16

Estava escuro no quarto, e António chorava, um choro magoado de criança. Sentei-me na cama. Fechei os olhos para organizar as ideias. Chamei-o num sussurro, mas ele não respondeu. O vento fustigava as janelas. Puxei os cobertores até ao queixo e virei-me para olhar para Miguel. De costas para mim, respirava brandamente. Levantei-me e fui sentar-me ao lado de António. Estava todo enrolado na beira do colchão e agarrava os lençóis. Quando lhe acariciei o cabelo, virou-se de barriga para baixo e enterrou a cabeça na almofada. Contornei a cama em bicos de pés, ergui os cobertores e enfiei-me ao lado dele. Tinha as costas e o traseiro gelados, a pele áspera e arrepiada. Para o aquecer, despi as calças do pijama e encostei-me a ele. Agarrei-lhe no ombro direito e ajudei-o a deitar-se sobre o lado esquerdo, de maneira a ficarmos bem encaixados. Ele pôs uma das almofadas sobre a cabeça e desatou a soluçar em silêncio. Encostei os lábios ao pescoço dele e mantive-me assim. Ao fim de algum tempo, ele deitou-se de costas:

– Não devias tocar-me, tenho sida – sussurrou.

Tirei-lhe a mão que tinha pousada sobre a coxa e levei-a aos lábios. Beijei-a e com ela cobri a cara, como se fosse uma máscara. O cheiro dele a misturar-se com a minha respiração era reconfortante.

– Não devias… – repetiu.

Pousei a mão dele sobre a barriga e delicadamente tornei a virá-lo de lado.

– Adormece comigo a abraçar-te. Precisas de dormir.

– Por favor, não faças isso – exclamou, sentando-se bruscamente.

– Chiu, eu conto-te uma história para adormeceres.

– Não, volta para a tua cama.

Todo chegado a ele como uma criança, puxei os joelhos para cima e encostei-me à anca dele. Pus-me a brincar com os seus pelos do peito. Fechou os olhos. Quando fui à procura do pénis, percebi que estava semiereto.

– Por favor não faças isso – implorou-me.

– Não faz mal – respondi.

– Não, posso contagiar-te.

– Terei cuidado.

– Não há cuidados que cheguem.

– Há, pois.

– Está ali o meu pai, na cama ao lado.

Miguel continuava a respirar suavemente.

– Deixa-me só aliviar-te – sussurrei. – Depois adormeces logo.

– És tão idiota – disse ele, afastando-me a mão.

Virei-me para o outro lado. As cortinas estavam ligeiramente abertas. Um raio de luz atravessava a escuridão do quarto e vinha descansar sobre os meus olhos. Imaginei uma quinta solitária com camponeses que nunca falavam uns com os outros. Ao fim de algum tempo, António virou-se de costas. Eu voltei-me para ele e abracei-o.

– Desculpa – disse-lhe.

Finalmente adormeceu.

Acordou e chorou três vezes durante a noite.

De uma vez, agarrou-se a mim com tanta força, que a minha costela há tanto tempo partida começou a doer-me.

Miguel não chegou a despertar. Ou pelo menos assim achei.

Quando acordei na manhã seguinte, um sábado, António tinha a perna direita pousada sobre a minha anca esquerda e o braço debaixo da minha cabeça. O sol brilhava pelos intervalos das cortinas escuras. Libertei-me dele e sentei-me na cama. Estava morto de cansaço e doíam-me as pernas como se tivesse corrido toda a noite. Estiquei-as por cima da cabeça. Miguel estava deitado de barriga para baixo, com as costas nuas à mostra. A coluna vertebral era um rio cortado de sombras a correr entre paliçadas de puro músculo. Imaginei como seria tocar-lhe. António continuava a dormir profundamente, os olhos inchados do sono.

Será que as lágrimas chamam Hipnos? Ficará ele sentado horas a fio junto dos condenados, salpicando-lhes os olhos para lhes obscurecer a visão do futuro?

Pela fenda das cortinas, planícies verdes e douradas brilhavam na luz oblíqua. Vesti-me em silêncio, tirei o mapa de Espanha da mala, fui à casa de banho e depois desci para tomar o pequeno-almoço.

