17

Acordei da sesta com a sensação de que viajava sozinho e me esquecera de telefonar ao meu irmão a dizer que estava bem.

Depois lembrei-me de onde ele estava.

Enquanto tomava banho, recordei-me do sonho:

O meu irmão era mantido vivo em casa da minha mãe. Tubos de plástico saíam-lhe da boca e do nariz e ligavam-no a umas máquinas com os mostradores metálicos do painel de bordo do Thunderbird. A cabeça, que lembrava a de um abutre, assentava, qual natureza-morta, na sua almofada do Homem-Aranha. Eu encontrava-me ao lado dele.

Os lençóis eram brancos e estavam amarrotados.

A água escaldou-me a pele antes que conseguisse aperceber-me de que estava demasiado quente. Saltei da banheira e fiquei a olhar-me fixamente no espelho durante muito tempo. Não consegui encontrar Harold – nem no nariz, nem nos olhos, nem mesmo no cabelo. Tomei outro calmante. Sentei-me na retrete e pus-me a contar os azulejos do chão. Quando a droga começou a puxar-me para longe de mim, limpei as gotas de suor do rosto, vesti-me e saí para andar um bocado. A tarde chegava ao fim e fazia muito calor. As ruas estavam cheias de espanhóis a comer aperitivos, a mascar pastilha elástica e a fumar.

«Um homem que não tenha qualquer coisa na boca não pode ser espanhol.» Cervantes nunca disse isso, mas devia tê-lo feito, porque toda esta cultura nunca deixou a fase oral.

Passeei calmamente, parei para beber um chá e depois encetei o caminho de regresso ao hotel. Foi então que vi António. Estava a tocar guitarra na Praça de Santa Justa. Era um largo gradeado em três dos lados e, ao centro, tinha um círculo cortado por dois caminhos de gravilha que se intercetavam ao meio, formando uma cruz. Em cada um dos quadrantes se viam pequenos canteiros de malmequeres e amores-perfeitos roxos. Os caminhos eram ladeados por bancos vermelhos. António estava sentado num balde azul virado ao contrário no perímetro do círculo. A luz batia-lhe na guitarra, emitindo reflexos.

Quando o vi, vinte e três pessoas se postavam em frente dele, a ouvi-lo. Contei-as.

Deixei-me ficar na única rua transitável, escondido atrás do tronco grosso de um velho castanheiro. Para provocar boa impressão nos espanhóis, estava a oferecer-lhes os seus compositores. Tocou…

Rumores de la Caleta, de Albéniz;

Variações sobre um tema d’A Flauta Mágica, de Sor;

Recuerdos de la Alhambra, de Tárrega.

Sentados aos pés dele viam-se dois rapazinhos de uns doze anos, com bonés de basebol dos New York Yankees ao contrário.

Uma velha de xaile preto, desdentada, que mastigava as gengivas como se tivesse acabado de comer uma coisa saborosa, contemplava a cena de uma janela alta; na cabeça, para se proteger do sol, um pano quadrado vermelho.

As pessoas batiam palmas ao fim de cada música. Porém, a verdade é que, quando se trata de futebol, sexo e guitarra, os espanhóis são difíceis de agradar. Tinham razão na apreciação que fizeram do artista, mas a forma como António tocou os Recuerdos foi particularmente inspirada. Porque tem o melhor tremolo que ouvi na vida, faz com que a melodia pareça estar a sair de um bandolim.

Já ouvi ao vivo Narciso Yepes quatro vezes, Andrés Segovia três e Julian Bream duas. Já assisti a concertos de Christopher Parkening, John Williams e Pepe Romero… Ouvi os melhores guitarristas do mundo tocar Recuerdos. António encadeou as notas, pegando-lhes uma a uma, e fez delas um colar mais cintilante do que qualquer um deles. Pus-me a pensar que talvez devesse tocar aquela peça na sua audição em Paris. «O único perigo», pensei «é que, se ficar nervoso, vai parecer uma máquina de cortar trigo».

Tive de me ajoelhar na terra batida junto ao castanheiro, porque as pernas começaram a tremer-me. Virei-me na direção oposta à de António e respirei fundo. Considerei a questão do que ele deveria ensaiar para tocar em Paris como se fosse um enigma lançado por uma esfinge malévola que detestava homossexuais, como se ele tivesse de escolher a música certa para uma guitarra, senão…

Senão morria.

