23
Já vestido para jantar, olhei para Miguel como se o estivesse a ver pela primeira vez.
– Que foi? – perguntou-me.
– Você não é quem eu pensava que era.
– Suponho que isso seja bom.
– É um camaleão – observei. – Ou um papagaio. Ou um camaleão com cabeça de papagaio.
– Que quer dizer com isso?
Encolhi os ombros e sorri.
– De qualquer forma, seja o que for, ou quem for, estou-lhe grato.
António encontrava-se junto da vidraça e olhava o pai com ternura. Por momentos, pensei que fosse revelar o seu lado mais delicado, mas, no instante em que o pai se virou, a expressão do rapaz endureceu. «Barro a cozer muito tempo numa mufla zangada não regressa à sua forma flexível», pensei.
Não se pode dizer que um ou outro me tivesse resgatado do desejo de me drogar até à inconsciência. Na verdade, nessa noite, ao jantar, estava a precisar tanto de um comprimido que pedi licença para ir à casa de banho e em vez disso fui perguntar no bar se havia alguma farmácia aberta ali perto.
– Aqui perto, não – replicou o empregado, um homem alto, aprumado, com risca ao meio no cabelo.
– Por acaso não terá por aí um calmante? – tentei.
– Que tal uma aspirina?
Abanei a cabeça.
– Parece-me que em Madrid as pessoas não tomam calmantes.
– Mas bebem – ripostou ele. – Tome um whiskey.
– Não, obrigado.
– É por conta da casa – sorriu ele. Assenti. Pôs-me na mão um copo de Jack Daniel’s. – Acabado de chegar da sua terra.
Aquilo acalmou-me durante o jantar e por mais algum tempo. Mesmo assim, nessa noite, não transpus a fronteira para a terra dos sonhos. Não se pode fazer o desmame do Valium e dormir. É uma lei da Natureza.
Estava nervoso e cheio de calor. Sentia-me noutro cortejo fúnebre ou a tocar uma melodia para guitarra, muito além das minhas capacidades. Vasculhei o estojo dos medicamentos, à cata de uma migalhinha cor-de-rosa. Nada. Miguel confessara ao jantar que lançara os comprimidos pela retrete e puxara o autoclismo, pelo que, de gatas, andei a ver se algum teria caído no chão.
Nem um vestígio de ajuda à vista.
As horas passavam no mostrador iluminado do relógio de Miguel.
Uma da manhã.
Duas.
Três.
Odiava-o por me fazer passar por isto. Pensei em matá-lo enquanto dormia, enrolando-lhe o fio do telefone em volta do pescoço. Fantasiava com as parangonas dos jornais na manhã seguinte: «PEDREIRO PORTUGUÊS ESTRANGULADO POR AMANTE AMERICANO – FILHO HORRORIZADO DESCOBRE CORPO ESCONDIDO NO ARMÁRIO.»
Caranguejei pelo quarto e corri na casa de banho sem sair do lugar. Dei voltas e voltas na cama. Antigas humilhações vieram-me à memória, imobilizando-me dentro de vários intrincados planos de vingança contra ex-colegas de escola.
Às quatro da manhã enfiei o gorro, para ver se ajudava.
Cinco.
Seis.
Ergueu-se o Sol de sexta-feira. Eu não tinha pregado olho, mas estava contente porque me iria esgueirar do quarto e plantar-me diante da primeira farmácia que encontrasse. Os calmantes espanhóis seriam grandes, azuis e fantásticos. Esconderia alguns na tampa da pasta de dentes, não fosse Miguel descobri-los no estojo dos remédios, mas agiria normalmente na sua presença, e ele nem desconfiaria. Era nisto que pensava enquanto me ajoelhava junto à mala, em busca de um par de cuecas limpas.
Miguel dormira a noite toda e acordou nesse preciso momento. Talvez a minha mãe estivesse a comunicar telepaticamente com ele.
– Que se passa? – perguntou.
– Desculpe. Volte a dormir.
Sentou-se na cama, esfregou as faces e olhou para o relógio.
– É tão cedo que nem as padarias abriram. Que está a fazer?
– Vou sair só um bocadinho – anunciei, levantando-me e tapando o sexo com as cuecas que encontrara.
Ele levantou-se. Estava nu. Aproximou-se de mim, tirou-me as cuecas e voltou a lançá-las para dentro da mala. De seguida, envolveu-me os tomates com a mão e ajoelhou-se.
