O desenvolvimento do computador moderno exigiu outro passo importante. Todas as máquinas construídas durante a guerra foram concebidas, pelo menos de início, tendo uma tarefa específica em mente, como resolver equações ou decifrar códigos. Um computador de verdade, como o vislumbrado por Ada Lovelace e depois por Alan Turing, deveria ser capaz de realizar, sem interrupção e com rapidez, quaisquer operações lógicas envolvendo dados e símbolos. As operações dessas máquinas, do modo como elas eram pensadas, eram determinadas não só pelo seu hardware como por software, os programas que elas podiam rodar. Mais uma vez, Turing estabeleceu o conceito com clareza: “Não precisamos ter uma infinidade de máquinas diferentes fazendo trabalhos diferentes”, ele escreveu em 1948. “Uma única máquina será suficiente. O problema de engenharia de produzir várias máquinas para vários trabalhos é substituído pelo trabalho de gabinete de ‘programar’ a máquina universal para desempenhar essas tarefas.”1
Em teoria, máquinas como o ENIAC podiam ser programadas e até ser consideradas de propósito geral. Mas, na prática, carregar um novo programa era um processo trabalhoso que com frequência envolvia fazer manualmente o recabeamento que conectava diferentes unidades do computador. As máquinas do tempo da guerra não podiam trocar de programa em velocidade eletrônica. Isso exigiria o próximo grande passo na história do computador moderno: descobrir como armazenar programas dentro da memória eletrônica de uma máquina.
GRACE HOPPER
Desde Charles Babbage, os homens que inventaram o computador se concentraram em primeiro lugar no hardware. Mas as mulheres que se envolveram durante a Segunda Guerra Mundial perceberam cedo a importância da programação, assim como havia ocorrido com Ada Lovelace. Elas desenvolveram maneiras de codificar as instruções que diziam ao hardware quais operações realizar. Nesse software estavam as fórmulas mágicas que podiam transformar as máquinas de maneira assombrosa.
A mais pitoresca pioneira da programação foi uma oficial da Marinha corajosa e determinada, mas também encantadora e amistosa, chamada Grace Hopper, que acabou trabalhando para Howard Aiken em Harvard e depois para Presper Eckert e John Mauchly. Nascida Grace Brewster Murray em 1906, ela vinha de uma família próspera no Upper West Side de Manhattan. Seu avô, engenheiro civil, a levava para fazer trabalhos de campo em várias partes de Nova York, a mãe era matemática e o pai, executivo da área de seguros. Ela se formou em Vassar em matemática e em física, depois foi para Yale, onde em 1934 concluiu um doutorado em matemática.2
Sua educação não era tão incomum quanto se pode imaginar. Ela foi a 11a mulher a conseguir um doutorado em Yale, e a primeira vez que isso havia ocorrido fora em 1895.3 Não era tão inusitado para uma mulher, sobretudo se ela viesse de uma família bem-sucedida, obter um doutorado em matemática nos anos 1930. Na verdade, era mais comum do que seria uma geração mais tarde. O número de norte-americanas que obtiveram doutorado em matemática nos anos 1930 foi de 113, o que representava 15% do total de doutorados em matemática nos Estados Unidos. Durante a década de 1950, apenas 106 norte-americanas concluíram doutorado em matemática, o que representava meros 4% do total. (Na primeira década do século XXI, as coisas haviam mudado bastante, e 1600 mulheres concluíram o doutorado em matemática, 30% do total.)
Depois de se casar com um professor de literatura comparada, Vincent Hopper, Grace se tornou professora em Vassar. Ao contrário da maior parte dos professores de matemática, ela insistia que os seus alunos fossem capazes de escrever bem. Na disciplina de probabilidade que ministrava, ela começava com uma aula sobre uma de suas fórmulas matemáticas favoritasa e pedia que os alunos escrevessem uma redação sobre o tema. Os textos deveriam ser escritos com clareza e ter estilo. “Eu fazia várias correções [na redação] e ouvia os alunos dizerem, revoltados, que estavam fazendo um curso de matemática, e não de inglês”, ela se recordaria. “Então eu explicava que não adiantava tentar aprender matemática sem que eles conseguissem se comunicar com outras pessoas.”4 Ao longo de sua vida, Grace se destacou pela capacidade de traduzir problemas científicos — como os que envolviam trajetórias, fluxos de fluidos, explosões e padrões climáticos — em equações matemáticas e depois em inglês cotidiano. Esse talento a ajudou a ser uma boa programadora.
Em 1940 Grace Hopper estava entediada. Ela não tinha filhos, o casamento era enfadonho e ensinar matemática não era tão gratificante quanto imaginara. Ela tirou uma licença parcial de Vassar para estudar com o renomado matemático Richard Courant na Universidade de Nova York, concentrando-se em métodos para resolver equações diferenciais parciais usando diferenças finitas. Ela ainda estava estudando com Courant quando os japoneses atacaram Pearl Harbor, em dezembro de 1941. A entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial deu-lhe um caminho para mudar sua vida. Nos dezoito meses que se seguiram, ela saiu de Vassar, divorciou-se do marido e, aos 36 anos, entrou para a Marinha norte-americana. Foi enviada para a Escola de Cadetes da Reserva Naval no Smith College, em Massachusetts, e em junho de 1944 se formou como primeira da classe como tenente Grace Hopper.
Ela presumiu que seria designada para um grupo de criptografia e codificação, mas foi surpreendida ao receber ordens de se apresentar na Universidade Harvard para trabalhar no Mark I, o poderoso computador digital com seus desajeitados relés eletromecânicos e um eixo rotativo motorizado que, como já descrito, havia sido concebido por Howard Aiken em 1937. Na época em que Hopper foi designada para o projeto, a máquina havia sido incorporada à Marinha; Aiken ainda estava no comando, mas como comandante da Marinha, e não como membro do corpo docente de Harvard.
Quando Hopper se apresentou para o trabalho em julho de 1944, Aiken entregou-lhe uma cópia das memórias de Charles Babbage e levou-a para ver o Mark I. “Esta é uma máquina de computação”, ele disse. Hopper apenas olhou para a máquina em silêncio por um momento. “Havia um grande volume de maquinário fazendo uma imensa balbúrdia”, ela se recordaria. “Os mecanismos eram todos visíveis, a máquina era inteiramente aberta e muito barulhenta.”5 Percebendo que precisaria entender o equipamento todo para poder manuseá-lo de modo adequado, ela passou várias noites analisando o seu projeto. O ponto forte de Hopper veio da sua capacidade de saber traduzir (como fizera em Vassar) problemas do mundo real em equações matemáticas, e de então comunicar essas equações por meio de comandos que a máquina podia entender. “Aprendi linguagens de oceanografia, de todo esse negócio de detecção de minas, de detonadores, de fusíveis de proximidade, de assuntos de biomedicina”, explicou.
Tínhamos de aprender esses vocabulários para podermos trabalhar com os problemas deles. Eu podia mudar para o meu vocabulário e falar de maneira bastante técnica com os programadores, e depois dizer as mesmas coisas para os administradores poucas horas depois, mas com um vocabulário totalmente diferente.
A inovação exige articulação.
Graças à capacidade dela de se comunicar com precisão, Aiken designou-a para escrever aquilo que se tornaria o primeiro manual de programação de computador do mundo. “Você vai escrever um livro”, ele disse um dia, parado ao lado da mesa dela.
“Não sei escrever livros”, ela respondeu. “Nunca fiz isso.”
“Bom, você está na Marinha agora”, ele afirmou. “Você vai escrever um livro.”6
O resultado foi um volume de quinhentas páginas que incluía tanto uma história do Mark I quanto um guia para programá-lo.7 O primeiro capítulo descrevia máquinas de calcular anteriores, com ênfase nas que foram construídas por Pascal, Leibnitz e Babbage. O frontispício era uma imagem da parte da Máquina Diferencial de Babbage que Aiken havia encontrado em seu escritório, e Hopper começou o texto com um epigrama do inventor. Ela compreendia, assim como havia acontecido com Ada Lovelace, que a Máquina Analítica de Babbage tinha uma qualidade especial, uma qualidade que ela e Aiken acreditavam distinguir o Mark I de outros computadores da época. Assim como a máquina não construída de Babbage, o Mark I de Aiken, que recebia seus comandos por meio de uma fita perfurada, podia ser reprogramado com novas instruções.
Todas as noites Hopper lia para Aiken as páginas que havia escrito naquele dia, o que a ajudou a aprender um truque simples de bons escritores: “Ele ressaltou que, se você se atrapalha quando vai ler o texto em voz alta, é melhor consertar aquela frase. Todo dia eu lia cinco páginas do que havia escrito”.8 Suas frases se tornaram mais simples, vivas e claras. Com a sólida parceria que formaram, Hopper e Aiken se tornaram a versão moderna, um século depois, de Lovelace e Babbage. Quanto mais Hopper descobria sobre Ada Lovelace, mais se identificava com ela. “Ada escreveu o primeiro loop”, Hopper disse. “Nunca vou me esquecer. Nenhum de nós jamais vai esquecer.”9
As seções históricas do livro de Hopper eram focadas em personalidades. Ao fazer isso, ele enfatizava o papel de indivíduos. Por outro lado, logo depois de Hopper concluí-lo, os executivos da IBM encomendaram sua própria história do Mark I, que dava a maior parte do crédito para as equipes da IBM em Endicott, em Nova York, que haviam construído a máquina. “Para os interesses da IBM, era melhor substituir a história de indivíduos pela da organização”, escreveu o historiador Kurt Beyer em um estudo sobre Hopper.
O locus da inovação tecnológica, de acordo com a IBM, era a corporação. O mito do inventor solitário radical trabalhando no laboratório ou no porão era substituído pela realidade de equipes anônimas de engenheiros da organização contribuindo com avanços incrementais.10
Na versão da IBM para a história, o Mark I continha uma longa lista de pequenas inovações, como o contador do tipo roquete e o alimentador duplo de cartão, que o livro da empresa atribuía a um grupo de engenheiros pouco conhecidos que trabalharam num esquema colaborativo em Endicott.b
A diferença entre a versão de Hopper da história e a da IBM era mais profunda do que uma mera disputa sobre quem deveria ter mais crédito. Mostrava essencialmente visões contrastantes da história da inovação. Alguns estudos da tecnologia e da ciência enfatizam, como fez Hopper, o papel de inventores criativos que são responsáveis pelos saltos inovadores. Outros estudos enfatizam o papel de equipes e de instituições, como o trabalho colaborativo feito nos Laboratórios Bell e na unidade da IBM em Endicott. Esta última abordagem tenta mostrar que aquilo que parece ser um salto inovador — o momento Eureca — é na verdade o resultado de um processo evolucionário que ocorre quando ideias, conceitos, tecnologias e métodos de engenharia amadurecem ao mesmo tempo. Nenhum dos modos de compreender o avanço tecnológico é, sozinho, completamente satisfatório. A maior parte das grandes inovações da era digital nasceu de um efeito combinado da criatividade de indivíduos (Mauchly, Turing, Von Neumann, Aiken) com equipes que souberam como implementar as ideias deles.