De repente, senti-me aterrorizado. Apetecia-me correr até um ponto tão longínquo que ninguém me pudesse chamar de volta. Levantei-me e encostei-me à árvore. Escondi a cabeça nas mãos. Imaginei-me a jogar basquetebol. A receber um passe na linha dos lances livres. A dar voltas sobre mim mesmo. A fingir uma direita e a romper pela esquerda. A parar na linha final para um lançamento em suspensão. A bola a bater na frente do aro e a carenar até ao chão, onde embateria com um baque surdo. E ali ficaria. Sem ar. Esmagada pelo próprio peso.

António tinha começado a tocar o Prelúdio n.° 1 de Villa-Lobos. Ergui os olhos e algo do outro lado da rua bloqueou o som. Foi como se mergulhasse a cabeça em água.

Miguel estava do outro lado, na esquina de um prédio de três andares, a observar o filho, lavado em lágrimas. Tinha os braços esticados e as mãos agarravam o rebordo de pedra cor de areia. Os tendões do pescoço, inchados, sobressaíam perigosamente.

Ele, António e eu formávamos um triângulo no espaço.

Contudo, na geografia dos nossos corações, o miúdo estava entre nós.

Ao fim de um minuto, Miguel viu-me. Baixou os braços e atirou a cabeça para trás, assustado, como um cavalo chicoteado. Deu meia-volta e afastou-se.

Atravessei a rua e corri para o apanhar. Chamei-o. Ele estacou e suspirou, contristado. Depois, enxugou os olhos.

– Não devia ver-me neste estado – disse.

– Deixe-me pagar-lhe um copo.

Miguel olhou para mim com um ar triste e desnorteado.

– Não consigo decidir se o odeio ou não. – Dirigiu-se-me num tom desapaixonado, como uma confissão de todos os dias.

– Venha lá, deixe-me pagar-lhe um copo.

– Odeio-o – exclamou ele. – Não percebe?

– Percebo. O que quer que lhe diga?

– Vá-se lixar! – Com a mão, fez-me sinal para me afastar. – Vá-se lixar mas é, seu filho da mãe americano! – gritou. Cerrou os punhos e sacudiu-os na minha direção. Formara-se-lhe espuma aos cantos da boca. – Odeio-o! – repetiu. Recomeçou a andar, tenso, como se perseguisse alguém. Segui-o a uns vinte metros de distância. Chegámos ao hotel, gritei-lhe: – Venha tomar um copo comigo e conversamos.

– Quer falar? Fale! Fale comigo! – exclamou, virando-se para trás e soltando uma risada cáustica, o riso de um vilão de comédia.

– Quero falar sobre o António.

– Não tenho nada a dizer-lhe. Você! Você podia ter evitado isto!

– Precisamos de falar.

– Sobre o quê? Não quero falar consigo sobre o rapaz.

– Sobre outras coisas. Seja lá o que for.

– Que outra coisas há? Você é que é o professor. Que mais haverá para um rapaz de vinte e quatro anos, que não a vida dele? Diga-me! Filosofia? Psicologia? Música? É isso que há? Música clássica? Vá-se lixar, mais a merda da sua guitarra!

Sacudia na minha direção o punho cerrado.

Fiquei calado um instante.

– Oiça – disse, ao cabo de uns momentos –, conheço um bar mesmo aqui ao fundo da rua. É de noite. Ninguém nos vai incomodar.

Ele olhou na direção para onde eu apontava.

– Venha daí. – Passei ao seu lado e continuei a subir a rua. Os passos dele seguiram-me.

O Churchill’s era um bar gay na Gran Vía onde eu estivera em tempos, numa vida anterior – aquela que gozara antes de os cossacos invisíveis lançarem a sua primeira ofensiva. Não estava lá ninguém, só os fetos nos vasos. Pedi um uísque duplo para Miguel e um ouzo para mim. Ele bebeu em grandes goles e acendeu um cigarro.

– Dá-me um? – perguntei.

– Quer um dos meus cigarros?

Assenti com a cabeça. Ele atirou-me com o maço ao peito.

– Fique com todos.