Durante a noite, um incêndio tinha lavrado vinte hectares perto de Évora. Os jornais estavam repletos de avisos para os perigos nas florestas do país, porque maio fora um mês muito seco. Enquanto bebia chá e comia uns pãezinhos, li um pouco do Life With a Star. A personagem central, um jovem judeu que vivia numa barraca em ruínas durante a ocupação nazi, tinha conversas imaginárias com a namorada, que desaparecera e muito provavelmente estaria morta.

Miguel juntou-se a mim cerca de vinte minutos depois. Trazia um daqueles blusões de aviador de seda escovada que ultimamente se tinham tornado moda, verde-esmeralda. Os jeans desbotados estavam impecavelmente limpos e passados a ferro, mas os ténis outrora brancos encontravam-se sujíssimos. Tinha o cabelo molhado penteado para trás e não fizera a barba. O rosto, pálido, parecia exausto.

– Bom dia – disse. Acendeu um cigarro com gestos precisos. – Preciso de fumar antes que o António desça. Quer um, Professor?

Abanei a cabeça. A empregada, uma jovem forte de sobrancelhas espessas, tratou do pedido.

– Dormiu bem? – perguntou-me.

– Nem por isso.

– Então porquê?

– O António passou a maior parte da noite acordado – suspirei.

– Pois, eu ouvi. Quando ele era bebé e chorava, eu acordava sempre. São coisas que não se esquecem.

Miguel barrou a manteiga no pão e a seguir espalhou-lhe uma dose generosa de doce de alperce.

– Foi a si que o António foi buscar o lado guloso – comentei.

Ele esboçou um sorriso e pôs-se a ler o Público, enquanto bebia dois cafés. Era um homem de grandes apetites e longos silêncios. Afastou o prato de si e acendeu outro cigarro.

– Sabe, eu vi o que aconteceu ontem à noite – disse. – Só quero que saiba.

– Fico contente que esteja atento.

Pôs-se de pé abruptamente.

– Acho que vou dar um passeio.

– Não gostou que eu me deitasse na cama com ele, pois não? – perguntei, então.

– Uma coisa é ajudar o rapaz, outra é estragá-lo com mimos de cada vez que chora.

– Estragá-lo com mimos?!

– Exatamente.

– Não me parece que abraçá-lo quando precisa de ajuda seja estragá-lo com mimos.

Miguel desviou o olhar e puxou uma baforada.

– Estender a mão a uma pessoa que está a cair de uma falésia não é estragá-la com mimos.

Assentiu como se eu lhe estivesse a fazer um discurso retórico.

– Vou dar um passeio – repetiu.

Fez menção de se afastar, mas eu levantei-me de um salto.

– Que aconteceu ao homem que só queria conhecer o filho? – perguntei.

Ele ergueu as sobrancelhas, surpreendido, e virou costas sem uma palavra. Voltei a sentar-me e abri o livro, mas não conseguia ler, e o olhar acabou vagueando pelos telhados cor-de-laranja de Almeida que se vislumbravam pela janela. Tomei um Valium.

António desceu para o pequeno-almoço com uma camisa larga de seda cor-de-rosa que eu lhe comprara. Tinha o cabelo desalinhado, os olhos encovados e pisados. Achei-o macilento, como se o medo lhe roubasse as cores do rosto. Estava parecido com o pai.

Chamei a empregada. Ele pediu café, e eu chá. Ficou a olhar para a beata pousada no cinzeiro.

– Por onde anda a chaminé cá do bairro? – perguntou, franzindo o sobrolho.

– Foi dar um passeio.

– Pois, sempre foi um homem de passeios. Quando eu era miúdo, costumava andar quilómetros, a mostrar-me a toda a gente do bairro.

– Parece que os tempos mudaram.

António fez que sim.

– Eu tenho sido uma desilusão.

– Pelo contrário. És demasiado para ele. Ele gostava de ser como tu.

– Não me parece. E agora é que não, de certeza.

– O teu pai é um mistério – repliquei, encolhendo os ombros. – Bom, que tal te sentes?

– Melhor. E tu?

– Bem.

Pôs manteiga num pãozinho e barrou-o com doce de alperce.

– Hoje parece que está encoberto – observou.

Olhei pela janela. O céu agora estava branco, sem vento.

– Vem aí chuva, parece-me.

Ele comia com voracidade. Empurrei a cadeira para trás e fiquei a observá-lo.

– Para onde estás a olhar? – perguntou.