– Estou a safar-me melhor do que da última vez? – perguntou uns minutos mais tarde, numa pausa no assalto.
Eu tinha a respiração acelerada e limitei-me a acenar com a cabeça.
– Agora diga-me: que mais gostaria que eu lhe fizesse? – perguntou e respondi com toda a verdade, pois precisava tanto do seu carinho nesse momento que não conseguia mentir.
Acormeci com o braço dele sobre as minhas costas e o seu rosto encostado ao meu ombro. A respiração dele lembrava ondas a morrer na areia. «Mais uns dias disto e talvez todos os meus fantasmas comecem a dar-me paz», pensei.
Acordei às dez da manhã, com uma forte dor de cabeça.
– Já lhe voltaram as cores – disse Miguel.
– Isso é bom ou mau? – perguntei.
– É bom. Está a sentir-se melhor, não está?
– Tenho a cabeça a latejar.
– Quer uma aspirina?
– Continue, não pare.
– Aspirina é a única coisa que vai conseguir de mim. – Trouxe-me duas e um copo de água. – Às vezes, o sexo faz-nos sentir pior – observou.
– Não, foi bom. E foi importante para mim.
– Acho mesmo que estou a melhorar – comentou.
– Sempre que quiser praticar, esteja à vontade.
Enfiou um cigarro na boca e fixou-me com olhos graves.
– Acha que tem uma alma? – quis saber.
– A que propósito vem isso?
– Quero só saber.
– Se tenho alma? Duvido. Mas haverá quem tenha. Talvez a minha tenha ficado simplesmente de fora ou me tenha sido tirada quando visitei Sodoma pela primeira vez. Como se tivesse deixado o passaporte com o guarda fronteiriço. Mas deixe-me que lhe diga também não me tem feito falta.
– Eu também acho que não tenho – disse ele. – Ou talvez esteja no sítio errado e não consiga encontrá-la.
– Uma alma que não se consegue encontrar… Não me parece bem. Quero dizer, não se pode pôr uma alma fora do sítio. Ou está lá ou não está.
– Pode estar escondida. Sabe, gosto de estar deitado ao lado de um homem – disse, como se só naquele momento, ao cabo de trinta anos de luta árdua, houvesse chegado a essa conclusão. – Mas também gosto de estar com mulheres – acrescentou.
– Suponho que haja pessoas com pouca sorte e que não conseguem decidir-se – observei.
– Não, já me decidi. Gosto de tudo. Fico muito excitado ao lado de um homem bonito, mas também gosto muito do sabor… e da suavidade de uma mulher. Se calhar, não sou muito normal.
– Normal… Já não faço ideia do que isso é. Mas uma coisa lhe digo: o Miguel é um homem sortudo. Tantas opções para encontrar consolo… Invejo-o.
Ele e António já tinham tomado o pequeno-almoço no hotel, e a sala de jantar estava fechada até ao almoço. Miguel propôs um café na Plaza Mayor. Fomos buscar António, que me deu dois beijos de bom-dia.
Aparentemente, algo o animava. Miguel trouxe os mapas, pelo que percebi que também com ele se passava alguma coisa. António ia cantarolando enquanto saltitava entre o passeio e a rua; quase me atreveria a dizer que estava feliz, mas não quis arriscar semelhante otimismo.
Estava uma manhã quente. Grandes nuvens inchadas flutuavam, indolentes, no céu azul.
– O meu filho e eu estivemos a pensar que hoje devíamos ir ao campo – anunciou Miguel, depois de um cappuccino e de umas dentadas nas partes mais frescas de um croissant da véspera. − Não muito longe, porque o Professor está de certeza cansado.
Massajei as têmporas.
– Têm estado a conspirar contra mim.
– Não me vais perguntar de novo com quem és parecido, pois não? – inquiriu António.
– Nunca chegaste a responder. E continuo a querer saber.
O rapaz revirou os olhos.
– O campo – repetiu Miguel.
– Deixem ver se adivinho, vocês acham que a cidade é uma má influência para mim.
– Demasiados museus com quadros antigos. Precisa de ar fresco.
Miguel estava uma vez mais a comunicar telepaticamente com a minha mãe.
– Do que eu preciso é uma ilha deserta com cheesecake de abóbora a crescer nas árvores e o Sean Connery de tanga a trepá-las para me ir buscar cocos – sussurrei, como que para a chocar lá longe, no seu retiro de Long Island, e também para lhe arrancar uma gargalhada.
– E que tal desejares algo dentro dos limites do razoável? – riu António.
