Ao preparar-me, há cerca de seis anos, para o exercício da clínica médica tropical, voltei-me, entre outros assuntos, para o estudo da lepra. Na verdade, a bibliografia de que dispunha tratava mais extensamente desta enfermidade do que de outras afecções não encontradiças nos centros europeus, e pelas quais a maioria dos tratados passava muito por alto, quando não em completo silêncio. Todavia, munido apenas daquelas descrições dos livros, ao deparar-me com o caso concreto, não me teria sido fácil resolver o momentoso problema que comporta a interrogação: “Lepra ou não?”. Contudo, tal questão não é de importância fundamental só para o doente; ela também expõe o médico à possibilidade de grande vexame, ao ver-se ele convencido de seu erro pelo discernimento de um leigo mais experiente, situação esta que quiçá sobrevenha somente com essa doença.1 Felizmente, o Royal College of Surgeons, em Londres, proporcionou-me magnífica visão de conjunto desse processo mórbido tão multiforme, graças à inspeção das admiráveis moldagens em cera exibidas em sua coleção. Tão excelente recurso didático – que, quando suficientemente diversificado, sobreleva um material clínico constituído por mediano número de doentes – não era, naquela ocasião, e, se me não engano, não é ainda hoje, utilizado na Alemanha; e se, por outro lado, é cultivado também em Viena e Paris – aí de modo digno de apreço -, não alcança, nestas cidades, o grau de aprimoramento que atingiu em Londres.
Assim preparado, e com a lepra sempre em mente, não só logrei a capacidade de reconhecer, de pronto, os primeiros casos surgidos, como consegui, paulatinamente, uma compreensão exata dos sintomas incomuns ou pouco pronunciados. De tal sorte que hoje disponho de muitas observações dos estágios iniciais da doença, nos quais aqui, nesta terra, a doença só é identificável em situações muito excepcionais. Eis por que meu material se distingue daquele dos hospitais de lepra, aos quais os doentes são encaminhados somente após longos anos de padecimento.
Poder-se-á estranhar que não tenha recorrido logo aos hospitais e, em particular, ao Asilo de Leprosos do Rio de Janeiro para meu estudo. Seja dito em minha defesa que, na ocasião em que lá me achava, aquele hospital mal era conhecido pelo nome. Ninguém sabia dar informações a respeito; duvidava-se de que fosse acessível e, até mesmo, de que tivesse verdadeira organização hospitalar. lsso se explica pela proposital localização retirada, pela segregação, pelo receio, muito difundido, de contrair a doença e pela convicção generalizada, até mesmo nos meios médicos, de que ela não ocorria na capital, crença esta muito prejudicial aos doentes. Tais motivos, aliados à pressão de estudos intensos, absorvendo-me todo o tempo disponível, mantiveram-me afastado do material existente naquele hospital, material que, por sua riqueza, hoje recomendo a todos os colegas. Recentemente, ao procurar recuperar a ocasião perdida, tive gentil acolhida de parte do atual médico do estabelecimento, Dr. Azevedo Lima. Este então informou-me, com grande pesar, que o hospital quase não era visitado, em particular pelos médicos. Os estudantes, por sua vez, praticamente nenhum proveito tiravam do material disponível. Por isso mesmo, e pelo fato de não existir igual facilidade para o estudo da sífilis, mais tarde dificilmente conseguem distinguir as duas doenças.
Movido pelo propósito de oferecer à redação e aos leitores deste periódico um despretensioso relato sobre a incidência e evolução da lepra em meu campo de atuação, sem pretender esgotar o assunto, naturalmente, aproveitei o ensejo de minha passagem pelo Rio e por São Paulo para visitar os respectivos leprosários, onde tive à vista cerca de oitenta pacientes. O médico que chefia o primeiro, anuindo ao desejo por mim externado, teve a gentileza de reunir em trabalho de sua lavra as informações que me foi prestando no decorrer da visita que me proporcionou a seu estabelecimento, visita essa que, conquanto única, foi extremamente longa e circunstanciada; a esta primeira comunicação fez seguir outra, contendo as observações próprias referentes aos aparelhos visual, auditivo e olfativo dos doentes ali internados. Futuramente, ambos os trabalhos serão postos à disposição dos leitores desta revista, em versões fiéis aos originais.
Além dos aludidos doentes, examinados uma só vez, tenho a observação de mais 21 pacientes de minha clínica privada, todos naturais da província de São Paulo e, em sua maioria, moradores das vizinhanças de Limeira, tendo uma parte sofrido observação mais detida. A estes se agrega meia dúzia de casos vistos, em parte na Alemanha, em parte em Nova York, sabendo-se que um pôde sofrer estudo minudente durante período relativamente curto, e outro, durante prazo mais extenso. Ademais, sejam lembrados, apenas de passagem, os muitos mendigos que exibem freqüentemente os graus mais avançados da doença, tanto no rosto como nas mãos. Por meio deste material, aliado aos conhecimentos hauridos na literatura publicada em diversos idiomas, creio ter adquirido um conceito circunstanciado da lepra, abrangendo suas manifestações mais importantes. É evidente, porém, que a finalidade visada não é repisar o que já é do conhecimento geral e, ademais,já se acha compendiado em trabalhos de fácil acesso (como, por exemplo, os tratados de Hebra & Kaposi, Ziemssen [Neisser], Hirsch etc.). Muito ao contrário, desejo apresentar diversas manifestações menos conhecidas ou mal realçadas, e também proporcionar aos leitores algum material sobre certas questões que, embora freqüentemente discutidas, ainda não se acham suficientemente elucidadas. Assim procedendo, procurarei sempre dar a devida evidência às particularidades de ordem local, na medida do que permitir meu material, reconhecidamente bem restrito.
Disseminação
Tanto quanto possa ajuizar, a lepra ocorre em todo o Brasil, conquanto seja mais rara no Maranhão e no Rio Grande, no dizer de Hirsch. Contudo, li numjornal leigo a enumeração de quatorze óbitos só para a pequena capital da primeira província citada, número este que nos levaria à conclusão de que é bastante ampla a disseminação da doença, desde que se leve em conta o baixo índice de mortalidade que lhe corresponde. No que diz respeito ao Rio Grande, não fica claro se o autor se refere à província do Rio Grande do Norte ou àquela do Sul; presumivelmente trata desta, que, apesar de distante, acha-se no entanto representada no Hospital de Lepra do Rio de Janeiro, convindo notar ainda que o território em que a lepra incide ultrapassa a aludida província, estendendo-se até as margens do Rio da Prata. Seja como for, a lepra parece não faltar em nenhuma região mais ampla do Brasil. Sua distribuição é bastante uniforme, o que não exclui uma concentração que excede a densidade média em certos pontos. Em minha localidade, avalio a ocorrência em dez a quinze casos para cada dez mil habitantes, ao passo que na capital, representativa dos pontos menos acometidos, Azevedo Lima orça a relação em cinco para dez mil. Adotando esta última escala como base e, na falta de dados demográficos precisos, estimando a população do país em dez milhões de habitantes, teríamos cinco mil leprosos em todo o Brasil. Quanto se deveria acrescentar a esta cifra por conta das regiões mais fortemente acometidas escapa à minha apreciação, mas acredito que a soma total se aproxime dos dez mil, podendo até mesmo exceder este número.
Segundo Wucherer (citado no tratado de Hirsch, v. II, p.7), as notícias relativas à lepra não abrangem datas anteriores ao ano de 1755. Todavia, tendo em vista que apenas poucos anos mais tarde é ela dada como freqüente no Rio de Janeiro, sua existência deve preceder, e de muito, aquela data, não só no Rio como na Bahia. Nesta província, assim como na do Paraná, e, além disto, na Guiana, nas Antilhas e no Uruguai, atribui-se a introdução da doença à vinda dos escravos negros. Entretanto, parece que, de fato, a lepra era endêmica em regiões que forneceram parte dos escravos; por outro lado, desperta a atenção a circunstância de que certas nações escravistas colonizadas por países nos quais a lepra ocorria exibem número muito maior de leprosos do que outras, como, por exemplo, os Estados Unidos. É quase inconcebível que, entre os milhões de portugueses que aqui afluíram, vindos não somente do reino propriamente dito como também das ilhas e demais colônias, não tenha havido número apreciável de leprosos, pois que, até mesmo em meu material numericamente exíguo, figura um caso introduzido; o mesmo se aplicará, decerto, aos espanhóis. Conquanto reconhecendo entre os negros da África, ainda hoje bastante numerosos no Brasil, a ocorrência espaçada de casos de lepra, devo ressaltar a permanência habitualmente longa desses doentes no país, anterior à eclosão de seus sintomas; certo é que não chegou ao meu conhecimento nenhum caso em que a doença tenha sido trazida diretamente desde o desembarcar. Em contrapartida, conheço vários casos de estrangeiros procedentes de territórios imunes que vieram a adquirir a doença aqui, e em breve prazo. Creio, pois, que a culpa pela introdução da doença não é atribuível, nem exclusiva nem incondicionalmente, à importação de escravos. Entretanto, tem ocorrido com relativa freqüência que negros leprosos, silenciando o seu mal, tenham passado de mão em mão e, até mesmo, migrado de província em província; assim é que posso citar, entre os escravos desta localidade, alguns casos procedentes da província da Bahia.
