15
Ao passar ao largo de Viseu, entrámos numa estação de serviço da BP, com tudo pintado de verde e amarelo. Tínhamos feito duas horas de estrada. António não parecia querer sair do carro e lembrava um miúdo amuado a quem lhe houvessem negado a única coisa que ele realmente queria. Mas há muito tempo que não era miúdo, claro, e eu não lhe podia dar a única coisa que ele queria.
– Horas de almoçar – anunciei com ligeireza, como se fosse a minha mãe e tivesse acabado de fazer sanduíches de atum e alface.
– Não me apetece – respondeu.
– Queres alguma coisa lá de dentro… iogurte, doces, qualquer coisa para ler…?
– Só se venderem cocaína – ripostou, com uma expressão esperançosa.
Olhei de relance para Miguel. Saberia ele que o pingo no nariz do filho, constante de há três anos a esta parte, não era apenas uma constipação que teimava em não o largar? Pelos vistos, sabia. Saiu do carro prontamente. Acendeu um cigarro.
Claro que António tinha falado em cocaína para provocar outra discussão.
– Então não queres nada? – limitei-me eu a dizer.
– Nã.
– Não vamos demorar – garanti-lhe.
– Demorem o tempo que quiserem – respondeu, virando a cara.
Miguel e eu dirigimo-nos para o restaurante.
– Quer um cigarro? – Estava calmo. Começaria a habituar-se ao feitio irascível do filho?
– Não, obrigado – respondi.
Miguel estacou de repente e pôs-se a olhar em volta, como quem procura alguma coisa. Acabou por me fixar nos olhos, e pareceu-me que tentava perceber quem eu era.
– Ele continua agarrado?
O maxilar tremia-lhe, e percebi que ele rangia os dentes, como o meu irmão.
– Está a falar de drogas? – perguntei, como se não soubesse a que se referia.
– Ele acabou de falar em cocaína.
– Ah, isso… ele nunca esteve realmente agarrado. Foi antes de eu o conhecer. Tenho a certeza de que já não consome nada.
– Tal como tinha a certeza de que ele não andava a dormir com rapazes perigosos… e desta coisa da sida que ele tem no corpo.
– Eu nunca disse isso.
– Pois não, não disse. Mas deve ter pensado, senão teria feito alguma coisa, certo?
Era para esta faceta de Miguel que António me tinha alertado.
– O que quer dizer com isso?
– Nada. – Passou a língua pelos lábios, e recomeçámos a andar. Eu conseguia ouvir-lhe os pensamentos: «Não só é maricas, como também se mete na coca.» Imaginei-o a repetir aquelas palavras para si mesmo, como orações desfiadas num terço, cada repetição fazendo-o ranger os dentes com mais força.
– Recomendei-lhe muitas vezes que praticasse sexo seguro – disse-lhe à porta do restaurante. – Tirei da carteira um recorte de jornal com uns anos. O título rezava: «Preservativos: 60% sem qualidade.» Li o artigo a Miguel. Catorze marcas de preservativos disponíveis em Portugal tinham sido submetidas a testes de resistência. Oito haviam sido classificados como totalmente impróprios para uso. E Harmony Normal era o único classificado como Muito Bom.
– E de que serve isso agora? – perguntou, impaciente.
– Li este mesmo artigo ao António quando soube que ele dormia com outros rapazes, e fomos juntos à farmácia para lhe comprar os seus primeiros Harmony Normal. Eu costumava dar uma olhadela à carteira dele para ter a certeza de que só usava esta marca. Não podia tomar conta dele a cada instante, mas isso tranquilizava-me.
Miguel fez que sim, como se estivesse demasiado cansado para discutir fosse o que fosse.
– Talvez devesse ter sido o Miguel a falar-lhe mais sobre o sexo e a vida e a morte, antes que fosse tarde de mais – aventei.
Vi que o maxilar lhe tremia outra vez.
– Primeiro o senhor, Professor – disse, segurando a porta e dando-me passagem.
