Sumário: 1. Origens do direito comercial – 2. Da definição do regime jurídico dos atos de comércio: 2.1. Definição e descrição dos atos de comércio e sua justificação histórica; 2.2. Os atos de comércio na legislação brasileira; 2.3. A teoria dos atos de comércio na doutrina brasileira – 3. A teoria da empresa e o novo paradigma do direito comercial: 3.1. Surgimento da teoria da empresa e seus contornos; 3.2. A teoria da empresa no Brasil antes do Código Civil de 2002: legislação e doutrina; 3.3. A teoria da empresa do Brasil com o advento do Código Civil de 2002: legislação e doutrina – 4. O problema da nomenclatura: direito comercial ou direito empresarial? – 5. Autonomia do direito empresarial: 5.1. Os princípios do direito empresarial – 6. Fontes do direito empresarial: 6.1. O Projeto de Lei 1.572/2011 (Novo Código Comercial) – 7. Questões.
“A burguesia, na acepção original do termo, sempre foi formada por uma classe de poupadores, de pessoas que honravam suas palavras e respeitavam seus contratos, de pessoas que tinham uma profunda ligação à família. Essa classe de pessoas se importava mais com o bem-estar de seus filhos, com o trabalho e com a produtividade do que com o lazer e o deleite pessoal.
As virtudes da burguesia são as tradicionais virtudes da prudência, da justiça, da temperança e da fortaleza (ou força). Cada uma delas possui um componente econômico – vários componentes econômicos, na verdade.
A prudência dá sustento à instituição da poupança, ao desejo de adquirir uma boa educação para se preparar para o futuro, e à esperança de poder legar uma herança aos nossos filhos.
Com a justiça vem o desejo de honrar os contratos, de dizer a verdade nos negócios e de fornecer uma compensação para aqueles que foram injuriados.
Com a temperança vem o desejo de se controlar e se restringir a si próprio, de trabalhar antes de folgar, o que mostra que a prosperidade e a liberdade são, em última instância, sustentadas por uma disciplina interna.
Com a fortaleza vem a coragem e o impulso empreendedorial de se deixar de lado o temor desmedido e de seguir adiante quando confrontado pelas incertezas da vida.
Essas virtudes são os fundamentos tradicionais da burguesia, bem como a base das grandes civilizações.
Porém, a imagem invertida destas virtudes mostra como o modo virtuoso do comportamento humano encontra seu oposto nas políticas públicas empregadas pelo estado moderno. O estado se posiciona diretamente contra a ética burguesa, sobrepujando-a e fazendo com que seu declínio permita ao estado se expandir em detrimento tanto da liberdade quanto da virtude.” (Lew Rockwell, em A burguesia e suas virtudes cardinais; o Estado e seus pecados capitais)
Ao estudarmos a história do direito comercial, logo percebemos uma coisa: o comércio é muito mais antigo do que ele. De fato, o comércio existe desde a Idade Antiga. As civilizações mais antigas de que temos conhecimento, como os fenícios, por exemplo, destacaram-se no exercício da atividade mercantil. No entanto, nesse período histórico – Idade Antiga, berço das primeiras civilizações –, a despeito de até já existirem algumas leis esparsas para a disciplina do comércio, ainda não se pode falar na existência de um direito comercial, entendido este como um regime jurídico sistematizado com regras e princípios próprios.
Mesmo em Roma não se pode afirmar a existência de um direito comercial, uma vez que na civilização romana as eventuais regras comerciais existentes faziam parte do direito privado comum, ou seja, do direito civil (jus privatorum ou jus civile).
Durante a Idade Média, todavia, o comércio já atingira um estágio mais avançado, e não era mais uma característica de apenas alguns povos, mas de todos eles. É justamente nessa época que se costuma apontar o surgimento das raízes do direito comercial, ou seja, do surgimento de um regime jurídico específico para a disciplina das relações mercantis. Fala-se, então, na primeira fase desse ramo do direito. É a época do ressurgimento das cidades (burgos) e do Renascimento Mercantil, sobretudo em razão do fortalecimento do comércio marítimo.
Ocorre que na Idade Média não havia ainda um poder político central forte, capaz de impor regras gerais e aplicá-las a todos. Vivia-se sob o modo de produção feudal, em que o poder político era altamente descentralizado nas mãos da nobreza fundiária, o que fez surgir uma série de “direitos locais” nas diversas regiões da Europa. Em contrapartida, ganhava força o Direito Canônico, que repudiava o lucro e não atendia, portanto, aos interesses da classe burguesa que se formava. Essa classe burguesa, os chamados comerciantes ou mercadores, teve então que se organizar e construir o seu próprio “direito”, a ser aplicado nos diversos conflitos que passaram a eclodir com a efervescência da atividade mercantil que se observava, após décadas de estagnação do comércio. As regras do direito comercial foram surgindo, pois, da própria dinâmica da atividade negocial.
Surgem nesse cenário as Corporações de Ofício, que logo assumiram relevante papel na sociedade da época, conseguindo obter, inclusive, certa autonomia em relação à nobreza feudal.
Nessa primeira fase do direito comercial, pois, ele compreende os usos e costumes mercantis observados na disciplina das relações jurídico-comerciais. E na elaboração desse “direito” não havia ainda nenhuma participação “estatal”. Cada Corporação tinha seus próprios usos e costumes, e os aplicava, por meio de cônsules eleitos pelos próprios associados, para reger as relações entre os seus membros. Daí porque se falar em normas “pseudossistematizadas” e alguns autores usarem a expressão “codificação privada” do direito comercial.
Nesse período de formação do direito comercial, surgem seus primeiros institutos jurídicos, como os títulos de crédito (letra de câmbio), as sociedades (comendas), os contratos mercantis (contrato de seguro) e os bancos. Além disso, algumas características próprias do direito comercial começam a se delinear, como o informalismo e a influência dos usos e costumes no processo de elaboração de suas regras.
Outra característica marcante desta fase inicial do direito comercial é o seu caráter subjetivista. O direito comercial era o direito dos membros das corporações ou, como bem colocado por Rubens Requião, era um direito “a serviço do comerciante”. Suas regras só se aplicavam aos mercadores filiados a uma corporação. Assim sendo, bastava que uma das partes de determinada relação fosse comerciante para que essa relação fosse disciplinada pelo direito comercial (ius mercatorum), em detrimento dos demais “direitos” aplicáveis. Em resumo, pode-se dizer que o direito comercial era um direito feito pelos comerciantes e para os comerciantes.
Por fim, é interessante notar a verdadeira revolução que o direito comercial, nessa sua primeira fase evolutiva, provocou na doutrina contratualista, rompendo com a teoria contratual cristalizada pelo direito romano. Em Roma, os ideais de segurança e estabilidade da classe dominante “prenderam” o contrato, atrelando-o ao instituto da propriedade. Era o contrato, grosso modo, apenas o instrumento por meio do qual se adquiria ou se transferia uma coisa.
Essa concepção um tanto estática de contrato, inerente ao direito romano, obviamente não se coadunava com os ideais da classe mercantil em ascensão. Nesse sentido, perde espaço a solenidade na celebração das avenças, e surge, triunfante, o princípio da liberdade na forma de celebração dos contratos.
Enfim, o sistema de jurisdição especial que marca essa primeira fase do direito comercial provoca uma profunda transformação na teoria do direito, pois o sistema jurídico comum tradicional vai ser derrogado por um direito específico, peculiar a uma determinada classe social e disciplinador da nova realidade econômica que emergia.
Após o período do Renascimento Mercantil, o comércio foi se intensificando progressivamente, sobretudo em função das feiras e dos navegadores. O sistema de jurisdição especial mencionado no tópico antecedente, surgido e desenvolvido nas cidades italianas, difunde-se por toda a Europa, chegando a países como França, Inglaterra, Espanha e Alemanha (nessa época ainda um Estado não unificado).
Com essa proliferação da atividade mercantil, o direito comercial também evoluiu, e aos poucos a competência dos tribunais consulares foi sendo ampliada, abrangendo negócios realizados entre mercadores matriculados e não comerciantes, por exemplo.
No ocaso do período medieval, surgem no cenário geopolítico mundial os grandes Estados Nacionais monárquicos. Estes Estados, representados na figura do monarca absoluto, vão submeter aos seus súditos, incluindo a classe dos comerciantes, um direito posto, em contraposição ao direito comercial de outrora, centrado na autodisciplina das relações comerciais por parte dos próprios mercadores, através das corporações de ofício e seus juízos consulares. Todas essas mudanças vão provocar, inclusive, a publicação da primeira grande obra doutrinária de sistematização do direito comercial: Tratactus de Mercatura seo Mercatore, de Benvenutto Stracca, publicada no ano de 1553, a qual sem dúvida vai influenciar a edição de leis futuras sobre a matéria mercantil.
As corporações de ofício vão perdendo paulatinamente o monopólio da jurisdição mercantil, na medida em que os Estados reivindicam e chamam para si o monopólio da jurisdição e se consagram a liberdade e a igualdade no exercício das artes e ofícios. Com o passar do tempo, pois, os diversos tribunais de comércio existentes tornaram-se atribuição do poder estatal.
Assim é que, em 1804 e 1808, respectivamente, são editados, na França, o Código Civil e o Código Comercial. O direito comercial inaugura, então, sua segunda fase, podendo-se falar agora em um sistema jurídico estatal destinado a disciplinar as relações jurídico-comerciais. Desaparece o direito comercial como direito profissional e corporativista, surgindo em seu lugar um direito comercial posto e aplicado pelo Estado.
A codificação napoleônica divide claramente o direito privado: de um lado, o direito civil; de outro, o direito comercial. O Código Civil napoleônico era, fundamentalmente, um corpo de leis que atendia os interesses da nobreza fundiária, pois estava centrado no direito de propriedade. Já o Código Comercial encarnava o espírito da burguesia comercial e industrial, valorizando a riqueza mobiliária.
A divisão do direito privado, com dois grandes corpos de leis a reger as relações jurídicas entre particulares, cria a necessidade de estabelecimento de um critério que delimitasse a incidência de cada um desses ramos da árvore jurídica às diversas relações ocorridas no dia a dia dos cidadãos. Mais precisamente, era necessário criar um critério que delimitasse o âmbito de incidência do direito comercial, já que este surgiu como um regime jurídico especial destinado a regular as atividades mercantis. Para tanto, a doutrina francesa criou a teoria dos atos de comércio, que tinha como uma de suas funções essenciais a de atribuir, a quem praticasse os denominados atos de comércio, a qualidade de comerciante, o que era pressuposto para a aplicação das normas do Código Comercial.