Bem difícil se afigura averiguar se a doença era mais freqüente outrora do que hoje: até mesmo com relação à capital seria isto incerto e bem difícil de provar, se bem que não seria de modo algum impossível. Ao observador desprevenido, a presença de uma ou duas dúzias de mendigos, a exibir os graus mais avançados e impressionantes da lepra enquanto deambulam incessantemente pelas ruas da cidade, poderia impor a convicção de se estar numa localidade profundamente assolada, quando, na realidade, a infecção daqueles doentes é bem antiga, remontando mesmo a várias décadas e tendo sua origem, na maioria das vezes, em lugares distantes, que eles abandonaram para convergir na metrópole. Fosse a mendicância vedada e sobreviesse a internação compulsória em asilos, a endemia desapareceria como por encanto, e raramente se ouviria falar de casos novos, sem que a freqüência houvesse deveras diminuído. O mesmo raciocínio se aplica às grandes cidades em geral. No interior ocorre, via de regra, um incremento apenas paulatino, comensurado, na maioria das localidades, à progressão numérica da respectiva população. Uma verificação numérica exata de tal situação será, por ora, inexeqüível, por isso, de acordo com a minha experiência, cabem, ainda hoje, para cada caso diagnosticado, dois outros encobertos. De mais a mais, em lugar algum dispomos de um cômputo da população sequer aproximadamente exato.
Focalizando a seguir a composição étnica da sociedade, cumpre assinalar que não há que admitir qualquer predisposição racial, uma vez que os diferentes grupos raciais são acometidos por igual. Lá onde se afiguraria haver uma distribuição discrepante, percebem-se habitualmente razões outras para tal fato, sem que se possa invocar uma predisposição étnica nem mesmo como simples hipótese. O valor restritíssimo deste fator na patologia geográfica, de um modo geral, só é valorizado pela observação prolongada; nas casuísticas exíguas, tende o acaso a pregar uma peça até mesmo ao observador mais meticuloso. Assim é que na província de São Paulo há um número impressionante de negros leprosos, mas, de um lado, aqui há trabalho escravo e, com ele, o número de cativos está no ápice; atente-se, em segundo lugar, para o fato,já assinalado, de que muitos vieram, ocultando seu mal, das províncias do Norte; e finalmente, entre eles saltará antes aos olhos, por exemplo, a forma anestésica decorrente da mutilação que se inicia de forma mais branda. Os estrangeiros adoecem na mesma proporção que os nativos; só entre alemães, eu soube de mais de meia dúzia de casos. Em geral, a população rural seria atingida mais fortemente do que a urbana; entre aquela, são igualmente atingidos os abastados e os despossuídos. Conquanto seja pequeno, o número de leprosos entre os fazendeiros e outras pessoas de recursos está muito longe da morbidade média da população, aliás bastante módica.
Não é aceitável maior predisposição de um sexo com relação ao outro, o mesmo ocorrendo, aliás, com outras doenças infecciosas. Tampouco se evidencia qualquer predileção em favor da idade. Muito ao contrário, em cada idade parece adoecer uma proporção exígua, mas aproximadamente uniforme, da população. Daí decorre que a freqüência dos casos observados irá aumentando com o incremento da idade, até que se faça sentir o fator limitante da maior mortalidade da velhice. A este fator se associa o da abreviação da vida dosjá acometidos pelo mal. De tudo isto resulta que encontraremos menor número de casos na infância e na senectude, preponderando entre os velhos aquelas formas que pouco afetam a sobrevida. Os hospitais, é claro, não podem proporcionar um estalão para que o acometimento em relação à idade seja avaliado. O asilo do Rio, por exemplo, abriga número desproporcional de pacientesjovens, enquanto é bem mais reduzido o número destes na clínica privada e entre os mendigos.
Estudos sobre a lepra, segundo observações realizadas no Brasil
Hereditariedade, transmissão
Assim como os microrganismos da lepra e da tuberculose guardam relações estreitas, do mesmo modo as respectivas doenças teriam maior afinidade mútua do que com outras, igualmente crônicas, como a sífilis. Em ambos os casos observa-se incidência expressiva no seio de determinadas famílias, conquanto preponderem, por larga margem, os casos isolados, a não ser que a incidência total atinja proporções demasiadas, capazes de tolher a comprovação da casuística. A incidência múltipla numa mesma família admite mais de uma explicação, seja a da transmissão por herança, seja a da infecção decorrente do convívio. Prevaleceria a primeira se pudéssemos demonstrar um sintoma específico, ainda que minimamente evoluído,já no decorrer das primeiras semanas de vida uterina. No caso da tuberculose, aceita-se a existência de tais casos, não obstante sejam por demais raros. Mas que crianças possam nascer leprosas, creio que só Zambaco sustenta isso: na melhor das hipóteses, semelhante ocorrência só poderia ser considerada fato verdadeiramente excepcional. Quanto aos casos surgidos depois, não vejo como se possa reconhecer-lhes a qualidade de congênitos, especialmente se levarmos em conta que o contato íntimo, implícito nos cuidados à criança, e, ainda mais, a lactação estabelecem as condições de contágio mais perfeitas que se possa imaginar. Não cabe como argumento a sífilis hereditária tardia, na qual as manifestações observadas, via de regra, não correspondem aos primórdios da doença; assim, não há como estabelecer a data de eclosão da doença, não sendo sequer possível excluir uma infecção posterior ao nascimento. Conquanto os períodos de latência muito prolongados sejam um apanágio antes da sífilis do que da tuberculose e da lepra, é exatamente na sífilis que a aquisição congênita mais cedo se denuncia, podendo mesmo ocorrer durante a gestação. Quanto à tuberculose, devo dizer que, segundo a minha experiência, nos casos graves surgidos em uma só família e caracterizados pela mesma evolução acelerada, parece mais verossímil a transmissão de irmãos para irmãos do que a de pais para filhos. Se, além disso, os pais nunca foram doentes, ou não o são mais há decênios, enquanto os filhos já estão criados, ou ainda quando se trata de cônjuges sem parentesco consangüíneo, resta apenas a presunção de uma infecção no seio da família como explicação plausível da coincidência, aliás, de modo algum excepcional.
No caso da tuberculose, acontece que a transmissibilidade é de fácil demonstração a qualquer momento, não só pela inoculação em animais como, até mesmo, pela observação clínica de infecções como as ocasionadas na circuncisão ou adquiridas por ferimento na prática de autopsias. Em compensação, falharam as várias tentativas relatadas pelos autores de transmissão da lepra a seres humanos, ou então a suposta transmissão é muito vulnerável à crítica (caso de lepra nervosa localizada, seguida de cura espontânea, que teria sido adquirida em uma autopsia). As experiências em animais tampouco tiveram êxito, e, naqueles casos em que foram dadas como bem-sucedidas, houve recurso a um modo de infecção – por exemplo, a implantação de porções inteiras de lepromas – que nada tem de parecido com o contágio direto. Se, portanto, na clínica diária nenhuma importância maior se dá ao contágio da tuberculose, por se considerá-la como doença pouco contagiosa, o mesmo se dirá, com muito mais forte razão, em relação à lepra. Baseado em toda a minha experiência, e com a observação que tenho da doença, não hesito em declarar a lepra menos contagiosa que a tuberculose, e em tachar a expulsão sumária dos leprosos do seio da sociedade, pelo menos na forma como é feita até hoje, não só de desumana como de pouco eficaz, e, ainda, de incoerente; e isso porque a lepra não oferece maior perigo para a vida do próximo que a tuberculose, nem apresenta perspectivas mais sombrias quanto à cura.
Não nego, em absoluto, a possibilidade de transmissão da doença, pois admito que cada novo caso de lepra exige a preexistência de outro num espaço com limites circunscritos. As condições necessárias para a ocorrência de novo caso são, contudo, de tal maneira complexas e peculiares que só raramente estarão preenchidas na vizinhança imediata dos leprosos. Posso asseverar, com toda segurança, que a simples permanência numa região assolada pela lepra oferece aproximadamente o mesmo perigo que o convívio íntimo com um leproso. Para ilustrar circunstâncias como estas, seja-me permitida ligeira digressão. A ancilostomose pressupõe, em qualquer região, a preexistência, ainda que ignorada, de outros casos. Quem habita um território onde ocorra o ancilóstomo pode contrair a doença por meio de água lamacenta, semjamais se ter aproximado de um doente, enquanto o convívio com doentes poderá ser completamente inócuo, com a condição de rigoroso asseio quanto à água potável e aos dejetos.
Imaginemos, a seguir, outras condições de propagação, que façam com que uma transmissão a distância se torne fácil ou difícil conforme a condição de proximidade imediata do doente. Para tanto, admitamos que só o sangue ou as secreções das mucosas do leproso encerrem o agente infectante, e que este exja ainda um período de maturação em temperatura mais baixa para desenvolver sua capacidade de transmissão (por exemplo, por meio de esporos ou formas de resistência, ou por outra fase de um ciclo evolutivo) ou, então, admitamos que, além disto, seja indispensável uma inoculação direta vulnerante (por exemplo, por meio de insetos que picam). A dificuldade de efetivar-se uma transmissão como essa é revelada pelo fato de que, depois que se aprendeu a distinguir a lepra de afecções parecidas, como a micose fúngica, por meio do exame anatomopatológicojá não são comunicados casos de novas infecções em países indenes, mesmo quando visitados por leprosos. Tais visitantes não são muito raros, por exemplo, na Inglaterra e em grande parte da França e Alemanha; eu mesmo cheguei a ter conhecimento de cerca de dez leprosos que partiram para a Alemanha no decurso destes últimos anos. O fato descrito não pode ser atribuído ao clima, pois que em outros lugares com clima igual ou análogo surgem novas infecções.
Nos dados colhidos em minhas observações, acham-se os seguintes casos que poderiam ser ligados a uma infecção congênita ou familiar: um caso de lepra maculosa, com pênfigo e neurite numa escrava negra, adulta, procedente do Norte, cuja mãe teria sofrido de doença semelhante; e outro paciente de lepra maculosa típica, datando de um ano, cuja esposa sofre há dois anos de lepra tuberosa. Poder-se-ia pretender acrescentar a estes o caso do ferreiro (mestre) com lepra nervosa há três para quatro anos, localizada em um pé, sem tendência à disseminação, cujo ajudante, há um ano, manifestou exantema recente de lepra maculosa. Contudo, o primeiro exemplo é falho quanto à necessária comprovação e, no último, o contágio é quase inconcebível, tendo em vista a ausência de afecção cutânea portadora de microrganismos (leproma ou úlcera). A estes casos opõe-se uma série de outros, em número de dezessete, nos quais nenhuma transmissão se deu, apesar de convívio familiar estreito.