– Gosto de te contemplar quando estás a ser genuíno. Hás de perceber quando fores mais velho.

Grande erro, claro; estava destreinado daquela regra de eliminar o futuro da gramática.

António engoliu o café de um só trago.

– Talvez devêssemos voltar para o Porto – disse. – Isto não vai resultar.

– Se o Jasão tivesse dito isso, nunca teria conseguido o Velo de Ouro.

– Se bem me lembro, as coisas não correram muito bem para o Jasão – observou António.

– Tu não vais cometer o erro de te casar e depois enganares a tua mulher.

– Não – respondeu, limpando a boca ao guardanapo –, claro que não. Eu cometi um erro muito maior. – Virou-se e ficou a contemplar Almeida com um olhar vazio, como se fosse feito de gesso. De vez em quando, movia-se para passar a língua pelos lábios. Tinha desistido do presente e estava a focar-se no passado ou no futuro. – Sabes – disse, virando-se de novo para mim –, na verdade, achei que não podia apanhá-la. – Passou a mão à frente da cara, como que a bloquear a vista. – Estava louco. E incrivelmente cego.

Se me fosse concedido um desejo por cada vez que ouvi alguém dizer precisamente aquilo, todos os amigos que enterrara, todos eles, estariam vivos.

Levantei-me e estendi o mapa de Espanha sobre a mesa, mesmo à frente dele. Segurei-lhe no ombro e apontei para a estrada que íamos seguir.

– Hoje vai ser uma viagem agradável – disse-lhe. – Atravessamos a fronteira e seguimos para Salamanca. Vais adorar a praça principal. Podemos ficar lá, se estivermos para aí virados. Se não, arrancamos para Avila.

– O meu pai viu-nos, sabes. – Ergueu os olhos para mim e esboçou um trejeito com a boca como quem diz: «Estamos a correr um risco…»

– Como é que sabes? – perguntei.

– Consigo ver-lhe os olhos no escuro. Emitem luz, como os de um mocho.

Voltei a sentar-me ao lado dele, onde Miguel tinha estado.

– A ideia de ele nos ver na cama juntos não te dá arrepios? – António fez uma careta.

– Não. Se não gostar, o problema é dele.

– Isso é fácil para ti de dizer.

– Ouve, tu não podes resolver os problemas do teu pai. – Estendi a mão por cima da mesa e segurei na dele. António olhou em volta, certificando-se de que ninguém nos observava. – Se ele criar problemas, ponho-o fora do carro e obrigo-o a descobrir sozinho o caminho de regresso para o Porto. Mas não me parece que o vá fazer. Ele sabe até onde pode ir.

António retirou a mão e cruzou os braços.

– Se for preciso, dá-te uma sova que ficas de gatas. – Havia um orgulho perverso na sua voz.

Nessa altura, pensei que estava a brincar.

Porque será que acho que os homens que conheço são incapazes de violência física? Ainda hoje, quando penso na forma como me violaste, Carlos, com a navalha junto ao pescoço, me pergunto se a memória me estará a pregar partidas. Depois vejo no espelho a cicatriz na orelha… Serei alguma vez capaz de te perdoar?

Foi por isso que respondi a António com um pouco de gabarolice:

– O teu pai pode bater-me até me deixar estendido no chão, mas nem assim permitirei que venha connosco no Batmóvel se não me apetecer.

– Veremos – respondeu ele.

– Quando chegarmos a Salamanca, quero que te sentes num sítio qualquer durante uma hora a ensaiar a Suite para Violoncelo em Dó, de Bach – pedi, mal acabei o chá, adotando o tom didático que sempre uso quando quero dar a entender que estou a falar mesmo a sério.

– Nem pensar.

– Podes fazê-lo sentado no quarto do hotel, ou no parque de estacionamento, ou descobrir um sítio qualquer à sombra de uma árvore. Não me interessa. Mas vais ensaiar mesmo.

Começou a protestar. Tapei os ouvidos com as mãos.

Miguel insistiu em dividir a conta.

– Não vou deixar que seja o Professor a pagar por mim ou pelo meu filho – protestou, fixando-me com um olhar zangado.