– Madrid não tem só museus antigos – observei. – Podíamos comprar uns cordões de ouro e irmos a uma discoteca esta noite. – Imitei John Travolta no Saturday Night Fever. Ninguém sorriu. – Ou a um concerto de zarzuelas – propus –, e ver quanto tempo aguentávamos sem cair para o lado.
– Campo – repetiu Miguel.
– Você é um autêntico jerico.
– Primeiro era camaleão, depois papagaio, agora jerico.
– A arca de Noé num só corpo.
– Não percebo.
– Quero dizer que você é teimoso como um jerico.
– Um ginasta tem de treinar mil vezes até conseguir fazer um determinado exercício bem. Há que haver persistência, não é só talento.
– Esse tem sido sem dúvida o meu lema. E veja aonde ele me levou. Estou encalhado na planície espanhola com dois treinadores de animais portugueses.
Miguel tirou do bolso o mapa Michelin que trouxera consigo.
– Proponho que paremos num sítio qualquer perto de Burgos. Quando nos aborrecermos, podemos ir à cidade ver um filme ou coisa parecida.
Lancei uma risada trocista.
– Um filme espanhol? Alguma vez viu um filme espanhol de que gostasse?
– Imensas vezes – respondeu.
– Diz lá um – pediu António.
– Todos aqueles filmes com a María Félix. Era fantástica.
– Quem é a Maria Félix? – perguntou António.
– Uma sex-bomb mexicana – respondi.
– Então, não era espanhola – declarou.
– É verdade – admitiu Miguel. – Mas penso que fez alguns filmes em Espanha. Era linda. E tinha umas mamas… – Mostrou-nos o que queria dizer pondo as mãos em concha sobre o peito.
– Já são mais dois talentos do que o Anthony Quinn – fiz notar.
Ninguém me deu resposta.
– Então, Burgos – concluiu Miguel, encarando-me.
Olhei para António. Ele anuiu.
– Um de vocês vai ter de conduzir – alertei.
– Chaves, Batman – declarou António, estendendo a mão.
E foi assim que acabámos num parador em Santo Domingo de la Calzada, uma vila degradada com casas de pedra e estuque a cair, rodeada de vinhas, trinta e tal quilómetros a leste de Burgos. E foi aí que as coisas começaram a descambar.
Os problemas surgiram pelas duas da tarde. António chamou-nos ao seu quarto, porque tinha uma surpresa nós. Pôs-se a erguer e a baixar as sobrancelhas, como Groucho Marx.
Uma vez no quarto, passou-me para a mão a guitarra e a pauta da música que eu tocara havia um tempo.
– Fiz algumas alterações. Ensaia um bocadinho. – Olhou para Miguel. – Pai, vem daí comigo.
Levou o pai para a casa de banho.
Enquanto eu ensaiava, António ensinou ao pai a segunda das melodias que nos cantara no carro. Agora, já tinha letra, tirada dos últimos versos da Canção de Mim Mesmo, de Walt Whitman. Pouco depois de nos termos conhecido, António e eu lêramos juntos a edição bilingue publicada pela Assírio & Alvim em 1992. Ele decorara a tradução portuguesa e repetia-a a Miguel:
Entrego-me ao húmus para crescer da erva que amo,
Se me queres ter de novo, procura-me debaixo da sola das tuas botas.
Dificilmente saberás quem sou eu ou o que significo,
Todavia dar-te-ei saúde,
E filtrando o teu sangue dar-te-ei vigor.
Se à primeira não me encontrares, não desanimes,
Se não estiver num lugar, procura-me noutro,
Algures estarei à tua espera.
Sempre me comovera a ideia de os mortos desejarem bem aos vivos. E a ideia de que estavam à nossa espera…
– Pronto? – perguntou o rapaz, quando ele e o pai regressaram ao quarto. Nos olhos brilhava-lhe expectativa.
– Diz-me o que tenho de fazer.
– O ritmo é este – explicou, batendo com o pé no chão. – Tocas os três primeiros compassos sozinho, depois entramos nós. – Virou-se para o pai. – Percebeste?
– Posso fumar meio cigarro antes?
António esboçou uma careta e voltou a bater o pé no chão. Comecei a tocar. Dezasseis notas descendo a correr por umas escadas abaixo.
Eles juntaram-se a mim.
Não ouvi com muita atenção as suas harmonias porque estava concentrado na minha parte. Mas não gostei do que ouvi. Era um moteto inexorável, e as vozes abafavam a guitarra, reduzindo-a quase ao silêncio.