Quem trabalhava com Hopper na operação do Mark I era Richard Bloch, um graduado em matemática de Harvard que tocava flauta na banda especializada em pregar peças da universidade e que havia servido na Marinha. O guarda-marinha Bloch começara a trabalhar com Aiken três meses antes de Hopper chegar e adotou-a como pupila. “Eu me lembro de ficar com ela, boa parte da noite, mostrando como a máquina trabalhava, como programar a coisa”, diria. Ele e Hopper se revezavam em turnos de doze horas cuidando da máquina e de seu não menos temperamental comandante, Aiken. “Às vezes ele aparecia às quatro da manhã”, contaria Bloch, “e seu comentário era: ‘Estamos produzindo números?’. Ele ficava muito nervoso quando a máquina parava.”11
A abordagem de Hopper em relação à programação era bastante pragmática. Ela dividia cada problema de física ou cada equação matemática em pequenos passos aritméticos. “Você simplesmente dizia passo a passo ao computador o que fazer”, ela explicaria. “Pegue este número e some-o àquele número e coloque a resposta aqui. Agora pegue aquele número e multiplique-o por este número e coloque aqui.”12 Quando o programa era perfurado em uma fita e chegava o momento de testá-lo, a equipe do Mark I, numa piada que se tornou um ritual, colocava no chão um tapete de oração, virava-se para o Oriente e orava para que o trabalho se mostrasse aceitável.
Às vezes, tarde da noite, Bloch ficava mexendo nos circuitos de hardware do Mark I, o que causava problemas para os programas de software que Hopper havia escrito. Ela tinha uma personalidade forte temperada com a linguagem de um aspirante a oficial, e as sucessivas broncas que dava no esguio Bloch, que permanecia calmo e se divertia com a situação, eram um anúncio da mistura de confronto e camaradagem que se desenvolveria entre os engenheiros de hardware e de software. “Toda vez que eu fazia um programa funcionar, ele ia lá à noite e mudava os circuitos no computador e na manhã seguinte o programa não rodava”, ela lamentaria. “E, pior, ele estava em casa dormindo e não tinha como me dizer o que tinha feito.” Como Bloch diria, “o mundo se tornava um inferno” quando isso acontecia. “Aiken não via essas coisas com muito senso de humor.”13
Tais episódios deram a Hopper a fama de irreverente. E ela era. Mas também tinha a capacidade de um programador de software de combinar irreverência com um espírito colaborativo. Essa camaradagem digna de uma tripulação de navio pirata — algo que Hopper compartilhou com as gerações seguintes de programadores — na verdade era mais libertadora do que problemática para ela. Como Beyer escreveria, “eram as capacidades colaborativas de Hopper, mais do que sua natureza rebelde, que criavam espaço para seu pensamento e sua ação independentes”.14
Na verdade, era o calmo Bloch que tinha a relação mais tumultuada com o comandante Aiken, e não a irascível Hopper. “Dick estava sempre arranjando problemas”, Hopper diria. “Eu tentava lhe explicar que Aiken era exatamente como um computador. Está cabeado de certo modo, e se você vai trabalhar com ele, precisa entender como ele funciona.” 15 Aiken, que de início hesitou em ter uma mulher como oficial em sua equipe, logo fez de Hopper não apenas sua principal programadora como também sua representante imediata. Anos mais tarde, ele lembraria com carinho as contribuições que ela deu para o nascimento da programação de computador. “Grace era um bom homem”, declarou.16
Entre as práticas de programação que Hopper aperfeiçoou estava a sub-rotina, aqueles trechos de código destinados a tarefas específicas que são armazenados uma vez, mas que podem ser retomados quando necessário em partes diferentes do programa. “Uma sub-rotina é um programa claramente definido, facilmente simbolizado, frequentemente repetido”, ela escreveu. “O Harvard Mark I continha sub-rotinas para o seno de x, para o log10x e para 10x, e cada uma podia ser inserida no programa por um único código operacional.”17 Tratava-se de um conceito que Ada Lovelace tinha originalmente descrito em suas “Notas” sobre a Máquina Analítica. Hopper montava uma biblioteca cada vez maior dessas sub-rotinas. Ela também desenvolveu, enquanto programava para o Mark I, o conceito de um compilador, que iria um dia facilitar a escrita de um mesmo programa para várias máquinas por meio da criação de um processo de tradução do código-fonte para a linguagem de máquina usada por diferentes processadores de computador.
Além disso, sua equipe ajudou a popularizar os termos “bug” e “debugging”. A versão Mark II do computador de Harvard ficava em um prédio sem telas nas janelas. Certa noite, a máquina entrou em pane e a equipe começou a procurar o problema. Eles encontraram uma mariposa com uma asa de dez centímetros que havia ficado presa em um dos relés eletromecânicos. Ela foi retirada e colada no livro de registros com fita adesiva. “Painel F (mariposa) no relé”, dizia a anotação. “Primeiro caso real de inseto [bug] encontrado.”18 Daí em diante eles passaram a chamar a operação de procurar problemas de “fazer debugging na máquina”.c
Em 1945, em grande parte graças a Hopper, o Harvard Mark I era o grande computador mais facilmente programável do mundo. Ele podia mudar de tarefa apenas recebendo novas instruções por meio de fita de papel perfurada, sem exigir uma reconfiguração de seu hardware ou de seus cabos. No entanto, essa distinção passou quase despercebida, tanto na época quanto na história, em razão de o Mark I (e até seu sucessor de 1947, o Mark II) usar relés eletromecânicos lentos e móveis em vez de contar com componentes eletrônicos como válvulas termiônicas. “Na época ninguém sabia nada sobre ela”, diria Hopper a respeito do Mark II, “ela era obsoleta, e todo mundo estava passando a usar eletrônica.”19
Inovadores do computador, como outros pioneiros, podem ficar para trás se se mantiverem sempre no mesmo caminho. As mesmas características que fazem com que eles sejam inventivos, como a teimosia e o foco, podem torná-los resistentes à mudança quando surgem novas ideias. Steve Jobs era célebre pela teimosia e pelo foco, mas mesmo assim impressionou e desconcertou os colegas ao mudar de ideia de repente quando percebeu que precisava pensar de maneira diferente. Aiken não teve essa agilidade. Ele não era rápido o bastante para dar piruetas. Tinha o instinto de um comandante naval para manter a autoridade centralizada, de modo que a sua equipe não tinha a mesma liberdade da equipe de Mauchly e Eckert. Aiken também preferia a confiabilidade à velocidade. E, assim, mantinha-se fiel ao uso de relés eletromecânicos, que já tinham mais tempo de teste e eram mais confiáveis, mesmo depois de ter ficado claro para o pessoal da Universidade da Pensilvânia e de Bletchley Park que as válvulas termiônicas eram a onda do futuro. O Mark I de Aiken podia realizar apenas três comandos por segundo, enquanto o ENIAC, que estava sendo construído, executaria 5 mil comandos nesse tempo.
Quando foi à Universidade da Pensilvânia para ver o ENIAC e assistir a algumas palestras, “Aiken se manteve preso a seu próprio modo de fazer as coisas”, informou um relatório sobre a reunião, “e não parece ter percebido a importância das novas máquinas eletrônicas.”20 O mesmo podia ser dito de Hopper quando ela visitou o ENIAC em 1945. Ela teve a impressão de que o Mark I era superior por ser mais facilmente programável. Com o ENIAC, ela dizia, “você plugava as peças e essencialmente construía um computador específico para cada tarefa, e estávamos acostumados com o conceito de programar e controlar o computador por meio de nosso programa”.21 O tempo necessário para programar o ENIAC, que podia ser de um dia inteiro, acabava com sua vantagem na velocidade de processamento, a não ser que ele continuasse fazendo repetidas vezes a mesma tarefa.
Mas, ao contrário de Aiken, Hopper tinha a mente suficientemente aberta para logo mudar de visão. Estavam sendo feito avanços naquele ano que levariam o ENIAC a ser reprogramado com mais rapidez. E as pessoas que estavam na linha de frente da revolução da programação, para a felicidade de Hopper, eram mulheres.
AS MULHERES DO ENIAC
Todos os engenheiros que construíram o ENIAC eram homens. Um grupo de mulheres, especificamente seis, foi menos exaltado pela história, mas provou ser quase tão importante quanto eles no desenvolvimento da computação moderna. Enquanto o ENIAC estava sendo construído em 1945, pensava-se que ele desempenharia um conjunto específico de cálculos repetidamente, como determinar a trajetória de um míssil usando variáveis diferentes. O fim da guerra, contudo, significava que a máquina era necessária para muitos outros tipos de cálculos — ondas sônicas, padrões climáticos e o poder de explosão de novos tipos de bombas atômicas —, que exigiriam que a máquina fosse reprogramada com frequência.
Isso exigia um remanejamento manual no ninho de rato que eram os cabos do ENIAC para reconfigurar suas chaves. De início a programação parecia ser uma rotina, talvez uma tarefa mensal, o que pode ter sido o motivo para que ela tenha sido relegada a mulheres, que na época não eram incentivadas a se tornar engenheiras. Mas o que as mulheres do ENIAC logo demonstrariam, e que os homens mais tarde vieram a entender, era que programar um computador podia ser tão importante quanto o projeto de seu hardware.
A história de Jean Jennings é ilustrativa das primeiras programadoras de computador.22 Ela nasceu em uma fazenda na periferia de Alanthus Grove, no Missouri (população: 104 habitantes), em uma família que quase não tinha dinheiro e que dava um tremendo valor à educação. Seu pai era professor em uma escola de apenas uma sala, onde Jean se tornou a única menina e a principal arremessadora do time de softball. Sua mãe, embora tivesse abandonado a escola na oitava série, ajudava a ensinar álgebra e geometria. Jean era a sexta de sete filhos, e todos eles foram para a faculdade. Isso numa época em que os governos estaduais valorizavam a educação e percebiam o valor econômico e social de tornar o ensino acessível a todos. Jean frequentou a Faculdade de Pedagogia da Northwest Missouri State, em Maryville, onde a anuidade era de 76 dólares. (Em 2013, a anuidade era de cerca de 14 mil dólares para quem morava no estado, um valor doze vezes maior depois da correção pela inflação.) Ela começou a estudar jornalismo, mas odiava a orientadora e decidiu mudar para matemática, que adorava.
Quando concluiu o curso em janeiro de 1945, o professor de cálculo mostrou-lhe um panfleto que anunciava vagas de emprego para mulheres formadas em matemática na Universidade da Pensilvânia, onde as mulheres estavam trabalhando como “computadoras” — humanos que desempenhavam tarefas matemáticas rotinizadas, sobretudo o cálculo de tabelas de trajetórias de artilharia para o Exército. Um dos anúncios dizia:
Procura-se: Mulheres com Diploma em Matemática […]. Oferecem-se a mulheres vagas nas áreas de ciência e engenharia que antes eram oferecidas de preferência a homens. Esta é a hora de pensar em ter um emprego em ciência e engenharia […]. Você vai descobrir que o slogan lá, como em todo lugar, é: “PROCURA-SE MULHERES!”.23
Jennings, que nunca havia saído do Missouri, fez sua inscrição. Quando recebeu um telegrama informando que havia sido aceita, embarcou no trem da meia-noite para o leste e chegou na Penn quarenta horas depois. “Não é preciso dizer que eles ficaram chocados por eu chegar lá tão rápido”, ela se lembraria.24
Quando Jennings entrou em cena, em março de 1945, aos vinte anos, havia cerca de setenta mulheres na Penn trabalhando em máquinas de calcular de mesa e rabiscando números em imensas folhas de papel. A esposa do capitão Herman Goldstine, Adele, era responsável pelo recrutamento e pelo treinamento. “Nunca vou me esquecer da primeira vez em que vi Adele”, Jennings diria. “Ela andava devagar, cheia de classe, com um cigarro pendurado no canto da boca, ia até uma mesa, passava uma das pernas por cima de uma das quinas e começava a falar com seu sotaque do Brooklin ligeiramente suavizado.” Para Jennings, que havia crescido como uma corajosa moleca que reagia aos infinitos casos de sexismo que enfrentou, era uma experiência transformadora. “Eu sabia que estava bem longe de Maryville, onde as mulheres tinham de fugir de forma sorrateira e ir até a estufa para poder fumar.”25
Poucos meses depois de ela chegar, um memorando circulou entre as mulheres informando sobre seis vagas de emprego para trabalhar em uma misteriosa máquina que ficava a portas fechadas no primeiro andar da Escola Moore de Engenharia, da Penn. “Eu não tinha ideia do que era o emprego ou do que era o ENIAC”, Jennings recordaria. “Só o que eu sabia era que podia ir para o térreo para fazer algo novo e acreditava que podia aprender e fazer qualquer coisa tão bem quanto qualquer outra pessoa.” Ela também estava querendo fazer algo mais empolgante do que calcular trajetórias.