Resumindo, sou obrigado a considerar a lepra como doença dificilmente transmissível, em que só em ocasiões muito raras será demonstrável uma transmissão direta e em que, por isso mesmo, a infecção pelo convívio familiar desempenha um papel apenas subalterno. O enclausuramento dos doentes mostrou-se impraticável no Brasil, e o simples fato de evitar-se o contato direto não proporciona, ao que parece, garantia contra a lepra. Ainda mais, deve-se aceitar como seguro que o contágio não reside na superfície íntegra da pele do doente. A transmissão congênita desempenha papel completamente insignificante na manutenção da doença. Muito ao contrário, a morbidade mantém-se principalmente pela ocorrência esporádica de novos casos no seio de famílias até então poupadas.
Concepções populares sobre lepra e destino dos doentes
Os pontos de vista amplamente disseminados pelo Brasil estão, na verdade, em franca oposição à concepção aqui exposta, conservando vivos todos os preconceitos de tempos idos. Aliás, de um modo geral, em medicina o pensamento do novo se caracteriza por seu cunho renitentemente conservador.
Prevalece a crença de que o contato com os leprosos é contagioso em si; tem larga aceitação a hereditariedade, que é, pois, temida; mais ainda, ouve-se freqüentemente a opinião de que a doença foi provocada por excessos, ou de que representa uma espécie de sífilis potenciada ou, ainda, de que resultou de atraso menstrual. Outros se apegam simplesmente a explicações também correntes alhures, fazendo com que se abstenham da carne de porco e do peixe. A estas se associa uma terceira versão incriminando o pinhão do pinheiro-do-paraná (Araucaria brasiliensis). Enquanto as duas últimas hipóteses caem por si sós, pela falta de qualquer coincidência com a casuística, é no mínimo discutível a idéia de que a lepra ocorra como zoonose nos países infectados, sendo transmitida ao homem pelo consumo da carne. No entanto, devo esclarecer de saída que, apesar de amplas oportunidades não só de informações de terceiros como de apreciação direta,jamais tive conhecimento de qualquer fato que testemunhasse a ocorrência espontânea da doença entre animais; acima de tudo,jamais percebi nos animais algo que evocasse a lepra mutilante, apesar de ser exatamente nos animais que a mutilação deveria atingir um grau mais acentuado. Entre o povo, os exantemas dos animais, e especialmente a sarna, são por vezes designados como lepra, sem que tenham qualquer semelhança com a lepra humana, habitualmente chamada morféia ou mal-de-são-lázaro. Ainda assim, em vista da disseminação ampla de tais idéias, seria, sem dúvida, interessante proceder oportunamente a novas tentativas de implantação, escolhendo o porco como animal de experiência.
Outra convicção popular, provavelmente transferida da lues para a lepra, é a de que na lepra latente o uso de banhos sulfurosos provocaria a eclosão de sintomas manifestos.
A confusão da lepra com a sífilis, e a conseqüente idéia de que a lepra seja uma doença decorrente de libertinagens, aliada ao pavor do contágio e à hediondez das manifestações externas dos estágios mais avançados concorreram para fazer temer e abominar a lepra mais do que qualquer outra doença – com exceção, possivelmente, da varíola – e para provocar o banimento do leproso da sociedade humana. É exatamente a proscrição que recai sobre o leproso que impressiona o povo, de sorte que as mesmas pessoas que não hesitam em se proclamar sifilíticas, com característico pouco caso para com esta e outras afecções semelhantes, são tomadas de verdadeiro pavor só de pensar no mal-de-são-lázaro. Eu mesmo vi pretos se debulhando em lágrimas ao ouvir o diagnóstico, muito embora esse pronunciamento significasse para eles a libertação das agruras da escravidão. Conquanto o leigo mais objetivo consiga reconhecer a baixa contagiosidade e o curso em geral relativamente benigno da doença, a maioria é incapaz de raciocinar tão lucidamente. Ocorre aqui o mesmo que com relação às mordeduras de cobras peçonhentas; estas só ocasionam a morte em um ou outro caso, conforme qualquer um poderá observar. Ainda assim são tidas como seguramente mortais e qualquer sobrevivência é, então, atribuída a este ou àquele medicamento ou processo curativo, e com isto numerosas drogas alcançam uma reputação que nada fizeram por merecer.
O destino usual do leproso no Brasil é o de que sua doença, que normalmente começa como forma nervosa ou maculosa, seja, durante algum tempo – não raro até durante anos -, negligenciada e mal interpretada, ou, na melhor das hipóteses, tratada como sífilis. Com o tempo, evidencia-se a inutilidade dos tratamentos com mercuriais e iodeto de potássio, reconhecidamente improfícuos na lepra, segundo os melhores observadores, mas realizados entre nós com perseverança e como dignos de melhor aproveitamento. Só então aventa-se a idéia de lepra, e, nesse momento, entra o médico a tergiversar no pronunciamento do diagnóstico, em parte para encobrir sua falta, em parte para não assustar o doente e aqueles que durante tanto tempo o cercaram. Por fim, quandojá não há mais como encobrir a situação, busca-se um colega alheio a tudo para dizer a verdade nua e crua. E eis que a consternação invade aquele lar! Se o doente for um simples escravo ou um outro pobre-diabo, é ele escorraçado; na melhor das hipóteses, dá-se-lhe um cavalo, para que possa vagar mendigando ao longe, sozinho ou associado a um bando de companheiros de infortúnio; vez por outra, um deles se deixa recolher a um asilo. No interior, encontram-se por toda a parte tais bandos de morféticos, montados a cavalo e perpetuamente itinerantes. Não entram nas casas, dormindo ao relento ou sob barracas; não fazem contato com quem quer que seja; o próprio dinheiro deles recebido é submetido a uma espécie de desinfecção. Um óbolo de moeda de cobre, que exigem como se fora um direito, quase nunca lhes é negado, de sorte que não lhes falta o mais necessário, e assim preferem eles, em sua maioria, essa vida instável ao tédio da permanência em um hospital.
Lá onde o povo é um pouco menos intransigente, dá-se-lhes uma barraca separada e segregada, na qual possam usufruir a sua vida o mais solitariamente possível. No caso de pessoas de melhor posição, a doença é ocultada tanto quanto possível; depois de ter percorrido inutilmente o circuito dos médicos e charlatães, o doente se rende à desgraça, isolando-se na medida do possível. O público pressente o que está se passando, mas logo se desinteressa do assunto.
Há muitos leprosários no Brasil, mas, em sua maioria, são simples asilos sem assistência médica, com instalações bastante primitivas. Fossem todos os doentes encaminhados para esses estabelecimentos, bem depressa eles se mostrariam insuficientes para acomodá-los. Dos que conheci, só o hospital do Rio é verdadeiramente bem instalado, proporcionando também aos doentes a possibilidade de se entregarem a uma ocupação – necessidade esta premente num mal tão crônico.
Diversas formas da lepra e sua freqüência
Passo, agora, a considerar os sintomas e a evolução da lepra, começando pela divisão da doença. Parece-me mais adequado distinguir lepra tuberosa, nervosa e maculosa. Sou decididamente favorável à inclusão do último tipo, que parece suficientemente legitimado por sua freqüência, sua duração e seu caráter clínico. Em compensação, não podem ser equiparadas aos tipos fundamentais as formas mistas, das quais, conseqüentemente, deve haver não apenas uma, mas quatro (três que resultam da combinação dois a dois, e uma na qual se combinam os três tipos), posto que habitualmente um dos elementos retrocede muito. Nos casos recentes, as formas mistas desempenham um papel muito insignificante, mas aumentam numericamente com a idade, chegando talvez a constituir maioria entre os casos de longa duração. Contudo, não permitem uma sobrevida tão longa como a das formas puras, de sorte que é entre estas que se recrutam as doenças que duram maior número de anos.
Entre os casos observados na minha clínica e submetidos a estudo mais minucioso, preponderavam os recentes; em 75% deles o diagnóstico foi feito primeiramente por mim. Ainda assim, havia entre os pacientes alguns com vários anos de doença, sendo que, dos anteriormente diagnosticados, todos pertenciam a este grupo. (Apesar disso, os meus dados, com os seus numerosos estágios mais recentes e casos mais brandos, correspondem mais fielmente à distribuição natural do que, por exemplo, o material encontrado em um hospital de lepra.) Entre os meus 21 casos,1 encontravam-se os seguintes:
Formas puras.
lepra nervosa, sete, entre os quais quatro de lepra mutilante; lepra maculosa, cinco;
lepra tuberosa, três, além dos quais também um pertencente à clínica de um colega em São Paulo.
Formas mistas.
lepra mista tuberosa e nervosa, três, entre os quais por duas vezes preponderância nervosa e uma vez da forma tuberosa;
lepra mista maculosa e nervosa, três, sempre com preponderância da forma maculosa;
lepra mista maculosa e tuberosa, três.
Percebe-se que o tipo nervoso é representado dez vezes, o maculoso, nove, e o tuberoso somente três vezes, e que as formas puras estão para as mistas na proporção de dois para um.
Contrastando com esses, havia no Hospital de Leprosos do Rio, entre 48 casos, 14 de lepra nervosa, 14 de tuberosa, 12 de tuberosa e nervosa, sete de maculosa e um de maculosa e tuberosa. (Em São Paulo entre 20 casos, predominava a lepra nervosa, vindo em segundo lugar a tuberosa.) Tais discrepâncias quanto à freqüência dos diversos tipos se explicam menos pelo número exíguo e pelas diferenças locais do que pelo fato de que é vista nos hospitais maior proporção de casos aparentes e graves, enquanto a forma maculosa, observada tão freqüentemente na minha clínica, quase nenhum incômodo ocasiona. Por isso mesmo creio que se possa admitir para o Brasil, tal como acontece na Índia, nas Antilhas e na Guiana britânica, que a forma nervosa é a mais freqüente e a tuberosa, a mais rara. Entre as duas se coloca, segundo a minha experiência local, a forma maculosa.