Sentámo-nos a um balcão. Parecia uma área de serviço para camionistas nos Estados Unidos. Um empregado com uma careca incipiente e camisa branca toda suja veio tomar nota do pedido. Miguel quis sardinhas fritas. Eu pedi uma sopa e uma salada. Ficámos em silêncio. Miguel acendeu outro cigarro e deixou o fumo sair-lhe pelo nariz, como sempre faz.
– Podemos recomeçar? – perguntei.
– Recomeçar?
– Se é para nos darmos bem durante esta viagem, teremos de confiar um no outro.
– Não o conheço bem – confessou ele.
– É verdade. E, contudo, acabou de me dar a entender que não fiz o suficiente pelo António.
Ele começou a brincar com o botão superior da camisa e deu meia-volta no banco, ficando de frente para o parque de estacionamento. Depois, encarou-me de novo.
– Quando eu era novo – disse –, costumava olhar-me muito ao espelho. As pessoas achavam-me vaidoso. O meu pai chamava-me idiota peneirento. Mas eles não percebiam. Eu achava-me feio e escanzelado. Não queria acreditar que estava condenado a viver uma vida inteira com aquela cara e aquele corpo. Antes da trombose, o meu pai era muito forte, sabe… um homem a sério. E bonito, também. Essa foi uma das razões por que comecei a fazer ginástica. Para ganhar músculos. Para me defender, eu costumava ofender os outros, tentando convencer-me de que eles é que eram feios. Só mais velho, quando saí de casa do meu pai, percebi que o meu comportamento era errado. De repente, as mulheres pareciam-me bonitas. Dentro da casa dele, eu era uma coisa, fora dela outra. Era como um passe de mágica. – Pôs-me a mão no ombro. – Há pouco, quando disse o que disse, não era a si que me referia. Era a mim próprio. – Pôs-se a brincar outra vez com o botão da camisa, que acabou por saltar e rolar pelo chão de tijoleira. Fiz menção de o apanhar, mas ele agarrou-me o braço, e os nossos olhares cruzaram-se durante uns instantes. Na ponta do seu cigarro, a cinza começava a enrolar-se, e ele agarrava-me como se me quisesse puxar para si. O meu coração batia descompassado, como se me pedisse em código: «Dá o salto e vai ao encontro dele.» – Esqueça o botão – pediu. – Quando acabei com a minha última namorada, parei de comprar roupa. Tudo o que tenho está a desintegrar-se. Espero que acabe por se desfazer em pó. – A cinza do cigarro caiu-lhe em cima dos jeans. – Merda! – exclamou, tirando-me a mão do ombro e sacudindo a cinza com força. – Estes jeans, esta camisa, comprei-os numa viagem a Lisboa. Numa velha loja, na Baixa. Lembro-me tão bem. Foi há que anos. Mas nestes últimos dias, parece que não me consigo lembrar de nada. Nem sequer sei quem sou. – Tornou a olhar para mim. – Sabe, consigo perdoar tudo ao António, exceto o facto de fazer mal a si próprio.
– Ele gosta muito de si.
– Acha?
– Sempre gostou muito de si. Orgulhava-se da sua beleza. Olhe, tenho uma coisa importante para lhe dizer. Quero ser frontal consigo. Sou gay.
– Já tinha percebido há algum tempo.
– Então, daquela vez na varanda, quando me confessou que o António era gay, estava a pôr-me à prova.
– Estava a ver como reagia.
– E sabe, claro, que dormi com ele durante cerca de um ano. Logo depois de nos conhecermos.
– Não sou professor, mas também não sou estúpido.
– Não, lá isso não é. E não o incomoda?
Encolheu os ombros.
– Não posso fazer nada para o evitar.
– E se pudesse fazer alguma coisa, fazia?
– Não posso dizer que não desejava que o António não fosse gay. Mas não é por eu o desejar que isso acontece.
– O António sente-se bem com a sua sexualidade – comentei.
– Sente? Sente mesmo? – Inclinou-se para mim e sussurrou com violência: – Diga-me lá o que é assim tão bom em estar doente com sida?!