Quando ela chegou para a entrevista, Goldstine perguntou o que ela sabia sobre eletricidade. “Eu disse que tinha feito uma disciplina de física e que eu sabia que E era igual a IR”, ela se lembraria, fazendo referência à Lei de Ohm, que define como um fluxo de corrente elétrica se relaciona com a voltagem e com a resistência. “Não, não”, Goldstine respondeu. “Eu não me importo com isso, mas quero saber se você tem medo de eletricidade.”26 O emprego envolvia plugar cabos e lidar com muitas chaves, ele explicou. Jennings disse que não tinha medo. Enquanto estava sendo entrevistada, Adele Goldstine entrou, olhou para ela e acenou. Jennings havia sido escolhida.
Além de Jean Jennings (que mais tarde mudaria o sobrenome para Bartik), o grupo era formado por Marlyn Wescoff (mais tarde Meltzer), Ruth Lichterman (mais tarde Teitelbaum), Betty Snyder (mais tarde Holberton), Frances Bilas (mais tarde Spence), e Kay McNulty (que depois se casou com John Mauchly). Elas constituíam um típico esquadrão unido pela guerra: Wescoff e Lichterman eram judias, Snyder era quacre, McNulty era católica nascida na Irlanda e Jennings tinha sido criada na Igreja Unida de Cristo, protestante, embora não fosse crente. “Nós nos divertíamos bastante umas com as outras, sobretudo porque nenhuma de nós tinha tido antes contato próximo com pessoas de outras religiões”, segundo Jennings. “Tínhamos grandes discussões sobre verdades e crenças religiosas. Apesar de nossas diferenças, ou talvez por causa delas, realmente gostávamos umas das outras.”27
No verão de 1945, as seis foram enviadas para o Campo de Provas de Aberdeen para aprender a usar os cartões perfurados da IBM e a cabear os quadros de distribuição. “Tínhamos grandes discussões sobre religião, nossas famílias, política e sobre nosso trabalho”, lembraria McNulty. “Nunca ficávamos sem ter sobre o que conversar.”28 Jennings se tornou líder do grupo: “Trabalhávamos juntas, vivíamos juntas, comíamos juntas e ficávamos até tarde falando sobre tudo”.29 Como todas eram solteiras e cercadas de muitos soldados solteiros, houve diversos romances memoráveis alimentados pelos coquetéis Tom Collins nas mesas do clube de oficiais. Wescoff encontrou um fuzileiro naval que era “alto e bem bonito”. Jennings formou par com um sargento do Exército chamado Pete, “atraente, mas não realmente bonito”. Ele era do Mississippi, e ela deixou clara sua objeção à segregação racial. “Pete me disse uma vez que nunca me levaria para Biloxi porque eu falava sem rodeios de meus pontos de vista sobre discriminação e acabaria sendo assassinada.”30
Depois de seis semanas de treinamento, as seis programadoras relegaram seus namorados a arquivos de memória e voltaram à Penn, onde receberam diagramas e gráficos do tamanho de pôsteres descrevendo o ENIAC. “Alguém nos entregou toda uma pilha de lâminas de projeto, e lá estavam todos os diagramas de cabeamento de todos os quadros de distribuição, e eles disseram: ‘Olhem aqui, descubram como a máquina funciona e depois descubram como programá-la’”, explicou McNulty.31 Isso exigiu que elas analisassem as equações diferenciais e depois determinassem como configurar os cabos para conectá-los aos circuitos eletrônicos certos. “A maior vantagem de aprender sobre o ENIAC a partir de diagramas foi que começamos a entender o que ele podia e o que não podia fazer”, contou Jennings. “Como resultado, éramos capazes de diagnosticar problemas indo fundo quase a ponto de identificar cada uma das válvulas.” Ela e Snyder inventaram um sistema para descobrir qual das 18 mil válvulas havia queimado. “Como conhecíamos tanto a aplicação quanto a máquina, aprendemos a diagnosticar problemas tão bem quanto os engenheiros, talvez melhor do que eles. Vou lhe dizer, os engenheiros adoravam isso. Eles podiam deixar essa tarefa para nós.”32
Snyder descreveu como foram feitos diagramas e gráficos cuidadosos de cada nova configuração de cabos e chaves. “O que estávamos fazendo na época era o começo de um programa”, ela diria, embora elas ainda não contassem com uma palavra para isso. Elas escreveram cada nova sequência no papel para se proteger. “Todas achávamos que seríamos escalpeladas se estragássemos o quadro de distribuição”, diria Jennings.33
Um dia Jennings e Snyder estavam sentadas na sala de aula do segundo andar que haviam solicitado, olhando para folhas abertas contendo diagramas das várias unidades do ENIAC, quando um homem entrou para inspecionar a construção. “Olá, meu nome é John Mauchly”, ele disse. “Eu só estava checando para ver se está tudo bem.” Nenhuma delas havia topado com o visionário criador do ENIAC antes, mas elas não ficaram nem um pouco constrangidas ou intimidadas. “Rapaz, como estamos felizes de conhecer você”, Jennings disse. “Conte para nós como esse maldito acumulador funciona.” Mauchly respondeu cuidadosamente a essa pergunta e depois a outras. Quando elas acabaram, ele disse: “Bem, meu escritório fica aqui ao lado. Portanto, sempre que eu estiver lá, vocês podem me procurar e fazer perguntas”.
Quase toda tarde, elas faziam isso. De acordo com Jennings, “ele era um professor maravilhoso”. Levou as mulheres a vislumbrar as muitas coisas que o ENIAC poderia fazer, além de calcular trajetórias de artilharia. Ele sabia que, para fazer um computador verdadeiramente de propósito geral, seria necessário inspirar programadores que pudessem tornar o hardware capaz de realizar várias tarefas. “Ele sempre tentava nos fazer pensar em outros problemas”, diria Jennings. “Sempre queria que invertêssemos a matriz ou algo assim.”34
Mais ou menos na mesma época em que Hopper estava fazendo isso em Harvard, as mulheres do ENIAC estavam desenvolvendo o uso de sub-rotinas. Elas se sentiam incomodadas pelo fato de os circuitos lógicos não terem capacidade para calcular algumas trajetórias. Foi McNulty quem bolou uma solução. “Ah, já sei, já sei, já sei”, ela disse, empolgada, certo dia. “Podemos usar um programador master para repetir código.” Elas tentaram e deu certo. “Começamos a pensar em como podíamos ter sub-rotinas, e sub-rotinas aninhadas, e todas essas coisas”, recordaria Jennings.
Era bastante prático em termos de resolver esse problema de trajetória, por causa da ideia de não ter de repetir todo um programa, você podia repetir apenas partes dele e configurar o programador master para isso. Depois que você tivesse aprendido a fazer isso, aprenderia a projetar seu programa em módulos. Criar módulos e desenvolver sub-rotinas era na verdade crucial para aprender a programar.35
Pouco antes de morrer, em 2011, Jean Jennings Bartik refletiu com orgulho sobre o fato de que todas as programadoras que criaram o primeiro computador de propósito geral eram mulheres: “Apesar de termos vivido em uma época em que as oportunidades de carreira para nós eram em geral bastante restritas, ajudamos a iniciar a era do computador”. Isso aconteceu porque muitas mulheres lá atrás haviam estudado matemática e suas habilidades estavam sendo solicitadas. Também havia uma ironia em tudo isso: os meninos, com seus brinquedos, pensaram que montar o hardware era a tarefa mais importante, e portanto um trabalho para homens. “A ciência e a engenharia norte-americanas eram ainda mais sexistas do que hoje”, diria Jennings. “Se os administradores do ENIAC soubessem o quanto a programação seria essencial para o funcionamento do computador eletrônico e o quanto isso seria complexo, eles talvez ficassem mais hesitantes em dar um papel dessa importância a mulheres.”36
PROGRAMAS ARMAZENADOS
Desde o início, Mauchly e Eckert compreenderam que havia modos de tornar o ENIAC mais fácil de reprogramar. Mas eles não tentaram fazê-lo, porque isso exigiria que criassem hardware mais complexo, e porque tal medida não era necessária para as tarefas que eles vislumbraram de início. “Não foi feita nenhuma tentativa de prever um modo de resolver um problema automaticamente”, escreveram no relatório anual sobre o progresso do ENIAC no final de 1943. “Isso se dá em nome da simplicidade e porque antecipamos que ele será usado sobretudo para problemas de um tipo em que uma configuração será usada muitas vezes antes de outro problema ser inserido na máquina.”37
Porém, mais de um ano antes de o ENIAC ficar pronto, na verdade já mesmo no início de 1944, Mauchly e Eckert perceberam que havia um bom modo de fazer com que os computadores fossem facilmente reprogramáveis: armazenar os programas dentro da memória do computador em vez de carregá-los a cada vez. Isso, eles sentiram, seria o próximo grande avanço no desenvolvimento do computador. Essa arquitetura de “programa armazenado” significaria que as tarefas da máquina poderiam ser mudadas quase que de maneira instantânea, sem precisar reconfigurar manualmente cabos e chaves.38
Para armazenar um programa dentro da máquina, eles precisariam criar uma grande capacidade de memória. Eckert pensou em vários métodos para fazer isso. “Essa programação pode ser de um tipo temporário feita em discos de metal ou do tipo permanente em discos gravados em água-forte”, escreveu em um memorando de janeiro de 1944.39 Como esses discos ainda eram muito caros, ele propôs que em seu lugar fosse usado, na versão seguinte do ENIAC, um método mais barato de armazenagem, que foi apelidado de linha de retardo acústica. De início, o método havia sido usado nos Laboratórios Bell por um engenheiro chamado William Shockley (sobre quem falaremos muito mais adiante) e desenvolvido no MIT. Uma linha acústica de retardo funcionava armazenando dados como pulsos em um longo tubo preenchido com um líquido denso e lento, como mercúrio. Em uma ponta do tubo, um sinal elétrico carregando um trecho de informação seria convertido por um plug de quartzo em um pulso que permaneceria ondulando para um lado e para o outro no tubo durante um período. As ondulações podiam ser reavivadas eletronicamente, pelo tempo que fosse necessário. Quando chegasse a hora de recuperar os dados, o plug de quartz converteria de novo a ondulação em um sinal elétrico. Cada tubo podia trabalhar com cerca de mil trechos de informação a 1% do custo que se teria com o uso de circuitos com válvulas termiônicas. O sucessor do ENIAC na geração seguinte, segundo Eckert e Mauchly escreveram em um memorando no verão de 1944, deveria ter prateleiras com tubos de linha de retardo de mercúrio desse tipo para armazenar tanto dados quanto informações rudimentares de programação em formato digital.