Tirei um e pousei o maço ao lado da bebida dele. Sem que lhe pedisse, acendeu-me o cigarro e voltou a virar-me a cara. Os maxilares latejavam-lhe. Chamei o empregado e pedi outro uísque duplo e outro ouzo. Mais uma vez, Miguel emborcou o uísque em dois goles.

– Há casa de banho aqui? – perguntou depois.

– Não sei.

– Os larilas não precisam de ir à casa de banho? Ou limitam-se a beber o mijo uns dos outros?

Revirei os olhos.

Miguel perguntou ao empregado e a seguir voltou para a mesa. Apagou o cigarro no cinzeiro, tirou-me o meu da mão e apagou-o também.

– Venha comigo, Professor.

– Porquê?

– Já lhe disse para vir comigo. Quero que veja uma coisa.

Levantei-me.

– Vá à minha frente – disse. Seguimos por um corredor nas traseiras do bar. As paredes estavam pintadas de verde, e cheirava a cerveja. Chegámos diante de uma porta de madeira com letras pretas rezando: CABALLEROS. Virei-me para trás. – Entre – pediu, com um gesto aprovador da cabeça. Entrei. Dois urinóis brancos, duas cabinas sem portas.

De repente, dei por mim a voar. Evitei a queda amparando-me contra os azulejos pretos e amarelos das paredes. Miguel tinha-me empurrado.

– Então?!

Ele chegou-se a mim. Achei que fosse desatar a gritar, mas não tive essa sorte. Antes que eu pudesse reagir, deu-me um soco tão violento no estômago, que fiquei sem ar.

Caí, dobrado em dois. Achei que nunca mais conseguiria respirar. Parecia que alguém me apertara uma corda com tanta força em volta das costelas que os meus pulmões não conseguiam expandir-se.

Arquejava, tentando respirar. A custo, consegui erguer-me sobre os joelhos.

Sentia o sangue pingar-me do nariz.

Debatia-me para respirar. De súbito, abriu-se-me uma fenda de ar nos pulmões. Assim que entrou a primeira baforada, borrei-me nas calças. E a seguir tive um arranco. Fui de gatas até à retrete e vomitei ouzo e salada. Miguel começou a dar-me palmadinhas nas costas.

– Água – implorei.

Ele saiu da casa de banho e voltou com um copo de água mineral com uma palhinha azul e uma rodela de limão. Tive vontade de rir do ridículo, mas estava coberto de baba e vómito. Sentei-me no chão, enquanto as lágrimas me subiam aos olhos. Limpei-as com força, mas depois acabei por deixá-las cair. Não estava triste; sentia-me vazio, como se tivesse o estômago em carne viva, como se alguém me tivesse raspado o peito por dentro com lixa. Doíam-me as entranhas, e só quando apalpei o rabo me apercebi do que acontecera. Praguejei.

Esquecera-me do que um belo murro no plexo solar consegue fazer.

Nunca me tinham batido com tanta força na vida, nem sequer o professor italiano que me partira a costela com o dicionário.

Miguel deu um passo atrás e ficou a olhar para mim, boquiaberto. Como um miúdo que vê um rasgão de luz atravessar o céu.

– Vá-se embora – ordenei.

– Não posso deixá-lo aqui – respondeu.

– Já levei sovas noutras casas de banho. Ponha-se a andar. – Com a fralda da camisa, limpei um resto de vómito da boca.

– Não consigo.

Atirei-lhe à cara a água que me restava no copo. A rodela de limão bateu-lhe nos jeans e caiu.

– Vá-se embora – suspirei. – Isto não é nada de mais.

Mas ele não saía dali.

– Não é nada de novo – repeti, impaciente. – Não me está a ouvir? Não há gay no mundo que não tenha sido espancado por uma besta qualquer numa casa de banho. Você não é especial. É só um palerma que não sabe o que quer. Vá-se embora.

– Quer mais água? – perguntou.

Fechei os olhos, suspirei e baixei a cabeça.

– Precisa de se levantar – disse ele.

Eu não tinha força nas pernas. Apalpei a testa. Estava gelada. Percebi que ia desmaiar. Teria sido um alívio, mas pedi que molhasse umas folhas de papel no lavatório.

Ele passou-mas. Limpei a testa e deitei-me no chão do cubículo.

