Leprofobia*
A denominação e a idéia que corresponde ao termo sifilofobia são familiares a todos os leitores destejornal. Quem não se tem encontrado com tais doentes – convencidos de uma infecção sifilítica anterior, ou talvez somente de terem-se exposto aos perigos do contágio da sífilis – que limitam o círculo de suas idéias a esse assunto, e continuamente procuram descobrir em si mesmos sintomas de sífilis?
Condições semelhantes são freqüentemente encontradas em indivíduos que sofreram de gonorréia, mesmo quando não acusam mais sintomas a não ser um pequeno aumento da secreção mucosa ordinária, o que evidentemente não tem importância. O médico, tomando muito a sério um tal estado, empreendendo curá-lo, e talvez não conseguindo depois de um tratamento prolongado, corre o perigo de aumentar o grande número de hipocondríacos sexuais.
Nós não ignoramos que tais condições mentais são, muitas vezes, devidas a verdadeiras perturbações psíquicas, e por isso a persuasão pode falhar inteiramente; porém, muitas vezes tais idéias não se têm tornado ainda completamente fixas e a predisposição hipocondríaca existente precisa de uma oportunidade especial para manifestar-se. Certos livros, exagerando os perigos que resultam de moléstias sexuais e de maus hábitos, têm de responder, em grande escala, pelo número de tais infelizes, mas também o exagero de tratamento de especialistas pode concorrer para esse resultado.
Quando se observa a inclinação hipocondríaca, o médico deve considerar como seu dever não entreter nem aumentar os receios do doente. Se esta disposição do doente para considerar muito graves os seus menores sofrimentos não pode ser dominada, o médico deve vigiá-lo tanto quanto possível, e eventualmente avisar os seus parentes, porque não é raro que tais doentes procurem tentar contra a existência, tão grande é a perturbação do seu equilíbrio mental.
Não há dúvida de que muitas dessas pessoas devem ser isoladas e tratadas como sofrendo das faculdades mentais, porém, freqüentemente não se pode conseguir que outros concordem com essa opinião.
No curso de minha clínica na América do Sul e nas ilhas do Havaí, encontrei freqüentemente indivíduos nos quais a disposição hipocondríaca tomava a forma de um medo constante de ser acometido pela lepra (morféia), condição esta que eu proponho designar pela denominação de “leprofobia”.
Em alguns desses casos o doente se deixa persuadir de que os seus receios são sem fundamento e prejudicam a ele mesmo, mas para isso é preciso que o médico disponha de sua confiança, ou lhe fale em um tom decidido. Se ele hesita por não estar certo da não existência da moléstia, fará mais mal do que bem. Em outros casos o doente não se convence e prefere continuar gastando o seu dinheiro em consultas a um e outro médico até encontrar um disposto a apoiar as suas apreensões. Lembro-me de um caso destes, um moço chinês, no qual os exames cuidadosos, repetidos com longos intervalos, nunca conseguiram descobrir coisa alguma de anormal, a não ser um pouco de acne e contrações fibrilares de alguns músculos.
Na leprofobia também o primeiro impulso tem sido geralmente dado por certas descrições da imprensa, principalmente as fornecidas pelosjornais sensacionais [sic], e outras vezes pela história largamente discutida da moléstia de algum doente. Em outros casos, a leprofobia provém da consciência de ter estado em contato mais ou menos íntimo com pessoas mais tarde reconhecidas como leprosas.
Há muitas coisas que contribuem para tornar a leprofobia mais séria do que outros estados análogos do espírito. A crença, agora quase geral e muito exagerada, do contágio da lepra, assim como a possibilidade aceita, embora pouco provada, de uma longa incubação; finalmente a ignorância relativa em que nos achamos a respeito da forma e do período em que as primeiras manifestações devem ser separadas – todas essas causas juntas tornam difícil negar, de um modo absoluto, a possibilidade de uma infecçãojá existente.
As primeiras manifestações sendo em parte de natureza subjetiva, um doente que tenha algumas noções pode não só imaginar que sente certos sintomas, mas também descrevê-los tão vivamente e com tanta exatidão, que qualquer médico pouco familiarizado com esse assunto pode facilmente ser iludido. A lepra sendo não só de um caráter muito mais sério, como inspirando um temor inteiramente peculiar, qualquer engano, ou mesmo incerteza de diagnóstico, pode acarretar as mais sérias conseqüências. Tenho visto muitas pessoasjulgarem certos indivíduos, ou a si mesmas, como leprosos, apesar de nenhum sintoma poder ser descoberto em exames repetidos. É sempre bom fazer esse exame diversas vezes, porque as primeiras manifestações da lepra são muitas vezes transitórias; mas o exame deve ser feito de modo a animar o doente, evitando assustá-lo.
O médico, mantendo alguma suspeita, deve abster-se de manifestá-la até que chegue a evidência positiva. Enquanto esta não existir,julgo que tem não somente o direito, mas até a obrigação de combater as apreensões. O médico deve trazer em mente que:
1. A hereditariedade da lepra não está provada.
2. O perigo de contato passageiro com leprosos é muito pequeno, e talvez exista somente nos estados adiantados da moléstia.
3. O contágio, mesmo havendo contato íntimo e prolongado, não é freqüente em famílias vivendo conforme as regras dos meios civilizados.
4. Pessoas aparentemente sãs podem apresentar sintomas de lepra despercebidos, mas que podem facilmente ser reconhecidos por médicos experimentados, ao passo que a existência de um prolongado período de incubação não está provada ou fora de toda e qualquer dúvida.
Por isso eu considero um ato de humanidade combater todas essas afirmações não provadas e exageradas, tendentes a espalhar a leprofobia, que não trazem benefício algum real e que muitas vezes conduzem a opiniões e medidas inteiramente indignas de um século adiantado.