JOHN VON NEUMANN
A essa altura, um dos personagens mais interessantes da história da computação volta à cena: John von Neumann, o matemático nascido na Hungria que foi mentor de Turing em Princeton e lhe ofereceu uma vaga de assistente. Intelectual culto, urbano e entusiástico, ele deu grandes contribuições para a estatística, a teoria dos conjuntos, a geometria, a mecânica quântica, o projeto de armas nucleares, a dinâmica de fluidos, a teoria dos jogos e a arquitetura do computador. Ele acabaria implementando melhorias à arquitetura de programas armazenados que Eckert, Mauchly e os colegas deles tinham começado a imaginar e acabaria tendo seu nome associado a essa ideia, pela qual levaria boa parte do crédito.40
Von Neumann nasceu em uma próspera família judia em Budapeste, em 1903, durante um período de bonança depois de o Império Austro-Húngaro ter abolido as leis contra os judeus. O imperador Francisco José concedeu em 1913 um título hereditário ao banqueiro Max Neumann pelo “serviço meritório no campo financeiro”, permitindo assim que a família fosse chamada de Margittai Neumann ou, em alemão, Von Neumann. János (conhecido como Jancsi e, mais tarde, nos Estados Unidos, como John ou Johnny) era o mais velho de três irmãos, todos convertidos ao catolicismo (“por conveniência”, um deles admitiu) após a morte do pai.41
Von Neumann foi outro inovador que permaneceu na interseção das humanidades com a ciência. “Meu pai era um poeta amador e acreditava que a poesia podia transmitir não apenas emoções como também ideias filosóficas”, lembraria Nicholas, irmão de John. “Ele via a poesia como uma linguagem dentro da linguagem, uma ideia que pode ser vista nas especulações futuras de John sobre as linguagens do computador e do cérebro.” Sobre a mãe, ele escreveu: “Ela acreditava que a música, a arte e os prazeres relacionados à estética tinham um lugar importante na nossa vida, que a elegância era uma qualidade que devia ser reverenciada”.42
Existem muitas histórias sobre a genialidade prodigiosa de Von Neumann, algumas delas talvez verdadeiras. Aos seis anos, contavam mais tarde, ele fazia piadas com o pai em grego clássico e conseguia fazer divisões com dois números de oito dígitos de cabeça. Em festas, fazia um truque que consistia em decorar uma página da lista telefônica e depois recitar os nomes e os números, e ele conseguia lembrar literalmente páginas de romances ou de artigos que havia lido em um dos cinco idiomas que falava. “Se alguma raça de super-humanos mentalmente superiores se desenvolver algum dia”, disse uma vez Edward Teller, o inventor da bomba de hidrogênio, “seus integrantes serão semelhantes a John von Neumann.”43
Além de ir à escola, ele tinha tutores particulares tanto para a área de matemática quanto para línguas, e aos quinze anos seu domínio sobre cálculo avançado era completo. Quando o comunista Béla Kun tomou o poder por um breve período na Hungria em 1919, a tutela de Von Neumann foi transferida para Viena e para um resort no Adriático, e o rapaz desenvolveria uma aversão pelo resto da vida ao comunismo. Ele estudou química no Instituto Federal de Tecnologia da Suíça em Zurique (que Einstein havia frequentado) e matemática tanto em Berlim quando em Budapeste, obtendo seu doutorado em 1926. Em 1930, foi para a Universidade de Princeton para ensinar física quântica, e lá permaneceu depois de ser escolhido (junto com Einstein e Gödel) para ser um dos professores fundadores do Instituto de Estudos Avançados.44
Von Neumann e Turing, que se conheceram em Princeton, seriam vistos como os dois grandes teóricos do computador de propósito geral, mas em personalidade e em temperamento eles eram opostos binários. Turing levava uma vida espartana, dormia em pensões e albergues, e em geral era introspectivo; Von Neumann era um bon vivant elegante que, junto com a esposa, era o anfitrião de festas glamorosas uma ou duas vezes por semana em sua imensa casa em Princeton. Turing era um corredor de longas distâncias; há pouquíssimas ideias que se pode dizer que nunca passaram pela cabeça de Von Neumann, mas correr longas distâncias (ou mesmo curtas) era uma delas. “Quanto às vestimentas e aos costumes, ele tinha tendência ao desleixo”, a mãe de Turing disse uma vez do filho. Von Neumann, ao contrário, vestia terno quase o tempo todo, até enquanto montava um burrinho no Grand Canyon; mesmo quando estudante, andava tão bem vestido que, conta-se, depois de encontrá-lo pela primeira vez, o matemático David Hilbert teria feito apenas uma pergunta: “Quem é o alfaiate dele?”.45
Von Neumann adorava contar piadas e citar versinhos picantes em vários idiomas em suas festas, e comia com tanto gosto que, segundo disse sua esposa uma vez, era capaz de contar qualquer coisa, menos calorias. Ele dirigia carros de maneira tão despreocupada que chegava a ser quase imprudente e às vezes causava acidentes, e gostava de Cadillacs brilhando de novos. “Todo ano ele comprava pelo menos um novo, independente de ter batido o anterior ou não”, escreveu o historiador da ciência George Dyson.46
Enquanto estava no instituto no final dos anos 1930, Von Neumann passou a se interessar por maneiras de modelar matematicamente ondas de explosão. Isso o levou a tornar-se, em 1943, um integrante do Projeto Manhattan, viajando com frequência para as instalações secretas em Los Alamos, no Novo México, onde estavam sendo desenvolvidas armas atômicas. Como não havia urânio-235 suficiente para construir mais do que uma bomba, os cientistas em Los Alamos também estavam tentando projetar um equipamento que usasse plutônio-239. Von Neumann se concentrou em maneiras de construir uma lente explosiva que comprimisse o centro de plutônio da bomba para criar massa crítica.d
Avaliar esse conceito de implosão exigia resolver uma enxurrada de equações que poderiam calcular a taxa de fluxo da compressão do ar ou de outros materiais que iria ocorrer após uma explosão. Assim, Von Neumann embarcou em uma missão para compreender o potencial dos computadores de alta velocidade.
Durante o verão de 1944, esse périplo o levou aos Laboratórios Bell para estudar as versões atualizadas da Calculadora de Números Complexos, de George Stibitz. A versão mais recente trazia uma inovação que o deixou particularmente impressionado: a fita perfurada que levava as instruções para cada tarefa também incluía os dados, tudo misturado. Ele também passou algum tempo em Harvard, tentando determinar se o Mark I, de Howard Aiken, podia ajudar nos cálculos da bomba. Durante todo o verão e o outono daquele ano, viajou de trem entre Harvard, Princeton, os Laboratórios Bell e Aberdeen, atuando como uma abelha das ideias, polinizando e repolinizando várias equipes com as ideias que haviam ficado na sua cabeça à medida que ele voava entre as colmeias. Assim como John Mauchly havia viajado coletando ideias que levaram ao primeiro computador eletrônico funcional, Von Neumann vagou por vários lugares reunindo elementos e conceitos que se tornaram parte da arquitetura do computador com programas armazenados.
Em Harvard, Grace Hopper e seu parceiro de programação, Richard Bloch, arranjaram um lugar para que Von Neumann trabalhasse na sala de reuniões bem ao lado do Mark I. Von Neumann e Bloch escreviam equações no quadro-negro e as inseriam na máquina, e Hopper lia os resultados parciais quando eles eram despejados do computador. Quando a máquina estava “produzindo números”, Von Neumann com frequência saía da sala de reuniões e previa quais seriam os resultados. Hopper contaria, entusiasmado:
Nunca vou me esquecer daquela aparição vinda dos bastidores e depois uma nova aparição e dos números sendo postos no quadro-negro, e de Von Neumann prevendo quais seriam os números do resultado e, em 99% das vezes, com uma precisão enorme — fantástico. Ele parecia saber como a computação estava ocorrendo, ou sentir como ela estava ocorrendo.47
Von Neumann impressionou a equipe de Harvard com sua abertura para a colaboração. Ele absorvia as ideias do grupo, levava crédito por algumas delas, mas também deixava claro que ninguém podia ser dono de qualquer conceito. Quando chegou a hora de escrever um relatório sobre o que eles estavam fazendo, Von Neumann insistiu que o nome de Bloch aparecesse primeiro. “Eu realmente não achava que merecia aquilo; mas foi assim que saiu, e prezo isso”, diria Bloch.48 Aiken também era aberto à troca de ideias. “Não se preocupe com a possibilidade de alguém roubar uma ideia”, disse uma vez a um estudante. “Se ela for original, você vai ter de enfiá-la goela abaixo das pessoas.” Mesmo ele, porém, estava impressionado, e um tanto desconfortável, com a atitude tranquila de Von Neumann em relação a dar crédito a quem merecia. “Ele falava sobre conceitos sem se preocupar com sua origem”, diria Aiken.49
O problema que Von Neumann enfrentou em Harvard era que o Mark I, com suas chaves eletromecânicas, era excruciantemente lento. Ele levaria meses para fazer os cálculos de sua bomba atômica. Embora a fita de papel fosse útil para reprogramar o computador, era necessário trocar as fitas manualmente cada vez que era preciso usar uma sub-rotina. Von Neumann se convenceu de que a única solução era construir um computador que trabalhasse com velocidade eletrônica e que pudesse armazenar e modificar programas na memória interna.
Portanto, ele estava pronto para se tornar parte do próximo grande avanço: o desenvolvimento de um computador com memória armazenada. Assim, foi um feliz acaso que, no final de agosto de 1944, ele tenha se encontrado com alguém na plataforma da estação de trem do Campo de Provas de Aberdeen.
VON NEUMANN NA PENN
O capitão Herman Goldstine, o contato do Exército que estava trabalhando com Mauchly e Eckert no ENIAC, estava por acaso na mesma plataforma de Aberdeen esperando o trem para o norte. Ele nunca tinha encontrado Von Neumann, mas o reconheceu no mesmo instante. Goldstine tinha uma tendência a ficar empolgado ao encontrar pessoas brilhantes, e ficou feliz por aquilo que no mundo da matemática passaria por um encontro com uma celebridade. “Portanto, foi com considerável temeridade que me aproximei dessa figura mundialmente célebre, me apresentei e comecei a falar”, ele se lembraria. “Felizmente para mim, Von Neumann era uma pessoa agradável, amistosa, que fazia tudo que estava a seu alcance para deixar as pessoas à vontade.” A conversa ficou mais intensa quando Von Neumann descobriu o que Goldstine andava fazendo.
Quando ficou claro para Von Neumann que eu estava ocupado com o desenvolvimento de um computador eletrônico capaz de fazer 333 multiplicações por segundo, todo o clima da conversa mudou, passando de um diálogo tranquilo e bem-humorado para algo que se pareceu mais com uma prova oral para a obtenção de um doutorado em matemática.50
A pedido de Goldstine, Von Neumann visitou a Penn poucos dias depois para ver o ENIAC, que estava em fase de construção. Presper Eckert estava curioso para conhecer o famoso matemático, e tinha em mente um teste para verificar se ele era “mesmo um gênio”: ver se sua primeira pergunta seria sobre a estrutura lógica da máquina. Quando essa foi realmente a primeira questão feita por Von Neumann, ele ganhou o respeito de Eckert.51
O ENIAC conseguia resolver em menos de uma hora uma equação diferencial parcial na qual o Mark I, de Harvard, gastaria perto de oito horas. Isso impressionou Von Neumann. No entanto, reprogramar o ENIAC para realizar tarefas diferentes podia levar horas, e Von Neumann percebeu o quanto essa desvantagem era grave quando se tratava de resolver vários problemas diferentes. Mauchly e Eckert vinham trabalhando durante todo o ano de 1944 em maneiras de armazenar programas dentro da máquina. A chegada de Von Neumann, transbordando ideias trazidas de Harvard, dos Laboratórios Bell e de outros lugares, elevou o pensamento sobre computadores com programas armazenados a um novo patamar.