– Isso é consequência de um vírus, não de se ser gay – respondi.
Miguel franziu o sobrolho, como se aquela não fosse a resposta certa. Fiquei uns instantes a ver uma mulher arrastar o filho pelo parque de estacionamento.
– Fale-me mais do seu pai e da sua mãe. Conte-me a sua infância – pedi, quebrando o silêncio que se interpusera.
– O que quer saber sobre os meus pais?
– Quando eu era pequeno, o meu pai e a minha mãe costumavam ler-me os livros do Dr. Dolittle. Desde então, fiquei a gostar de ouvir histórias – expliquei, incentivando-o.
– Não há muito que contar. O meu pai era pedreiro. A minha mãe… A minha mãe… não a conheço bem. Cresci mais com o meu pai. – Ergueu ambas as mãos. – Foi dele que herdei estas manápulas. São tudo o que tenho. Perto do fim da vida vendeu a quinta ao meu irmão mais velho por mil escudos para que eu não herdasse a minha metade.
– Mas do que se lembra dele? – perguntei, enquanto comia a sopa, que entretanto chegara.
– Gostava de se sentar diante da lareira, a beber aguardente e a dormitar. Tinha as pernas arqueadas e um andar gingão. Era forte. O homem mais forte que conheci. Gostava de cães, mas era bruto a brincar com eles e nunca os levava ao veterinário. Quando adoeciam, deixava-os morrer num telheiro que nós tínhamos. Eles não paravam de uivar. Tinha uma cara dura e escura como carvão. Não conseguia ler-lhe os pensamentos. Estava sempre a julgar as pessoas, como se fosse Deus. Um dia, disse-me que queria ir para o Brasil para ver peixes tropicais, que a nossa vida em Portugal não tinha cor. Depois, deu-me uma bofetada e rematou: «Nunca contes a ninguém que eu te disse isto.»
Continuei a comer a sopa.
– Que tal? – perguntou Miguel.
– Saborosa, mas um pouco salgada – respondi.
– Não, quero dizer, que tal é?
– Que tal é o quê?
– Ser gay.
Senti-me tentado a dizer uma piada, mas Miguel estava com um ar grave e sério.
– É como ser heterossexual. Não há diferença. Nunca pensou em dormir com um homem?
– Não. Bem, quer dizer, um amigo da nossa equipa de ginástica convidou-me uma vez. Estávamos os dois bêbedos. Por um momento, questionei-me como seria. Mas sabia que era errado. Para mim, pelo menos. Parecia-me simplesmente que…
Não o encarei para não o intimidar, mas ele não prosseguiu a explicação.
– Quero compreender o António. Quero perceber porque é que para ele está certo. O que ele sente. Quero que me ajude a entendê-lo.
– Está bem. Mas a minha maior preocupação é ele.
– Eu percebo porque é que o António gosta tanto de si. – Encarou-me, franzindo os olhos.
– É por ser bonito ou pela minha personalidade? – Sorri.
Ele encolheu os ombros:
– Os médicos dizem que os valores no sangue dele ainda são bons – continuou.
Era um assunto que eu queria evitar. Assenti com um grunhido e confirmei se o Valium continuava no bolso.
– O Professor está bem, não está? Quero dizer… estou a falar do sangue, com o…
– Os meus testes estão todos negativos. Estou ótimo.
Ficámos um momento em silêncio. Chegaram as sardinhas e a minha salada. Pedi uma tosta de queijo e fiambre para levar a António.
– De certeza que ele vai ter fome, mais tarde ou mais cedo.
– Ele confia em si, sabe? – observou Miguel.
– Fico feliz por isso.
– É em mim que ele não confia.
– Não sei. Não sei nada. Já não tenho certezas.
Miguel enfiou o resto da comida na boca como se tivesse de ganhar uma corrida, após o que emborcou dois cafés e fumou dois cigarros. Fomos juntos à casa de banho.
