissesse coisas sobre meu irmão. Um homenzinho de bigode, tão insignificante que nem repararíamos nele se o víssemos na rua, pôs-me elétrodos em diversas partes do corpo… as partes mais sensíveis. E a dor foi tal que nunca conseguiria descrevê-la. Foi então que perdi a esperança. Lembro-me do instante em que ela se evaporou de mim. Era como se num momento estivesse prenhe e no momento seguinte tivesse dado à luz um nado-morto. Estava vazio. Não recuperei a esperança, nem sequer ao fim desses anos todos. Teria preferido mantê-la. Só que não sei como ressuscitar um nado-morto.
Baixei os olhos por instantes, e ele recostou-se. Quando o encarei de novo, perguntei:
– Mesmo que a esperança seja uma ilusão?
– Mesmo assim.
– Então diga-me uma coisa… – E foi nessa altura que os meus receios sobre António saíram em catadupa: – Tenho um aluno no hospital. É um miúdo lindo. Acabou de fazer vinte e quatro anos. Nasceu para tocar guitarra clássica. Nada tenho para lhe ensinar, exceto talvez um pouco sobre música e paixão. Mas provavelmente está a morrer. Dormiu com um drogado, um colega dele, e agora está de saída. Vai receber o resultado do teste de VIH daqui por seis dias. Tenho medo de já saber a resposta. Rezo para estar enganado. Mas talvez não lhe restem mais de cinco anos de vida. Acha que ele deve ter esperança? Deveríamos dar-lhe esperança?
– Você nunca foi torturado – disse Ricardo.
Tenho-me exercitado para ficar calado quando me sinto furioso. Pedro começou a falar, mas eu ergui a mão como um polícia sinaleiro a parar o trânsito. Foi a minha vez de me inclinar para a frente.
– Não, e por isso não posso ser aceite no seu clube – respondi, agressivo.
– Não se trata de um clube. O que eu ia dizer é que, se tivesse sido torturado, compreenderia que a esperança é uma espécie de magia.
– Vá-se lixar! – Estou tão farto de gente que acha que a vida tem um núcleo mágico, que de cada vez que oiço essa conversa sinto os ouvidos a sangrar.
– Ou talvez seja auto-hipnose – continuou Ricardo. – Não conheço os mecanismos do cérebro. Mas imagine que você conseguia transformar seu corpo em esperança… forjar uma armadura de esperança. Seria um objetivo digno de alcançar, não acha? E talvez não o salvasse de um campo da morte, ou de um sacana brasileiro a dar-te choques elétricos, nem salvasse a vida do seu aluno… mas você morreria em paz.
Levantei-me de um salto, e a cadeira caiu com estrondo. No entanto, falei com a calma de quem conhece o seu argumento de trás para a frente.
– Não me percebeste de todo. Não quero morrer em paz. Quero morrer zangado. Estás a perceber? Quero esbracejar, e gritar, e dar pontapés. E é precisamente aí que quero chegar… Quero que também o António morra zangado. Porque deve. Tem vinte e quatro anos. Percebes? Não quarenta, como tu e eu. Vinte e quatro anos, porra!
Pedro tapou os ouvidos com as mãos, porque eu começara a gritar. Disse-me uma vez que já tinha essa sensibilidade antes de ser torturado, mas acho difícil de acreditar. Todo ele tremia. Por isso, voltei a sentar-me, cobri as mãos dele com as minhas e olhei-o bem nos olhos negros. Era um ser tão frágil.
– Desculpa – disse-lhe.
Baixámos as mãos ao mesmo tempo. Levei as dele aos lábios e beijei-as. Pedro é um bom amigo, e bem sei que sou capaz de ser insuportável.
Encarei Ricardo.
– Vi demasiado em Nova Iorque para poder continuar lá sem chutar Valium para a veia – disse eu. – Por isso, primeiro fugi para Los Angeles e depois, quando o meu irmão adoeceu, mudei-me para Portugal. Teve sida e levou tempo de mais. Morreu cerca de dois anos e meio depois. E agora, ao fim de um ano da mais abençoada liberdade, de não saber de nenhum amigo que tivesse de dizer ao mundo o adeus definitivo, o Anjo da Morte descobriu-me. Se tivesses chegado há duas semanas, terias dado comigo razoavelmente feliz. Livre. Mas agora, através do António, fui apanhado. Acabou-se. Estou furioso porque não conheço as palavras secretas que lhe restaurem a saúde. Tocar guitarra, escrever, até amar… nada serve de nada. Anos e anos a aprender música, e a escrever, e em busca do beijo de um amante perfeito, e continuo sem saber qual a palavra que ajude um rapaz que terá de se despedir de um mundo que mal teve a oportunidade de conhecer.