Von Neumann, que se tornou consultor da equipe do ENIAC, insistiu na ideia de que o programa de computador deveria ser armazenado na mesma memória que os dados, de modo que pudesse ser modificado com facilidade enquanto rodava. Seu trabalho começou na primeira semana de setembro de 1944, quando Mauchly e Eckert lhe explicaram o funcionamento da máquina em detalhes e disseram o que pensavam sobre criar, na próxima versão, “um equipamento de armazenamento com locais endereçáveis” que serviria como uma memória tanto para os dados quanto para as instruções de programação. Como Goldstine disse em uma carta para seu superior do Exército naquela semana: “Propomos um equipamento centralizado de programação em que a sequência programada seja armazenada de forma codificada nos mesmos tipos de equipamento de armazenamento sugeridos acima”.52
A série de encontros de Von Neumann com a equipe do ENIAC, e em especial as quatro sessões formais que ele teve com o grupo na primavera de 1945, foram de tal importância que havia minutas com o título “Encontros com Von Neumann”. Andando de um lado para outro em frente a um quadro-negro e liderando o debate nos moldes de um moderador socrático, ele absorvia ideias, refinava-as e então as escrevia no quadro. “Ele ficava na frente da sala como um professor que estivesse nos consultando”, lembraria Jean Jennings. “Levávamos a ele um problema específico que estávamos enfrentando e sempre tomávamos muito cuidado para que as questões representassem problemas fundamentais que estivéssemos tendo, e não apenas problemas mecânicos.”53
Von Neumann era franco, mas intelectualmente intimidador. Quando dizia algo, era difícil que alguém rebatesse. Jennings, no entanto, às vezes o fazia. Um dia ela contestou um argumento dele, e os homens da sala olharam incrédulos para ela. Von Neumann, porém, fez uma pausa, inclinou a cabeça e aceitou seu argumento. Von Neumann era bom ouvinte e também havia dominado a insinuante arte de fingir humildade.54 “Ele era uma impressionante combinação de um homem brilhante que sabe que é brilhante, mas que ao mesmo tempo é muito modesto e tímido em relação a apresentar suas ideias para os outros”, de acordo com Jennings. “Era bastante inquieto e ficava andando para lá e para cá na sala, e no entanto, quando apresentava suas ideias, era quase como se estivesse pedindo desculpas por discordar de você ou por ter uma ideia melhor.”
Von Neumann foi particularmente bom ao inventar os fundamentos da programação de computador, que nessa época ainda era algo mal definido, que pouco havia avançado no século transcorrido desde que Ada Lovelace escreveu os passos para fazer com que a Máquina Analítica gerasse números de Bernoulli. Criar um conjunto elegante de instruções, ele percebeu, envolvia tanto lógica rigorosa quanto expressão precisa. “Ele era bastante detalhista ao explicar por que precisávamos de uma instrução específica ou por que não podíamos ficar sem certa instrução”, Jennings relembraria. “Foi a primeira vez que percebi a importância dos códigos de instrução, a lógica por trás deles e os ingredientes que uma instrução completa precisa ter.” Essa era uma manifestação do talento maior dele, o de chegar à essência de uma nova ideia. “O que Von Neumann tinha, e que percebi que outros gênios têm, é a capacidade de pegar, em um problema específico, o ponto crucialmente importante.”55
Von Neumann percebeu que eles estavam fazendo algo mais do que apenas melhorar o ENIAC para que pudesse ser reprogramado com rapidez. Mais importante, eles estavam seguindo a visão de Ada ao criar uma máquina que podia realizar qualquer tarefa lógica com qualquer conjunto de símbolos. “O computador com programa armazenado, como concebido por Alan Turing e realizado por John von Neumann, rompeu a distinção entre números que significam coisas e números que fazem coisas”, escreveu George Dyson. “Nosso universo nunca mais seria o mesmo.”56
Além disso, Von Neumann compreendeu, mais rapidamente do que seus colegas, um importante atributo de reunir dados e instruções de programação na mesma memória armazenada. A memória podia ser apagável, o que hoje chamamos de memória de leitura e escrita. Isso significava que as instruções de programa armazenadas podiam ser modificadas não só ao final da tarefa como em qualquer momento enquanto o programa estava rodando. O computador podia modificar seu próprio programa com base nos resultados que estava obtendo. Para facilitar essa operação, Von Neumann propôs uma linguagem de programa com um endereço variável que permitia uma maneira simples de substituir instruções enquanto o programa estava rodando.57
A equipe da Penn propôs ao Exército que fosse construído um ENIAC novo e melhorado dentro dessas especificações. Ele seria binário em vez de decimal, usaria linhas de retardo de mercúrio como memória e incluiria boa parte, mas não tudo, daquilo que se tornou conhecido como “arquitetura de Von Neumann”. Em sua proposta original ao Exército, essa nova máquina seria chamada de Calculadora Automática Variável Discreta Eletrônica. Cada vez mais, porém, a equipe se referia a ela como computador, porque ela podia fazer muito mais do que apenas calcular. Todos simplesmente a chamavam de EDVAC.
Ao longo dos anos seguintes, em julgamentos de patentes e em conferências, em livros e em artigos que traziam versões históricas conflitantes, houve debates sobre quem merecia mais crédito pelas ideias desenvolvidas em 1944 e no início de 1945 e que se tornaram parte do computador com programa armazenado. O relato acima, por exemplo, dá mais crédito a Eckert e Mauchly pelo conceito do programa armazenado e a Von Neumann por perceber a importância da capacidade do computador de modificar seu programa armazenado enquanto ele rodava e de criar uma funcionalidade de programação com endereço variável para facilitar isso. Mas mais importante do que avaliar a origem das ideias é ver como a inovação na Penn era outro exemplo da criatividade colaborativa. Von Neumann, Eckert, Mauchly, Goldstine, Jennings e muitas outras pessoas analisavam ideias coletivamente e aceitavam contribuições de engenheiros, experts em eletrônica, cientistas de materiais e programadores.
A maior parte de nós já participou de sessões de brainstorming em grupo que produziram ideias criativas. Mesmo alguns dias depois, pode haver lembranças divergentes sobre quem sugeriu o que primeiro, e percebemos que a formação de ideias foi mais moldada pela atuação em grupo do que por um indivíduo que tenha saído com um conceito totalmente original. As fagulhas vêm do ato de esfregar as ideias umas contra as outras, e não de relâmpagos saídos do nada. Isso foi verdade nos Laboratórios Bell, em Los Alamos, em Bletchley Park e na Penn. Um dos principais pontos fortes de Von Neumann era seu talento — questionando, ouvindo, analisando gentilmente propostas experimentais, articulando e fazendo comparações — para ser promotor de um processo colaborativo desse tipo.
John von Neumann (1903-57), 1954.
Herman Goldstine (1913-2004), c. 1944.
Presper Eckert (no centro) e Walter Cronkite (à direita), da cbs, olham uma previsão eleitoral do univac, 1952.
Sua propensão para coletar e confrontar ideias, e a falta de preocupação demonstrada por ele de anotar com precisão de onde elas tinham vindo, foi útil para semear e fertilizar os conceitos que se tornaram parte do EDVAC. Mas às vezes isso irritou aqueles que se preocupavam mais em receber crédito — ou até mesmo direitos de propriedade intelectual — quando fosse o caso. Ele certa vez disse que não era possível atribuir a origem de ideias discutidas em um grupo. Ao ouvir isso, Eckert teria respondido: “Sério?”.58
Os benefícios e as desvantagens da abordagem de Von Neumann ficaram claros em junho de 1945. Após dez meses de convívio com o trabalho que estava sendo feito na Penn, ofereceu-se para resumir as discussões da equipe em um artigo. Ele o fez durante uma longa viagem de trem para Los Alamos.
Eu seu relatório escrito à mão, que ele enviou de volta para Goldstine na Penn, Von Neumann descrevia em densos detalhes matemáticos a estrutura e o controle lógico do proposto computador de programa armazenado e por que ele estava “tentado a tratar toda a memória como se fosse um só órgão”. Quando Eckert questionou por que Von Neumann parecia estar preparando um artigo baseado em ideias que outras pessoas haviam ajudado a desenvolver, Goldstine tranquilizou-o: “Ele só está procurando esclarecer essas coisas para si mesmo e fez isso escrevendo cartas para mim para que possamos escrever de volta se ele não tiver entendido algo corretamente”.59
Von Neumann havia deixado espaços em branco para a inserção de referências ao trabalho de outras pessoas, e seu texto nunca usou o acrônimo EDVAC. Mas quando Goldstine datilografou o artigo (que tinha 101 páginas), atribuiu a autoria inteiramente a seu herói. A página de título composta por Goldstine tinha como título “Primeiro Esboço de um Relatório sobre o EDVAC, por John von Neumann”. Goldstine usou um mimeógrafo para produzir 24 cópias, que distribuiu no fim de junho de 1945.60
O “Esboço de Relatório” era um documento muitíssimo útil e orientou o desenvolvimento de computadores posteriores por pelo menos uma década. A decisão de Von Neumann de escrevê-lo e de permitir que Goldstine o distribuísse refletia a abertura de cientistas voltados para a academia, sobretudo matemáticos, que têm a tendência a querer publicar e disseminar mais do que de tentar obter propriedade intelectual. “Eu sem dúvida pretendo fazer o que puder para manter pública a maior parte possível desse campo de pesquisa (do ponto de vista das patentes)”, Von Neumann explicou para um colega. Ele tinha dois objetivos ao escrever o relatório, como diria mais tarde: “Contribuir para esclarecer e coordenar o pensamento do trabalho em grupo relacionado ao EDVAC” e “aprofundar o desenvolvimento da arte de construir computadores de alta velocidade”. Ele afirmou que não estava tentando dizer que era dono de qualquer dos conceitos e que nunca solicitou patente deles.61
Eckert e Mauchly viam isso de maneira diferente. “Sabe, acabamos vendo Von Neumann como um mascate das ideias de outras pessoas, tendo Goldstine como seu principal representante”, Eckert diria mais tarde. “Von Neumann estava roubando ideias e tentando fingir que o trabalho feito na Escola Moore [na Penn] havia sido realizado por ele.”62 Jean Jennings concordou, lamentando mais tarde o fato de Goldstine ter “apoiado Von Neumann com entusiasmo em suas afirmações injustas e por ter essencialmente ajudado o homem a sequestrar o trabalho de Eckert, Mauchly e de outras pessoas no grupo da Escola Moore”.63
O que mais chateou Mauchly e Eckert, que tentaram patentear muitos dos conceitos por trás do ENIAC e do EDVAC, foi o fato de que a distribuição do relatório de Von Neumann, em termos legais, tornou aqueles conceitos de domínio público. Quando Mauchly e Eckert tentaram patentear a arquitetura de um computador com programa armazenado, não conseguiram porque (segundo decisões tanto de advogados do Exército quanto dos tribunais) o relatório de Von Neumann era considerado uma “publicação anterior” dessas ideias.
Essas disputas de patente foram as precursoras de uma grande questão da era digital: a propriedade intelectual deve ser compartilhada livremente e colocada sempre que possível em domínio público e em formatos abertos? Esse caminho, seguido em grande medida pelos desenvolvedores da internet e da web, pode incentivar a inovação por meio da rápida disseminação de ideias e das melhorias trazidas pelo trabalho em conjunto. Ou os direitos sobre a propriedade intelectual devem ser protegidos e os inventores devem ter permissão para ter lucro com a propriedade de suas ideias e inovações? Esse caminho, seguido em grande medida pelas indústrias de hardware, de eletrônicos e de semicondutores, pode dar incentivos financeiros e trazer investimento de capital que incentivem a inovação e recompensem o risco. Nos setenta anos passados desde que Von Neumann colocou seu “Esboço de Relatório” sobre o EDVAC em domínio público, a tendência tem sido, com algumas notáveis exceções, seguir uma abordagem mais proprietária. Em 2011, um marco foi atingido: a Apple e a Google gastaram mais em processos legais e em pagamentos relacionados com patentes do que em pesquisa e em desenvolvimento de novos produtos.64
A REVELAÇÃO DO ENIAC AO PÚBLICO
Mesmo enquanto a equipe na Penn estava projetando o EDVAC, seus integrantes continuavam lutando para fazer com que seu antecessor, o ENIAC, funcionasse. Isso aconteceu no outono de 1945.