Semiologia das diversas formas
Lepra tuberosa. Conformejá foi assinalado, é escassamente representada em meus dados a forma tuberosa pura, e por isso mesmo jamais tive o ensejo de observar o período de invasão dessa forma num paciente anteriormente são. Em compensação, vi, por várias vezes, surtos de disseminação e, de uma feita, os estágios primordiais da forma em apreço num doente que padecia de lepra nervosa. Como se sabe, a erupção dos nódulos é precedida por surtos febris de maior ou menor duração, que em vários dos meus casos apresentaram as características de febre contínua, mantida em cerca de 40o. A forma mais comum do quadro que se instala em seguida é a do eritema nodoso. Um autor, para descrever a ocorrência, chega a dizer que o eritema nodoso é precursor da lepra; na realidade, o aparecimento destejá constitui uma manifestação da doença. Aliás, o eritema nodoso da lepra se diferencia das formas comumente observadas, de acordo com o que pude observar até hoje, pelos seguintes caracteres: em primeiro lugar, pela ausência daquela progressiva mudança de cor, comparável à que se processa nas equimoses e que, por isso mesmo, terá motivado a designação de Dermatitis contusiformis; em segundo lugar, pela ausência da descamação tão freqüentemente observada na forma comum; e, em terceiro lugar, porque comumente uma parte, ainda que exígua, dos nódulos se converte em lepromas. Como no eritema nodoso, a anatomia patológica dos nódulos se reveste do maior interesse para a exata compreensão do processo leprótico. Comecei a tratar um doente que vinha exibindo febre há várias semanas. Havia manifestado sintomas de neurite leprosa cerca de dois anos antes; em ocasião recente, surgira uma afecção da laringe, posteriormente reconhecida como pericondrite laríngea lentamente progressiva. Também exibia perfuração do septo nasal de duração indeterminada. Não se notavam lepromas tegumentares, mas sim um surto recente de manchas infiltradas evocando o eritema nodoso e destituídas de qualquer semelhança com as manchas próprias da lepra maculosa. Pela feliz circunstância de que esse doente depositasse completa confiança em mim, pelo fato de que, de outra feita, eu lhe incisara um abscesso perinefrítico, tirando-o das condições precárias de saúde em que vivia para um pronto restabelecimento, não hesitou em manifestar com a maior boa vontade sua aquiescência ao meu desejo de praticar a extirpação de um dos seus nódulos, ainda recentes e bastante difusos, localizados no tórax. Assim foi feito, e a peça excisada abrangia todo o tecido celular subcutâneo. Já no ato cirúrgico despertava a atenção a grande quantidade de líquido seroso que escorria de uma área edematosa da pele. Ao exame da peça retirada, verificou-se que se constituía quase exclusivamente de tecido conjuntivo infiltrado de edema, e que o panículo adiposo exibia um intumescimento completamente gelatinoso. Sob grandes doses de salicilato de sódio, desapareceram em dois ou três dias todas as infiltrações firmes e, por sua vez, o corte logo cicatrizou.
Antes disso,já me havia impressionado o freqüentemente rápido desaparecimento dos nódulos lepróticos recentes, parecendo-me impossível que representassem uma tumefação constituída de células, como nos lepromas maduros. Nessa ocasião pude colher a comprovação daquele meu ponto de vista. De fato, o exame microscópico revelou apenas poucas celulas de granulação ao longo das pequenas artérias e capilares. A parede vascular se intumescia a ponto de se tornar irreconhecível pela presença de aglomerações fusiformes de células de granulação; em outros lugares a parede vascular ainda era claramente identificável. No eixo das aglomerações fusiformes, não raro espraiando-se até a margem destas e onde os vasos eram mais visíveis – em seu lúmen -, havia cordões compactos das aglomerações características dos organismos de forma semelhante à dos bacilos e que apresentavam as conhecidas reações à coloração. Além disso, havia, em alguns pontos, delgadas fileiras de leucócitos polinucleares, cujos núcleos se coravam mais intensamente que os das células de granulação. Aqui e acolá, fora dos cordões bacilares, ocorriam, isolados ou agrupados, os pequeninos grânulos redondos, cocóides, que eu descrevi como parte integrante do microrganismo da lepra. Somente em alguns pontos, de tamanho microscópico e mais próximos à pele, viam-se cordões mais largos onde se achavam massas de células e zoogléias assimetricamente dispostas, exibindo, assim, a estrutura do leproma maduro. A maior parte do tecido cutâneo e subcutâneo não mostrava, nem mesmo no interior do nódulo, proliferação celular, e a infiltração era evidentemente serosa, e não celular.
A localização dos micróbios da lepra dentro de vasos já foi observada antes, por exemplo, por Unna. Eu já conhecia aspectos muito semelhantes, vistos em suas preparações histopatológicas, assim como nas minhas. Mas até aqui essa localização vinha sendo considerada como rara ou excepcional, e os vasos linfáticos e espaços intercelulares, como sede principal dos micróbios; desta feita, eu tinha diante dos olhos os estágios primordiais do processo, e lá estavam os amontoados de bacilos da zoogléia no lúmen do vaso.
A hipótese anteriormente aventada para o eritema nodoso, segundo a qual haveria embolia dos vasos cutâneos, encontraria, assim, uma confirmação, mas com a diferença de que aqui se trata de embolias microbianas, e não simplesmente de fibrina. Os microrganismos proliferam dentro dos vasos, provavelmente com rapidez, e produzem a oclusão vascular parcial. Em razão da circulação venosa de retorno, ou porque a parede vascular que entra em proliferação pela irritação microbiana se torna mais permeável, há infiltração serosa, enquanto, pelo menos na lepra, não parece ocorrer uma diapedese abundante, capaz de formar infiltração celular. Em compensação, juntamente com a saída de serosidade dos vasos, sai também, pouco a pouco, uma quantidade de granulações cocóides, no que são favorecidas pelo seu tamanho exíguo. Enquanto as granulações crescem direta ou indiretamente para formar os chamados bacilos, vão sendo envolvidas por células de granulação procedentes presumivelmente das células conjuntivas fixas, e assim se origina um leproma. Em outros casos, a colonização aborta e não há multiplicação dos organismos, o exsudato sofre reabsorção, não se forma nódulo. Quando muito, um exame meticuloso permite perceber, no fundo, algumas endurações em filamentos, que provavelmente correspondem a proliferações perivasculares.
A febre precursora dessas manifestações se explica pela presença dos micróbios na corrente circulatória. A demora no aparecimento das embolias é possivelmente motivada pela necessidade de crescimento das zoogléias microbianas até atingirem tamanho capaz de obstruir vasos. Granulações e formas de Coccothrix esparsas conseguem, naturalmente, passar com facilidade pelos capilares, inclusive os mais tênues. Poder-se-ia encontrá-las circulando no sangue durante esta fase da doença, e istojá foi de fato assinalado. Acontece, porém, que semelhantes achados no sangue só terão valor se for possível excluir qualquer margem de erro. E tal exclusão não se impõe de pronto, no caso de se encontrarem apenas uma ou duas formas de bacilos em quantidade relativamente grande de sangue, apesar de sua coloração específica. Além disso, chegar-se-á facilmente a resultados negativos, que naturalmente são ainda menos significativos. Como, entretanto, nem mesmo quantidades imensas de micróbios contidos nos lepromas provocam febre, cada acesso de febre pressupõe a sua circulação. O mesmo deve ocorrer na sífilis, na qual a febre só se manifesta quando surge exantema generalizado. Talvez o mesmo raciocínio possa ser estendido à tuberculose, por mais improvável que isto possa parecer a priori, contanto que se possa excluir a infecção mista por germes associados, principalmente por cocos piogênicos.
Já nos habituamos a associar a idéia de bacilos da tuberculose em circulação aos conceitos de tuberculose miliar generalizada e de doença incurável. É bem possível que o façamos sem razão. Deixemos de lado as afirmações daqueles que pretendem ter visto a cura de casos de tuberculose miliar positivada pela hemocultura. Ainda assim, não é concebível uma artrite ou osteíte tuberculosa sem que a infecção tenha passado antes pela via sangüínea. Traumatismos sem solução de continuidade da pele, que porventura tenham precedido tal localização, explicam quando muito a razão por que os microrganismos vieram se assentar exatamente naquele lugar, quando, sem esses traumatismos, talvez tivessem desaparecido da corrente circulatória sem deixar vestígios. O próprio estacionamento dos microrganismos não acarreta invariavelmente o desaparecimento de um exantema específico, a julgar pelo exemplo da lepra aqui exposto. De mais a mais, não é nada improvável que os organismos da tuberculose possam, por sua vez, ocasionar manifestações do tipo do eritema nodoso. Desejaria chamar a atenção, neste particular, para um trabalho de Uffelmann (publicado no Deutsches Archiv für klin. Medizin, de 1872, p.480), intitulado “Sobre uma doença grave da infância, de localização cutânea,” no qual são descritos 14 casos de uma doença tegumentar que se diferencia do eritema nodoso típico pelos mesmos critérios aqui apresentados para o quadro leproso correspondente. A lepra estava, é evidente, fora de cogitação nos casos de Uffelmann. Em compensação, havia tuberculose na família de todos os seus doentes, excetuando dois. Em três doentes, a tuberculose pôde ser demonstrada posteriormente. O citado autor relaciona, portanto, o quadro por ele descrito com a tuberculose, nexo reforçado pelo comprometimento acentuado do estado geral e pelo restabelecimento sempre dificultoso, apesar de a febre ser baixa. Os nódulos vistos por aquele autor davam a impressão de infartos, motivo pelo qual não será por demais ousado supor que se tratava, de fato, de embolias de microrganismos da tuberculose ou de embolias de massas encerrando esses microrganismos.