O direito comercial regularia, portanto, as relações jurídicas que envolvessem a prática de alguns atos definidos em lei como atos de comércio. Não envolvendo a relação a prática destes atos, seria ela regida pelas normas do Código Civil.
A definição dos atos de comércio era tarefa atribuída ao legislador, o qual optava ou por descrever as suas características básicas – como fizeram o Código de Comércio português de 1833 e o Código Comercial espanhol de 1885 – ou por enumerar, num rol de condutas típicas, que atos seriam considerados de mercancia – como fez o nosso legislador, conforme veremos adiante.
Nessa segunda fase do direito comercial, podemos perceber uma importante mudança: a mercantilidade, antes definida pela qualidade do sujeito (o direito comercial era o direito aplicável aos membros das Corporações de Ofício), passa a ser definida pelo objeto (os atos de comércio).
Daí porque os doutrinadores afirmam que a codificação napoleônica operou uma objetivação do direito comercial, além de ter, como dito anteriormente, bipartido de forma clara o direito privado. Esta objetivação do direito comercial, segundo leciona Tullio Ascarelli, relaciona-se à formação dos Estados Nacionais da Idade Moderna, que impõem sua soberania ao particularismo que imperava na ordem jurídica anterior e se inspiram no princípio da igualdade, sendo, por conseguinte, avessos a qualquer tipo de distinção de disciplinas jurídicas que se baseiem em critérios subjetivos.
Não é difícil imaginar, todavia, as deficiências do sistema francês. Afinal, ele se resume ao estabelecimento de uma relação de atividades econômicas, sem que haja entre elas nenhum elemento interno de ligação, gerando indefinições no tocante à natureza mercantil de algumas delas.
Na doutrina estrangeira, duas formulações sobre os atos de comércio se destacaram: a de Thaller, que resumia os atos de comércio à atividade de circulação de bens ou serviços, e a de Alfredo Rocco, que via nos atos de comércio a característica comum de intermediação para a troca.
A teoria de Rocco foi predominante. Ele concluiu, em síntese, que todos os atos de comércio possuíam uma característica comum: a função de intermediação na efetivação da troca. Em suma: os atos de comércio seriam aqueles que ou realizavam diretamente a referida intermediação (ato de comércio por natureza, fundamental ou constitutivo) ou facilitavam a sua execução (ato de comércio acessório ou por conexão).
Tais formulações doutrinárias, todavia, não convenceram. A doutrina criticava o sistema francês afirmando que nunca se conseguiu definir satisfatoriamente o que são atos de comércio. Ademais, mesmo à luz da doutrina de Rocco, é forçoso reconhecer que a ideia de intermediação para a troca sempre esteve longe de conseguir englobar todas as relações jurídicas verificadas no mercado.
Com efeito, outras atividades econômicas, tão importantes quanto a mercancia, não se encontravam na enumeração legal dos atos de comércio. Algumas delas porque se desenvolveram posteriormente (ex.: prestação de serviços), e a produção legislativa, como sabemos, não consegue acompanhar o ritmo veloz do desenvolvimento social, tecnológico etc. Outras delas, por razões históricas, políticas e até religiosas, como ocorreu com a negociação de bens imóveis, excluída do regime jurídico comercial, segundo alguns doutrinadores, em razão de a propriedade imobiliária ser revestida, na época, de um caráter sacro, o que tornava inaceitável a ideia de que os bens imóveis fossem coisas negociáveis.
Outro problema detectado pela doutrina comercialista da época, decorrente da aplicação da teoria dos atos de comércio, era o referente aos chamados atos mistos (ou unilateralmente comerciais), aqueles que eram comerciais para apenas uma das partes (na venda de produtos aos consumidores, por exemplo, o ato era comercial para o comerciante vendedor, e civil para o consumidor adquirente). Nesses casos, aplicavam-se as normas do Código Comercial para a solução de eventual controvérsia, em razão da chamada vis atractiva do direito comercial.
Diante disso, alguns doutrinadores denunciaram o retorno ao corporativismo do direito mercantil, que voltava a ser, no dizer do grande jurista italiano Cesare Vivante, um “direito de classe”. Preocupava ao nobre jurista o fato de o cidadão ser submetido a normas distintas em razão, simplesmente, da qualidade da pessoa com quem contratava.
Não obstante tais críticas, a teoria francesa dos atos de comércio, por inspiração da codificação napoleônica, foi adotada por quase todas as codificações oitocentistas, inclusive a do Brasil (Código Comercial de 1850).
No entanto, o tempo vai demonstrar a insuficiência da teoria dos atos de comércio para a disciplina do mercado e forçar o surgimento de outro critério delimitador do âmbito de incidência das regras do direito comercial, uma vez que elas não abrangiam atividades econômicas tão ou mais importantes que o comércio de bens, tais como a prestação de serviços, a agricultura, a pecuária e a negociação imobiliária. O surgimento desse novo critério só veio ocorrer, todavia, em 1942, ou seja, mais de cem anos após a edição dos códigos napoleônicos, em plena 2.ª Guerra Mundial.
Conforme já dito acima, a teoria dos atos do comércio, usada pela codificação napoleônica como critério distintivo entre os regimes jurídicos civil e comercial, extrapolou as fronteiras da França e irradiou-se pelo mundo, inclusive chegando ao Brasil. Isso nos remete, necessariamente, ao início dos anos 1800, quando se começou a discutir em nosso país a necessidade de edição de um Código Comercial.
Sobre os fatos históricos e políticos que antecederam a edição do Código Comercial de 1850, é preciso destacar que durante muito tempo o Brasil não possuiu uma legislação própria. Aplicavam-se aqui as leis de Portugal, as chamadas Ordenações do Reino (Ordenações Filipinas, Ordenações Manuelinas, Ordenações Afonsinas).
A situação muda após a vinda de D. João VI ao Brasil, com a abertura dos portos às nações amigas, o que incrementou o comércio na colônia, fazendo com que fosse criada a “Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábrica e Navegação”, a qual tinha, entre outros objetivos, tornar viável a ideia de criar um direito comercial brasileiro.
Posteriormente, em 1832, foi criada uma comissão com a finalidade de pôr essa ideia em prática. Assim foi que, em 1834, a comissão apresentou ao Congresso um projeto de lei que, uma vez aprovado, foi promulgado em 15.06.1850. Tratava-se da Lei 556, o Código Comercial brasileiro.
Como mencionado acima, o Código Comercial de 1850, assim como a grande maioria dos códigos editados nos anos 1800, adotou a teoria francesa dos atos de comércio, por influência da codificação napoleônica. O Código Comercial definiu o comerciante como aquele que exercia a mercancia de forma habitual, como sua profissão.
Embora o próprio Código não tenha dito o que considerava mercancia (atos de comércio), o legislador logo cuidou de fazê-lo, no Regulamento 737, também de 1850. Prestação de serviços, negociação imobiliária e atividades rurais foram esquecidas, o que corrobora a crítica já feita ao sistema francês. Segundo o art. 19 do referido diploma legislativo, considerava-se mercancia:
“§ 1.° a compra e venda ou troca de efeitos móveis ou semoventes para os vender por grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados, ou para alugar o seu uso;
§ 2.° as operações de câmbio, banco e corretagem;
§ 3.° as empresas de fábricas;de comissões; de depósito; de expedição, consignação, e transporte de mercadorias; de espetáculos públicos;
§ 4.° os seguros, fretamentos, riscos e quaisquer contratos relativos ao comércio marítimo;
§ 5.° a armação e expedição de navios.”
Em 1875, o Regulamento 737 foi revogado, mas o seu rol enumerativo dos atos de comércio continuou sendo levado em conta, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, para a definição das relações jurídicas que mereceriam disciplina jurídico-comercial.
Mas não era só o Regulamento 737/1850 que definia os chamados atos de comércio no Brasil. Outros dispositivos legais também o faziam. Assim, por exemplo, consideravam-se atos de comércio, ainda que não praticados por comerciante, as operações com letras de câmbio e notas promissórias, nos termos do art. 57 do Decreto 2.044/1908, e as operações realizadas por sociedades anônimas, nos termos do art. 2.°, § 1.°, da Lei 6.404/1976.
O que se percebe, porém, ao analisarmos a teoria dos atos de comércio à luz do pensamento dos grandes comercialistas brasileiros, é que também para eles o caminho percorrido para a tentativa de uma conceituação dos atos de comércio foi extremamente tortuoso.
Enquanto na doutrina alienígena se destacou a formulação de Rocco, no Brasil ganhou destaque merecido a formulação de Carvalho de Mendonça, que dividia os atos de comércio em três classes: (i) atos de comércio por natureza, que compreendiam as atividades típicas de mercancia, como a compra e venda, as operações cambiais, a atividade bancária; (ii) atos de comércio por dependência ou conexão, que compreendiam os atos que facilitavam ou auxiliavam a mercancia propriamente dita; e (iii) atos de comércio por força ou autoridade de lei, como, por exemplo, o já citado art. 2.°, § 1.°, da Lei 6.404/1976.
Ora, o que se vê na formulação de Carvalho de Mendonça, resumida no parágrafo anterior, não é uma tentativa de conceituar cientificamente os atos de comércio, mas apenas uma descrição de como a nossa legislação os abarcava. Assim, a própria terceira classe de atos de comércio da teoria de Carvalho de Mendonça, que abrangia os atos de comércio por força ou autoridade de lei, demonstra que era impossível criar uma formulação teórica que conseguisse englobar todas as atividades de mercancia. Essa terceira classe compreende aquelas atividades que são consideradas atos de comércio simplesmente por vontade política do legislador.
Pode-se concluir que, a exemplo do que ocorreu na Europa, a doutrina brasileira também não conseguiu atribuir um conceito unitário aos atos de comércio. Uma frase do professor Brasílio Machado, muito citada em várias obras nacionais sobre o direito comercial, resume bem o que se pensava sobre a teoria dos atos de comércio em nosso país: “problema insolúvel para a doutrina, martírio para o legislador, enigma para a jurisprudência”.