Nessa época, a guerra havia acabado. Não havia necessidade de computar trajetórias de artilharia, mas a principal tarefa do ENIAC ainda era relacionada ao uso de armas. A tarefa secreta veio de Los Alamos, o laboratório de armas atômicas no Novo México, onde Edward Teller, físico teórico nascido na Hungria, havia feito uma proposta de uma bomba de hidrogênio, chamada de “a Super”, em que um mecanismo de fissão atômica seria usado para criar uma reação de fusão. Para determinar como isso funcionaria, os cientistas precisavam calcular qual seria a força das reações em cada milionésimo de segundo.
A natureza do problema era altamente secreta, mas as monstruosas equações foram levadas à Penn em outubro para que o ENIAC as resolvesse. Eram necessários quase 1 milhão de cartões perfurados para inserir os dados, e Jennings foi chamada à sala do ENIAC com algumas de suas colegas para que Goldstine coordenasse o processo de configuração. O ENIAC resolveu as equações, e ao fazer isso mostrou que o projeto de Teller era falho. Mais tarde, o matemático e refugiado polonês Stanislaw Ulam trabalhou com Teller (e Klaus Fuchs, que na verdade era um espião russo) para modificar o conceito da bomba de hidrogênio, com base nos resultados do ENIAC, para que fosse possível produzir uma reação termonuclear massiva.65
Até que essas tarefas secretas fossem concluídas, o ENIAC foi mantido em sigilo. Ele só foi exibido ao público em 15 de fevereiro de 1946, quando o Exército e a Penn marcaram uma apresentação de gala e algumas prévias para a imprensa.66 O capitão Goldstine decidiu que a peça central da revelação da máquina seria uma demonstração de um cálculo de trajetória de míssil. Assim, duas semanas antes ele convidou Jean Jennings e Betty Snyder para ir a seu apartamento e, enquanto Adele servia chá, perguntou se elas podiam programar o ENIAC a tempo para que ele fizesse isso. “Claro que podíamos”, Jennings disse. Ela estava empolgada. Essa operação permitiria que ela pusesse as mãos direto na máquina, o que era raro.67 Elas começaram a trabalhar plugando barramentos de memória nas unidades corretas e configurando bandejas de programação.
Os homens sabiam que o sucesso de sua demonstração estava nas mãos dessas duas mulheres. Mauchly apareceu num sábado com uma garrafa de conhaque de damasco para mantê-las fortes. “Era delicioso”, Jennings se lembraria. “Desse dia em diante, eu sempre tinha uma garrafa de conhaque de damasco no meu armário.” Poucos dias depois, o reitor da escola de engenharia trouxe para elas uma sacola de papel com um quinto de uma garrafa de uísque. “Continuem o bom trabalho”, disse a elas. Snyder e Jennings não eram de beber muito, mas os presentes atingiram o objetivo. “Eles nos deixaram impressionadas com a importância da demonstração”, disse Jennings.68
A noite anterior à demonstração era a do Dia dos Namorados, mas, apesar de elas em geral terem vida social ativa, Snyder e Jennings não comemoraram. “Em vez disso, ficamos escondidas com aquela máquina maravilhosa, o ENIAC, ocupadas fazendo as últimas correções e as últimas checagens no programa”, relembraria Jennings. Havia uma falha persistente que elas não conseguiam resolver: o programa fazia um excelente trabalho informando os dados da trajetória dos projéteis de artilharia, mas não sabia quando parar. Mesmo depois do momento em que o projétil teria chegado ao solo, o programa continuava calculando sua trajetória, “como se fosse um projétil hipotético que perfurasse o solo com a mesma velocidade que viajava pelo ar”, Jennings descreveria. “A não ser que resolvêssemos esse problema, sabíamos que a demonstração seria uma fraude, e que os inventores e engenheiros do ENIAC ficariam constrangidos.”69
Jennings e Snyder trabalharam até tarde na noite anterior à entrevista coletiva tentando resolver o problema, mas não conseguiram. Por fim, desistiram à meia-noite, quando Snyder precisou pegar o último trem para voltar para casa, no subúrbio. Depois ter se deitado, porém, ela compreendeu qual poderia ser o defeito: “Acordei no meio da noite pensando no erro […]. Então, fiz uma viagem especial no trem matutino naquele dia para verificar determinado cabo”. O problema era que havia um comando no final de um “faça um loop” que tinha um dígito a menos. Ela mudou a chave necessária e a falha foi consertada. “Betty podia raciocinar melhor dormindo do que a maior parte das pessoas quando estão acordadas”, Jennings diria mais tarde, maravilhada. “Enquanto ela dormia, seu subconsciente desatou o nó que o consciente não havia conseguido desatar.”70
Na demonstração, o ENIAC foi capaz de fornecer em quinze segundos um conjunto de cálculos de trajetória de míssil que exigiria várias semanas de trabalho de computadores humanos, mesmo trabalhando com um Analisador Diferencial. Foi tudo bastante dramático. Mauchly e Eckert, como bons inovadores, sabiam montar um espetáculo. As pontas das válvulas dos acumuladores do ENIAC, que ficavam dispostas em grades de 10 × 10, podiam ser vistas através de buracos no painel frontal da máquina. Mas a luz fraca das lâmpadas de neon, que eram usadas como luzes indicadoras, mal eram visíveis. Assim, Eckert pegou bolas de pingue-pongue, cortou-as ao meio, escreveu números nelas e as colocou sobre as lâmpadas. Quando o computador começou a processar os dados, as luzes da sala foram desligadas para que a plateia ficasse impressionada com as bolas de pingue-pongue piscando, um espetáculo que se tornou comum em filmes e em programas de TV. “Enquanto a trajetória estava sendo calculada, os números apareciam nos acumuladores e eram transferidos de um lugar para outro, e as luzes começaram a piscar como as lâmpadas nas marquises de Las Vegas”, diria Jennings. “Fizemos aquilo que tínhamos de fazer. Havíamos programado o ENIAC.”71 Vale a pena repetir: elas haviam programado o ENIAC.
A revelação do ENIAC rendeu a primeira página no New York Times sob a manchete “Computador Eletrônico Pisca Respostas e Pode Acelerar Engenharia”. A reportagem começava dizendo: “Um dos maiores segredos da guerra, uma máquina impressionante que aplica a velocidade da eletrônica pela primeira vez a tarefas matemáticas até aqui de resposta difícil e incerta, foi anunciada aqui esta noite pelo Departamento de Guerra”.72 A matéria continuava numa página inteira no interior do Times, com fotos de Mauchly, Eckert e da máquina com o tamanho de uma sala, o ENIAC. Mauchly afirmava que a máquina levaria a uma previsão melhor do tempo (sua paixão original), ajudaria a projetar aviões e possibilitaria “a operação de projéteis em velocidades supersônicas”. A reportagem da Associated Press trazia uma visão ainda mais grandiosa, afirmando: “O robô abriu caminho matemático para que todo homem tenha uma vida melhor”.73 Como exemplo da “vida melhor”, Mauchly afirmava que os computadores um dia serviriam para reduzir o preço de um pedaço de pão. Como isso ocorreria, ele não explicou, mas essa e milhões de outras ramificações de fato ocorreram.
Mais tarde, Jennings reclamaria, na tradição de Ada Lovelace, que muitas das reportagens exageraram o que o ENIAC era capaz de fazer ao chamá-lo de “cérebro gigante” e dando a entender que ele podia pensar. “O ENIAC não era um cérebro em nenhum sentido”, ela insistiria. “Ele não podia raciocinar, assim como os computadores ainda não podem raciocinar, mas podia dar mais dados para que as pessoas raciocinassem.”
Jennings tinha outra reclamação, de caráter mais pessoal.
Betty e eu fomos ignoradas e esquecidas depois da demonstração. Sentíamos que estávamos desempenhando papéis em um filme fascinante que de repente teve uma virada ruim, em que trabalhamos como cães por duas semanas para produzir algo realmente espetacular e depois fomos riscadas do roteiro.
Naquela noite, houve um jantar à luz de velas no venerável Houston Hall, da Universidade da Pensilvânia. O evento estava recheado de luminares da ciência, de altos oficiais militares e de boa parte dos homens que haviam trabalhado no ENIAC. Mas Jean Jennings e Betty Snyder não estavam lá, nem qualquer outra das mulheres programadoras.74 “Betty e eu não fomos convidadas”, Jennings diria, “e isso nos deixou quase horrorizadas.”75 Enquanto os homens e vários dignitários celebravam, Jennings e Snyder iam sozinhas para casa em uma noite muito fria de fevereiro.
OS PRIMEIROS COMPUTADORES COM PROGRAMAS ARMAZENADOS
O desejo de Mauchly e de Eckert de obter patentes — e lucros — com aquilo que haviam ajudado a inventar causou problemas na Penn, que ainda não tinha uma política clara de divisão de direitos de propriedade intelectual. Eles receberam permissão para pedir patentes do ENIAC, mas depois a universidade insistiu em obter licenciamento livre do pagamento de royalties e o direito de sublicenciar todos os aspectos do projeto. Além disso, as partes não conseguiam chegar a um acordo a respeito de quem tinha os direitos sobre as inovações do EDVAC. A disputa era complexa, porém o resultado foi que Mauchly e Eckert saíram da Penn no fim de março de 1946.76
Eles formaram o que se tornaria a Eckert-Mauchly Computer Corporation, com base na Filadélfia, e foram pioneiros em levar os computadores da academia para um empreendimento comercial. (Em 1950, a empresa, junto com as patentes que eles obteriam, se tornou parte da Remington Rand, que se transformou na Sperry Rand e depois na Unisys.) Entre as máquinas que eles construíram estava o UNIVAC, que foi comprado pelo escritório do Censo e por outros clientes, entre eles a General Electric.
Com suas luzes piscantes e a aura de Hollywood, o UNIVAC ficou famoso quando a CBS o mostrou na noite da eleição de 1952. Walter Cronkite, o jovem âncora da cobertura da rede, hesitou quanto à possibilidade de a máquina gigante ter muita utilidade quando comparada ao conhecimento dos correspondentes da televisão, mas concordou que a máquina podia proporcionar um espetáculo divertido para os espectadores. Mauchly e Eckert recrutaram um estatístico da Penn, e eles trabalharam juntos em um programa que comparava os primeiros resultados de alguns distritos usados como amostra aos resultados de eleições anteriores. Às 20h30 pelo horário da Costa Leste, bem antes de a maior parte das apurações estar encerrada, o UNIVAC previu, com chance de 100 para 1, uma vitória fácil para Dwight Eisenhower sobre Adlai Stevenson. A CBS de início segurou o veredicto do UNIVAC; Cronkite disse ao público que o computador ainda não havia chegado a uma conclusão. Mais tarde naquela mesma noite, porém, depois de a contagem de votos ter confirmado que Eisenhower havia vencido com folga, Cronkite colocou no ar o correspondente Charles Collingwood para admitir que o UNIVAC havia feito a previsão no início da noite, mas que a CBS não havia anunciado o fato. O UNIVAC se tornou uma celebridade e um acessório das próximas noites de eleição.77
Eckert e Mauchly não haviam esquecido a importância das mulheres programadoras que trabalharam com eles na Penn, embora não as tivessem convidado para o jantar comemorativo do ENIAC. Eles contrataram Betty Snyder, que, sob o nome de casada, Betty Holberton, tornou-se a programadora pioneira que ajudou a desenvolver as linguagens COBOL e Fortran, e Jean Jennings, que se casou com um engenheiro e se tornou Jean Jennings Bartik. Mauchly também queria recrutar Kay McNulty, mas, em vez disso, depois que sua esposa morreu afogada em um acidente, ele decidiu pedi-la em casamento. Eles tiveram cinco filhos, e ela continuou a ajudar a projetar softwares para o UNIVAC.