António deixou descair os ombros.
– Não saiu como imaginava – suspirou.
– Foi interessante – tentou Miguel. – Quem escreveu a música?
António revirou os olhos.
– Tem de ser tudo o mesmo instrumento – observei. – Três violinos, ou assim. Se queres manter a letra, tem de ser três vozes.
– Acha que consegue cantar a sua parte? – perguntou Miguel.
– Talvez, se abrandarmos muito o ritmo, até ficar um adagio.
– Se o abrandarmos, não vai funcionar! – atirou António num tom agressivo.
– Deixa-o tentar – atreveu-se Miguel.
– Escreve-me a letra em português – pedi a António.
Ele escreveu-a na última página em branco do meu Life With a Star, como quem cumpre uma tarefa aborrecida, e preparava-se para a arrancar quando eu soltei um berro:
– É pecado rasgar um livro.
Ele estendeu-mo.
– Começa quando quiseres.
Levantei-me e cantei ao ritmo que me pareceu mais adequado. A melodia desceu uma escadaria suave, ergueu-se num ascendente de júbilo e depois foi ao encontro das outras duas vozes. Juntos descemos aos saltos uma encosta irregular, galgámos três cercas, tropeçámos numa pedra, erguemo-nos outra vez, corremos mais um bocadinho e por fim abrandámos e rolámos até parar.
Enganei-me quando ambos estavam a cantar Mi, e eu tinha de cantar o Ré logo abaixo. Claro que me queria juntar a eles, mas acabei a flutuar algures em volta do Mi bemol.
«Três viajantes lado a lado, afastando-se, juntando-se, parando e olhando uns para os outros. Não sabem o que hão de fazer. Têm medo de uma consonância, mas ainda têm mais medo de se separar para sempre.» Eis o que me ocorria ao ouvir as melodias. Miguel deve ter pensado o mesmo, porque se sentou com a cabeça entre as mãos.
De súbito, senti um nó formar-se-me na garganta e fiz um sinal de aprovação com a cabeça. Estava orgulhoso de António.
– É uma coisinha de nada – disse, encolhendo os ombros. – Não é de todo aquilo que eu pretendia.
– Não, nunca é – murmurei.
António contou-nos então que começara a compor em Salamanca. No dia em que se sentara na Plaza Mayor, conhecera uma jovem guitarrista de nome Monica, que o convidara para ir a casa dos pais e, nesse domingo, tocaram duetos durante cinco horas. Entretanto, chegou um amigo catalão que andava a estudar canto e que os acompanhou, cantando músicas populares. António teve a ideia de escrever uma série de três melodias para duas guitarras e uma voz, uma baseada numa canção popular portuguesa, outra numa canção popular de Salamanca e a última da Catalunha. A melodia original era de uma canção popular da província natal de Miguel, chamada O Marinheiro Noivo, que o pai lhe ensinara quando ele era ainda um miúdo.
– Ah, sim – assentiu Miguel –, estou a reconhecê-la agora. Foi lindo, filho. Estou orgulhoso de ti.
«Boa», pensei. «Agora, diz-lhe que o amas.»
O rapaz não respondeu ao pai. Pegou na guitarra e guardou-a no estojo, trancando os fechos com brusquidão.
– Vou sair para ensaiar – anunciou.
– Não fiques desiludido – pedi-lhe. – É normal que uma coisa que desce da tua cabeça até uma folha de papel e depois te sobe para a voz mude ao longo do percurso. Não podes esperar que saia exatamente igual àquilo que concebeste.
– Deixa-me em paz.
– Porque estás desiludido? – perguntou Miguel.
– Esqueça. Deixe-o – pedi.
– Não, quero saber porquê – insistiu ele.
António arregalou os olhos para o pai.
– Queres saber porquê? Por tua causa. Não quero cantar contigo. Não quero ter nada a ver contigo. Tudo isto é uma mentira. O que escrevi é uma mentira! Percebi isso mesmo quando ouvi. Que tinha escrito uma mentira!
Marchou dali para fora. Desta vez, não se esqueceu de bater a porta com toda a força.
Miguel secundou-o.
– Vou beber um café e talvez um brandy, quer vir? – perguntou, mais por educação do que por qualquer outra coisa.
– Tenho que fazer – respondi, abanando a cabeça.