Ao cabo de algum tempo, ele pegou-me pelo cotovelo e tentou erguer-me. Não me mexi. Não me lembro do que aconteceu a seguir. Afinal, sempre devo ter desmaiado.

De repente, estava sentado. Sentia a mão dele no meu ombro.

– Acorde.

Recostei-me e descansei contra a bacia da retrete.

– Deixe-me aqui – disse. – Vá para o hotel e deixe-me em paz.

O empregado entrou na casa de banho. Olhou-me especado.

– Caramba – exclamou. – O que lhe aconteceu?

Sentado no chão de uma casa de banho a olhar para cima, uma pessoa sente-se minúscula e idiota. «Uma criança deve ter constantemente esta sensação de impotência», lembro-me de ter pensado, enquanto era invadido por uma grande ternura pela criança abusada que quase todos nós, homossexuais, fomos outrora.

– Qualquer coisa que comi – sussurrei.

– Marisco estragado, aposto – aventou o homem, pousando as mãos nas ancas e espetando um dedo sapiente. – Nem numa amêijoa eu confio.

Tentei rir, mas só consegui fazer que sim com a cabeça.

Ele crispou os lábios e ergueu as sobrancelhas na direção de Miguel.

– E eu para aqui a pensar que vocês andavam a brincar com os pepinos um do outro. Bom, vamos mas é daqui para fora. – Agarrou-me num braço, e Miguel no outro, e ampararam-me até à mesa. – Vocês têm quarto nalgum hotel? – perguntou.

– Mesmo ali abaixo – disse Miguel em português.

– Hã?? – fez o barman, engelhando o nariz como um coelho que cheira a presença de predadores.

– El Gran Hotel – expliquei.

Fiquei um bocado sentado a beber pequenos goles de chá de camomila que o nosso anfitrião tivera a bondade de me preparar.

– Comigo resulta sempre – observou.

O barman e Miguel acompanharam-me de volta ao hotel. Uma vez no quarto, despi-me e entrei na cabina do duche. Sentei-me e deixei a água escorrer por mim abaixo como uma chuva quente.

Depois, meti-me na cama.

Miguel ficou uns momentos a meu lado, olhando para mim com o ar apreensivo de um cão castigado. Coçou a barba por fazer, passou nervosamente as mãos pelo cabelo, penteando-o para trás, e pôs-se a andar de um lado para o outro. Eu não estava disposto a facilitar-lhe as coisas e fechei os olhos. Depois, enchendo-se de coragem, sentou-se. Senti o cuidado com que o fez na forma suave como a cama afundou. Levou a mão à minha testa.

– Lamento – sussurrou. – Fiquei calado. Estava exausto e quase adormeci com a mão dele a proteger-me. Foi então que ele disse: – Lamento mesmo muito.

– Foi a última vez – sussurrei. – Não há segundas oportunidades para quem espanca outro ser humano.

– Não volto a fazê-lo.

Ergui a mão. Ele agarrou-a.

Adormeci envolto naquele aperto.

Quando acordei já era de noite. Miguel estava sentado à janela, olhando para a rua lá fora. Eu pensava em ti, Carlos, perguntava-me o que estarias a fazer naquele preciso momento:

A atirar tinta para cima de uma tela?

A dormir pacificamente debaixo do teu edredão chinês?

A abraçar outra pessoa? Uma mulher?

Para minha surpresa, apercebi-me de que teria preferido que estivesses com um homem; significava que algo permanecera contigo das experiências que tínhamos tido juntos.

– Onde está o António? – perguntei a Miguel.

Ele aproximou-se e sentou-se ao meu lado.

– Está acordado. Sente-se bem?

– Cansado. Onde está o miúdo?

Ele deu-me um copo de água que repousava sobre a mesinha de cabeceira.

– Saiu agora mesmo para jantar. Podemos ir ter com ele, se quiser. Sei aonde foi.

– Não consigo comer – disse, bebendo a água de um só trago.

– Está enjoado?

– Não, simplesmente não tenho fome.

– Talvez café, ou uma sobremesa?

– Talvez café. Ou chá.

Saí da cama e espreguicei-me. Tinha o corpo quente e sentia os braços e as pernas doridos, como se estivesse com gripe. Estava nu. Miguel olhou-me de alto a baixo.