O próprio eritema nodoso típico poderia ser compreendido como embolia micótica, os microrganismos em causa são simplesmente outros, é claro. Não pretendo, porém, prosseguir aqui em considerações sobre o assunto.
Já assinalei a possibilidade de tornarem a desaparecer os nódulos embolísmicos, quer na sua totalidade, quer em grande parte. Via de regra, porém, subsistem alguns, minguando, a princípio, pela reabsorção do edema para, em seguida, retomarem seu crescimento; nesta fase parecem se erguer gradativamente da profundidade do tecido celular subcutâneo em direção à superfície da pele. Só raramente permanecem adstritos ao tecido subcutâneo, ajulgar pela palpação. Por vezes, sentem-se também nódulos análogos em volta dos tendões superficiais, sobre as aponeuroses e nos interstícios dos músculos. Acontece, igualmente, que se manifeste súbito intumescimento de um gânglio linfático isolado, sem que tivesse ocorrido alteração na área correspondente ao gânglio afetado. No caso da eclosão de nódulos esparsos, e com mais forte razão quando aparece nódulo único, o processo poderá ser apirético. Nas grandes erupções, a febre persiste geralmente por algum tempo. O desenvolvimento dos nódulos é às vezes acompanhado de prurido.
Não pretendo fazer apreciação mais detida sobre a distribuição regional dos nódulos lepróticos,já descrita muitas vezes. A determinação dos locaisjustifica-se pelo fato de, em muitos lugares, malograr uma colonização dos micróbios. Certa predileção por pontos onde a pele não esteja sujeita a tensão encontra explicação na maior possibilidade de estagnação nesses pontos do líquido carregado de microrganismos, granulosos ou em cadeias bacilares. Essa estase relativa do líquido permitiria a aderência dos microrganismos, enquanto noutros lugares seriam prontamente levados adiante.
Quanto à sua forma, os lepromas permitem o reconhecimento de dois tipos. O primeiro, muito mais freqüente no tronco e nos membros, é constituído por nódulos arredondados ou ovais, de coloração róseo-amarelada a vermelho-pardacenta nos brancos e com a cor do próprio tegumento nos negros e mestiços, e cujo tamanho vai do de uma lentilha ao de uma moeda de um marco (24 mm.), mas que habitualmente são do tamanho de uma ervilha ou de um feijão. A configuração pode ser plana ou hemisférica, evocando ora a de uma pápula de líquen, ora a de uma flictena de frieira. Não raro cresce até uma proeminência acentuada sobre o plano da pele circunjacente, chegando mesmo a simular um fibroma pediculado, conforme pude ver em São Paulo no rosto e nas orelhas de um negro, nos quais alcançavam o tamanho de uma noz. A consistência é sempre bastante firme, em virtude da forte tensão interna, e comparável à de um cisto sebáceo distendido ou à de um fibroma de grau de dureza apenas relativo.
Na cabeça, onde tal forma ocorre isolada ou associada a outra, sua localização principal abrange a eminência das rugas frontais, a arcada superciliar, as asas do nariz, o septo, assim como as bordas livres do pavilhão da orelha, o lóbulo, o trago e o antítrago, e mais raramente outros pontos. Apresentam-se isolados ou enfileirados, com cada elemento repousando separadamente em base própria; raramente se tocam, para então se achatarem reciprocamente. São muito evidentes e característicos mesmo quando pequenos, e denunciam logo que seus portadores são leprosos. Fortemente desenvolvidos, emprestam à fisionomia uma expressão que chama a atenção e ao mesmo tempo repele, de tão estranha e disforme.
O segundo tipo é raramente visto fora da face e das orelhas, limitando-se, neste caso, à face dorsal dos dedos das mãos e dos pés. Aí se manifesta como saliência difusa, achatada como um coxim e simulando, à palpação, uma frieira; desenvolve-se principalmente na falange proximal, e constitui uma manifestação bastante característica da lepra.
No rosto, onde ocorre, seja isolada, seja prevalecendo sobre a primeira, esta variedade determina uma infiltração em superfície de certas partes da pele, nas quais o pregueamento normal se torna hipertrófico, sem formação de lepromas distintos. Sua consistência não adquire maior firmeza em razão da escassa tensão aí reinante, assemelhando-se mais à de um lipoma ou à de um fibroma mole. Daí resulta que a tentativa de uma delimitação, ainda que aproximada, por meio da palpação, esbarra em dificuldade considerável. Nos seus primórdios, tal forma pouco se evidencia, sendo reconhecida com certa dificuldade, principalmente nas raças de cor. Assim é que glândulas sebáceas hipertrofiadas localizadas na pele da fronte podem simulá-la, conforme tive o ensejo de verificar. Nas orelhas, esta forma ocasiona considerável aumento de volume, difuso, sem com isto determinar grande modificação da forma, exceto no caso do lóbulo. Este pode aparentar um tumor grosso e volumoso, ainda que mole e perfeitamente liso, forçado para baixo pelo seu peso, ficando, portanto, bem destacado do resto da orelha, como se aí estivesse pendurado por meio de um pedículo. Da manifestação em apreço resulta uma face de expressão singular, algo brejeira como a de um fauno, tal como a que certos tiposjá maduros e bem nutridos de bons vivants exibem. Só com a progressiva transformação das pregas cutâneas em lobos pendentes elefânticos, de proporções semelhantes às encontradas na calazodermia ou cútis pendular, resulta uma transformação fisionômica quase tão impressionante, disforme e repelente quanto a do primeiro tipo. Aliás, não raro as duas formas se associam, com nódulos proeminentes brotando sobre a infiltração difusa.
Em ambas é freqüente a queda parcial ou total dos supercílios. Simultaneamente ao desaparecimento da motilidade mímica espontânea, a fisionomia vai perdendo o seu cunho individual, transformando-se numa máscara, variável apenas consoante a forma e o grau de evolução da doença.
Quanto à duração, seja assinalado que jamais pude observar um pronto desaparecimento de lepromas cutâneosjá constituídos, ao contrário do que foi descrito para os nódulos embólicos de localização mais propriamente subcutânea. Efetivamente, os lepromas, especialmente os da forma pura, caracterizam-se antes pela sua persistência. Só uma vez me foi dado verificar uma fusão purulenta, sobrevinda no decurso de embolia recente e presumivelmente causada por infecção mista oriunda de úlcera ocorrida em uma mucosa. A evolução natural dos lepromas não os leva à exulceração; em compensação, ulceram com facilidade quando expostos a influências traumatizantes, ainda que exíguas, como, por exemplo, nas fricções com ungüentos contendo ácido salicílico ou outros medicamentos que atacam a camada córnea. Mas nesse caso avultam os estafilococos e outros microrganismos piogênicos na secreção; o leproma, facilmente levado à desagregação, se afigura excelente meio de cultura para esses microrganismos.
Bem diverso é o destino dos nódulos localizados nas mucosas, nos quais a ulceração ocorre com regularidade e por vezes muito precocemente. No nariz resistem por mais tempo aqueles que estão mais próximos das fossas nasais e, na boca, os assestados na língua. As vezes, os nódulos das mucosas exulceram de início, enquanto constituem apenas pápulas planas do tamanho de placas mucosas. Nesse caso, encontra-se, por exemplo, no septo nasal, uma simples crosta, mais sanguinolenta do que purulenta, nivelada com a mucosa e tendo muitas vezes uma escavaçãojá bem profunda. Aliás, o septo nasal é perfurado com uma facilidade extraordinária, o que poderá ocorrer até mesmo nos primórdios da doença. Incontestavelmente, outros microrganismos, que abundam nas cavidades ligadas ao meio ambiente, desempenham um papel preponderante na desagregação dos lepromas das mucosas. Não constitui fato de todo excepcional a localização dos nódulos e ulcerações exclusivamente nas mucosas. Por isso mesmo, creio que esses processos destrutivos podem ser incluídos na forma tuberosa, ainda que a ausência dos lepromas externos, observada em um ou outro caso, pareça estar em contradição com essa interpretação.
Havendo reabsorção dos nódulos, espontaneamente ou como resultado do tratamento, a camada epidérmica, agora bastante ampla, dispõe-se em pregas finas ou grossas, denunciando por muito tempo a localização. Por vezes, a epiderme ostenta uma aparência delgada, atrófica. A reabsorção de lepromas antigos ocasiona facilmente a ocorrência de novo surto de embolias.
Para os adeptos do contágio, deverão se afigurar mais perigosas, a meu ver, essas formas tuberosas associadas à ulceração das mucosas. Na secreção das úlceras, tal como nos lepromas tegumentares exulcerados, ocorrem os micróbios específicos em extrema abundância; durante cada episódio febril estarão os agentes específicos circulando no sangue. É possível que observações diversas feitas em diferentes lugares sofram em parte a influência da predominância regional de outras formas da doença. Contudo, o conjunto das observações mostra que nem mesmo a esta forma da doença se deve atribuir uma transmissibilidade muito grande. Não pretendo me estender sobre o decurso e o prognóstico da forma tuberosa, observando apenas que a influência benéfica de uma mudança de clima, assinalada por outros, parece-me altamente problemática, tanto nesta como nas demais formas. Nenhum argumento teórico racional poderá ser aduzido em favor de tal influência e, no terreno da prática, minha experiência até aqui, se bem que restrita, depõe decididamente contra semelhante suposição. Nem na Europa, nem no Brasil, cheguei a observar uma cura espontânea da forma tuberosa; tampouco recebi qualquer comunicação nesse sentido por parte de observadores dignos de crédito.
Dificuldades diagnósticas não ocorrem na forma tuberosa, e, de qualquer maneira, a possibilidade de erro de diagnóstico fica excluída, desde que se recorra ao microscópio. No caso de lesões tegumentares, nem o quadro macroscópico nem o microscópico dão margem a uma possibilidade de confusão com a tuberculose ou, em particular, com o lúpus.