A igreja ficava mesmo do outro lado da rua. Acendi uma série de velas aos pés de uma grande estátua de pedra da Virgem, com uma jarra de cristal repleta de gladíolos cor-de-salmão a enfeitar-lhe o pedestal. Quando pousava a última no suporte, uma jovem de cabelo preto e curto aproximou-se de mim.
– Tantas? – perguntou em espanhol.
Encolhi os ombros como quem pede desculpa.
– Soy de una isla de muertos. – Não sabia se aquilo se poderia dizer em espanhol, mas decerto não andaria longe.
– E onde fica essa ilha dos mortos? Na América? – perguntou-me em inglês.
– Sim.
– Meu inglês não muito bom – desculpou-se, esboçando um sorriso de menina tímida.
– Se falar devagar, eu percebo – respondi em espanhol.
– Também vi desaparecer muitos amigos – disse ela.
Saímos juntos.
– Chamo-me Claudia – apresentou-se, estendendo-me uma mão minúscula e fria. – Dantes, pintava cenários no Ballet Nacional – acrescentou.
– E agora?
– Agora cozinho para o meu marido e para o meu filho. – Sorriu. – E vou à igreja todos os dias. Uma pessoa não esquece. – Apertou o casaco de couro. – Gostei de o conhecer. Tenha uma boa estadia aqui na vila. Se ainda andar por cá amanhã, vemo-nos na igreja. À mesma hora. Estou com pressa, senão ficava a falar mais um pouco.
Claudia lembrou-me de que fazemos parte de uma seita mundial, pelo menos todos os que transpõem as portas do hospital para visitar um amigo a morrer de sida.
Não há lugar de peregrinação, não há um centro sagrado.
O eixo dessa seita fica onde quer que encontremos outro membro.
Claudia atravessou a praça a passos largos. Mal desapareceu de vista, passeei pela vila à procura de António, porque de repente senti que tinha algo para lhe dizer. Quando vi que não conseguia encontrá-lo, fiquei desesperado. Arrastei-me de volta à igreja, deixando-me ali ficar durante algum tempo, derrotado e vazio. Depois regressei ao hotel.
No átrio da entrada, ouvi-o tocar no seu quarto o Prelúdio da Suite para Violoncelo de Bach. Bati à porta. Ele deixou-me entrar e sentámo-nos ambos aos pés da cama, dois guerreiros cansados. Segurei-lhe na mão.
– Em que estás a pensar?
– Que aquilo que escrevi não presta para nada.
– É por isso que vim falar contigo. O que escreveste é demasiado bom. E tu deixaste-te assustar por isso.
– Não era aquilo de que estava à espera – repetiu.
– Porque não era apenas música. Era uma coisa diferente. Uma coisa que tu querias encenar. Estavas à procura de uma forma de vos juntar, a ti e ao teu pai. E conseguiste. Encontraste-a. Foi isso que te assustou. Quanto mais te aproximas dele, mais medo sentes. Só tens de continuar a avançar na direção certa, aconteça o que acontecer. Estás quase lá.
Ficou calado. A dúvida começou a invadir-me o espírito; talvez estivesse completamente errado.
– Sabes, tu e o teu pai cantam mesmo bem. Foi muito bonito ouvir as vossas vozes juntas. – Silêncio. – Eu falhei algumas notas. Estou enferrujado na leitura da pauta.
Ele retirou a mão.
– Não tens qualquer culpa de aquilo não ser música. Para de te responsabilizares por tudo.
– Ainda no outro dia me dizias que eu era responsável por tudo – fiz-lhe notar.
– E agora não digo!
– Não estava a criticar. Apenas a constatar como as coisas mudam.
– Bom, para.
– Sê simpático quando falas comigo. Estou frágil. Tu estás frágil.
Ele levantou-se e cruzou os braços.
– Eu sabia que podia acontecer – disse. – Mas achei que não. Fui estúpido. – Pegou numa almofada e cobriu a cabeça. Pôs-se a andar para trás e para a frente.
– Vamos dar um passeio – sugeri.
– Não.
– Às vezes obedecer ajuda. Não interessa ao quê. É o simples facto de ceder ao desejo do outro.
– Sabes, quem eu quero que me encontre és tu – disse ele. – Do poema do Whitman. Depois de eu ter morrido. Vou querer que me encontres.
– Eu sou incapaz de encontrar seja o que for – repliquei. – Referes-te a outra pessoa. E acho que queres que ele te encontre muito antes de ires para debaixo da terra.
– Quem? – perguntou António.
Encolhi os ombros; não precisava de lho dizer.
– Anda daí dar um passeio – rematei.