Diante do que se expôs nos tópicos antecedentes, percebe-se que a noção do direito comercial fundada exclusiva ou preponderantemente na figura dos atos de comércio, com o passar do tempo, mostrou-se uma noção totalmente ultrapassada, já que a efervescência do mercado, sobretudo após a Revolução Industrial, acarretou o surgimento de diversas outras atividades econômicas relevantes, e muitas delas não estavam compreendidas no conceito de “ato de comércio” ou de “mercancia”.
Em 1942, ou seja, mais de um século após a edição da codificação napoleônica, a Itália edita um novo Código Civil, trazendo enfim um novo sistema delimitador da incidência do regime jurídico comercial: a teoria da empresa.
Embora o Código Civil italiano de 1942 tenha adotado a chamada teoria da empresa, não definiu o conceito jurídico de empresa. Na formulação desse conceito, merece destaque a contribuição doutrinária de Alberto Asquini, brilhante jurista italiano que analisou a empresa como um fenômeno econômico poliédrico que, transposto para o direito, apresentava não apenas um, mas variados perfis: perfil subjetivo, perfil funcional, perfil objetivo e perfil corporativo.
Além disso, o Código Civil italiano promoveu a unificação formal do direito privado, disciplinando as relações civis e comerciais num único diploma legislativo. O direito comercial entra, enfim, na terceira fase de sua etapa evolutiva, superando o conceito de mercantilidade e adotando, como veremos, o critério da empresarialidade como forma de delimitar o âmbito de incidência da legislação comercial.
Note-se que, como fizemos questão de destacar acima, a unificação provocada no direito privado pela codificação italiana foi meramente formal, uma vez que o direito comercial, a despeito de não possuir mais um diploma legislativo próprio, conservou sua autonomia didático-científica. Afinal, como bem destaca a doutrina majoritária a respeito do assunto, o que define a autonomia e a independência de um direito, como regime jurídico especial, é o fato de ele possuir características, institutos e princípios próprios, e isso o direito comercial (ou empresarial) possui desde o seu nascimento até hoje, sem sombra de dúvida.
Assim, se é que a unificação foi conseguida de forma plena, ela o foi apenas no âmbito formal, pois ainda continuam a existir o direito comercial e o civil como disciplinas autônomas e independentes. O direito civil continua a ser um regime jurídico geral de direito privado, e o direito comercial continua a ser um regime jurídico especial de direito privado, e sua especialidade está justamente em abrigar regras específicas que se destinam à disciplina do mercado.
O mais importante, todavia, com a edição do Código Civil italiano e a formulação da teoria da empresa, é que o direito comercial deixou de ser, como tradicionalmente o foi, o direito do comerciante (período subjetivo das corporações de ofício) ou o direito dos atos de comércio (período objetivo da codificação napoleônica), para ser o direito da empresa, o que o fez abranger uma gama muito maior de relações jurídicas.
Para a teoria da empresa, o direito comercial não se limita a regular apenas as relações jurídicas em que ocorra a prática de um determinado ato definido em lei como ato de comércio (mercancia). A teoria da empresa faz com que o direito comercial não se ocupe apenas com alguns atos, mas com uma forma específica de exercer uma atividade econômica: a forma empresarial. Assim, em princípio qualquer atividade econômica, desde que seja exercida empresarialmente, está submetida à disciplina das regras do direito empresarial.
A definição do conceito jurídico de empresa é até hoje um problema para os doutrinadores do direito empresarial. Isso se dá porque empresa, como bem lembrou Alberto Asquini, é um fenômeno econômico que compreende a organização dos chamados fatores de produção: natureza, capital, trabalho e tecnologia.
Transposto o fenômeno econômico para o universo jurídico, a empresa acaba não adquirindo um sentido unitário, mas diversas acepções distintas. Daí porque o jurista italiano Alberto Asquini observou a empresa como um fenômeno econômico poliédrico, com quatro perfis distintos quando transposto para o direito: a) o perfil subjetivo, pelo qual a empresa seria uma pessoa (física ou jurídica, é preciso ressaltar), ou seja, o empresário; b) o perfil funcional, pelo qual a empresa seria uma “particular força em movimento que é a atividade empresarial dirigida a um determinado escopo produtivo”, ou seja, uma atividade econômica organizada; c) o perfil objetivo (ou patrimonial), pelo qual a empresa seria um conjunto de bens afetados ao exercício da atividade econômica desempenhada, ou seja, o estabelecimento empresarial; e d) o perfil corporativo, pelo qual a empresa seria uma comunidade laboral, uma instituição que reúne o empresário e seus auxiliares ou colaboradores, ou seja, “um núcleo social organizado em função de um fim econômico comum”.
De todas essas acepções de empresa mencionadas por Asquini, esta última, que a considera sob um perfil corporativo, está ultrapassada, pois só se sustentava a partir da ideologia fascista que predominava na Itália quando da edição do Código Civil de 1942. As demais acepções, por sua vez, que analisam a empresa a partir de seus perfis subjetivo, objetivo e funcional, se referem, respectivamente, a três realidades distintas, mas intrinsecamente relacionadas: o empresário, o estabelecimento empresarial e a atividade empresarial.
Com efeito, no meio jurídico é muito comum usarmos a expressão empresa com diversos sentidos. É comum afirmar-se, por exemplo, (i) que determinada empresa está contratando funcionários, (ii) que uma empresa foi vendida por um valor muito alto etc. Perceba-se que em cada caso a expressão possui um significado próprio que foge ao significado do conceito técnico-jurídico de empresa: no primeiro caso, quem contrata funcionários não é a empresa, mas o empresário (ou seja, está-se usando a expressão segundo o seu perfil subjetivo). No segundo caso, não foi a empresa que foi vendida, mas o estabelecimento empresarial (ou seja, está-se usando a expressão empresa segundo o seu perfil objetivo).
O que se quer dizer é que o direito possui expressões específicas para se referir à empresa nos seus perfis subjetivo (empresário) e objetivo (estabelecimento empresarial), mas não possui uma expressão específica para se referir à empresa no seu perfil funcional. Nesse caso, resta-nos recorrer a um raciocínio tautológico: empresa é empresa. Melhor dizendo, o mais adequado sentido técnico-jurídico para a expressão empresa é aquele que corresponde ao seu perfil funcional, isto é, empresa é uma atividade econômica organizada.
Assim, quando quisermos fazer menção à empresa no seu perfil subjetivo, o correto é usar a expressão empresário (ex.: determinado empresário está contratando funcionários). Quando quisermos fazer menção à empresa no seu perfil objetivo, o correto é usar a expressão estabelecimento empresarial (ex.: um estabelecimento empresarial foi vendido por um valor muito alto). Por outro lado, quando quisermos fazer menção à empresa no seu perfil funcional, ou seja, como uma atividade, o correto é usarmos simplesmente a expressão empresa (ex.: o objeto social daquela sociedade é a exploração de uma empresa de prestação de serviços de tecnologia).
Não bastasse essa explicação um tanto confusa, para piorar a situação daquele que se inicia no estudo do direito empresarial, o próprio legislador parece se atrapalhar, usando a expressão empresa muitas vezes com um sentido atécnico, isto é, sem o significado de atividade econômica.
Com efeito, se analisarmos o disposto no art. 1.° da Lei 8.934/1994 (Lei de Registro de Empresas Mercantis), no art. 2.° da Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações) e no art. 678 do Código de Processo Civil veremos que em cada um desses textos legislativos a expressão empresa foi usada com um sentido distinto. No primeiro caso, usa-se esta expressão como sinônimo de empresário (empresa no seu perfil subjetivo). No segundo caso, usa-se a expressão empresa como sinônimo de atividade econômica (empresa no seu perfil funcional). No terceiro caso, ela é usada como sinônimo de estabelecimento empresarial (empresa no seu perfil objetivo).
Enfim, a partir da desconstrução da teoria dos atos de comércio e da afirmação da teoria da empresa como critério delimitador do âmbito de incidência das regras do regime jurídico empresarial, o fenômeno econômico empresa, visto como organismo econômico em que há articulação dos fatores de produção (natureza, trabalho, capital e tecnologia) para atendimento das necessidades do mercado (produção e circulação de bens e serviços), é absorvido pelo direito empresarial com o sentido técnico jurídico de atividade econômica organizada.
É em torno da atividade econômica organizada, ou seja, da empresa, que vão gravitar todos os demais conceitos fundamentais do direito empresarial, sobretudo os conceitos de empresário (aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada, isto é, exerce empresa) e de estabelecimento empresarial (complexo de bens usado para o exercício de uma atividade econômica organizada, isto é, para o exercício de uma empresa).
A adoção da teoria francesa dos atos de comércio pelo direito comercial brasileiro fez com que ele merecesse as mesmas críticas já apontadas acima. Com efeito, não se conseguia justificar a não incidência das normas do regime jurídico comercial a algumas atividades tipicamente econômicas e de suma importância para o mercado, como a prestação de serviços, a negociação imobiliária, a agricultura e a pecuária.
Diante disso, e da divulgação das ideias da teoria da empresa, após a edição do Codice Civile de 1942, pode-se perceber uma nítida aproximação do direito brasileiro ao sistema italiano. A doutrina, na década de 1960, já começa a apontar com maior ênfase as vicissitudes da teoria dos atos de comércio e a destacar as benesses da teoria da empresa.
Por outro lado, a jurisprudência pátria também já demonstrava sua insatisfação com a teoria dos atos de comércio e sua simpatia pela teoria da empresa. Isso fez com que vários juízes concedessem concordata a pecuaristas e garantissem a renovação compulsória de contrato de aluguel a sociedades prestadoras de serviços, por exemplo. Ora, concordata e renovação compulsória de contrato de aluguel eram institutos típicos do regime jurídico comercial, e estavam sendo aplicados a agentes econômicos que não se enquadravam, perfeitamente, no conceito de comerciante adotado pelo direito positivo brasileiro daquela época. Tratava-se de um grande avanço: a jurisprudência estava afastando o ultrapassado critério da mercantilidade e adotando o da empresarialidade para fundamentar suas decisões. Nesse sentido, além dos exemplos já destacados acima, podem ser citados diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça que, desconsiderando as ultrapassadas normas do Código Comercial, já reconheciam a mercantilidade da negociação imobiliária e da atividade de prestação de serviços.