– Ufa, que alívio – exclamou enquanto urinava. Apetecia-me espiá-lo, mas não o fiz. – Encontramo-nos lá fora – anunciou, mal apertou o fecho das calças, e dando-me uma palmadinha no ombro.
Estava à minha espera mesmo à saída do restaurante, as mãos enterradas nos bolsos das calças. Fomos andando juntos até ao carro, dois condenados a ganhar coragem para enfrentar a forca. Sentei-me ao volante e passei a António o saco de papel com a tosta mista. Ele contemplou-a, perplexo.
– O que é? – perguntou. Quando lhe disse, atirou o saco para o banco de trás. – Trouxeste-me alguma coisa para beber?
– Não… disseste que não querias nada.
– Mas compraste-me comida. Esperavas que eu a empurrasse com quê?
– Eu vou lá buscar-lhe qualquer coisa – atalhou Miguel.
– Não vai, não!
– Se ele quer ir, que vá! – exclamou António.
Saí do carro. Estava furioso. Tinha as mãos a tremer e sentia o peito tão apertado, que tive de me ajoelhar para respirar. Tirei um comprimido do blister e engoli-o. Depois, avancei até ao talude de gravilha junto do parque de estacionamento e sentei-me, como um miúdo que se instala numa caixa de areia. Escondi a cabeça nas mãos. A escuridão ofereceu-me refúgio. Quando abri de novo os olhos, Miguel dirigia-se para o restaurante e António continuava sentado no carro. Jurei a mim próprio não sair dali até sentir os efeitos da droga, incapaz de me imaginar a fazer fosse o que fosse sem estar sedado. Com a navalha de bolso, desenhei linhas numa pedra, fiz figuras com pauzinhos e dei por mim a falar sozinho, imaginando-me a fazer uma incisão no braço de António com a navalha para lhe sugar o veneno do sangue.
Fantasias sangrentas vêm-me à cabeça quando estou perturbado e furioso. Falei com muitos amigos sobre isto e é muito mais comum do que seria expectável.
Miguel veio ter comigo depois de passar a António pela janela uma lata de Lipton Ice Tea. Postou-se à minha frente com as mãos nos bolsos.
– Apesar do que me disse lá dentro, de achar que era feio, por esta altura já saberá decerto que é um homem muito bonito – disse eu.
Ele assentiu com a cabeça.
– Porque não volta para o carro?
– Normalmente, obedeço às vontades de um homem bonito, mas só volto lá para dentro quando o Valium começar a fazer efeito – repliquei, para minha grande surpresa.
– Tomou um comprimido?
– Pode crer.
– O que é que ele faz? – quis saber.
– Desata as faixas que me estreitam o peito até eu conseguir respirar de novo. – Passei-lhe a caixa. – Tome um. Vai ajudá-lo a deixar de fumar.
– Não quero deixar de fumar – respondeu Miguel.
– O que quero dizer é que vai ajudá-lo quando estiver dentro do carro.
– A sério?
Eu não sabia se era verdade, mas disse-lhe que sim porque me apetecia corrompê-lo. Além disso não me parecia assim tão importante e ele também merecia descontrair-se. Miguel engoliu um comprimido.
– Dê outro ao António, se quiser.
– Será boa ideia?
– É apenas um calmante. Todos merecemos uma pausa. Senão ainda nos matamos uns aos outros. Três cadáveres numa estação de serviço perto de Viseu… dava um belo policial. Mas em Portugal escrevem-se poucos policiais, e ninguém se ia interessar.
Miguel voltou para o carro e ofereceu os comprimidos a António. Depois abriu A Bola sobre o tejadilho do T-Bird e pôs-se a ler. Quando o Valium começou a fazer efeito, pensei: «Bolas, se me tivesse lembrado de como é bom estar sentado numa duna de areia quente, nunca teria parado de tomar estes lindos bombons cor-de-rosa.» Porque era sem dúvida o maior alívio do mundo sentir os pulmões a encherem-se de um ar perfumado pela primeira vez em muito tempo e poder contemplar o céu azul e sem nuvens, como se tivesse sido destilado de uma turquesa. Era como regressar a casa depois de anos de exílio. Comecei a cantar Penny Lane enquanto me dirigia para o carro. Nessa altura, Miguel já estava enrolado no banco de trás, a dormir profundamente. António lançou-me um olhar estranho.