Era uma questão de orgulho, claro. Rangia os dentes outra vez. Talvez eu devesse ter percebido pela ênfase que pôs naquelas palavras que estava à beira de cometer uma loucura. Atravessámos a fronteira em Vilar Formoso. Um guarda espanhol gordo e de testa franzida lançou um olhar guloso ao Batmóvel.

– De que ano é? – perguntou.

– Sessenta e cinco.

Assobiou e tirou o boné para coçar a cabeça suada.

– E ainda funciona?

– Na perfeição.

Devolveu-me o passaporte.

– Se quiser vendê-lo, entre em contacto comigo.

Tapetes de papoilas desenrolavam-se na berma da estrada. Em Ciudad Rodrigo, o céu clareou. No cimo de uma igreja de tijolo, via-se uma cegonha branca sentada no ninho. Ninguém quis saber, só eu.

– Viram aquilo? – perguntei várias vezes, mas nenhum dos dois se deu ao trabalho de olhar para trás. Ninguém falava. Era como se tivéssemos atravessado um nevoeiro de trevas sem que eu houvesse dado por isso. Não me ralei e pus-me a cantar baladas irlandesas revolucionárias, porque o Valium já estava a fazer efeito e estava-me nas tintas para o que eles pudessem pensar. De vez em quando, olhava pelo espelho retrovisor. Dava com os olhos de Miguel pousados em mim.

Olhos escuros e carregados de tristeza.

Pés de galinha.

Barba por fazer, agressiva.

Levámos hora e meia a chegar a Salamanca. Sentia as pernas pesadas e percebi que depois do almoço precisaria de uma sesta, pelo que nos dirigimos para o Gran Hotel. No átrio, tivemos uma discussão sobre quantos quartos iríamos reservar. Tudo começou porque António queria ficar sozinho. Eu não achei que fosse grande ideia, e disse-o.

– Eu fico no quarto com ele – declarou Miguel. – De qualquer das formas, o Professor devia ter um quarto só para si.

– Quero ficar sozinho – insistiu António.

– E se tens outra crise de choro?

– Vou ter de dormir sozinho, mais cedo ou mais tarde.

– Antes mais tarde do que mais cedo.

– Então o que é que propõem? – perguntou, revirando os olhos.

– Nós partilhamos um quarto, e o teu pai fica sozinho no dele.

– Nem pensar – disse Miguel. – Não posso consentir que vocês os dois fiquem no mesmo quarto.

– Porque não? – perguntei.

– Professor, já falámos sobre este assunto.

– Ai já? Não me lembro.

– Eu fico com o rapaz – declarou ele.

António arregalou os olhos e cruzou os braços sobre o peito. Era a sua postura de guerra.

– Não ficas, não – protestou António.

Nessa altura, já eu estava pelos cabelos, pelo que anunciei à menina da receção que queríamos uma suite.

O quarto tinha três camas – duas de casal e uma de solteiro. Miguel atirou com a mala de xadrez para cima da cama de solteiro, como se quisesse assassinar a pobre da almofada. Eu estava bem-disposto e tranquilo, por isso não me importei.

– Quem quer almoçar?

António ergueu a mão. Miguel foi para a casa de banho sem responder.

– Não te rales com ele, vamos embora – disse António, com um gesto displicente da mão.

Passei-lhe o estojo com a minha guitarra.

– Depois do almoço, vais tocar. A Suite para Violoncelo está lá dentro.

Dirigimo-nos para a praça central. Eu avançava com passos ligeiros, contemplando o céu azul e os edifícios de uma linda pedra cor-de-areia. Quando parámos a ver a catedral, notei que António roía as peles das unhas como um esquilo de Central Park.

– Ontem à noite, parecia que me estava a afogar – disse, quando nos pusemos de novo a caminho. – O medo invadia-me os pulmões. Vinha em ondas, como uma maré. – Parou e olhou em volta, pousando o estojo da guitarra à sua frente, na vertical, como um escudo. Então, abraçou a coluna de pedra de um arco que se erguia em frente a uma banca de jornais. – E agora, aqui estou eu. Em Espanha. As paredes são sólidas. – Inspirou fundo. – Custa-me crer que sou eu. Custa-me crer que estou doente. – Olhou fixamente para mim. – Não há qualquer prova, a não ser um pedaço de papel.

«As provas chegarão mais tarde», pensei. «Vão irromper-te na pele e sair-te a ferver das entranhas.»