(...) O Tribunal Regional Federal da 1.ª Região negou provimento às apelações dos réus, exarando entendimento no sentido de que: “As pessoas jurídicas de direito privado, que têm por objetivo social a prestação de serviços, não estão sujeitas ao pagamento das contribuições para o SESC e o SENAC, uma vez que não desenvolvem atos de comércio”. (...) 3. Novo posicionamento da 1.ª Seção do STJ no sentido de que as empresas prestadoras de serviço, no exercício de atividade tipicamente comercial, estão sujeitas ao recolhimento das contribuições sociais destinadas ao SESC e ao SENAC. 4. Recursos especiais providos (STJ, REsp 777.074/MG, Rel. Min. José Delgado, DJ 05.12.2005, p. 245).
Tributário. COFINS. Construção e Vendas de Imóveis. Legalidade da Incidência. Leis Complementares n.os 56/87 (itens 32, 34 e 50) e 70/91 (arts. 2.° e 6.°) CTN, art. 111. Lei n.° 4.591/64. Decreto-Lei n.° 2.397/87 (art. 1.°). 1. As empresas edificadoras de imóveis, bens aptos à comercialização, realizam negócios jurídicos de natureza mercantil, celebrados com clientes compradores. Observada a relação jurídica entre o fisco e contribuinte criada pela lei, caracterizada atividade empresarial com intuito de lucro, divisados atos mercantis, é legal a incidência da COFINS nas negociações empresariais e nos serviços prestados, negócios jurídicos tributáveis. 2. Precedentes jurisprudenciais. 3. Embargos acolhidos (EREsp 110.962/MG, Rel. Min. Milton Luiz Pereira, DJ 12.08.2002, p. 161).
(...) O imóvel é um bem suscetível de transação comercial, pelo que se insere no conceito de mercadoria. – Não se sustém, data venia, nos dias que correm a interpretação literal do disposto no artigo 191 do Código Comercial e do artigo19, § 1.°, do Regulamento n.° 737. Em épocas de antanho, os imóveis não constituíam objeto de ato de comércio. Atualmente, tal não se dá, por força das Leis ns. 4.068/62 e 4.591/64. – Preliminar rejeitada. – Embargos de Divergência recebidos. Decisão por maioria de votos (EREsp 166.366/PE, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ 12.08.2002, p. 161).
Outra prova de que o direito brasileiro já vinha aproximando-se dos ideais da teoria da empresa pode ser encontrada na análise da legislação esparsa editada nas últimas décadas. O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) é um exemplo claro. Nele, o conceito de fornecedor é bem amplo, englobando todo e qualquer exercente de atividade econômica no âmbito da cadeia produtiva. Aproxima-se mais, portanto, do conceito moderno de empresário do que do conceito antigo de comerciante.
Mas muito antes do Código de Defesa do Consumidor a legislação brasileira já se mostrava atenta à realidade da empresa como fenômeno econômico que se impregnava no Direito. Basta citar, por exemplo, a antiga Lei 4.137/1962, já revogada, que coibia o abuso de poder econômico no Brasil. Em seu art. 6.°, essa lei dizia: “considera-se empresa toda organização de natureza civil ou mercantil destinada à exploração por pessoa física ou jurídica de qualquer atividade com fins lucrativos”.
Tudo isso demonstra claramente que, em nosso ordenamento jurídico, a passagem da teoria dos atos de comércio para a teoria da empresa não foi algo que aconteceu de repente, simplesmente em razão de uma alteração legislativa, como alguns desavisados podem pensar. Foi o resultado de um processo lento e gradual, que se consolidou, conforme será visto no tópico seguinte, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002.
Seguindo à risca a inspiração do Codice Civile de 1942, o novo Código Civil brasileiro derrogou grande parte do Código Comercial de 1850, na busca de uma unificação, ainda que apenas formal, do direito privado. Do Código Comercial resta hoje apenas a parte segunda, relativa ao comércio marítimo (a parte terceira – “das quebras” – já havia sido revogada há muito tempo; de lá para cá, o direito falimentar brasileiro já foi regulado pelo DL 7.661/1945, que era a antiga Lei de Falências, hoje revogada e substituída pela Lei 11.101/2005, a Lei de Falência e Recuperação de Empresas).
O Código Civil de 2002 trata, no seu Livro II, Título I, do “Direito de Empresa”. Desaparece a figura do comerciante, e surge a figura do empresário (da mesma forma, não se fala mais em sociedade comercial, mas em sociedade empresária). A mudança, porém, está longe de se limitar a aspectos terminológicos. Ao disciplinar o direito de empresa, o direito brasileiro se afasta, definitivamente, da ultrapassada teoria dos atos de comércio e incorpora a teoria da empresa ao nosso ordenamento jurídico, adotando o conceito de empresarialidade para delimitar o âmbito de incidência do regime jurídico empresarial.
Não se fala mais em comerciante, como sendo aquele que pratica habitualmente atos de comércio. Fala-se agora em empresário, sendo este o que “exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” (art. 966 do Código Civil).
Pois bem. Tendo o Código Civil de 2002 adotado a teoria da empresa, restou superado o ultrapassado e deficiente critério do Código Comercial de 1850, que definia o comerciante como aquele que pratica habitualmente atos de comércio. Com a edição do Código Civil de 2002, portanto, tornam-se obsoletas as noções de comerciante e de ato de comércio, que são substituídas pelos conceitos de empresário e de empresa, respectivamente.
Destaque-se ainda que o Código Civil se preocupou em afirmar expressamente, em seu art. 2.037, que as diversas normas comerciais até então existentes que não foram revogadas pelo Código devem ser aplicadas aos empresários, o que comprova que o conceito de empresário veio para realmente substituir o antigo conceito de comerciante. Eis o teor do artigo em questão: “Art. 2.037. Salvo disposição em contrário, aplicam-se aos empresários e às sociedades empresárias as disposições de lei não revogadas por este Código, referentes a comerciantes, ou a sociedades comerciais, bem como a atividades mercantis”.
E, se ainda persiste a divisão material do direito privado, contrapondo regimes jurídicos distintos para a disciplina das relações civis e empresariais, continua a existir, em consequência, a necessidade de se estabelecer um critério que delimite o âmbito de incidência do direito empresarial, como conjunto de regras específicas destinadas à disciplina da atividade econômica. E esse critério é justamente a teoria da empresa.
Portanto, resta-nos perquirir, agora, para a exata compreensão e delimitação do âmbito de incidência do regime jurídico empresarial, o que significa empresa e, consequentemente, qual é o conceito de empresário à luz da nova teoria que norteia o direito empresarial.
O Código Civil não definiu diretamente o que vem a ser empresa, mas estabeleceu o conceito de empresário em seu art. 966, conforme já mencionado. Empresário é quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Ora, do conceito de empresário acima transcrito pode-se estabelecer, logicamente, que empresa é uma atividade econômica organizada com a finalidade de fazer circular ou produzir bens ou serviços. Nesse sentido, cite-se a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:
(...) 2. O novo Código Civil Brasileiro, em que pese não ter definido expressamente a figura da empresa, conceituou no art. 966 o empresário como “quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” e, ao assim proceder, propiciou ao intérprete inferir o conceito jurídico de empresa como sendo “o exercício organizado ou profissional de atividade econômica para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. 3. Por exercício profissional da atividade econômica, elemento que integra o núcleo do conceito de empresa, há que se entender a exploração de atividade com finalidade lucrativa. (...) (STJ, REsp 623.367/RJ, 2.ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 09.08.2004, p. 245).
Empresa é, portanto, atividade, algo abstrato. Empresário, por sua vez, é quem exerce empresa. Assim, a empresa não é sujeito de direito. Quem é sujeito de direito é o titular da empresa. Melhor dizendo, sujeito de direito é quem exerce empresa, ou seja, o empresário, que pode ser pessoa física (empresário individual) ou pessoa jurídica (sociedade empresária).
A grande dificuldade em compreender o conceito de empresa para aqueles que iniciam o estudo do direito empresarial está no fato de que a expressão é comumente utilizada de forma atécnica, até mesmo pelo legislador, conforme já explicitamos acima. Empresa é, na verdade, um conceito abstrato, que corresponde, como visto, a uma atividade econômica organizada, destinada à produção ou à circulação de bens ou de serviços. Não se deve confundir, pois, empresa com sociedade empresária. Esta, na verdade, é uma pessoa jurídica que exerce empresa, ou seja, que exerce uma atividade econômica organizada. Empresa e empresário são noções, portanto, que se relacionam, mas não se confundem.
Também não se deve confundir, por exemplo, empresa com estabelecimento empresarial. Este é o complexo de bens que o empresário usa para exercer uma empresa, isto é, para exercer uma atividade econômica organizada.
Enfim, a Lei 10.406/2002, que instituiu o novo Código Civil em nosso ordenamento jurídico, completou a tão esperada transição do direito comercial brasileiro: abandonou-se a teoria francesa dos atos de comércio para adotar-se a teoria italiana da empresa.
Não se pode negar que o uso da expressão direito comercial se consagrou no meio jurídico acadêmico e profissional, sobretudo porque foi o comércio, desde a Antiguidade, como dito, a atividade precursora deste ramo do direito. Ocorre que, como bem destaca a doutrina comercialista, há hoje outras atividades negociais, além do comércio, como a indústria, os bancos, a prestação de serviços, entre outras.
Hodiernamente, portanto, o direito comercial não cuida apenas do comércio, mas de toda e qualquer atividade econômica exercida com profissionalismo, intuito lucrativo e finalidade de produzir ou fazer circular bens ou serviços. Dito de outra forma: o direito comercial, hoje, cuida das relações empresariais, e por isso alguns têm sustentado que, diante dessa nova realidade, melhor seria usar a expressão direito empresarial.
Alguns autores, inclusive, já acolheram a nova denominação, e por isso já podemos ver uma série de cursos e manuais de direito empresarial no mercado editorial brasileiro. Também não é pequeno o número de Faculdades de Direito no Brasil que alteraram o nome da disciplina direito comercial para direito empresarial. Em contrapartida, também há inúmeros autores que continuam com seus cursos e manuais de direito comercial, bem como há inúmeras faculdades que mantiveram em seus currículos a disciplina direito comercial.