– Que foi? – perguntei.
– Nada – respondeu, vago.
– E que tal encorajares-me? Aluguei um Batmóvel, um carro que achei que ias adorar. Estamos a caminho de Espanha. Não podemos ter uma aventura?
– Que queres que diga?
– Diz que estás contente.
– Estou contente – replicou ele num tom monótono.
– Vejo que não tomaste o comprimido.
– Pois não.
Devolveu-me a caixa de Victan. Guardei-a no bolso da camisa.
– Ouve, porque não cantas? – propus. – Canta qualquer coisa. Piaf, o hino nacional… qualquer coisa.
– Não me apetece.
– Está bem, então não cantes. Dá-me só a mão. – Estendi-lha, mas ele enfiou as dele entre as pernas e pôs-se a olhar pela janela. Encolhi os ombros e liguei o motor, saindo devagar do parque de estacionamento. Guiar parecia-me um jogo. Estava tão pouco habituado ao Valium que me senti numa espécie de transe. Claro que não devia estar a conduzir, mas tinha as mãos bem firmes no volante e não fazia a menor intenção de as tirar dali.
Ao cabo de algum tempo, António pôs-me a mão na perna:
– Olá – disse baixinho.
– Olá – respondi.
Ele suspirou.
– Eu também estou com medo – disse-lhe em inglês. – Porque não tomas o comprimido, para ficarmos calmos os três ao mesmo tempo?
Ele fez o que eu lhe pedia.
Ao fim de meia hora, estava a dormir. Ele e o pai ficariam fora de combate durante umas duas horas, ao longo de todo o percurso pelas encostas da Serra da Estrela. Miguel até ressonava. Era um cenário encantador, mas ri-me ante a incongruência daqueles dois a dormir sob o efeito da minha poção mágica e da paisagem que nos rodeava. As montanhas eram rochosas, ásperas, nascidas de um clima severo; lembravam um pouco as Black Hills da Dakota do Sul, onde eu fora uma vez com o meu irmão. Aqui, as giestas eram tão exuberantes que nem sequer tinham folhas, só grinaldas de um amarelo-canário. Nos sítios onde os penedos e as escarpas deixavam espaço para raízes, rompiam laivos roxos de lavanda salpicados de papoilas vermelhas. Parecia que as próprias rochas tinham as orlas em flor. Muito ao longe, nos vales cavados, escondiam-se aglomerados de casas de pedra abraçadas umas às outras.
Sentia-me feliz.
Quando as montanhas desapareceram, dando lugar ao planalto semeado de penhascos que se estende dos distritos mais orientais de Portugal a Espanha, já eu não conseguia manter os olhos abertos e, vendo um sinal a indicar uma pousada em Almeida junto a outro rezando «ESPANHA 3 KM», parei o carro.
A fronteira também parecia pressagiar perigo. Aqui, em Portugal, estávamos em casa. Lá, em Espanha, as pessoas nem sequer saberiam pronunciar os nossos nomes.
Decidi seguir a indicação da pousada. Eram três e um quarto da tarde. No momento em que entrava no parque de estacionamento, António sentou-se e bocejou; deve ter sentido o carro abrandar.
– Onde estamos? – perguntou.
– Vou entrar aqui e ver se têm quartos. Acorda o teu pai.
Atrás do balcão da receção estava uma jovem pálida com uma púdica blusa branca abotoada até ao pescoço. Tinha cabelo arruivado com risca ao meio e uma cruz de ouro em volta do pescoço.
Informou-me de que havia quartos disponíveis.
– Somos três – anunciei. – Tem algum com três camas?
– Receio que não. Mas os nossos quartos duplos têm todos duas camas de casal.
