Prefácio/Preface.

Adolpho Lutz, uma vida dedicada à hanseníase

Para mim, prefaciar uma obra sobre Adolpho Lutz é uma honra.

Aprendi a admirar esse médico e outros brasileiros tão ilustres como ele por algumas informações que obtive durante minha vida. Quando entrei em contato com material mais farto de Lutz, vi que tinha apenas uma vaga noção de quem ele era realmente. Nunca imaginei que houvesse sido um cientista tão completo.

Nasceu no Rio de Janeiro, em 18 de dezembro de 1855, e teve esmerada educação na Suíça e em outros países europeus. Destacou-se em várias áreas do conhecimento médico e biológico, tais como clínica médica, dermatologia, terapêutica, medicina veterinária, helmintologia, bacteriologia, protozoologia, entomologia e micologia. Seus estudos sobre a ancilostomíase e o Ancylostoma duodenale são memoráveis, e foi ele que, em 1908, em São Paulo, descreveu pela primeira vez a paracoccidioidomicose em dois pacientes, e isolou seu agente etiológico em cultura.

É interessante realçar que durante toda a sua trajetória médica e científica Lutz sempre se interessou pela hanseníase. Em 1881, quando terminou seus estudos, voltou ao Brasil e se instalou no Rio de Janeiro onde revalidou seu diploma. No ano seguinte, passou a residir em Limeira, no interior do estado de São Paulo, e aí, provavelmente, durante o início do exercício da profissão, entrou em contato com número considerável de doentes de hanseníase. Em 1885, deixou Limeira temporariamente para trabalhar por cerca de um ano na clínica fundada na Alemanha por Paul Gerson Unna, famoso dermatologista muito interessado no estudo da hanseníase, tanto que já havia proposto vários tratamentos para a moléstia e era versado em estudos bacteriológicos sobre seu agente etiológico. O Dr. Unna influenciou muito o jovem médico brasileiro, que acabou publicando seu primeiro trabalho sobre a bactéria causadora da hanseníase em 1886.

Quando regressou ao Brasil, Lutz mudou-se de Limeira para São Paulo e continuou com suas investigações sobre a doença. Chegou a passar curta temporada no Hospital dos Lázaros, vinculado à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária, no Rio de Janeiro, em 1887. Esse Hospital era, naquela ocasião, um dos principais centros de tratamento da hanseníase no Brasil.

A vida médica e científica de Adolpho Lutz sofreu, então, uma mudança considerável.

Bem longe dali, no Oceano Pacífico, havia um arquipélago conhecido nos primórdios de seu descobrimento como Ilhas Sandwich, depois como arquipélago do Havaí. Compreendia oito ilhas principais: Niihau, Kauai, Molokai, Lanai, Kahoolawe, Havaí, a maior delas e Oahu, onde se localiza a capital Honolulu. Foi na ilha de Molokai que se iniciou a internação compulsória dos doentes de hanseníase. Esse local de isolamento tornou-se lendário pelo que representava para os que conheciam a doença, e pelo fato de lá ter ido trabalhar o padre Damien, irmão leigo da Igreja Católica que dedicou sua vida aos doentes e adoeceu com hanseníase. Foi para lá que o destino encaminhou Adolpho Lutz.

Naquele ano de 1887, o Conselho de Saúde do Reino do Havaí solicitou ao célebre Unna que indicasse um médico para utilizar seus tratamentos no leprosário em Molokai. Unna convidou Lutz e este aceitou o convite. Depois de serem satisfeitas algumas exigências contratuais, o médico brasileiro viajou para o Havaí, desembarcando em Honolulu em 1889.