Ora, não há maiores problemas na alteração da nomenclatura do direito comercial, e parece-nos que este deve ser realmente o caminho a ser adotado pela doutrina. De fato, não é salutar a falta de uniformidade na referência a este importante ramo da árvore jurídica. Seria interessante que se chegasse a um consenso, e a partir de então fosse adotada uma única nomenclatura. E a mais adequada, diante da definitiva adoção da teoria da empresa pelo nosso ordenamento jurídico, é a expressão direito empresarial. Não obstante, diante da constatação de que a expressão direito comercial é, de fato, uma terminologia tradicional e por muitos ainda utilizada, usaremos, na presente obra, as duas expressões indistintamente.
A partir das observações feitas acima, pelas quais tentamos estabelecer, em resumo, as bases históricas da afirmação do direito comercial, visto como ramo jurídico independente e autônomo, podemos conceituá-lo, em síntese, como o regime jurídico especial de direito privado destinado à regulação das atividades econômicas e dos seus agentes produtivos. Na qualidade de regime jurídico especial, contempla todo um conjunto de normas específicas que se aplicam aos agentes econômicos, antes chamados de comerciantes e hoje chamados de empresários – expressão genérica que abrange os empresários individuais e as sociedades empresárias.
Essa autonomia que o direito comercial (hoje chamado também de direito empresarial) possui em relação ao direito civil não significa, todavia, que eles sejam ramos absolutamente distintos e contrapostos. Direito comercial e direito civil, como ramos englobados na rubrica direito privado, possuem, não raro, institutos jurídicos comuns. Ademais, o direito comercial, como regime jurídico especial que é, muitas vezes socorre-se do direito civil – este entendido, pode-se dizer, como um regime jurídico geral das atividades privadas – para suprir eventuais lacunas de seu arcabouço normativo.
E mais: como bem destacou há tempos Tullio Ascarelli, a afirmação do direito empresarial como um conjunto sistematizado de regras especiais contribui para o próprio desenvolvimento do direito civil, já que os institutos específicos que nascem no direito empresarial, com o passar do tempo, acabam sendo incorporados pelo direito comum. Basta citar o caso do bem de família, o qual, pensado originalmente como forma de limitar a responsabilidade do comerciante individual, foi incorporado ao nosso ordenamento jurídico pelo antigo Código Civil de 1916, em seus arts. 70 e 71.
É bem verdade que a partir de certo momento a doutrina passou a discutir, com certa ênfase, a tese da unificação do direito privado, a qual partia, fundamentalmente, da ideia de que a separação entre o direito civil e o direito comercial não passava de um mero fenômeno histórico já superado, ligado sobretudo ao surgimento e desenvolvimento do capitalismo. A unificação representaria, para os defensores dessa tese, a demonstração inequívoca da evolução do direito privado e da sua adaptação à nova realidade, representando, em definitivo, o fim do direito comercial como um ramo autônomo.
A tese da perda de autonomia do direito comercial decorrente do processo de unificação legislativa do direito privado, felizmente, não vingou. Afinal, as atividades econômicas desenvolvidas no mercado possuem características muito peculiares, que fazem do direito empresarial um regime jurídico especial, com regras, princípios e institutos jurídicos próprios. Podem ser citados, por exemplo, a limitação de responsabilidade dos sócios de sociedades limitadas e anônimas, a falência, os títulos de créditos e os princípios do regime jurídico cambial etc.
Ademais, a suposta unificação, conforme vimos, operou-se num plano estritamente formal. A autonomia de um direito, por outro lado, deve ser analisada sob o ponto de vista substancial ou material, e nesse sentido não há dúvidas de que o direito comercial/empresarial é autônomo e independente em relação aos demais ramos jurídicos, inclusive em relação ao direito civil.
Assim, pode-se dizer que cabe ao direito civil, como bem destacava o art. 1.° do Código Civil de 1916, a disciplina geral dos direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações, sendo, ademais, fonte normativa subsidiária para os demais ramos do direito. Já ao direito comercial cabe, por outro lado, a disciplina especial dos direitos e obrigações de ordem privada concernentes às atividades econômicas organizadas (antes: atos de comércio; hoje: empresas).
Durante muito tempo, é verdade, o direito civil foi o próprio direito privado, realidade que mudou radicalmente a partir do desenvolvimento das atividades mercantis, o que fez surgir o direito comercial, como ramo especial destinado justamente a regular os interesses especiais dos agentes econômicos.
Não há como negar, portanto, que o direito comercial ou empresarial é, sim, ramo autônomo e independente da árvore jurídica. A comprovar isso se pode citar, por exemplo, o fato de que o direito comercial é até os dias atuais lecionado em disciplina autônoma nos cursos de direito do País. Pode-se citar, ainda, o fato de que a Constituição da República estabelece, em seu art. 22, inciso I, que compete à União legislar sobre direito civil e direito comercial, mostrando que se trata de ramos autônomos e distintos.
Ademais, desde a sua origem até os dias atuais o direito comercial/empresarial conserva uma série de características próprias, que o distinguem e o identificam como disciplina autônoma e independente.
Com efeito, o direito comercial, desde a sua origem até a presente data, conserva uma série de características que o diferenciam das demais disciplinas jurídicas. São características fundamentais do direito empresarial, que o distinguem sobremaneira do direito civil: a) o cosmopolitismo, uma vez que o comércio, historicamente, foi fator fundamental de integração entre os povos, razão pela qual o seu desenvolvimento propicia, até os dias de hoje, uma intensa inter-relação entre os países (note-se que em matéria de direito empresarial há diversos acordos internacionais em vigor, muitos dos quais o Brasil é signatário, tais como a Convenção de Genebra, que criou uma legislação uniforme sobre títulos de crédito, e a Convenção da União de Paris, que estabelece preceitos uniformes sobre propriedade industrial); b) a onerosidade, dado o caráter econômico e especulativo das atividades mercantis, que faz com que o intuito de lucro seja algo intrínseco ao exercício da atividade empresarial; c) o informalismo, em função do dinamismo da atividade empresarial, que exige meios ágeis e flexíveis para a realização e a difusão das práticas mercantis; e d) o fragmentarismo, pelo fato de o direito empresarial possuir uma série de sub-ramos com características específicas (direito falimentar, direito cambiário, direito societário, direito de propriedade industrial etc.).
Do que se expôs até agora, pode-se concluir que o direito empresarial, enfim, é o direito da empresa, isto é, o regime jurídico especial de direito privado que disciplina o exercício de atividade econômica organizada. É no direito empresarial que iremos encontrar as regras jurídicas especiais para a disciplina do mercado, e para tanto é fundamental que essas regras, em função de sua especialidade, estejam assentadas em uma principiologia própria, que destaque a imprescindibilidade da empresa como instrumento para o desenvolvimento econômico e social das sociedades contemporâneas, nas quais as bases do capitalismo – livre-iniciativa, propriedade privada, autonomia da vontade e valorização do trabalho humano – já estão enraizadas e solidificadas como valores inegociáveis para a construção e manutenção de uma sociedade livre.
A livre-iniciativa é o princípio fundamental do direito empresarial. Em nosso ordenamento jurídico, constitui princípio constitucional da ordem econômica, conforme previsão expressa do art. 170 da CF/1988: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios”.
No dizer do professor Fábio Ulhoa Coelho, o princípio da livre-iniciativa se desdobra em quatro condições fundamentais para o funcionamento eficiente do modo de produção capitalista: (i) imprescindibilidade da empresa privada para que a sociedade tenha acesso aos bens e serviços de que necessita para sobreviver; (ii) busca do lucro como principal motivação dos empresários; (iii) necessidade jurídica de proteção do investimento privado; (iv) reconhecimento da empresa privada como polo gerador de empregos e de riquezas para a sociedade.
Infelizmente, porém, nos dias atuais, o princípio da livre-iniciativa vem sendo relativizado progressivamente, muito em função de uma mentalidade anticapitalista que incrivelmente se desenvolve em muitas pessoas, sobretudo entre os chamados “intelectuais” e entre aqueles que nos dominam e nos exploram: os burocratas do Estado.
O avanço do Estado sobre o mercado, com a consequente restrição da aplicação do princípio da livre-iniciativa, é tão grande que, se fizermos uma rápida pesquisa na jurisprudência dos nossos tribunais, veremos que ele sempre é deixado de lado quando confrontado com outros princípios “sociais”, como se pode ver a partir da leitura dos julgados abaixo, todos do Supremo Tribunal Federal:
Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 7.844/92, do Estado de São Paulo. Meia entrada assegurada aos estudantes regularmente matriculados em estabelecimentos de ensino. Ingresso em casas de diversão, esporte, cultura e lazer. Competência concorrente entre a União, Estados-Membros e o Distrito Federal para legislar sobre direito econômico. Constitucionalidade. Livre-iniciativa e ordem econômica. Mercado. Intervenção do Estado na economia. Artigos 1.°, 3.°, 170, 205, 208, 215 e 217, § 3.°, da Constituição do Brasil. 1. É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre-iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. 2. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1.°, 3.° e 170. 3. A livre-iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da “iniciativa do Estado”; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa. 4. Se de um lado a Constituição assegura a livre-iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto [artigos 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217 § 3.°, da Constituição]. Na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. 5. O direito ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer, são meios de complementar a formação dos estudantes. 6. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente (ADI 1.950, Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, j. 03.11.2005, DJ 02.06.2006, p. 4, Ement. vol-02235-01, p. 52, LEXSTF v. 28, n. 331, 2006, p. 56-72, RT v. 95, n. 852, 2006, p. 146-153).
Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 8.039, de 30 de maio de 1990, que dispõe sobre critérios de reajuste das mensalidades escolares e da outras providencias. – Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre-iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros. – Não é, pois, inconstitucional a Lei 8.039, de 30 de maio de 1990, pelo só fato de ela dispor sobre critérios de reajuste das mensalidades das escolas particulares. – Exame das inconstitucionalidades alegadas com relação a cada um dos artigos da mencionada Lei. Ofensa ao princípio da irretroatividade com relação a expressão “marco” contida no parágrafo 5.° do artigo 2.° da referida Lei. Interpretação conforme a Constituição aplicada ao “caput” do artigo 2.°, ao parágrafo 5.° desse mesmo artigo e ao artigo 4.°, todos da Lei em causa. Ação que se julga procedente em parte, para declarar a inconstitucionalidade da expressão “marco” contida no parágrafo 5.° do artigo 2.° da Lei n. 8.039/90, e, parcialmente, o “caput” e o parágrafo 2.° do artigo 2.°, bem como o artigo 4.° os três em todos os sentidos que não aquele segundo o qual de sua aplicação estão ressalvadas as hipóteses em que, no caso concreto, ocorra direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada (ADI 319 QO, Rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, j. 03.03.1993, DJ 30.04.1993, p. 7.563, Ement. vol-01701-01, p. 36).