Estudos sobre a lepra, segundo observações realizadas no Brasil
Lepra nervosa. A lepra dos nervos oferece maior interesse, não só quanto à sua marcha e à sua eclosão, como também quanto ao diagnóstico, pelo fato de que, com muito maior facilidade do que a forma tuberosa, poderá passar despercebida ou ter diagnóstico errôneo.
Como forma mais simples e mais favorável, deve ser considerada aquela em que os sintomas se apresentam limitados a uma região restrita, como, por exemplo, à porção distal de um membro, assim se mantendo por anos a fio. Nesses casos surgem inicialmente parestesias de uma área circunscrita, tal como o dorso do pé, comparáveis a alfinetadas ou a formigamento, ou então sensações particulares como a do contato com uma teia de aranha ou com penugem macia. Também ocorre o prurido propriamente dito. Em dois casos havia inicialmente a presença de uma mácula rósea, com pigmentação difusa ou punctiforme; por isso mesmo classifiquei ambos como forma mista. Entretanto, ao contrário do que ocorre na lepra maculosa típica, essas manchas desaparecem prontamente, deixando apenas pequenos restos pigmentares e sem crescimento para a periferia. No ponto afetado pelas parestesias instala-se subseqüentemente a analgesia, a qual não exclui de todo a percepção de um forte contato, muito embora este só seja percebido indistintamente e sem dor. Surgem, em seguida, dores lancinantes no nervo aferente. Revela-se também espontaneamente que mesmo uma pressão moderada ou um pequeno golpe sobre determinados pontos, correspondentes ao percurso superficial do nervo, já provocam dores intensas que se irradiam para a periferia. Não raro a palpação permite demonstrar espessamentos difusos ou nodulares do nervo. Em todos esses casos, encontrei gânglios linfáticos com pouco ou nenhum aumento de volume.
Os dois casos assinalados eram muito semelhantes entre si, havendo em ambos um acometimento da porção terminal do nervo peroneu profundo, também denominado nervus tibialisanticus. Em ambos, as afecções não se expandiram no decorrer de três anos, tendo havido, ao contrário, melhoras indiscutíveis, com redução das manchas a pequenos remanescentes pigmentados e com diminuição da área de analgesia e das alterações perceptíveis pela palpação do nervo peroneu profundo. Em um desses casos, tinha havido tratamento com ungüento pirogálico a 10%, três anos antes; no outro, havia sido utilizada a tintura de iodo. A luz da minha experiência anterior, e tendo em vista que o emprego desses medicamentos não durara muito, creio que a melhora não pode ser atribuída exclusivamente ao tratamento. Parece, ao contrário, que casos como esses possam sofrer cura espontânea, embora sem restabelecimento integral, não sendo todavia possível averiguar com segurança o momento exato em que se estabilizou o processo curativo. Parece, ao contrário, que casos como esses possam caminhar para a cura espontânea, geralmente com defeito residual, raramente completa. O momento exato em que se completou tal cura dificilmente poderá ser estabelecido, tal como acontece na tuberculose dos ápices pulmonares.
Meus dois pacientes, conquanto pródigos em queixas e reclamações, jamais suspeitaram da natureza do seu mal. Atualmente apresentam desembaraço quase completo na locomoção, e podem se dedicar tranqüilamente às suas respectivas ocupações. Assim sendo, só tenho a me congratular por não me haver precipitado em pronunciar o temeroso veredicto, capaz de pôr em perigo a situação social e o destino da família e, possivelmente, de levar os próprios doentes ao desespero.
Um terceiro caso, também pertencente a este grupo e igualmente com observação iniciada há cerca de três anos, é o de umjovem de cerca de 16 anos. Este sofrera um acidente com um golpe de machadinha que ocasionou corte longitudinal completo da falange ungueal de um dos dedos medianos do pé. O plano de separação se achava escancarado e sem epitelização, e via-se ao lado das superfícies ulcerosas uma hipertrofia papilar que lembrava condilomas planos, associada a intumescimento e espessamento difusos como na elefantíase. Um quadro como esse por si sójá evocaria a lepra dos nervos, especialmente pela alteração tegumentar comumente observada na elefantíase leprosa; a suspeita se fortalecia pela acentuada anestesia do dedo lesado, em toda a sua extensão, bem como de ambos os vizinhos. Assim se explica o retardamento da cicatrização, para o qual concorria também o fato de o paciente andar sempre descalço. Todavia, até mesmo neste caso, parece que a função locomotora não piorou no decorrer dos anos, e sim melhorou nitidamente.
Para os leitores quejulgarem o diagnóstico de lepra insuficientemente fundamentado pelas alterações descritas no último caso, pretendo relatar outro caso muito semelhante, porém de localização menos restrita. Tratava-se da mulher de um colono alemão, que sofria há muito de uma elefantíase do dedo grande do pé esquerdo. Havia uma úlcera côncava, do tamanho de uma avelã, comparável às que resultam da desagregação de um encondroma ou de uma goma, situada na face plantar da falange proximal. Na pele que cobria esse dedo e na porção correspondente do metatarso havia a já descrita proliferação papilar. O soalho da úlcera e a pele circunvizinha exibiam acentuada hipoestesia, o mesmo acontecendo em vários dedos dos demais membros. A tudo isto se acrescentava uma infiltração plana das pregas da fronte e da face dorsal das falanges proximais dos dedos, de sorte que nenhuma dúvida poderia persistir quanto ao diagnóstico.
Um tratamento bastante longo não conseguiu promover a cicatrização da úlcera. Por esse motivo, e pelo fato de o dedo do pé elefântico impedi-la de andar, atendi ao desejo da paciente, procedendo à amputação desse dedo,junto com o osso metatarsiano, mediante uma incisão longitudinal no dorso, que não possibilitou, porém, a excisão completa da pele alterada, daí resultando que, após cicatrização inicial, formou-se ulteriormente uma úlcera longitudinal. Essa úlcera, por sua localização dorsal, não estorvava a marcha, de modo que, por fim, tanto a forma como a função lucraram extraordinariamente. Ao exame, o osso metatarsiano revelou acentuada osteoporose, enquanto os ossos das falanges se mostravam muito aumentados e espessados. Não me foi possível evidenciar os microrganismos específicos, nem na pele, por sua vez muito espessada, nem no soalho da úlcera.
Casos como os dois primeiramente assinalados fazem pensar que aqui talvez se esteja em presença da lesão primária, e o terceiro faz presumir que a úlcera tenha constituído a porta de entrada da infecção. Para provar tal hipótese falta, todavia, a demonstração dos microrganismos específicos no ponto lesado. Mas é certamente um fato impressionante que a primeira localização da lepra dos nervos se efetue quase sempre nas partes do corpo que se mantêm descobertas e expostas às picadas de insetos e outros traumatismos.
A forma mais freqüente da lepra nervosa se localiza distalmente nos membros e, via de regra, de modo bastante simétrico, em todos os quatro. Uma anestesia de alto grau geralmente se limita a regiões bastante circunscritas e nem sempre determina maiores incômodos, ao passo que intensas dores lancinantes nos membros constituem motivo freqüente de queixas. Não é raro que os gânglios linfáticos apresentem volume aumentado, até mesmo na ausência de qualquer ulceração, fato importante para o diagnóstico. Certas vezes, tal aumento de volume chega a constituir grossas massas de conformação tuberosa. Em compensação, este sintoma pode ser mínimo ou inexistente, mesmo em casos acentuados da doença, sendo essa ausência mais freqüente na forma tuberosa. Os membros acometidos mostram alterações superficiais multiformes: cianose, pitiríase furfurácea, ictiose, hipertrofia das papilas com ou sem espessamento queratético, mais raramente algumas áreas de glossy skin. A elefantíase é mais freqüente nos membros inferiores; só uma vez a vi simetricamente em ambas as mãos e metades distais dos membros superiores. Fenômenos de estase encontram explicação amiúde na compressão venosa ou na aderência de nervos escleróticos às veias que os acompanham, conforme pude verificar diretamente certa vez. Em outros casos, poderão ser atribuídos às alterações dos gânglios linfáticos, enquanto as ulcerações de longa duração conduzem de preferência a proliferações dos tecidos mais circunscritos, à maneira da elefantíase. Um sintoma extremamente característico, embora ausente na maioria dos casos, é o pênfigo leproso. As eflorescências, variando habitualmente entre o tamanho das moedas menores e o das maiores, surgem por vezes precocemente e em abundância; em outros casos, apenas durante longo tempo de observação ocorrem vesículas esparsas. O fundo dessas lesões exibe, por assim dizer, sempre alterações da inervação. Em compensação, não é de esperar a presença dos chamados bacilos da lepra no conteúdo das vesículas. Após a regressão, o pênfigo deixa comumente cicatrizes, especialmente nos negros, aos quais cabe como peculiaridade racial uma propensão para a formação de quelóides cicatriciais. Tais espessamentos cicatriciais podem adquirir significação diagnóstica, sempre que estejam localizados em pontos característicos, por exemplo, sobre os braços propriamente ditos, na falange proximal dos dedos etc.
O sintoma clinicamente mais significativo da lepra nervosa são os processos ulcerativos, capazes, não raro, de atingir tamanha extensão e desfiguração que chegam a ser diferenciados em tipo próprio da doença, o da lepra mutilante. A localização predileta é a porção distal dos membros, o que indica o papel que o fator traumatismo desempenha habitualmente na sua origem. No tronco, apenas uma vez vi ulcerações de alguma amplitude e de contornos sinuosos sobre base anestésica.
Além das vesículas de pênfigo, que são seguidas, em geral, de ulcerações apenas superficiais, existem dois processos ulcerosos ativos principais capazes de conduzir à mutilação.