Lutz passou a trabalhar na estação de recepção de Kalihi, uma espécie de hospital situado a algumas milhas de Honolulu, onde os doentes eram examinados, sendo encaminhados para Molokai aqueles em que a hanseníase era confirmada. Uma das suas exigências, feitas antes de ir, consistia em manter uma clínica privada na capital do arquipélago. Pelo relato que fez ao Dr. J. H. Kimball, presidente do Conselho de Saúde, meses após ter assumido seu posto no hospital, percebe-se que teve de início muita dificuldade com a falta de condições de trabalho, com o escasso instrumental, a falta de medicamentos e pessoal auxiliar e a grande distância de outros hospitais, impedindo o encaminhamento de pacientes que precisassem de algum tratamento de emergência. O que veio melhorar sua situação e também mudou sua vida foi a chegada ao Hospital da enfermeira inglesa Amy Marie Gertrude Fowler. Devotada aos doentes, Amy o ajudou muito, e em 1891 acabou se tornando sua esposa.

Lutz não chegou a trabalhar um ano na estação de Kalihi. Depois de um incidente com um funcionário hanseniano que trabalhava lá e em virtude da má condução do episódio pelo Conselho de Saúde, Lutz e Amy se demitiram dos seus cargos. O casal continuou no Havaí até meados de 1892, quando foi para São Francisco, na Califórnia, e depois voltou ao Brasil, no início de 1893.

Durante sua estada no Havaí, Lutz continuou os estudos biológicos e amadureceu sua teoria sobre a transmissão da hanseníase por mosquitos, hipótese que já vinha alimentando desde seus primeiros contatos com a doença.

Lutz era um hansenólogo respeitado quando chegou a Honolulu, possuía boa experiência sobre os aspectos clínicos da doença, tanto que, em 1888, declarou haver tratado já de cerca de 250 doentes. Estes, somados aos que estudou nas ilhas com a meticulosidade que o caracterizava, tornaram-no um dos maiores especialistas de seu tempo.

É interessante que Lutz não tenha falado muito sobre a ilha de Molokai, nem sobre a colônia onde os doentes eram confinados: como viviam lá, os cuidados médicos que recebiam, suas habitações, as regras disciplinares a que estavam sujeitos – se é que havia algumas – e as características da ilha como um todo. Em sua conferência sobre o arquipélago, fala da beleza de cada ilha, de sua vegetação, dos vulcões que existiam no arquipélago e de muitos outros detalhes, mas sobre Molokai fala muito pouco, parece até que nem chega a visitar a ilha. O leprosário situava-se numa península do lado norte da ilha, dela separada por altas montanhas. Essa muralha, denominada Pali, só podia ser atravessada por um caminho que levava, também, ao rancho de um alemão – agente do Conselho de Saúde na ilha e superintendente da colônia de doentes.

Adolpho Lutz estava a par de tudo o que se conhecia sobre a hanseníase em seu tempo, e procurou atuar em todas as áreas possíveis de investigação. Destacam-se tanto os seus estudos bacteriológicos como os clínicos e epidemiológicos.

Hansen descreveu o bacilo causador da hanseníase em 1873 e dez anos depois Koch descobriu o da tuberculose. Foi nesse intervalo que Lutz fez seus estudos na Europa, assistiu a preleções de Lister, assimilou os ensinamentos de Pasteur e, já influenciado pelo trabalho de Unna sobre hanseníase, retornou ao Brasil.

Naquela época, os gigantes da bacteriologia – Hansen, Neisser, Unna e outros – digladiavam quanto à definição do agente causador da hanseníase e do meio que o envolvia.