Agravo regimental. Suspensão de tutela antecipada. Importação de pneumáticos usados. Manifesto interesse público. Grave lesão à ordem e à saúde públicas. 1. Lei 8.437/92, art. 4.°. Suspensão de liminar que deferiu a antecipação dos efeitos da tutela recursal. Critérios legais. 2. Importação de pneumáticos usados. Manifesto interesse público. Dano Ambiental. Demonstração de grave lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa, tendo em conta a proibição geral de não importação de bens de consumo ou matéria-prima usada. Precedentes. 3. Ponderação entre as exigências para preservação da saúde e do meio ambiente e o livre exercício da atividade econômica (art. 170 da Constituição Federal). 4. Grave lesão à ordem pública, diante do manifesto e inafastável interesse público à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da Constituição Federal). Precedentes. 5. Questão de mérito. Constitucionalidade formal e material do conjunto de normas (ambientais e de comércio exterior) que proíbem a importação de pneumáticos usados. Pedido suspensivo de antecipação de tutela recursal. Limites impostos no art. 4.° da Lei n.° 8.437/1992. Impossibilidade de discussão na presente medida de contracautela. 6. Agravo regimental improvido(STA 171 AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, j. 12.12.2007, DJe-036, Divulg. 28.02.2008, Public. 29.02.2008, Ement. vol-02309-01, p. 38).
Constitucional. Administrativo. Distribuição de combustíveis. TRR. Regulamentação DL 395/38. Recepção. Portaria Ministerial. Validade. 1. O exercício de qualquer atividade econômica pressupõe o atendimento aos requisitos legais e às limitações impostas pela Administração no regular exercício de seu poder de polícia, principalmente quando se trata de distribuição de combustíveis, setor essencial para a economia moderna. 2. O princípio da livre-iniciativa não pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do mercado e de defesa do consumidor. 2. O DL 395/38 foi editado em conformidade com o art. 180 da CF de 1937 e, na inexistência da lei prevista no art. 238 da Carta de 1988, apresentava-se como diploma plenamente válido para regular o setor de combustíveis. Precedentes: RE 252.913 e RE 229.440. 3. A Portaria 62/95 do Ministério de Minas e Energia, que limitou a atividade do transportador-revendedor-retalhista, foi legitimamente editada no exercício de atribuição conferida pelo DL 395/38 e não ofendeu o disposto no art. 170, parágrafo único, da Constituição. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido (RE 349.686, Rel. Min. Ellen Gracie, 2.ª Turma, j. 14.06.2005, DJ 05.08.2005, p. 119, Ement. vol-02199-06, p. 1.118, LEXSTF v. 27, n. 321, 2005, p. 309-314).
Direito constitucional e processual civil. Farmácia: horário de funcionamento. Matéria de competência municipal. Precedente do Plenário. Recurso extraordinário: pressupostos de admissibilidade. Agravo. 1. Como salientado na decisão agravada, “o Plenário do Supremo Tribunal Federal já decidiu, por unanimidade, no julgamento do RE 237.965-SP, publicado no DJ, 31.03.00, Rel. Ministro Moreira Alves, que a fixação de horário de funcionamento para farmácias é matéria de competência municipal, não procedendo, portanto, as alegações de violação aos princípios constitucionais da isonomia, da livre-iniciativa, da livre concorrência, da liberdade de trabalho, da busca do pleno emprego e ao direito do consumidor”. 2. Os fundamentos desse precedente foram resumidos na decisão agravada, que mencionou outros, e não infirmados pela agravante. 3. Agravo improvido (RE 321.796 AgR, Rel. Min. Sydney Sanches, 1.ª Turma, j. 08.10.2002, DJ 29.11.2002, p. 20, Ement. vol-02093-05, p. 904).
Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Empresa pública de correios e telegráfos. Privilégio de entrega de correspondências. Serviço postal. Controvérsia referente à Lei federal 6.538, de 22 de junho de 1978. Ato normativo que regula direitos e obrigações concernentes ao serviço postal. Previsão de sanções nas hipóteses de violação do privilégio postal. Compatibilidade com o sistema constitucional vigente. Alegação de afronta ao disposto nos artigos 1.°, inciso IV; 5.°, inciso XIII, 170, caput, inciso IV e parágrafo único, e 173 da Constituição do Brasil. Violação dos princípios da livre concorrência e livre-iniciativa. Não caracterização. Arguição julgada improcedente. Interpretação conforme à Constituição conferida ao artigo 42 da Lei n. 6.538, que estabelece sanção, se configurada a violação do privilégio postal da União. Aplicação às atividades postais descritas no artigo 9.°, da Lei. 1. O serviço postal – conjunto de atividades que torna possível o envio de correspondência, ou objeto postal, de um remetente para endereço final e determinado – não consubstancia atividade econômica em sentido estrito. Serviço postal é serviço público. 2. A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. Monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, empreendida por agentes econômicos privados. A exclusivi-dade da prestação dos serviços públicos é expressão de uma situação de privilégio. Monopólio e privilégio são distintos entre si; não se os deve confundir no âmbito da linguagem jurídica, qual ocorre no vocabulário vulgar. 3. A Constituição do Brasil confere à União, em caráter exclusivo, a exploração do serviço postal e o correio aéreo nacional [artigo 20, inciso X]. 4. O serviço postal é prestado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, empresa pública, entidade da Administração Indireta da União, criada pelo Decreto-lei n. 509, de 10 de março de 1969. 5. É imprescindível distinguirmos o regime de privilégio, que diz com a prestação dos serviços públicos, do regime de monopólio sob o qual, algumas vezes, a exploração de atividade econômica em sentido estrito é empreendida pelo Estado. 6. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos deve atuar em regime de exclusividade na prestação dos serviços que lhe incumbem em situação de privilégio, o privilégio postal. 7. Os regimes jurídicos sob os quais em regra são prestados os serviços públicos importam em que essa atividade seja desenvolvida sob privilégio, inclusive, em regra, o da exclusividade. 8. Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente por maioria. O Tribunal deu interpretação conforme à Constituição ao artigo 42 da Lei n. 6.538 para restringir a sua aplicação às atividades postais descritas no artigo 9.° desse ato normativo (ADPF 46, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, j. 05.08.2009, DJe-035, Divulg. 25.02.2010, Public. 26.02.2010, Ement. vol-02391-01, p. 20).
Da leitura das ementas dos acórdãos acima transcritos se pode perceber a que ponto chegou a mentalidade estatista e anticapitalista do brasileiro. A ideia de que a livre-iniciativa é algo antagônico a outros princípios ditos “sociais” é deveras equivocada. A História é pródiga em exemplos que demonstram que as sociedades mais livres e que defendem com mais veemência o princípio da livre-iniciativa são mais desenvolvidas, social e economicamente, e ostentam menos desigualdades e mais qualidade de vida.
Outro princípio basilar do direito empresarial é a livre concorrência, também prevista expressamente na CF/1988 como princípio constitucional da ordem econômica: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) IV – livre concorrência; (...)”.
Infelizmente este também é um princípio que não vem sendo respeitado no Brasil. E quem mais desrespeita a livre concorrência é justamente aquele ente que, em tese, deveria protegê-la: o Estado. Se, por um lado, o Estado finge defender a livre concorrência, criando órgãos com tal missão institucional, tais como o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), por outro lado é o próprio Estado que ataca a sagrada liberdade de competição, intervindo cada vez mais na economia, restringindo cada vez mais o exercício de atividade econômica e criando cada vez mais obstáculos ao empreendedorismo.
É verdade que as “privatizações” ocorridas nas últimas décadas melhoraram bastante o ambiente concorrencial nos setores “privatizados”. Mas, infelizmente, o referido processo de privatização não significou a real desestatização da economia brasileira. O Estado deixou de exercer diretamente uma série de atividades econômicas, nos poupando de suas usuais ineficiência e corrupção, mas passou a exercer a atividade de regulador.
Por mais que se diga que as cada vez mais numerosas agências reguladoras possuem a função precípua de assegurar a livre competição nos respectivos mercados regulados e proteger o consumidor, o que acontece é justamente o contrário. Agências reguladoras (ANATEL, ANEEL, ANP, ANVISA etc.), bem como órgãos antitruste (CADE) são absolutamente desnecessários numa economia na qual vigora o livre mercado genuíno. O exercício de atividade econômica não pode ser guiado por decretos e regulamentos baixados por funcionários públicos, mas sim pelos consumidores dos produtos e serviços.
A imensa quantidade de órgãos de controle cria um emaranhado de regulamentos que acabam se tornando barreiras insuperáveis à entrada de novos competidores, algo que, por si só, é uma violação à livre concorrência. Ademais, quanto mais regulação estatal existe, maior é o risco da chamada “captura regulatória”: os empresários já estabelecidos se adaptam às regulações e passam depois a usá-las como forma de impedir a entrada de concorrentes. É assim, pois, que o Estado contribui para a formação de monopólios, duopólios e oligopólios. Enfim, regulação estatal é algo que definitivamente não se coaduna com a liberdade de competição.
Quando o Estado se propõe a, supostamente, garantir a livre-concorrência (este autor definitivamente não acredita que o Estado faça algo em prol da livre concorrência; ao contrário, ele é o maior agressor de tal princípio), ele o faz, diz-se, de duas maneiras: coibindo práticas de concorrência desleal e atos que configurem infração contra a ordem econômica. No primeiro caso, as sanções estão previstas nos arts. 183 e seguintes da Lei 9.279/1996, e o objeto da punição estatal são condutas que atingem um concorrente in concreto (por exemplo: contrafação de marca, venda de produto “pirata”, divulgação de informação falsa sobre concorrente etc.). No segundo caso, por sua vez, as sanções estão previstas na Lei 12.529/2011, e o objeto da punição estatal são condutas que atingem a concorrência in abstrato, isto é, o próprio ambiente concorrencial (por exemplo: cartéis).