O primeiro desses processos não se distingue dos panarícios habituais nem por sua natureza e modo de formação, nem por sua localização. Ele apenas é abandonado com maior freqüência, pois o estímulo da dor, normalmente tão intenso, fica mais ou menos suprimido, e leva assim, com muita facilidade, à periostite e tendinite com necrose ou à supuração articular com os conhecidos efeitos sobre forma e função. Apesar de o processo local atingir com freqüência grande intensidade, evoluindo com significativas manifestações purulentas ou gangrenosas, só raramente sobrevêm infecções generalizadas, quase não excedendo em número as ocorridas em circunstâncias usuais. Estes e outros casos igualmente negligenciados me deixaram com a impressão de que a delimitação local ou a progressão do processo são antes determinadas pelo tipo de infecção do que pelo nosso tratamento, sem que se possa negar que uma terapêutica correta proporcione um decurso mais rápido e mais favorável da afecção local.
As seqüelas residuais de semelhantes panarícios, de intensidade variável, poderão ser vistas, não raro, em nada menos de meia dúzia de dedos, das mãos e dos pés, de uma só pessoa. Por isso mesmo, tamanha multiplicidade despertará obrigatoriamente a idéia de lepra. Havendo abolição da sensibilidade nas partes acometidas e nas porções vizinhas, o diagnóstico aí encontrará corroboração, mesmo na ausência momentânea de outros sintomas.
O segundo processo que leva à mutilação é o mal perfurante. Nesse, há ulcerações geralmente arredondadas, resultantes de desgaste paulatino, que acometem quase indistintamente as partes moles e os tecidos mais duros e possuem soalho que se aprofunda à maneira de uma lente côncava ou de um espelho oco. Essas ulcerações ocorrem quase tão freqüentemente na palma da mão quanto na planta do pé. Devem alertar sempre para a descoberta de anestesia leprosa, máxime quando encontradas na palma da mão. Também ocorrem úlceras com os mesmos caracteres, se bem que de menor tamanho, nos dedos das mãos e dos pés. Daí podem resultar, por vezes, o destacamento e a perda de alguns dedos e até mesmo de todos. Em compensação, é muito raro que se destaquem trechos maiores de um membro. É também excepcional que ocorra cicatrização dessas úlceras, nas circunstâncias habituais. A ulceração poderá se manifestar no local de uma vesícula de pênfigo, mas trata-se de eventualidade mais rara.
Outra espécie de mutilação, evoluindo sem ulceração, cabe, segundo minha experiência, mais à forma mista. Trata-se de aderências e retrações responsáveis por ancilose e reabsorção de partes isoladas (ossos, tendões e aponeuroses); algumas vezes havia sido possível verificar, em tais casos, tumefação e abaulamento pregressos. Semelhante espessamento era visível em um dos meus doentes, cujo dedo exibia a aparência da spina ventosa, parecendo-me que daí possa resultar a reabsorção intersticial da falange, tal como acontece também no lúpus. Nos tendões e aponeuroses, por sua vez, tive a oportunidade de palpar espessamentos tuberosos; como já mencionado, dificilmente se poderá errar em considerar esses espessamentos como granulomas microbianos específicos da lepra. Não me foi possível verificar com absoluta certeza se também ocorrem atrofias em base apenas neurítica, sem tumor, mas estou propenso a admiti-lo. Nos músculos a atrofia é muitas vezes acentuada, mas aqui desempenham um papel de modo algum desprezível a falta de utilização do músculo e a distrofia generalizada denotada também pela anemia.
Sempre que se associem de modo mais ou menos completo e íntimo todos esses processos destrutivos, resultam, por fim, deformidades extremamente desfiguradoras, acompanhadas de alterações funcionais do mais alto grau, capazes de levar o doente a um estado de transfiguração e miséria não inferior ao das fases mais avançadas da lepra tuberosa, sem que com isto a vida corra perigo, a não ser pela superveniência de uma infecção associada.
Parece indubitável que as manifestações da lepra mutilante possam ser favorecidas ou obstadas pelas circunstâncias externas, mas, a despeito disto, esta forma da doença atinge também pleno desenvolvimento em pessoas cujo modo de vida exclui uma freqüência apreciável de influências traumáticas.
Lepra maculosa. A forma maculosa tem ligações muito mais estreitas com a lepra nervosa do que a forma tuberosa. Poderia mesmo ser interpretada como simples modalidade especial daquela, caracterizada por sua localização. Entretanto, a ocorrência freqüente da lepra maculosa como afecção aparentemente autônoma assegura-lhe, sem dúvida, o direito a uma situação de destaque e a uma discussão em separado. Nos casos puros, não há o espessamento palpável dos nervos cutâneos, que, em compensação,já me foi dado encontrar na forma mista tuberosa e nervosa, embora como achado reconhecidamente excepcional. Falta, igualmente, a tendência para a formação de vesículas e de ulcerações, tendo a afecção, em seu conjunto, caráter benigno. Tanto que conheço um caso, que dura há pelo menos seis anos e acomete atualmente a metade da superfície corporal, sem maior gravame para o paciente, um homem de compleição física hercúlea, que continua entregue aos afazeres da sua profissão de carroceiro. Só a presença de complicações, aliás bastante freqüentes, demonstra o verdadeiro caráter do mal, ensejando manifestações de maior gravidade.
O desenvolvimento do processo obedece habitualmente à seriação descrita a seguir.
Disseminadas pelo corpo, surgem manchas hiperêmicas, de cor vermelha nos brancos e obviamente escuras nos pretos, mas tendo grau de vasodilatação variável com as circunstâncias, de sorte que desaparecem sob compressão digital. Sua distribuição é por vezes aproximadamente simétrica, sem quejamais alcancem uma simetria rigorosa. Ora predominam no tronco, ora nas extremidades; ora são dorsais, ora ventrais. Já as vi atingir mais de três centímetros de diâmetro no rosto, sem alteração de seus caracteres. Entretanto, podem adquirir uma pigmentação, quer difusa, quer dispersa em pequeninos focos,já não se esbatendo de todo pela pressão do dedo. Parece que, alcançada esta fase, podem desaparecer, deixando uma pigmentação residual lembrando a do cloasma, mas esse desaparecimento não é comum. Muito ao contrário, constitui-se em seguida uma orla pouco elevada, habitualmente com um ou dois dedos transversos de largura, que avança em sentido centrífugo, para constituir figuras circinadas. Por dentro, a pele ora retoma sua configuração normal, completa ou incompletamente, ora caminha para a atrofia e despigmentação mais ou menos acentuadas. Nas raças fortemente pigmentadas essa despigmentação não costuma ser total, permanecendo a pele com uma tonalidade pardacenta. No negro, as manchas ostentam o matiz da pele de um mestiço claro; neste, o da pele de um branco de cabelos pretos e moreno. No branco, a pele lesada, à medida que a alteração aumenta, tende a atingir cor aproximada à da cicatriz de uma vacinação antiga. Onde há cabelos ou pêlos, nunca os vi ficarem despigmentados, ao contrário do que ocorre, conquanto inconstantemente, na vitiligem, afecção esta de modo algum rara no Brasil. As manchas se apresentam mais esbatidas quando localizadas no antebraço, na perna, na face dorsal das mãos e dos pés, ou quando daí se aproximam. Nessas regiões, são reconhecíveis por uma leve escamação ou por uma ligeira pigmentação marginal formando orla.
A princípio, a presença das manchas se assinala por certo grau de dor espontânea, ao mesmo tempo que se conserva a sensibilidade. Havendo formação consecutiva de uma orla ligeiramente elevada, o fenômeno só se observa na zona marginal, enquanto o centro exibe comumente anestesia ou analgesia. Existem, porém, velhas manchas hipocrômicas, que conservam sensibilidade normal. Assim, o doente preto aqui mencionado ostentava uma mancha cor de café-com-leite espalhando-se pela metade da face e do pescoço, sem que acusasse a menor diminuição da sensibilidade, enquanto outros podem estar tão anestésicos que não chegam a perceber quando se lhes pratica a excisão de um fragmento para exame, colhido, por exemplo, na pele do dorso. Por vezes o próprio paciente nota a existência de anidrose na pele acometida.
Enquanto são vistas margens elevadas, a mancha prossegue na sua expansão, ao passo que o desaparecimento total da orla significa o estacionamento do processo.
Só considero forma maculosa pura aquela em que as alterações da sensibilidade se acham circunscritas às máculas. Esta representa uma doença muito leve, capaz de passar despercebida pelo próprio doente. É o que terá acontecido no caso de um dos meus pacientes, que indicava as lesões como recentes, enquanto a oportunidade de se infectar remontava a anos. Quanto a mim, não me seduz a idéia de um período de incubação livre de sintomas que tenha perdurado por anos e anos a fio; tampouco conheço provas convincentes de que isso realmente ocorra.
A lepra maculosa pura não exclui a presença de gânglios linfáticos aumentados de tamanho e até mesmo de grosso volume. Contudo, só observei essa alteração em casos antigos; nos recentes, estava invariavelmente ausente.
Nos freqüentes casos em que há associação da forma em apreço com a lepra nervosa, as áreas de abolição da sensibilidade são observadas em pontos livres de manchas, ocorrendo no tronco e principalmente nas porções distais dos membros. A isso se acrescentam o pênfigo e as úlceras, que afligem algo mais os doentes. Não obstante, até mesmo os casos deste grupo se mostraram relativamente benignos. Um deles quase não experimentou pioras no decurso de três anos, notando-se que o pênfigo, a princípio múltiplo, determina atualmente apenas lesões esparsas e intermitentes. Uma outra teve melhoras tão acentuadas, de dois anos para cá, que hoje só se pode estabelecer o diagnóstico mediante exame atento das manifestações residuais. Com efeito, o pênfigo, e com ele todas as manifestações novas, está ausente há anos, as máculas já não apresentam anestesia, tendo perdido a sua nitidez em virtude de regeneração pigmentar; por fim, a doente viu diminuída a anestesia das pontas dos dedos, de modo que agora pode atender melhor às suas ocupações.