Desde o início, Hansen e Looft defendiam a idéia de que o micróbio causador da doença era um bastonete, um bacilo que se acumulava em grande número no interior de células de vários tamanhos. Ele era encontrado nas formas tuberosas da doença.1 Unna e Lutz, por sua vez, não acreditavam que o micróbio fosse um bastonete, um bacilo. Os métodos de coloração desenvolvidos por eles faziam com que aquilo que outros autores consideravam bacilo apresentasse em seu interior esférulas que se disporiam lado a lado, lembrando, às vezes, um bastonete. Lutz achava que essas esférulas iam se dividindo e empurrando lateralmente as outras, e que eram envoltas por uma substância mucosa que formaria em torno de si uma camada gelatinosa. O acúmulo dessas formações dava a impressão de que as granulações, que adquiriam as mais diferentes formas, estavam dentro de uma massa amorfa que denominou zoogléia. Lutz e Unna eram contrários à idéia de que tais massas gelatinosas fossem citoplasma de células e argumentavam que os núcleos celulares não eram visíveis. Hansen já havia procurado demonstrar que os germes estavam realmente no interior de células, e em seus desenhos chegara a mostrar a localização dos núcleos celulares. É verdade que, muitas vezes, só se observavam vacúolos, que eram interpretados como o desaparecimento do núcleo por algum processo degenerativo.

Era tarefa das mais árduas defender esses diferentes pontos de vista, pois os pesquisadores lidavam com métodos de coloração que aos poucos vinham se aperfeiçoando, e o poder de resolução dos microscópios era restrito.

Lutz defendeu sempre o seu ponto de vista de que os germes causadores da hanseníase não eram bacilos e sim cocos, e para eles escolheu o gênero Coccothrix. Muitos acham que essa denominação deveria ter prioridade sobre o gênero Mycobacterium, criado depois por Lehmann e Neumann mas, na verdade, não poderia haver nenhuma prioridade para a denominação de Lutz, uma vez que o germe causador da hanseníase, na realidade, é um bacilo e não um coco.

Um fato interessante que se destaca nessas observações bacteriológicas é Lutz supor que as granulações eram os elementos ativos, e que muitas das formas observadas dentro da zoogléia estavam mortas. Hansen, por sua vez, considerava que os bacilos bem corados estavam vivos, mas os outros, com coloração irregular, fragmentados ou formando grânulos, seriam formas degeneradas da bactéria.

Os grânulos especiais encontrados por Lutz no bacilo da hanseníase eram vistos de maneira constante pela coloração estabelecida por ele e Unna, baseada no método de Gram. No bacilo da tuberculose, Much também demonstrou, em 1910, granulações gram-positivas, ditas granulações de Much, e, como Lutz, supôs que faziam parte do ciclo evolutivo da micobactéria. Ao estudar essas granulações no Instituto Oswaldo Cruz, em 1910, Antônio Cardoso Fontes conseguiu filtrar o pus tuberculoso e verificou que sua inoculação em cobaia reproduzia um quadro atípico de tuberculose. Essas observações não foram confirmadas por outros autores. Embora a natureza desses grânulos não tenha ficado inteiramente esclarecida, hoje sua importância é secundária.2

Como vimos, Adolpho Lutz havia se tornado um grande hansenólogo graças à experiência que viera acumulando ao longo dos anos no trato dos pacientes que não deixava de atender. As descrições esmeradas das formas da doença e sua intuição sobre o real significado das lesões levaram-no a descrever a moléstia de tal maneira que não se pode acrescentar muita coisa hoje ao que ele disse sobre seus vários aspectos clínicos.

Lutz observou o eritema nodoso como uma forma de hanseníase tuberosa sem o conteúdo celular desta última, e considerou que a febre, nesses casos, era sinal de bacteremia. Julgava, também, serem essas as fases contagiantes da doença. Hoje, porém, sabemos que o eritema nodoso é a expressão, na imunidade humoral, de uma resposta do organismo contra os bacilos que estão sendo destruídos pelo sistema imune.3 Lutz também já havia observado na forma macular a presença de muito pouco bacilo ou mesmo nenhum; observara, também, tratar-se de uma forma benigna, fato este que estava de acordo com o que acreditava Hansen. Lutz tinha idéias bem firmes a respeito da doença, e considerava-a pouco contagiosa, muito menos que a tuberculose.