– E qual é o preço?
– Dezasseis mil escudos.
Eram cem dólares, mais caro do que eu tinha pensado. Não me pareceu muito lógico reservar dois quartos só porque Miguel e António andavam às turras. Era óbvio que o Valium me comprometia o raciocínio. Passei à jovem o meu passaporte.
– Vou buscar os meus amigos – disse-lhe.
António e Miguel já tinham tirado as malas da bagageira. O céu estava agora nublado e fazia um pouco de frio. Miguel tinha os braços arrepiados.
– Então, têm quartos? – perguntou António.
Só nesse momento percebi que cometera um erro. Já estava a prever a relutância de António em ficar no mesmo quarto que o pai. Quando insistíssemos, ia queixar-se de que fumava. E foi exatamente o que aconteceu.
– Não suporto aqueles malditos cigarros – disse-me em inglês.
Pensei que não teria problemas em dormir na mesma cama que Miguel porque a minha libido tinha desaparecido.
– Não vais ter de aturar o fumo do teu pai – repliquei, então. – Eu durmo com ele. E mantemos uma janela aberta.
António abanou a cabeça.
– É um erro terrível – disse, ainda em inglês.
– O que é que estão para aí a discutir? – perguntou Miguel, que não entendia uma palavra.
– O António acha que o Miguel e eu não devíamos partilhar a cama – respondi.
– Então durmo eu com ele.
– Não, ele quer dormir sozinho.
– Então arranjamos dois quartos. – Olhou para António, que concordou com um sinal de cabeça.
– É muito caro – respondi.
– Eu pago – disse Miguel, pegando na sua mala.
– É ridículo. Pagar cem dólares por um quarto. – Olhei para os dois. – Qual é o problema? Estamos juntos nisto, não estamos? Não é este o país dos exploradores e aventureiros?
António revirou os olhos.
– É um país de merda, é o que é.
– O que diria o primeiro-ministro se te ouvisse?
– O primeiro-ministro é um robô bronzeado, com um armário cheio de fatos italianos.
– António!… – exclamou Miguel, como se ele não devesse proferir frases daquelas.
– Não faz mal. O rapaz tem razão.
António pegou na mala dele e entrou na pousada. Miguel, sempre cavalheiro, esperou por mim. Tranquei o carro e fomos juntos até ao quarto, no segundo andar. Era muito bonito, com madeira escura por todo o lado e casa de banho de mármore branco polido. Senti-me inexplicavelmente feliz. António apoderou-se da cama mais perto da janela. Enquanto Miguel ia à casa de banho, eu aproveitei para vestir o pijama de flanela azul.
– Que estás a fazer? – perguntou António, olhando, pasmado, para o meu pijama.
– Vieste a dormir as últimas duas horas. Agora é a minha vez.
– Mas esse…?
– Nunca ouviste falar em discrição?
– Tu?
– Eu!
– Ninguém usa pijama nos dias de hoje – declarou.
Puxei o instrumento para fora das calças.
– Queres ver o meu equipamento? Pronto, já viste! Agora deixa-me em paz.
– Às vezes és mesmo grosseiro – comentou.
Meti-me debaixo dos lençóis.
– Dá-me um beijo de boa-noite – pedi.
– E que hei de eu fazer enquanto tu dormes?
– Vai praticar guitarra lá para fora. Lê um livro. Vai passear com o teu pai. Ou cheirar a roupa interior da rececionista. Quero lá saber. Não sou tua mãe.
Pôs-se a olhar o quarto.
– Não consigo acreditar que estamos aqui.
– Nem eu. Agora dá-me um beijo de boa-noite.
Beijámo-nos na face, e eu puxei-o contra mim e sussurrei-lhe que o amava. Antes que ele pudesse refilar, virei-me e encolhi-me na posição fetal.
António murmurou qualquer coisa ao pai que não percebi e foi-se embora.
– Também vou sair, Professor – anunciou Miguel, ao cabo de um minuto.