– Eu sei, tenho as carnes moles – disse. – Aconteceu uma noite, há uns anos, em Los Angeles. Enquanto eu dormia, alguém me substituiu todos os músculos da barriga e do peito por gelatina. A única pista que a Polícia encontrou? As saquetas atiradas para o lixo. O mais estranho é que todas tinham as minhas impressões digitais. Por isso, desconfio que tenha sido um trabalho infiltrado.

– Estava só a confirmar se tinha nódoas negras. Mas não vejo nenhuma – replicou, depois de me deixar levar a cabo a tentativa falhada de humor.

– Não se preocupe, não me partiu nada que não estivesse já parcialmente fraturado.

– Sou mesmo um sacana! – Virou a cabeça. Depois, enrugou a testa e disse: – Tenho estado a pensar.

– Chegou a alguma conclusão?

– O que eu disse é verdade… quero conhecer o meu filho. Mas… – Encolheu os ombros e, levando um cigarro à boca, acendeu-o.

– Mas o quê?

– Mas também tenho medo. – Inspirou profundamente e passou a língua pelos lábios.

– De quê?

– Dele.

Ficámos um momento em silêncio. Pus-me a contemplar a paisagem pela janela, mas, de cada vez que olhava para trás, dava com os olhos raiados de Miguel fixos em mim. Apontei para a mala, pousada junto à porta.

– Importa-se de ma trazer? Preciso de umas calças.

– Espere. – Esmagou o cigarro no cinzeiro e, ato contínuo, despiu a camisa, desapertou as calças e tirou-as. Não trazia cuecas. Estava parcialmente ereto, e era muito bem apetrechado.

Ficámos a olhar-nos em silêncio. Ao fim de algum tempo, aproximei-me.

Os nossos rostos estavam a dois centímetros um do outro. Os meus pelos do peito tocavam nos dele. Miguel correu os dedos pelas minhas ancas, acariciando-as e mergulhando as falanges nas sombras das minhas nádegas. Encostou a palma da mão à minha barriga, no sítio onde me esmurrara.

– Tenho medo – confessou. Estava inclinado para a frente, a cheirar-me o peito.

– Meu Deus, o Miguel é um homem lindo – sussurrei, massajando-lhe os ombros poderosos e passando-lhe os dedos pelas costas.

Ele ajoelhou. Quando me pôs na boca, senti-me capaz de desmaiar. Engasgou-se algumas vezes, mas engoliu com determinação e foi gargarejar para a casa de banho. Sentou-se na sanita com a cabeça entre as pernas.

– Sinto-me zonzo – explicou. Estendeu a mão, que eu agarrei. Ao fim de algum tempo, disse: – Tem um sabor amargo. Nunca pensei.

– Acabamos por gostar – disse eu.

Ele encolheu os ombros e baixou novamente a cabeça.

Pensei que depois disso se fosse afastar de mim, mas, quando saiu da casa de banho, aproximou-se e beijou-me na boca.

– Obrigado por isto – disse.

Abraçámo-nos, e o meu queixo repousou sobre o seu ombro. Ele pôs as mãos nas minhas nádegas, e os dois lançámo-nos numa dança lenta e ondulada pelo quarto fora. O desejo dele inchava, duro, contra a minha perna. Começámos a beijar-nos como se quiséssemos desvendar segredos mútuos. O queixo dele, por barbear, arranhava-me o pescoço.

De repente, afastou-se de mim à distância de um braço.

– Eu beijo bem? – perguntou, ansioso.

Inclinei a cabeça.

– Vá lá. Não faça perguntas dessas.

Baixou os olhos, como quem organiza as ideias.

– Mas eu quero aprender a beijar um homem – disse. – É… É uma coisa que quero mesmo aprender a fazer.

Levei a mão ao peito dele.

– Basta fechar os olhos. Se ajudar, imagine que sou uma mulher. Pode fantasiar aquilo que lhe apetecer.

– Não, quero pensar em si. Quero estar aqui. Neste quarto. É importante.