Finalmente, é preciso destacar uma manifestação importante do princípio da livre concorrência, bem lembrada pelo professor Fábio Ulhoa Coelho: a regra de ouro da competição é a seguinte: quem acerta, ganha (obtém lucros); quem erra, perde (sofre prejuízos). O Estado não pode interferir nessa equação, sob pena de desvirtuar toda a lógica do mercado. Uma área em que essa manifestação do princípio da livre concorrência aparece com muita clareza são os contratos empresariais, os quais, como veremos oportunamente, não devem sofrer intervenção estatal nem prévia (dirigismo contratual) nem posterior (revisão judicial).
A propriedade privada também está elencada no art. 170 da CF/1988 como princípio constitucional da ordem econômica, formando, junto com a livre-iniciativa e a livre concorrência, a tríade que dá sustentação ao direito empresarial: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) II – propriedade privada; (...)”.
Garantir e defender a propriedade privada dos meios de produção é pressuposto fundamental do regime capitalista de livre mercado. Ausente a propriedade privada, não há também mercado, obviamente. Não havendo mercado, não há como precificar os bens e serviços em produção e circulação de forma legítima e eficiente, não havendo alternativa senão o planejamento central da economia, situação na qual os preços são arbitrariamente fixados por burocratas, o que fatalmente leva ao colapso econômico e social, como a História já comprovou. Só o capitalismo consegue resolver o problema do cálculo econômico, e o que lhe permite isso é precisamente a propriedade privada, como já nos alertou desde o início do século passado o economista austríaco Ludwig von Mises.
É triste reconhecer isso, mas infelizmente a garantia da propriedade privada também se trata de princípio que vem sendo relativizado progressivamente em nosso ordenamento jurídico, a partir do fluido e nebuloso conceito de “função social”. Para muitos, é difícil entender que a função primordial de uma empresa é gerar lucros e que a geração de lucros, em última análise, é que permite o funcionamento sadio do mercado e o verdadeiro desenvolvimento econômico e “social”.
Um dos princípios do direito empresarial mais alardeados pela doutrina especializada nos dias atuais é o princípio da preservação da empresa, o qual vem sendo amplamente difundido, inspirando alterações legislativas recentes, como a Lei 11.101/2005 (Lei de Falência e Recuperação de Empresas), e fundamentando inúmeras decisões judiciais. A propósito, confiram-se os seguintes julgados, nos quais o STJ deixa clara a sua preocupação com a preservação da empresa:
Processo civil. Execução. Penhora de renda. Ausência de prévia citação. Nulidade. (...) – As Turmas que compõem a Segunda Seção deste Tribunal têm admitido a penhora sobre o faturamento da empresa desde que, cumuladamente: a) o devedor não possua bens ou, se os possuir, sejam esses de difícil execução ou insuficientes a saldar o crédito demandado, b) haja indicação de administrador e esquema de pagamento (CPC, arts. 677) e c) o percentual fixado sobre o faturamento não torne inviável o exercício da atividade empresarial. Recurso Especial parcialmente provido (REsp 866.382/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª Turma, j. 11.11.2008, DJe 26.11.2008).
Processual civil. Agravo regimental. Medida cautelar. Penhora sobre o faturamento bruto da empresa. Ausência de outros bens passíveis de constrição eficaz. Possibilidade. Percentual elevado. Comprometimento das atividades empresariais. Redução. I. Conquanto possível a penhora sobre o faturamento bruto da devedora, quando inexistentes bens disponíveis de fácil liquidação, deve ela observar percentual que não comprometa a higidez financeira, ameaçando o prosseguimento das atividades empresariais. (...) (AgRg na MC 14.919/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 4.ª Turma, j. 09.12.2008, DJe 02.02.2009).
O princípio da preservação da empresa também tem sido muito usado pelos tribunais pátrios para fundamentar decisões em matéria de dissolução de sociedades, falência, recuperação judicial etc. Nesses últimos casos, porém, é preciso ter muito cuidado para que a aplicação excessiva e sem critério do princípio não provoque a sua banalização. Muitas vezes atividades empresariais devem mesmo ser encerradas, e nesses casos impedir a falência do empresário ou da sociedade empresária contraria a ordem espontânea do mercado, sobretudo quando a manutenção de tais atividades é conseguida com os famigerados “pacotes de socorro” baixados pelo governo.
O capitalismo é um sistema no qual os empresários auferem lucros privados e sofrem prejuízos privados. Os “pacotes de socorro”, pois, desvirtuam a lógica natural do capitalismo, criando um sistema no qual os empresários bem relacionados auferem lucros privados, mas solidarizam suas perdas com a população. Em suma: o princípio da preservação da empresa não pode, jamais, conferir a certos empresários um “direito de não falir”, algo que infelizmente vem acontecendo com empresários que se dizem “grandes demais para quebrar” (too big to fail).
O princípio da preservação da empresa é uma construção importante, mas sua aplicação deve limitar-se às situações em que o próprio mercado, espontaneamente, encontra soluções para a crise de um agente econômico, em bases consensuais. Infelizmente, não é o que temos visto ultimamente.
Os princípios acima mencionados são o que podemos chamar de princípios gerais do direito empresarial. Nos demais capítulos, trataremos de outros princípios específicos, aplicáveis de forma restrita a determinados sub-ramos do direito empresarial. Assim, por exemplo, no direito societário estudaremos o princípio da limitação de responsabilidade dos sócios; no direito cambiário estudaremos o princípio da autonomia dos títulos de crédito; no direito falimentar estudaremos o princípio da maximização dos ativos, e assim por diante.
Segundo Rubens Requião, entende-se por fontes do direito comercial ou empresarial o modo pelo qual surgem as normas jurídicas de natureza comercial ou empresarial. Como já foi dito, as normas do direito empresarial constituem um regime jurídico especial, aplicável exclusivamente aos agentes econômicos, chamados de empresários. É isso o que garante a especialidade e a autonomia do direito empresarial.
Ainda segundo Requião, o direito civil, na qualidade de regime jurídico geral de direito privado – direito comum –, não pode ser considerado como fonte do direito comercial, ainda que suas normas eventualmente sejam aplicadas na solução de litígios mercantis, quando não há regra específica no regime jurídico empresarial.
Claro que as ideias do professor merecem uma leitura atualizada em razão do processo de tentativa de unificação do direito privado a que já nos referimos. Atualmente, grande parte das normas civis e comerciais encontra-se num mesmo diploma legislativo, o Código Civil. No entanto, pode-se continuar entendendo que as normas comerciais, não obstante estejam encartadas no Código Civil, conservam sua especialidade. Sendo assim, continua válida a ideia de que as normas estritamente civis – entendidas estas como as que regulam matéria essencialmente civil, e não mercantil – não podem ser consideradas fontes do direito comercial, ainda que sejam aplicáveis a relações mercantis, eventualmente, em casos de lacuna ou omissão do regime jurídico empresarial.
A mais importante fonte do direito empresarial, como não poderia deixar de ser, são as normas empresariais, ou seja, as regras jurídicas especiais que se destinam à regulação das atividades econômicas. Há muito tempo, podia-se dizer que a principal fonte do direito comercial era o Código Comercial de 1850, diploma legislativo criado há mais de um século para disciplinar as atividades mercantis no Brasil.
Todavia, é preciso lembrar mais uma vez que a edição do Código Civil de 2002 representou uma importante mudança em nosso direito comercial, em face da tentativa de unificação formal do direito privado levada a efeito pelo legislador, que fez com que muitas normas em matéria mercantil passassem a constar do próprio Código Civil.
Do Código Comercial de 1850, pois, resta muito pouco – mais precisamente, apenas a parte segunda, relativa ao comércio marítimo. Sua Parte Terceira, que cuidava “das quebras”, foi revogada ainda no Império por leis específicas. Sua Parte Primeira, que tratava “do comércio em geral”, por seu turno, foi revogada pelo Código Civil de 2002, o qual, portanto, derrogou (revogou parcialmente) o Código Comercial.
Vale ressaltar, quanto a esse tema, que o Código Civil seguiu uma tendência contemporânea das codificações: regulou a matéria nuclear do direito comercial, mas deixou para a legislação esparsa a disciplina de matérias específicas, como o direito falimentar (Lei 11.101/2005), o direito societário (Lei 6.404/1976, que regula as sociedades por ações), o direito cambiário (Lei Uniforme de Genebra, que regula as letras de câmbio e as notas promissórias; Lei 7.357/1985, que regula os cheques, e Lei 5.474/1968, que regula as duplicatas), o direito de propriedade industrial (Lei 9.279/1996, chamada de LPI) etc.
Além dessas normas comerciais positivadas, que constituem as principais fontes do direito comercial, também merecem destaque os usos e costumes mercantis, sobretudo porque o direito comercial, como visto, surgiu como um direito consuetudinário, baseado nas práticas mercantis dos mercadores medievais.
Os usos e costumes surgem quando se verificam alguns requisitos básicos: exige-se que a prática seja (i) uniforme, (ii) constante, (iii) observada por certo período de tempo, (iv) exercida de boa-fé e (v) não contrária à lei.
A doutrina distingue os usos em usos de direito (ou usos propriamente ditos) e usos de fato (ou usos convencionais). Os primeiros são aqueles que decorrem da própria lei, razão pela qual sua eficácia não decorre da vontade das partes, mas de imposição legal. Os segundos, por outro lado, são aqueles que surgem como decorrência da prática espontânea dos empresários em suas relações jurídicas cotidianas, como os contratos mercantis que se firmam constantemente. No nosso entendimento particular, pode-se citar como exemplo de uso de direito a disposição normativa constante do art. 488 do Código Civil, a qual dispõe que, nos contratos de compra e venda, “convencionada a venda sem fixação de preço ou de critérios para a sua determinação, se não houver tabelamento oficial, entende-se que as partes se sujeitaram ao preço corrente nas vendas habituais do vendedor”.