A aquisição da doença, para ele, não dependia de fatores hereditários. Quanto ao contágio, atribuía-o à picada de insetos do gênero Culex. Durante toda a sua vida, quer enquanto foi diretor do Instituto Bacteriológico em São Paulo, quer depois que migrou para o Rio de Janeiro, para trabalhar no Instituto Oswaldo Cruz, até sua morte, em 1940, não deixou de enfatizar a crença nesse modo de transmissão da hanseníase.

Desde os primeiros estudos sobre a moléstia, veio desenvolvendo a teoria da transmissão do micróbio através de mosquitos. Além de ser bastante coerente, também estava de acordo com a época, em que se mostrou que grandes endemias como a febre amarela e a malária estavam relacionadas à ação de pernilongos. Lutz considerava o gênero Culex como o responsável porque a transmissão não podia ser feita através de insetos de outra ordem como piolhos, pulgas e percevejos, pois estes eram tão comuns nos países livres de hanseníase como naqueles onde existia a doença. Quando esteve no Havaí, observou que os culicídeos constituíam uma verdadeira praga. Provavelmente haviam proliferado graças às extensas culturas de arroz e taro (inhame) e, ao que parece, nem sempre existiram nas ilhas, assim como a hanseníase, tanto que, dizia Lutz, não havia na língua nativa do arquipélago nenhuma palavra que sugerisse a doença ou o mosquito.

Lutz atribuía a dificuldade do contágio direto ao fato de estar morta a maior parte dos bacilos da zoogléia, o que explicaria os resultados negativos das tentativas experimentais de inoculação. Entretanto, se os bacilos eliminados em tão grande quantidade da pele ulcerada e das mucosas fossem viáveis, o número de doentes seria muito maior. Segundo Lutz, ninguém havia ainda descrito o desenvolvimento do bacilo no interior do mosquito, mas algumas transformações deviam ocorrer. Não bastava o bacilo permanecer no interior do inseto ou ser eliminado com suas fezes para ocorrer a transmissão. Dever-se-ia levar em conta o momento em que picasse o paciente, a lesão que era o alvo da picada e a forma que o bacilo adquiria para estar em condições de transmitir a doença.

Lutz julgava necessário que o mosquito picasse o paciente durante os episódios febris, e que picasse em especial aqueles pacientes cujas lesões fossem ricamente bacilíferas para eventualmente se contaminar. Os germes transmitiriam a doença através de suas granulações, que nem sempre são acidorresistentes e que se mostram livres ou enfileiradas. Lutz defendeu essa opinião até seus últimos dias. Considerava um absurdo a internação compulsória dos pacientes, e não perdia oportunidade de chamar atenção para o fato de que se fechavam as portas aos pacientes, mas se deixavam abertas as janelas para os pernilongos, os grandes disseminadores da doença.

Adolpho Lutz sempre se manteve atualizado a respeito dos progressos obtidos no estudo da hanseníase, e é de estranhar que não tenha feito nenhuma referência ao Congresso de Estrasburgo, em 1923, onde Mitsuda apresentou os primeiros resultados sobre seu teste, e Darier deu os primeiros passos na identificação da lepra tuberculóide.4

A imunidade como ferramenta para explicar as diferentes formas clínicas já começava a se desenvolver desde aquele momento.

Os estudos sobre o bacilo feitos posteriormente, com novas metodologias, como a microscopia eletrônica, esclareceram muitas de suas características, até mesmo os seus aspectos degenerativos, e a teoria da transmissão da doença por insetos não suportou os vários argumentos novos que se levantaram contra ela.

Seja como for, grande foi a influência de Lutz sobre o estudo da hanseníase em virtude de seus conceitos firmes sobre o contágio e sobre a maneira como as pessoas deviam proceder em relação à doença, e graças aos seus sólidos conhecimentos, que procurou disseminar através de livros, artigos e conferências. Com seu exemplo como cientista, Adolpho Lutz deu uma contribuição enorme ao estudo da doença, e deve figurar no panteão dos grandes hansenólogos que o mundo já teve.

Dilton Opromolla

Pesquisador VI do Instituto Lauro de Souza Lima, Bauru, São Paulo