Beijámo-nos durante algum tempo, e ele segurou-me na face. Guiou-me até à cama. Ficámos deitados lado a lado, beijando-nos, os nossos desejos inchando, duros, entre nós. Quando ele pousou de novo a mão entre as minhas nádegas, percebi o que queria. Pus-lhe um preservativo, virei-me para o outro lado e encolhi os joelhos, pressionando-me contra o seu sexo. Uma mão agarrou-me a anca, a outra o ombro.

– Eu quero-o, Professor, mas como vamos fazer isto? – perguntou.

Posicionei-me novamente para ficarmos encaixados.

– Devagar – pedi.

– Já fiz isto com a minha mulher.

– Então sabe como é.

– Mas com ela era diferente. A forma era diferente.

– Por causa de um único cromossoma. Pense nisso.

– Penso em quê?

Não respondi; ele já entrara em mim. Torci-me e fugi, porque me ardeu.

– Estou a magoá-lo – disse ele, com uma expressão angustiada. – Devíamos parar.

– Espere um pouco. Assim deve ser mais fácil. – Deitei-me de costas e pus as pernas sobre os ombros dele.

– Está bem assim? – perguntou Miguel, quando já tinha as ancas bem pressionadas contra mim.

Assenti com a cabeça.

– Sabe, há quem diga que isto é contra a natureza – observou ele.

– Quer discutir filosofia, numa altura destas?

– Mas talvez seja.

– Pode escolher. Pode perguntar à Igreja o que pensa sobre o assunto, ou ao seu próprio pénis. Pessoalmente, acho que o que tenho dentro de mim é um porta-voz muito mais eloquente e brilhante de Deus e da Natureza. – Dei-lhe pequenos beliscões nos mamilos. – Vá lá, pergunte-lhe o que ele acha.

Ele inclinou-se sobre mim e mergulhou o mais fundo que pôde.

– Merda! – gritou, saindo de repente. O preservativo, pendurado, soltara-se. Arrancou-o e ejaculou sobre os lençóis, salpicando-os todos. – Há meses que não tinha relações – explicou. – Que grande porcaria.

Acariciei-lhe a face para o animar e permanecemos num silêncio grato durante algum tempo.

– Quantas vezes fez isto? – perguntou finalmente.

– O quê?

– Ir para a cama com um homem.

– Não faço ideia. Parei de contar ao fim de algum tempo, quando percebi que não ia encontrar o meu Príncipe Encantado. Sou masoquista, é verdade. Mas manter um registo pareceu-me demasiado indulgente.

Sentei-me ao lado dele. Passei-lhe a mão pela penugem que lhe revestia o interior das coxas. Enganchámos os pés. Ele pousou-me o braço por cima do ombro.

– Obrigado – repetiu.

– Pare de dizer isso. Até parece que lhe estou a fazer um favor.

– E está.

– Não estou nada. Nem sequer sei o que fizemos ao certo.

– Acha-me bonito? O Professor disse isso.

Encarei-o e peguei-lhe na flor em botão do seu sexo. Beijei-lhe o ombro. Tinha o mesmo cheiro que o filho. Seria por isso que me via a avançar tão descuidadamente por aquele beco sem saída? Ou seria apenas uma acumulação de testosterona?

– Acha-me bonito? – repetiu.

– A sua mulher também teve de responder a essas perguntas todas?

– Também.

– Certo, então, é muito bem-parecido.

– Quantas vezes, com o meu filho?

– Já lhe disse que não costumo contar.

– Mas dormiram juntos durante um ano?

– Sim.

– Uma vez por semana? Duas?

– Talvez quatro vezes. Mas não assinámos contrato. Ele não é a Jackie Kennedy, e eu sou demasiado alto e pobre para ser o Aristóteles Onassis.

– Quatro vezes cinquenta e dois… Duzentas e oito.

– Mas nem sempre tínhamos relações – fiz-lhe notar.

– Que mais faziam?

– Tudo. Menos cunnilingus, claro. Quer uma lista alfabética? Em latim, português ou inglês?

Recostou-se, ponderando aquela informação. Ao fim de algum tempo, o pénis dele começou a inchar-me na mão. Chupei-o. Ele pôs-se a brincar com as minhas orelhas. Empurrei-o para trás na cama e afastei-lhe as mãos para o lado, como uma vítima de crucificação. Baixei-me sobre ele. Ele atirou a cabeça para trás e fechou os olhos. Só voltou a abri-los depois de ter atingido o clímax.