Adormeci quase instantaneamente. Ao fim de uma hora, acordei e deixei-me ficar na cama a recordar o sonho que tivera. Estava de volta a Nova Iorque e o meu irmão ainda era vivo e tocava uma peça de Beethoven no piano, que me ficou gravada na mente, mesmo depois de abrir os olhos. Levei uma eternidade a conseguir mexer os membros, uma das desvantagens do Valium, e o meu corpo parecia um saco de batatas. A custo, arrastei-me até à casa de banho e tomei um duche. A água quente penetrou-me nos ossos e fez-me sentir melhor. Depois, voltei para a cama e comecei a ler um romance que tinha levado, Life with a Star, sobre um judeu de Praga a tentar escapar aos fornos nazis.
Miguel regressou um pouco mais tarde. Estava todo suado. Sentou-se aos pés da outra cama. Tinha os olhos mais tristes e sinceros que eu alguma vez vira. Mas a minha libido ainda andava foragida, por isso não me senti excitado.
– O que andou a fazer? – perguntei.
– Dei um grande passeio. Há muito tempo que não passeava no campo. Foi como quando era miúdo, em Vila Nova de Cerveira.
Pousei o livro.
– Gostou de viver lá?
– Gostei muito. Mesmo muito.
– Então porque foi para o Porto?
Miguel esfregou a ponta do indicador no polegar, o que em língua gestual portuguesa significa «dinheiro».
– Onde está o António?
Miguel encolheu os ombros.
– Deve andar a passear também.
Regressei ao meu livro e Miguel foi tomar um banho. Quando voltou, trazia uma toalha branca enrolada à cintura. Olhando para o remoinho de pelos no peito dele, apercebi-me de que o Valium estava a perder o efeito e que se não tomasse outro nessa noite não seria capaz de ficar na mesma cama que ele. Portanto, levantei-me, vesti-me à pressa e fugi lá para fora com uma desculpa esfarrapada, do género: «Adoro o cheiro do fim da tarde no campo.» O céu estava limpo outra vez, e o Sol ia alto a oeste. Junto dos meus pés rompiam flores tubulares roxas de caules compridos e hirtos.
Muralhas medievais de pedra de um cinza-escuro formavam uma estrela de doze pontas em volta da vila. Andando ao longo deste perímetro, senti-me cativado pela sensação do vasto espaço livre, das terras de lavoura semeadas de rochas a perderem-se de vista, em direção a um horizonte esfumado em neblina. Quase acreditei que estava na América, nas planícies da Dakota do Sul. Lembrei-me dos cães da pradaria de focinho erguido a cheirar o vento, dos búfalos a pastar nas ervas altas, dos turistas de óculos escuros a tirar fotografias. Pensei naqueles lugares felizes que visitara com Harold no verão do meu segundo ano de faculdade, quando ele propôs que fôssemos conhecer a América. Acabou com uma discussão terrível, mas vivemos experiências incríveis. Agora, o ar estava seco e calmo. Imaginei Harold ali sentado a ler. «Não teria sido melhor morrer ao sol, rodeado de flores?»
Ao fim de algum tempo, dei com António numa das guaritas em forma de torre que sobressaem dos cantos da muralha. Entrei no seu espaço de sombra, e ele esboçou um meio sorriso, como se lutasse contra as lágrimas. Encontrávamo-nos cerca de quinze metros acima das planícies que rodeavam a vila.
– O problema da Europa é que estamos sempre uns em cima dos outros – disse eu. – Se ao menos fosse toda feita de pequenas vilas construídas com pedras cobertas de líquen. – Ele olhava a distância, o horizonte. À procura de qualquer coisa. Apertei-lhe a mão que repousava na minha. – Como estás?
– Estou bem.