Deixámo-nos estar ali em silêncio, porque as confissões têm o efeito de calar as pessoas com feridas profundas. Pela primeira vez, apercebi-me do falhanço que eu tinha sido por causa desta minha raiva.
Até me tinha impedido de te escrever. Nesse momento, soube que te enviaria esta carta e tive um vago pressentimento da forma que ela iria assumir.
– Desculpem, isto pode parecer pouco coerente depois da minha explosão – confessei. – Mas agora só quero ser cuidadoso com os outros. O que nos resta, afinal? Depois de torturas, e hospitais, e doenças do cérebro, o que nos resta senão tentar aliviar o sofrimento alheio? E nem sequer isso consigo fazer bem. Como podem ver. – Tirei da carteira um recibo da caixa automática e escrevi o nome de um velho poeta judeu que um dia conhecera e que me dissera que queria reunir mil pessoas que tivessem sido abusadas e torturadas no cimo de uma montanha em Portugal, virá-las para Jerusalém e a entoar em uníssono o nome de Deus. Ele não sabia o que iria acontecer, mas estava seguro de que mudaria as coisas para sempre. – Este tipo é bastante estranho – disse a Ricardo, estendendo-lhe o papel. Orienta-nos para a Lua e impulsiona-nos para seguir em frente. E diz que há um bando clandestino de cabalistas a viver perto de Belmonte. Costumam reunir-se e sabem os nomes secretos de Deus. Segundo me contou, sentam-se virados para Jerusalém e rezam para que o Messias volte a descer à Terra. Se esse bando de malucos te aceitar, imagino que te ensinarão a respirar e a dançar e a comer, talvez até a fazer amor como eles.
Sorriram dos meus disparates. O brasileiro agradeceu-me e voltou a encher-me a chávena de chá.
– Quero conhecer o seu aluno – disse.
– O António?
– Posso vê-lo? – perguntou.
– Para quê?
– É uma questão de memória. Daqui a uns anos, quero lembrar você e ele juntos.
Senti de repente a garganta tão seca que nem consegui falar. Pedi licença e fui à casa de banho, nas traseiras do salão. Postei-me diante do espelho, procurando em vão sinais do rosto do meu irmão e lavei a cara com água fria até recuperar a voz. De regresso à mesa, disse a Ricardo:
– Continuas a querer conhecê-lo?
Fez que sim com a cabeça.
Eram quatro e meia da tarde, pelo que as horas de visita já tinham começado. Levei-os até ao Hospital de Santo António. No carro, aqueles sul-americanos torturados iam tão calados e reverentes que senti vontade de parar o carro e fugir.
No hospital, Ricardo, Pedro e eu juntámo-nos aos pés da cama de António, e o brasileiro fez ao miúdo uma pergunta que mudou tudo. De repente, deixei de pensar em fugir para a Nova Zelândia, ou a América Latina, ou África.
Os meus pés ficaram imóveis, enraizando-se no chão de granito.
E havia um rufar de tambor constante no espaço oco deixado pela morte do meu irmão, que me dizia: Tenho de ficar com o António.
É espantoso como uma pessoa nova que irrompe na nossa vida nos pode mudar o futuro.
Querido Carlos, perdoa-me por acabar a meio esta parte do jogo; não quero falar sobre a pergunta de Ricardo, nem a resposta de António neste momento. Nem sequer consigo descrever o rapaz deitado na cama de hospital. Por isso, espera só uns minutos e falaremos disso depois de eu beber um pouco mais de ouzo e estarmos os dois mais calmos.
Acabo de perceber que me precipitei um bocadinho. Deve ser porque a minha cabeça não está a funcionar bem desde que comecei a ouvir o som das botas microscópicas dos cossacos invisíveis que se escondem debaixo da minha cama. Esqueci-me de que nunca quiseste ouvir fosse o que fosse acerca de António por causa daquela tua doença chamada ciúmes que te roíam quando me disseste: «Deus me livre de ser verdadeiramente gay – acontece é que, para mim, um buraco é um buraco, mais nada.»
Achaste que estavas a ser muito espertinho?
Apesar do teu desprezo por tudo o que viesse dos Estados Unidos, eras muito americano nesse teu egoísmo, sabes? Todas as conversas tinham de girar à volta do teu ego solar de artista. Não conseguias ver para além da ponta da tua pilinha, e muitas vezes nem tão longe.
Achavas mesmo que eu ia acreditar na tua imitação juvenil de Gertrude Stein? Mas respeitei os teus desejos e nunca te falei de António, e muito pouco disse sobre o meu passado. Pelo menos nada que pudesse levar-te a afastares-te de mim.
Terei cometido um erro?
Talvez na verdade tu quisesses mesmo saber essas coisas.
Talvez te tivessem assustado, mas ter-te-iam levado a apertar-me a mão com muito mais força debaixo dos lençóis quando acordavas de um pesadelo.