– Vamos ter montes de aventuras. Vou ser o teu Sancho Pança – anunciei-lhe.

– De que é que estás a falar?

O miúdo nunca lera Dom Quixote. Fiquei chocado e pus os olhos em alvo. Ele chamou-me snobe, enquanto nos sentávamos num café ao ar livre, na praça central. Decidi então armar-me em professor careta e cota; para variar, era agradável ter um papel seguro a desempenhar.

– Sou snobe porquê? – perguntei. – Por achar que devias ler? Ou a leitura é apenas para certa aristocracia intelectual?

– Porque achas que sabes o que é que eu devo ler – respondeu, indignado.

– O Dom Quixote é um clássico.

Respondeu-me com uma gargalhada franca.

– O que é que tem tanta graça?

– Chamar-lhe clássico não faz dele um bom livro. Vi montes de filmes portugueses clássicos e são todos uma merda.

– Então agora o Dom Quixote não presta para nada? É isso que estás a dizer?

– Não sei. Nem me interessa.

– É esse o teu problema. Não só és ignorante, como isso não te incomoda.

A ironia disto tudo é que também eu nunca acabara o Dom Quixote, embora o tivesse começado por três vezes.

Chegou o empregado para anotar o nosso pedido. Andaria pelos cinquenta anos, o cabelo rareava-lhe e tinha maus dentes.

– Este jovem aqui nunca leu o Dom Quixote – declarei no meu espanhol de trazer por casa.

– É uma obra-prima, una obra maestra – respondeu. Endireitou as costas e ergueu o bico da caneta. Os olhos procuraram a grandiosidade da praça e, parecendo encontrá-la, declarou num espanhol ressoante: – «Mui felizes e afortunados foram aqueles tempos em que o mais ousado dos cavaleiros, D. Quixote de La Mancha, veio a este mundo…» – Continuou a citar Cervantes por uns momentos. Registei dentro de mim apenas uma frase: «uma era desprovida de alegre entretenimento.»

Compreendi essa descrição da era do autor com toda a facilidade, quase intuitivamente.

A posição do empregado, de braço erguido, descontraiu de repente, e inclinou-se para mim. Era de novo um humilde serviçal. Partilhámos um sorriso. Ele murmurou:

– Sabe, há pessoas que acham que o livro nacional espanhol é a Bíblia. Mas é o Dom Quixote – murmurou, após o que encarou António: – Tem mesmo de o ler.

– Se conseguir descobri-lo lá na minha terra – respondeu ele em português.

– Consegue encontrá-lo em qualquer cidade, em qualquer língua. Na China, na Rússia, na Grécia. – Piscou o olho. – Até em Portugal, onde vocês nos detestam.

– Não se preocupe – repliquei. – Eu tenho um exemplar. Ele não tem saída.

Rimo-nos. Mas eu fiquei a contemplar durante demasiado tempo o sorriso de António e estraguei tudo.

Pedimos duas sopas de legumes e uma salada mista grande. Numa das folhas de alface jazia uma pequena mosca morta, esborrachada. Na América, isso teria sido o suficiente para provocar grandes manifestações de indignação – até mesmo um ataque cardíaco.

António limitou-se a retirar a folha da travessa e a pousá-la no seu prato do pão.

Carlos, dou graças a Deus por vocês, portugueses, existirem; continuam convencidos de que comida é apenas comida, e não uma espécie de via sagrada para atingir a saúde perfeita.

Ficámos sentados a beber o café, após o que deixei António para ir fazer uma sesta.

– Então e eu, o que hei de fazer?

– Estamos em Espanha. Sempre quiseste vir cá. O Segovia é daqui. Explora. Descobre uma árvore com montes de sombra, senta-te na posição do Buda e entoa vezes sem conta a palavra Salamanca. Quando não mais se referir a uma cidade e perder o seu significado, começa a ensaiar a Suite para Violoncelo.

– Preciso de ti para me dizeres quando estou a fazer alguma coisa mal.

Revirei os olhos.

– Tens melhor ouvido do que eu. Eu só sirvo para te ralhar quando ficas preguiçoso. – Ergui as sobrancelhas como um velho lascivo e disse: – Gosto mesmo muito de te ralhar, sabes.

Deixei-o no café. Ficou a ver-me afastar-me com os olhos tão cheios de pânico que quase voltei atrás.

O medo chega em ondas.