Perguntei-lhe no que estava a pensar, mas ele não parecia disposto a contar-me. Por isso, atravessámos a vila e detivemo-nos junto a uma pequena casa térrea, caiada por fora. Entre a porta e a janela erguia-se uma trepadeira entrelaçada de rosas cor-de-marfim. Os filamentos exteriores enrolavam-se em volta da goteira azul ao lado da casa como dedos à procura de um sítio para agarrar. Na base da goteira via-se uma vaidosa sardinheira vermelha. A porta da casa estava aberta, e o sol fazia com que os primeiros quatro degraus de uma escadaria de madeira encerada brilhassem como ouro. O contraste do dourado das escadas com a escuridão interior e as rosas era comovente. Senti-me assoberbado, invadido por uma sensação de transcendência. Gostava tanto que lá tivesses estado, Carlos. Comecei a tremer. António foi muito gentil. Abraçou-me e disse-me vezes sem conta que ia ficar bem.
Da casa, saiu um cão pequeno de orelhas compridas, que se pôs a contemplar-nos. Tinha olhos castanhos e sonolentos e uma mancha branca em forma de coração no peito negro. Duas presas do maxilar inferior vinham assentar-lhe no beiço superior, como uma barracuda malévola. Rimo-nos, e António observou que era melhor irmos andando antes que ele desatasse a ladrar.
– Encontrei o cemitério, sabes – disse-me enquanto nos afastámos.
– Porreiro.
– Quero mostrar-te uma coisa – anunciou.
O cemitério parecia o cenário de um filme de Vincent Price, com o portão enferrujado, ciprestes, sebes por aparar e lápides derrubadas. Mas eu já tinha ido a tantos funerais que o medo de almas penadas há muito fora substituído por terrores verdadeiros.
– Olha para esta lápide – disse António, batendo com a mão numa coluna dórica de mármore com cerca de um metro e vinte de altura, encimada por um cordeiro de granito com uma cruz de metal em volta do pescoço.
– Surrealismo caseiro – observei.
– Olha para baixo – pediu.
Aquilo que a princípio me tinham parecido ervas daninhas eram na verdade tomateiros. De uma folhagem esfarrapada pendiam, prontos a colher, frutos laranja e vermelhos, que lembravam as pequenas bolas que usávamos no jogo da bugalha que eu e Harold adorávamos em crianças. António apontou para a lápide. Dizia:
Manuel Correia Pinto Bastos
1902-1974
Bom pai e jardineiro
Li a inscrição para dentro, para lhe ouvir o som: «Bom pai e jardineiro.”
– Achas que os filhos plantaram os tomateiros em honra dele? – perguntou António.
– Não me admirava nada.
– Há uma semana, teria ficado comovido – observou.
– E agora?
– Tenho algo a confessar.
– O que é?
Encolheu os ombros.
– Talvez eu tenha feito isto de propósito.
– Isto o quê?
– Apanhar esta doença.
– E porque haverias de fazer isso?
– Por vingança.
– Contra quem?
– Contra o meu pai. Contra os meus pais. Contra ti. Contra mim.
– Tu não tens esse tipo de personalidade. Podes ter querido correr riscos, mas não quiseste adoecer. Eu conheço-te.
– Tens a certeza? Dizes que me conheces, mas será que me conheces mesmo? Aparece um novo facto, e tudo muda. Já nem consigo lembrar-me da sensação de tocar guitarra sem que esta treta que me envenena o sangue me estrague tudo no subconsciente. E tu… não me lembro da sensação de olhar para ti sem sentir inveja por não estares doente. – Os olhos dele humedeceram-se. Virou-se para o outro lado.
– Ainda é tudo muito recente – disse eu. – Essas dúvidas hão de desaparecer. Hás de lembrar-te de quem és. Acredita em mim. Está tudo aí, apenas coberto por uma realidade tão avassaladora e opaca que não consegues ver através dela.
António baixou-se, apanhou um dos tomates-cereja e ergueu-o à altura dos olhos.
– Mas nem sequer me lembro de coisas simples – disse –, como por exemplo se alguma vez gostei mesmo destas coisas. – Atirou-o fora, depois cruzou as mãos atrás do pescoço e olhou para mim, desesperado. – Que raio de pessoa não se lembra do sabor do tomate?