Prefácio

Porque esperámos tantos anos
para publicar este livro?

Escrevi o meu primeiro romance, O Último Cabalista de Lisboa, em 1992 e 1993, depois de completar um ano inteiro de investigação sobre a vida quotidiana em Portugal no século XVI. Esperava ter criado um romance cativante e de relevo, mas quando o meu agente literário em Nova Iorque começou a enviar o manuscrito às editoras, em breve se tornou evidente que elas consideravam a localização – Lisboa em 1506 – um problema fatal. No ano seguinte, o livro foi rejeitado por mais de dez editoras americanas. Todas diziam que estava muito bem escrito, com uma narrativa empolgante, mas que os americanos não comprariam um livro sobre uma coisa passada em Portugal quase quinhentos anos antes. Embora o meu agente tenha prometido continuar a tentar encontrar uma editora, comecei a ficar extremamente deprimido. Tinha levado mais de três anos a completar o projeto, e parecia cada vez mais evidente que nunca chegaria às livrarias nos Estados Unidos, nem na Grã-Bretanha. Foi então que uma escritora minha amiga me deu um conselho excelente; disse-me que, em vez de me dedicar à causa pouco provável de encontrar uma editora para O Último Cabalista de Lisboa, devia começar a escrever um segundo romance.

Dadas as dificuldades que as editoras americanas tinham com um romance histórico, decidi escrever uma narrativa contemporânea. Nessa altura, eu estava a fazer o difícil luto pelo meu irmão, morto de sida em 1989. Pareceu-me natural escrever sobre as minhas experiências com ele, e sobre a forma como a pandemia da sida lançara uma negra sombra sobre a vida na área da Baía de São Francisco nos anos 80 do século passado, quando eu vivia em Berkeley com o meu futuro marido, Alexandre Quintanilha. Ano e meio depois, tinha terminado o livro, dando-lhe o título de Unholy Ghosts, Insubmissos, na edição portuguesa. Conta a história um jovem e talentoso guitarrista clássico do Porto – António – que descobre ter apanhado o vírus VIH. Fica cheio de medo e entra em desespero. Dado que, à época, a sida equivalia a uma sentença de morte, o seu professor de guitarra, de nacionalidade americana, apercebe-se de que o jovem poderá ter apenas alguns anos para desenvolver uma carreira. O professor decide então desistir do seu próprio desejo de continuar a trabalhar com António, a quem se sente muito ligado, de maneira a descobrir-lhe um mentor mais talentoso, que possa ajudá-lo a progredir mais rapidamente. Os dois decidem fazer uma viagem até Paris, para convencer um virtuoso mundialmente reconhecido, recomendado por um amigo, a aceitar o jovem como aluno. Mas em breve surge um problema: o pai de António – que não consegue aproximar-se do filho por não aprovar a sua homossexualidade – insiste em acompanhá-los na viagem. Embora o pai – Miguel – torne bem claro que quer fazer as pazes com o filho, António não confia nele e fica cada vez mais furioso e perturbado. E, assim, o romance transforma-se na história de três viajantes vulneráveis e com os nervos à flor da pele, numa jornada desesperada até Paris, na esperança – cada um à sua maneira – de encontrar uma qualquer forma de reconciliação e redenção.

Quando acabei Insubmissos, em 1995, O Último Cabalista de Lisboa já fora rejeitado por 24 editoras norte-americanas, e o meu agente literário desistira do projeto. Fiquei desorientado e deprimidíssimo, mas uma ideia «louca» salvou-me: porque não tentar encontrar um editor em Portugal? Acabei por enviar o manuscrito à Maria da Piedade Ferreira, da Quetzal Editores, uma editora sugerida por alguns escritores que conhecia. Umas semanas mais tarde ela respondeu que tinha gostado muito do livro e que estava entusiasmada com a ideia de uma edição portuguesa.

Enquanto O Último Cabalista de Lisboa estava a ser traduzido, enviei Insubmissos para uma pequena editora com sede em Londres. O diretor disse-me – para grande surpresa e alegria minha – que achava o romance uma leitura empolgante, e queria publicá-lo o mais depressa possível.

Insubmissos saiu no Reino Unido e nos EUA em 1996, pouco depois da edição portuguesa de O Último Cabalista de Lisboa. Dada a forma como ele explora o efeito da pandemia da sida sobre as principais personagens, revelou-se impossível conseguir críticas ou entrevistas e vendeu apenas o suficiente para dar um pequeno lucro à editora.