Registre-se, por fim, que o CPC determina, em seu art. 337, que “a parte que alegar direito (...) consuetudinário, provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim determinar o juiz”. Nesse ponto, é importante destacar que compete às Juntas Comerciais, conforme disposto no art. 8.°, inciso VI, da Lei 8.934/1994, “o assentamento dos usos e práticas mercantis”, após análise jurídica feita pela sua Procuradoria, devendo o juiz comunicar à Junta Comercial da região os costumes comerciais invocados e aplicados em juízo, para fins de registro em livro próprio.
Desde que o professor Fábio Ulhoa Coelho, um dos mais respeitados comercialistas brasileiros, lançou seu livro O Futuro do Direito Comercial, a comunidade jurídica de nosso país debate a necessidade de edição de um novo Código Comercial, que substitua o atual e revogue a parte do “Direito de Empresa” constante do Código Civil de 2002.
A tese do professor Fábio Ulhoa Coelho é a seguinte: os valores do direito comercial foram esquecidos pelos operadores do Direito e precisam ser urgentemente resgatados. Nas palavras do professor, os valores do Direito Comercial, que compõem o tecido dessa disciplina, estão esgarçados, cabendo a nós a tarefa de recosê-los. Ainda segundo o professor, nada melhor do que a edição de um novo Código Comercial para que tal intento seja alcançado. Um código atento à nova realidade econômica brasileira faria o direito comercial ressurgir nos mais variados fóruns de debate jurídico, da academia ao Poder Judiciário.
Não se pode negar que o professor Fábio Ulhoa Coelho tem absoluta razão. Não por acaso, sua proposta foi muito bem recebida nos meios jurídico, político e empresarial, o que culminou na apresentação do PL 1.572/2011 à Câmara dos Deputados, que visa a instituir um novo Código Comercial no Brasil.
Eu, pessoalmente, entendo que um novo Código Comercial é necessário, basicamente, por dois motivos: (i) corrigir os tristes erros do Código Civil em relação ao direito empresarial e, sobretudo, (ii) defender o livre mercado.
A tentativa de unificação legislativa levada a efeito pelo Código Civil de 2002 trouxe graves problemas para o direito comercial (hoje também chamado de direito empresarial, conforme vimos), a saber: a) contratos cíveis e mercantis passaram a ter uma mesma “teoria geral”, ignorando-se a enorme distinção que há entre eles; b) normas gerais sobre títulos de crédito foram criadas, em total descompasso com as leis existentes, notadamente a Lei Uniforme de Genebra, incorporada há décadas ao nosso ordenamento jurídico em razão da assinatura de um Tratado Internacional; c) a sociedade limitada, antes submetida a um flexível e enxuto arcabouço normativo, tornou-se uma figura societária burocrática e engessada; d) institutos jurídicos receberam tratamento confuso e atécnico, gerando dificuldades interpretativas que trazem insegurança jurídica, como ocorre no caso da difícil distinção prática entre sociedades simples e empresárias; e) velhos costumes jurídicos consagrados na praxe forense, como a desnecessidade de outorga conjugal para prestação de aval por pessoa casada e a possibilidade de contratação de sociedade entre cônjuges independentemente do regime de bens, foram injustificadamente alterados; f) novas figuras jurídicas, já conhecidas no direito estrangeiro, perderam a chance de serem adotadas, como a sociedade limitada unipessoal e o empresário individual de responsabilidade limitada (recentemente, figura semelhante, a EIRELI – empresa individual de responsabilidade limitada, acabou sendo incorporada ao Código Civil pela Lei 12.441/2011).
A mera oportunidade de corrigir esses graves erros decorrentes da unificação legislativa, copiada da codificação italiana “fascista” de 1942, já seria motivo suficiente para a edição de um novo Código Comercial. Mas há também outro motivo, ainda mais importante: a defesa do livre mercado!
Exatamente no momento em que o Brasil vive uma oportunidade única de crescimento e prosperidade, aumenta exponencialmente a intervenção do Estado na economia, criando-se um paradoxo inexplicável e injustificável. Princípios básicos do regime capitalista, como livre-iniciativa e liberdade contratual, são solenemente desrespeitados. O Estado regula cada vez mais a economia, criando e sustentando duopólios e oligopólios em setores estratégicos, como aviação e telefonia. O Poder Judiciário se sente cada vez mais à vontade para intervir nos contratos, e relações empresariais simétricas sofrem pesadas limitações de um dirigismo contratual descabido. A carga tributária chega a percentuais proibitivos ao empreendedor, quebrando empresas e tirando a competitividade de produtos e serviços dos abnegados empresários brasileiros. As intocáveis leis trabalhistas, que só prejudicam os trabalhadores a que visam proteger, impedem a criação de empregos e burocratizam o mercado de trabalho. Os pacotes de socorro em tempos de crise distorcem a regra de competição empresarial, criando risco moral e favorecendo apenas os “empresários” bem relacionados. Em suma: não se tem um ambiente de livre mercado genuíno.
O observador mais atento pode questionar: um novo Código Comercial não resolve esses problemas. Para tanto, seria necessária uma profunda reforma do Estado. Em parte, é verdade. Mas muita coisa pode melhorar com a edição de um novo Código Comercial, desde que ele seja uma lei concisa e principiológica que, por exemplo: a) assegure a plena autonomia da vontade das partes, em respeito à simetria natural das relações contratuais empresariais; b) estimule a arbitragem como meio de solução de conflitos entre empresários; c) dê condições ao surgimento e desenvolvimento de órgãos autorregulatórios, sobretudo no mercado de capitais e no ambiente de fusões e aquisições; d) desburocratize os serviços de registro de empresas, assegurando a livre-iniciativa e a livre competição verdadeiras. Enfim, um código que se limite a assegurar, sem medo, a liberdade.
Não foi à toa que o direito comercial nasceu como um direito consuetudinário, a partir da compilação dos usos, costumes e práticas mercantis dos mercadores burgueses medievais. O genuíno direito comercial é a Lex Mercatoria, isto é, a regra que nasce da interação livre e voluntária dos que se dedicam ao exercício de atividade econômica. Um bom Código Comercial é o que, simplesmente, deixa o mercado funcionar.
O livre mercado, no Brasil (e no mundo também, infelizmente), vem sofrendo duros golpes, na medida em que se desenvolve esse estranho capitalismo de Estado. Por incrível que pareça, a edição de um novo Código Comercial é a última trincheira dos que acreditam no capitalismo e no ideal de liberdade que ele carrega consigo.
(CESPE/DP DF 2001) Até os dias atuais, remanesce a dificuldade em se distinguir os atos comerciais dos atos civis. Em virtude dessa dificuldade, alguns autores chegaram até mesmo a propalar a inexistência de objeto próprio para o direito comercial, sustentando que tal direito não consistia uma disciplina autônoma. Tendo em vista essa circunstância, julgue os itens subsequentes.
1. No Brasil, ante a dificuldade de um conceito doutrinário e científico para os atos de comércio, passaram a ser adotados critérios de direito positivo, de modo que são considerados atos de comércio aqueles que a lei designar como tais.
2. Tanto o Código Comercial quanto o antigo Regulamento 737, de 1850, enumeram, exemplificativamente, os atos considerados comerciais pelo direito brasileiro.
3. No direito brasileiro, são consideradas comerciais as operações de câmbio, banco e corretagem, se realizadas por comerciante.
4. A emissão de letras de câmbio é considerada ato comercial e rege-se, portanto, pelo direito comercial, ainda que praticada por sujeito não comerciante.
5. As operações imobiliárias e agrícolas, mesmo que praticadas por sociedades anônimas, são consideradas atividades civis regidas pelo direito civil.
(CESPE/DP DF 2001) O direito comercial provém das práticas tradicionais e do direito consuetudinário utilizados pelos antigos comerciantes medievais. Por isso, ainda hoje, mantém-se o prestígio dos usos e costumes entre suas normas. Muitos dos costumes adotados, até mesmo os atinentes às obrigações comuns dos comerciantes, foram paulatinamente transformados em lei e, depois, sistematizados em um código. Acerca dos costumes comerciais e das obrigações comuns dos comerciantes, julgue os itens a seguir.
6. Os usos e costumes comerciais são regras subsidiárias do direito comercial e não se devem opor a dispositivos legais imperativos ou de ordem pública.
7. Os usos e costumes comerciais devem ter teor e vigência provados por quem os invoca em juízo, se assim determinar o juiz.
8. Deve o juiz comunicar à junta comercial da região os costumes comerciais invocados e aplicados em juízo, para fins de registro em livro próprio.
9. Seguir ordem uniforme de contabilidade e escrituração não é obrigação comercial regida pelo direito comercial; no entanto, é obrigação exigível dos comerciantes por força do direito tributário.
10. (TJ SP 2006 178° CONCURSO) O Código Comercial de 1850:
(A) Foi parcialmente revogado, mantendo-se vigentes os dispositivos que tratam da compra e venda mercantil.
(B) Foi totalmente revogado.
(C) Não foi revogado.
(D) Foi parcialmente revogado, mantendo-se vigentes os dispositivos referentes ao comércio marítimo.
11. (OAB Unificada – 2007.2) Considerando o atual estágio do direito comercial (ou empresarial) brasileiro, assinale a opção correta.
(A) O Código Civil de 2002, assim como o Código Comercial de 1850, adotou a teoria da empresa.
(B) O Código Civil de 2002 não revogou a antiga legislação sobre sociedades por quotas de responsabilidade limitada.
(C) O Código Civil de 2002 revogou totalmente o Código Comercial de 1850.
(D) A Constituição da República estabelece a competência privativa da União para legislar sobre direito comercial (ou empresarial).
12. (MAGISTRATURA/MG – VUNESP – 2012) Com a vigência do Novo Código Civil, à luz do art. 966, é correto afirmar que o Direito brasileiro concluiu a transição para a
(A) “teoria da empresa”, de matriz francesa.
(B) “teoria da empresa”, de matriz italiana.
(C) “teoria dos atos de comércio”, de matriz francesa.
(D) “teoria dos atos de comércio”, de matriz italiana.
GABARITO: As respostas destes testes encontram-se no final do livro.
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1 As questões ora comentadas são anteriores à edição do Código Civil de 2002. Portanto, algumas de suas assertivas são ultrapassadas. Optamos por inseri-las, no entanto, para mostrar as características da antiga teoria dos atos de comércio, apontadas ao longo do presente capítulo.