Vi lepromas tuberosos raramente como complicação, e sempre mais isolados.
A lepra maculosa exibe semelhanças com a psoríase circinada (psoriasis gyrata), com a tinha tonsurante e com diversas outras afecções de propagação centrífuga e de natureza presumivelmente micótica. A lepra maculosa, ainda que recente, distingue-se da vitiligem adquirida pela orla elevada, enquanto os casos antigos muito se parecem com as despigmentações malhadas, sejam congênitas ou adquiridas. Dificilmente haverá confusão, porém, se todos os momentos forem considerados. Ao que tudo indica, não se pode contar com a averiguação de microrganismos para firmar diagnóstico diferencial; eu, pelo menos, não consegui encontrar os microrganismos em um fragmento da orla marginal proeminente. Além disso, as máculas parecem acometer regiões cutâneas em que os microrganismos não conseguem proliferar, pois essas regiões permanecem sempre livres de lepromas.
Terapêutica da lepra
A lepra, como todas as doenças dificilmente curáveis, constitui objeto de exploração para tudo quanto há em matéria de remédios secretos, entre os quais avultam naturalmente os chamados depurativos do sangue. Já que nos países de civilização mais adiantada não se conseguiu até hoje separar reclame e embuste, não será motivo de surpresa que, também no Brasil, osjornais se encham de anúncios de alguma beberagem apregoada como descoberta dos índios ou então como derivada de ervas medicinais silvestres, por outro motivo qualquer, sendo invariavelmente prometida ao seu consumidor a cura infalível da lepra e de todas as doenças da pele. Abstenho-me de discuti-los, visto que nenhum deles conseguiu sequer aceitação por parte dos leigos.
Antes de iniciar a apreciação dos processos terapêuticos utilizados por médicos, desejaria relembrar as diversas observações acima transcritas, que demonstram que o estacionamento da doença, as melhoras e até mesmo a cura das fases iniciais das formas maculosa e nervosa não constituem grande exceção. Daí decorre que, com qualquer recurso terapêutico, utilizado repetidas vezes, haverá sucessos aparentes, caso se esteja disposto a atribuir qualquer melhora à terapêutica. Com algum senso crítico, porém, será fácil separar as ocorrências espontâneas dos resultados de uma terapêutica apropriada, que se manifestam muito mais rapidamente.
Nossos medicamentos mais novos, freqüentemente muito eficazes contra outras afecções, como o ácido carbólico, o creosoto, o sublimado, o iodeto de potássio, o condurango, a estricnina etc., apesar de alguns êxitos aparentes, não conseguiram sustentar um lugar legítimo no tratamento da lepra, o que não depõe a seu favor. Todos esses remédios tiveram ampla oportunidade de demonstrar o seu valor também aqui no Brasil, mas não foram aprovados, pelo menos na forma e na dosagem usuais. Atualmente, tem-se dado muito valor à estricnina em Nova York, onde se observam principalmente as formas nervosas; entretanto,já mostrei suficientemente, baseado no meu material, que os casos mais leves freqüentemente experimentam melhoras espontâneas, e até agora não se tem comunicado a ocorrência de curas rápidas. Na melhor hipótese poderíamos colocar a estricnina ao lado dos narcóticos, da eletricidade e da tração dos nervos, no papel de medicação com efeito apenas sobre os sintomas, sem qualquer efeito sobre o processo infeccioso. Eu própriojá utilizei durante bastante tempo esse medicamento nas maiores doses permitidas, e muito me alivia que a experiência assim adquirida me dispense daqui por diante da obrigação de propinar ao doente medicamento de ação tão imprevisível e perigosa.
Um remédio que teve outrora ótima reputação no tratamento da lepra tuberosa, e que seria fácil de obter no Brasil, é o óleo de caju, também chamado Cardol (de Anacardium occidentale), mas parece ter caído outra vez no esquecimento. A sorte das diversas drogas resinoso-oleosas parece não ter sido melhor.
Acredita-se que recentemente se tenham obtido bons resultados com o tanino no Rio de Janeiro e em Portugal. Partiu-se da idéia de que ele atua como ácido pirogálico. Não posso oferecer aos leitores uma comprovação da sua eficácia, pois também eu careço de tal prova.
O ácido ginocárdico é um dos meios medicamentosos mais recentes utilizado pelos médicos. Silva Araújo terçou lanças a favor dele; infelizmente, de acordo com o mau vezo reinante, ele o fez publicando um artigo destinado aos leigos nos diários de maior circulação. Promete, a seguir, uma publicação mais pormenorizada dedicada à classe médica. Contudo, Azevedo Lima não conseguiu evidenciar no remédio nenhuma atuação digna de nota, ainda que amplamente empregado. Diga-se de passagem que trata-se de medicamento muito caro.
Dos remédios utilizados por via externa, devo considerar como decididamente os mais eficazes o pirogalol, sistematicamente utilizado por Unna, e a crisarobina que ele introduziu na terapêutica da lepra. Pude observar a eficácia desses medicamentos em três dos casos de Unna e em seis dos meus; também recebi depoimentos favoráveis procedentes de três outras fontes. Ninguém os considerou completamente ineficazes, havendo quanto a isto concordância geral; resta saber, porém, se com eles se poderá conseguir uma cura completa. Muita influência caberá naturalmente à energia e perseverança no seu emprego, o que naturalmente depende muito da duração e do vigor da aplicação. A experiência que tenho a esse respeito é a seguinte:
Ambas as substâncias têm atuação análoga, podendo ser utilizadas cada uma de per si ou concomitantemente, quer em emprego associado nas mesmas partes do corpo, quer sucessivamente em diversas regiões. Podem ser aplicadas durante largo prazo, sendo cada vez mais bem toleradas com o correr do tempo, de tal sorte que se pode recorrer a um teor progressivamente mais forte. O efeito é principalmente local, sem que se lhes possa abrigar uma ação a distância. Minhas verificações sobre os efeitos nas diversas localizações da lepra são relatadas a seguir.
Lepromas mais antigos, de tamanho mediano, são levados com alguma segurança ao desaparecimento no prazo de dois a três meses, havendo reabsorção sem destruição da camada epitelial. Contudo, algum cuidado é necessário quando se aplicam ungüentos. Onde a pele estava muito distendida, a superfície ficará pregueada, o que poderá ser corrigido pela excisão do excesso. Havendo tratamento continuado durante um tempo suficiente, pouca tendência haverá para a recidiva no mesmo local. Em compensação, ocorrem facilmente, com o desaparecimento local, novos nódulos propagados por embolia, caso não se possa preveni-la com a aplicação ampla da pomada. De qualquer maneira, pode -se obstar seu crescimento.
Depois de extensas aplicações continuadas de ungüento, surgem emagrecimento e anemia; ainda não se sabe se resultam da reabsorção dos lepromas ou de um efeito medicamentoso direto. Esses resultados poderão impor a interrupção temporária das aplicações. A reabsorção dos lepromas é indubitavelmente um efeito medicamentoso, não podendo ser atribuído à ação do tempo.
As dores lancinantes nos membros são lenta, mas incontestavelmente, influenciadas pelos tratamentos de aplicação generalizada dos ungüentos. A anestesia sofre redução, regridem os edemas, e os nódulos palpáveis nos nervos desaparecem bem mais depressa do que sem a medicação. Nos casos graves, a cura se dará com defeito residual, pela transformação fibrosa dos granulomas neuríticos, restando a possibilidade de melhoras ulteriores pela mecanoterapia.
As formas maculosas podem ser completamente curadas, ao que parece, mais rapidamente que os lepromas. Nas formas inveteradas só resulta cura com anomalia, achatamento da orla marginal, estreitamento da área anestésica e aumento da pigmentação nas áreas atróficas. Os linfomas lepróticos inveterados só regridem muito lentamente, as porções atróficas, assim como as manifestações recentes, retrocedem por vezes com rapidez.
A administração por via interna do salicilato de sódio empresta decidido apoio ao tratamento, tendo sido primeiramente utilizada por Koebner, pelo que sei. Mas é preciso ministrar grandes doses. Com menos de 6 gramas por dia nem vale a pena começar; prefiro dar 8 gramas divididos em quatro doses, tomadas de seis em seis horas. Os pacientes que conseguem se adaptar à ingestão de tais doses durante certo tempo acabam se acostumando, e a influência dessa medicação é decididamente favorável. Associado a um pouco de bicarbonato de sódio, é o medicamento mais bem tolerado pelo estômago. De vez que só raramente recorri a esse medicamento isoladamente, é difícil definir a parte que lhe cabe. De qualquer maneira, o decurso foi melhor do que quando administrava internamente estricnina, arsênico, sublimado ou iodeto de potássio, parecendo o salicilato de especial utilidade na prevenção das embolias nodosas. O timol, que utilizei sem efeito nocivo por prazos bastante longos, na quantidade de 3 a 4 gramas por dia, parece ter atuação semelhante.
Vários outros métodos de tratamento, internos e externos, por mim utilizados, alguns dos quais com bastante proveito, serão oportunamente relatados, após maior experiência. Por enquanto, só me resta externar a convicção de que, com o tratamento precoce, será possível obter, na maioria dos casos, uma regressão das manifestações externamente visíveis e, por vezes, uma cura completa.
Observação: Quando redigi estes apontamentos, ainda não tivera acesso ao novo livro sobre lepra de Leloir, e só por um acaso recebi a resenha escrita por Unna, quando já terminara o presente trabalho. Vejo com satisfação que coincidem muitas das nossas observações, e tenho a esperança de que o leitor queira dar às repetições involuntárias o valor de corroborações. Onde há divergências de pontos de vista,julgo não dever retroceder, por enquanto, das minhas opiniões, posto que se baseiam em observações próprias. No isolamento em que me encontro, fui obrigado a renunciar completamente à possibilidade de levar em conta pormenorizadamente a bibliografia existente.