Mauchly também contratou a decana de todas elas, Grace Hopper. “Ele deixava as pessoas tentarem coisas”, Hopper respondeu quando questionada sobre por que deixou que ele a convencesse a entrar na Eckert-Mauchly Computer Corporation. “Ele incentivava a inovação.”78 Em 1952, ela havia criado o primeiro compilador funcional do mundo, conhecido como sistema A-0, que traduzia códigos simbólicos matemáticos em linguagem de máquina e, assim, tornava mais fácil a criação de programas por pessoas comuns.
Como um bom integrante de tripulação, Hopper gostava de um estilo de colaboração em que todos punham a mão na massa, e ajudou a desenvolver o método aberto de inovação ao enviar suas versões iniciais do compilador a amigos e conhecidos no mundo da programação e ao pedir a eles que fizessem melhorias. Ela usou o mesmo processo de desenvolvimento aberto quando trabalhou como chefe da parte técnica ao coordenar a criação do COBOL, a primeira linguagem padronizada para computadores de várias plataformas.79 Seu instinto de que a programação devia ser algo independente da máquina refletia sua preferência pelo trabalho em grupo; mesmo máquinas, ela acreditava, deviam trabalhar bem juntas. Isso também demonstra como ela compreendeu cedo um fato decisivo da era do computador: que o hardware se tornaria um produto acessível e que a programação seria o local em que estaria o verdadeiro valor. Até que Bill Gates entrasse em cena, esse foi um insight que faltou à maior parte dos homens.e
Von Neumann desdenhava a abordagem mercenária de Eckert e Mauchly. “Eckert e Mauchly são um grupo comercial com uma política comercial de patentes”, ele reclamaria a um amigo. “Não podemos trabalhar com eles direta ou indiretamente da mesma maneira aberta como trabalharíamos com um grupo acadêmico.”80 Mas toda essa correção não impediu Von Neumann de ganhar dinheiro com suas ideias. Em 1945, ele negociou um contrato de consultoria pessoal com a IBM, dando à empresa direito sobre quaisquer invenções suas. Era um acordo perfeitamente válido. No entanto, isso enfureceu Eckert e Mauchly. “Ele vendeu todas as nossas ideias de maneira indireta para a IBM”, Eckert reclamaria. “Ele foi hipócrita. Disse uma coisa e fez outra diferente. Não era digno de confiança.”81
Depois que Mauchly e Eckert saíram da Penn, a universidade logo perdeu seu papel como centro de inovação. Von Neumann também saiu, para voltar ao Instituto de Estudos Avançados, em Princeton. Ele levou consigo Herman e Adele Goldstine, além de engenheiros fundamentais, como Arthur Burks. “Talvez as instituições, assim como as pessoas, possam ficar cansadas”, refletiria mais tarde Herman Goldstine sobre o fato de a Penn ter deixado de ser um epicentro do desenvolvimento do computador.82 Os computadores eram considerados uma ferramenta, não um objeto de estudo acadêmico. Poucos professores percebiam que a ciência da computação se tornaria uma disciplina acadêmica ainda mais importante do que a engenharia elétrica.
Apesar do êxodo, a Penn foi capaz de desempenhar mais um papel essencial no desenvolvimento dos computadores. Em julho de 1946, a maior parte dos experts no assunto — entre os quais Von Neumann, Goldstine, Eckert, Mauchly e outros que estavam lutando entre si — voltou à universidade para uma série de palestras e seminários, chamada de Palestras da Escola Moore, que iria disseminar o conhecimento deles sobre computação. A série de oito semanas atraiu Howard Aiken, George Stibitz, Douglas Hartree, da Universidade de Manchester, e Maurice Wilkes, de Cambridge. Um dos focos principais foi a importância de usar arquitetura de programa armazenado para que os computadores pudessem corresponder à visão de Turing de serem máquinas universais. Como resultado, as ideias de projeto desenvolvidas de maneira colaborativa por Mauchly, Eckert, Von Neumann e outros na Penn se tornaram a fundação da maior parte dos computadores futuros.
A distinção de ser o primeiro computador com programa armazenado pertenceu a duas máquinas que ficaram prontas quase ao mesmo tempo, no verão de 1948. Uma delas era uma atualização do ENIAC original. Von Neumann e Goldstine, com os engenheiros Nick Metropolis e Richard Clippinger, desenvolveram uma maneira de usar três tabelas de função do ENIAC para armazenar um conjunto rudimentar de instruções.83 Essas tabelas de funções haviam sido usadas para armazenar dados sobre o atrito de um projétil de artilharia, mas esse espaço de memória podia ser aproveitado para outros objetivos, já que a máquina não estava mais sendo utilizada para calcular tabelas de trajetórias. Mais uma vez, o verdadeiro trabalho de programação foi em grande parte feito por mulheres: Adele Goldstine, Klára von Neumann e Jean Jennings Bartik. Bartik se lembraria:
Trabalhei com Adele quando desenvolvemos, com outras pessoas, a versão original do código necessário para tornar o ENIAC um computador de programa armazenado usando as tabelas de função para armazenar as instruções codificadas.84
Isso reconfigurou o ENIAC, que se tornou operacional em abril de 1948 e que tinha uma memória somente de leitura, o que significava que era difícil modificar os programas enquanto eles estavam rodando. Além disso, a memória de linha de retardo de mercúrio da máquina era lenta e exigia engenharia de precisão. Ambas as desvantagens foram contornadas por uma pequena máquina da Universidade de Manchester, na Inglaterra, que foi construída do zero para funcionar como um computador de programa armazenado. Chamada de “o Bebê de Manchester”, ela se tornou operacional em junho de 1948.
O laboratório de computação de Manchester era dirigido por Max Newman, o mentor de Turing, e a parte mais importante do trabalho foi feita por Frederic Callan Williams e Thomas Kilburn. Williams inventou um mecanismo de armazenamento usando tubos de raios catódicos, o que tornou a máquina mais rápida e mais simples do que as que usavam linhas de retardo de mercúrio. Ela funcionava tão bem que levou ao mais potente Manchester Mark I, que se tornou operacional em abril de 1949, assim como ao EDSAC, completado por Maurice Wilkes e por uma equipe de Cambridge em maio daquele ano.85
Enquanto essas máquinas eram desenvolvidas, Turing também estava tentando desenvolver um computador de programa armazenado. Depois de sair de Bletchley Park, ele entrou para o Laboratório Nacional de Física, um prestigioso instituto de Londres, onde projetou a Máquina Computadora Automática, assim nomeada em homenagem às duas máquinas de Babbage. Mas o computador progredia de maneira irregular. Em 1948, Turing estava farto do ritmo do equipamento e frustrado pelo fato de seus colegas não terem interesse em forçar os limites de aprendizagem da máquina e da inteligência artificial. Assim, ele saiu do laboratório para se unir a Max Newman em Manchester.86
Do mesmo modo, Von Neumann embarcou no desenvolvimento de um computador de programa armazenado assim que chegou ao Instituto de Estudos Avançados, em Princeton, em 1946, um empreendimento narrado por George Dyson no livro Turing’s Cathedral. O diretor do instituto, Frank Aydelotte, e o administrador mais influente do corpo docente, Oswald Veblen, eram firmes defensores do que se tornou conhecido como a Máquina IAS, enfrentando as críticas vindas de outros professores que diziam que construir uma máquina de computação iria apequenar a missão daquilo que devia ser um refúgio do pensamento teórico. “Ele deixou perplexos, ou mesmo horrorizados, alguns de seus colegas matemáticos dedicados à mais absoluta abstração, reafirmando às claras seu grande interesse por outras ferramentas matemáticas que não fossem o quadro-negro e o giz ou o lápis e o papel”, relembraria a mulher de Von Neumann, Klára. “Sua proposta de construir uma máquina eletrônica de computação sob a cúpula sagrada do instituto não foi recebida com aplausos, para dizer o mínimo.”87
Os integrantes da equipe de Von Neumann ficavam em uma área que teria sido usada pela secretária do lógico Kurt Gödel, exceto pelo fato de que ele não desejava ter uma secretária. Ao longo do ano de 1946, eles publicaram artigos detalhados sobre seu projeto, que enviaram para a Biblioteca do Congresso e para o Escritório de Patentes dos Estados Unidos, não com pedidos de patentes, mas com afirmações de que queriam que seu trabalho fosse posto em domínio público.
A máquina se tornou plenamente operacional em 1952, porém aos poucos foi abandonada após Von Neumann deixar a equipe, para ir para Washington e se unir à Comissão de Energia Atômica. “A extinção de nosso grupo de computador foi um desastre não só para Princeton, mas também para a ciência como um todo”, diria o físico Freeman Dyson, um dos integrantes do instituto (e pai de George Dyson). “Isso significava que não existia, naquele período crítico nos anos 1950, um centro acadêmico em que pessoas de todos os tipos ligadas a computadores se reunissem no mais alto nível intelectual.”88 Em vez disso, a partir dos anos 1950, a inovação na computação se transferiu para o reino corporativo, liderado por empresas como Ferranti, IBM, Remington Rand e Honeywell.
Essa mudança nos leva de volta à questão sobre as proteções de patentes. Se Von Neumann e sua equipe tivessem continuado a criar invenções pioneiras e a colocá-las em domínio público, esse modelo aberto de desenvolvimento teria levado a melhorias mais rápidas nos computadores? Ou a competição de mercado e as recompensas financeiras pela criação de propriedade intelectual faz mais para incentivar a inovação? Nos casos da internet, da web e de algumas formas de software, o modelo aberto se mostraria mais funcional. Mas no que diz respeito ao hardware, como computadores e microchips, um sistema proprietário forneceu incentivos para um surto de inovação nos anos 1950. A razão de a abordagem proprietária ter funcionado bem, em especial no caso de grandes computadores, é que grandes organizações industriais, que precisavam levantar capital de giro, estavam em melhor posição para fazer a pesquisa, o desenvolvimento, a produção e o marketing dessas máquinas. Além disso, até meados dos anos 1990, a proteção de patentes era obtida com mais facilidade do que no caso do software.f No entanto, havia um lado negativo na proteção de patentes concedida à inovação de hardware: o modelo proprietário produziu empresas que eram tão protegidas e que ficam tanto na defensiva que chegaram a perder a revolução do computador pessoal no início dos anos 1970.
SERIAM AS MÁQUINAS CAPAZES DE PENSAR?
Tal como pensara em relação ao desenvolvimento de computadores com programas armazenados, Alan Turing voltou sua atenção para a afirmação feita por Ada Lovelace um século antes, em sua “Nota” final sobre a Máquina Analítica de Babbage: que máquinas de fato poderiam pensar. Se uma máquina podia modificar seu próprio programa baseada na informação por ela processada, perguntava-se Turing, não seria isso uma forma de aprendizagem, capaz de levar à inteligência artificial?