Felizmente, o que aconteceu com a edição portuguesa de O Último Cabalista de Lisboa foi bastante diferente. Duas semanas depois de ter saído, chegou a número 1 na lista dos best-sellers. E teve críticas excelentes. Em consequência disso, a Maria da Piedade perguntou-me se eu tinha outro livro que ela pudesse publicar. Dei-lhe o manuscrito de Insubmissos. Cerca de uma semana mais tarde, ela telefonou-me a dizer que o achara muito comovente. Tinha gostado especialmente das personagens. Disse-me que teria muito gosto em publicá-lo, mas acrescentou que achava que não devíamos fazê-lo. Porquê? Ela receava que houvesse represálias contra mim, por explorar temas que nessa altura eram em grande parte tabu em Portugal. Resumindo, alguns editores de jornais e revistas conservadores poderiam muito bem esforçar-se ao máximo para nos destruir, a mim e ao livro.

Embora uma reação negativa por parte da imprensa me intimidasse, em breve me ocorreu uma possibilidade pior. Nessa altura, eu ainda não tinha cidadania portuguesa. Podia dar aulas na Escola Superior de Jornalismo do Porto porque tinha um visto de trabalho. E se o Ministério da Administração Interna decidisse não o renovar? Se isso acontecesse, não teria como ganhar a vida e teria de sair do país. E o Alex teria de deixar de dar aulas e abandonar todos os seus planos de criar um centro de investigação científica no Porto.

Sim, a possibilidade de me ser negada a renovação do visto de trabalho pareceu-nos muito real, a mim, ao Alex e à Maria da Piedade em 1996. Não será necessário lembrar que, nessa altura, a homossexualidade era considerada um desvio perigoso por muitos políticos portugueses e outras vozes de peso. De facto, seria necessário esperar mais catorze anos até a Assembleia da República aprovar o casamento homossexual e conceder a igualdade de direitos a cidadãos gay. Além disso, nos anos noventa, quase toda a gente em Portugal – políticos, jornalistas e outros – se recusavam a discutir a sida de forma séria.

Eu não podia arriscar-me a ser desancado na imprensa e ver-me recusada a renovação do visto. Por isso, a Maria da Piedade e eu decidimos não publicar o livro.

Com o passar dos anos, escrevi muitos outros romances e, basicamente, esqueci-me deste. Mas quando começou a pandemia da Covid-19, espalhando-se pela Europa e pela América, eis que outra doença potencialmente fatal volta a ser o principal foco dos meios de comunicação, bem como tópico das conversas diárias entre amigos. De repente ocorreu-me que talvez tivesse chegado o momento certo para publicar Insubmissos. Os meus editores da Porto Editora concordaram de imediato.

Curiosamente, depois de a minha tradutora, a Daniela, ter iniciado o seu trabalho, voltei a ter medo de sofrer represálias por causa do livro, embora Portugal tenha evoluído enormemente desde 1996. Decidi que precisava de ter a certeza de que a qualidade do livro estava à altura dos meus níveis habituais, antes de permitir que o publicassem. Ao fim e ao cabo, eu tinha-o escrito quase vinte e cinco anos antes, quando era uma pessoa muito diferente, e tinha menos experiência como escritor.

Depois de terminada a tradução, comecei a fazer a minha revisão e descobri, para grande alívio meu, que a narrativa era concisa e inteligente. Gostei de verificar que a ação do livro era rapidamente impulsionada pelos conflitos entre as principais personagens. Também achei a figura do professor tão perspicaz como espirituosa. Mais importante ainda, a narrativa pareceu-me inteiramente fiel à minha diversidade de sentimentos nessa altura.

Claro que todos os livros têm falhas, e sem dúvida que Insubmissos terá os seus. E, contudo, tenho muito orgulho nele. Agora, ao fim destes anos todos, sinto que, sem o saber, escrevi um livro muito corajoso e honesto. E estou felicíssimo por ter uma edição portuguesa. Na verdade, parece ser uma parte da redenção que as minhas três personagens principais desejavam encontrar durante a sua viagem até Paris, há tantos anos.

Richard Zimler

Lisboa, 1 de setembro de 2020