As questões relacionadas à inteligência artificial estão em pauta há muito tempo, da mesma forma que as relacionadas à consciência humana. E como em relação à maioria das questões desse tipo, Descartes trouxe grande contribuição para formulá-las em termos modernos. Em seu Discurso do método, de 1637, em que se lê sua famosa afirmação “Penso, logo existo”, Descartes escreveu:
Se houvesse algumas [máquinas] que se assemelhassem a nossos corpos e imitassem as nossas ações tanto quanto moralmente é possível, teríamos sempre dois meios muito certos para reconhecer que, mesmo assim, não seriam homens verdadeiros. O primeiro é que […] não é possível conceber que [uma máquina como essa] combine [palavras] de outro modo para responder ao sentido de tudo quanto dissermos em sua presença, como os homens mais embrutecidos podem fazer. E o segundo é que, embora fizessem várias coisas tão bem ou talvez melhor do que algum de nós, essas máquinas falhariam necessariamente em outras, pelas quais se descobriria que não agiam por conhecimento […].g
Havia muito tempo Turing estava interessado na forma como os computadores poderiam reproduzir as operações de um cérebro humano, e essa curiosidade foi aprofundada por seu trabalho com máquinas que decifravam linguagem codificada. Em princípios de 1943, quando o Colossus estava sendo projetado em Bletchley Park, Turing cruzou o Atlântico para uma missão no baixo Manhattan, onde ele discutiu, com a equipe que estava trabalhando em codificação eletrônica de expressões verbais, a tecnologia capaz de embaralhar e desembaralhar conversas telefônicas.
Lá ele conheceu o brilhante gênio Claude Shannon, pós-graduado pelo MIT, que escreveu, em 1937, a original dissertação de mestrado demonstrando que a álgebra booliana, que transformava proposições lógicas em variáveis binárias, podia ser realizada por circuitos eletrônicos. Shannon e Turing passaram a se encontrar às tardes para tomar chá, demorando-se em longas conversas. Ambos se interessavam pela ciência do cérebro e perceberam que seus artigos científicos de 1937 tinham em comum algo fundamental: eles mostravam que uma máquina, operando com simples instruções binárias, era capaz de resolver problemas não apenas de matemática, mas também de lógica. E como a lógica é a base a partir da qual o cérebro humano funciona, uma máquina poderia, em teoria, reproduzir a inteligência humana.
“Shannon quer alimentar [uma máquina] não apenas com dados, mas também com assuntos culturais!”, disse Turing certo dia, no almoço, a colegas dos Laboratórios Bell. “Ele quer tocar música para ela!” Em outro almoço na sala de jantar da instituição, Turing afirmou, com sua voz aguda, ouvida por todos os executivos que ali se encontravam: “Não, não estou interessado em desenvolver um cérebro poderoso. O que estou buscando é apenas um cérebro medíocre, como o do presidente da American Telephone and Telegraph Company”.89
Quando Turing regressou a Bletchley Park em abril de 1943, travou amizade com um colega chamado Donald Michie, e os dois passaram muitas noites jogando xadrez num pub próximo. Quando estavam discutindo a possibilidade de criar um computador capaz de jogar xadrez, Turing abordou o problema pensando não no processo grosseiro de usar o poder de processamento para calcular cada jogada possível; em vez disso, concentrou-se na possibilidade de a máquina poder aprender a jogar xadrez por meio da prática contínua. Em outras palavras, ela devia ser capaz de tentar novos lances e aperfeiçoar sua estratégia com cada vitória ou derrota. Essa abordagem, caso tivesse sucesso, representaria uma salto fundamental que teria fascinado Ada Lovelace: máquinas seriam capazes de executar mais do que apenas meras instruções específicas fornecidas por seres humanos; elas podiam aprender com a experiência e aperfeiçoar suas próprias instruções.
“Foi dito que máquinas de computação só conseguem realizar as tarefas para as quais recebem instruções”, explicou Turing à Sociedade de Matemática de Londres em fevereiro de 1947. “Mas será que só se pode usá-las dessa maneira?” Ele então discutiu a implicação dos novos computadores com programas armazenados capazes de modificar suas próprias tabelas de instruções. “Seria como um aluno que aprendeu muito com o professor, mas acrescentou muito mais com seu próprio trabalho. Quando isto acontecer, sinto que seremos obrigados a considerar que a máquina demonstra inteligência.”90
Quando Turing terminou sua exposição, seus ouvintes ficaram por um instante em silêncio, aturdidos pelas suas afirmações. Da mesma forma, seus colegas do Laboratório Nacional de Física ficaram desconcertados com a obsessão de Turing de fabricar máquinas pensantes. O diretor do Laboratório Nacional de Física, Sir Charles Darwin (neto do biólogo evolucionista), escreveu aos seus superiores, em 1947, que Turing pretendia “estender ainda mais seu trabalho com a máquina em direção a um viés biológico” e explorar a questão: “Seria possível construir uma máquina capaz de aprender com a experiência?”.91
A inquietante ideia de Turing de que máquinas algum dia seriam capazes de pensar como seres humanos provocou furiosas objeções tanto à época como daí por diante. Havia as esperadas objeções religiosas, assim como as puramente emocionais, tanto no conteúdo como na expressão. “Só quando uma máquina puder escrever um soneto ou compor um concerto a partir de pensamentos e emoções experimentadas, e não pelo acaso de símbolos, poderemos admitir que máquinas se ombreiam com o cérebro”, declarou um famoso neurocirurgião, Sir Geoffrey Jefferson, na prestigiosa Lister Oration de 1949.92 A resposta de Turing a um repórter do Times de Londres pareceu um tanto irreverente, mas também sutil: “A comparação é talvez um tanto inadequada porque um soneto escrito por uma máquina será mais bem apreciado por outra máquina!”.93
Assim, estava preparado o terreno para seu segundo trabalho fundamental, “Computering Machinery and Intelligence” [Computação, maquinaria e inteligência], publicado no jornal Mind, em outubro de 1950.94 Nesse artigo, ele delineou o que se tornou conhecido como teste de Turing. Começou com uma proposição absolutamente clara: “Seriam as máquinas capazes de pensar?”. Com um senso de humor de um menino de escola, Turing inventou um jogo — que ainda hoje é jogado e discutido — para dar um significado empírico à questão. Ele propôs uma definição meramente operacional de inteligência artificial: se não se pode distinguir o output de uma máquina do output de um cérebro humano, então careceremos de um motivo razoável para insistir que a máquina não está “pensando”.
O teste de Turing, que ele chamou de “jogo da imitação”, é simples: alguém encaminha perguntas escritas a um ser humano e a uma máquina e tenta identificar, com base em suas respostas, qual dos dois é um ser humano. Uma amostra das perguntas, escreveu ele, pode ser a seguinte:
P: Por favor, escreva um soneto sobre a ponte do Forth.
R: Não conte comigo para isso. Eu não nunca conseguirei escrever poesia.
P: Some 34957 a 70764.
R: (Pausa de cerca de trinta segundos, e então vem a resposta) 105621.
P: Você joga xadrez?
R: Sim.
P: Tenho K em K1, e mais nenhuma peça. Você tem apenas K em K6 e R em R1. É sua vez de jogar. O que você vai fazer?
R: (Depois de uma pausa de quinze segundos) R-R8 mate.
Nessa amostra de diálogo, Turing conseguiu algumas coisas. O exame cuidadoso mostra que o interrogado, depois de trinta segundos, cometeu um pequeno erro na soma (a resposta correta é 105721). Seria isso uma prova de que o interrogado é um ser humano? Talvez, mas é possível também que se trate de uma máquina fingindo astutamente tratar-se de um ser humano. Turing também refutou a objeção de Jefferson de que uma máquina não é capaz de escrever um soneto; talvez a resposta apresentada acima tenha sido dada por uma pessoa que admitisse essa incapacidade. Mais adiante, no mesmo artigo, Turing imaginou o seguinte questionamento para mostrar a dificuldade de usar o ato de escrever um soneto como critério para identificar um ser humano:
Q: No primeiro verso de seu soneto, em que se lê: “Comparo você a um dia de verão”, não soaria melhor dizer “um dia de primavera?”.
A: Ficaria sem métrica.
P: Que tal “um dia de inverno?”. A métrica ficaria perfeita.
R: Sim, mas ninguém quer ser comparado a um dia de inverno.
P: Você diria que o sr. Pickwick faz você se lembrar do Natal?
R: De certo modo.
P: No entanto, o Natal é um dia de inverno, e acho que o sr. Pickwick não se incomodaria com a comparação.
R: Acho que você está brincando. Quando nos referimos a um dia, estamos falando de um dia de inverno comum, e não de um dia especial como o Natal.
A ideia de Turing era de que não seria possível dizer se esse interlocutor era um ser humano ou uma máquina fingindo-se de ser humano.
Turing apresentou sua suposição da possibilidade de um computador ganhar esse jogo de imitação: “Acho que dentro de cinquenta anos será possível programar computadores […] para fazê-los jogar o jogo da imitação tão bem que um interrogador médio não terá mais que 70% de chances de fazer a identificação correta após cinco minutos de perguntas”. Ele estava enganado. Isso ainda não aconteceu.
Em seu artigo, Turing tentou refutar os muitos desafios possíveis para sua definição de pensar. Ele descartou a objeção de que Deus concedeu uma alma e a capacidade de pensar apenas aos seres humanos, argumentando que isso “implica uma séria restrição à onipotência divina”. Ele perguntou se Deus “tinha liberdade para conceder uma alma a um elefante, se achasse conveniente”. É de imaginar que sim. Pela mesma lógica, a qual, vinda do descrente Turing, soava um tanto sardônica, com certeza Deus poderia dar uma alma a uma máquina, se assim o desejasse.
A objeção mais interessante, em especial no que tange ao nosso relato, é a que Turing atribuiu a Ada Lovelace. “A Máquina Analítica não tem nenhuma pretensão de criar nada”, escreveu ela em 1843. “Ela é capaz de fazer o que quer que saibamos instruí-la para fazer. Pode seguir análises; mas não tem o poder de prever nenhuma relação analítica ou verdades.” Em outras palavras, ao contrário da mente humana, um aparelho mecânico não tem livre-arbítrio nem é capaz de tomar iniciativas próprias. Ele é capaz meramente de atuar como programado. Em seu artigo de 1950, Turing dedicou uma seção ao que chamou de “Objeção de Lady Lovelace”.
Sua mais engenhosa defesa contra essa objeção foi o argumento de que uma máquina poderia, de fato, ser capaz de aprender, tornando-se assim seu próprio agente e capaz de conceber pensamentos novos. “Em vez de tentar produzir um programa que simule a inteligência adulta, por que não tentar produzir um que simule a inteligência de uma criança?”, ele perguntou. “Se ela fosse submetida a um curso adequado de educação, poderíamos obter um cérebro adulto.” O processo de aprendizagem de uma máquina seria diferente do de uma criança, admitiu ele. “Por exemplo, ela não teria pernas, de modo que não seria possível lhe pedir para encher o balde de carvão. Provavelmente não teria olhos […]. Não se poderia mandar tal criatura para a escola sem que fosse alvo de muita zombaria por parte das crianças.” Portanto, a máquina-bebê deveria ser educada de alguma outra forma. Turing propôs um sistema de punição e recompensa, que a faria repetir determinadas atividades e evitar outras. Por fim, essa máquina poderia desenvolver suas próprias ideias sobre como conceber as coisas.
Mas mesmo que uma máquina pudesse imitar o pensamento, objetaram os críticos de Turing, ela não poderia ser consciente de fato. Quando o jogador humano do teste de Turing usa palavras, ele as associa a significados do mundo real, emoções, experiências, sensações e percepções. As máquinas, não. Com tais conexões, a língua é apenas um jogo dissociado de sentido.
Essa objeção levou John Searle a formular, em um ensaio de 1980, o mais consistente desafio ao teste de Turing. Ele propôs um experimento mental, chamado Sala Chinesa, no qual um anglófono sem nenhum conhecimento de chinês recebia uma extensa série de regras orientando-o sobre como responder a qualquer combinação de caracteres chineses. Munida de um manual de instruções bastante bom, a pessoa poderia convencer um interrogador de que ela de fato falava chinês. Não obstante, ela não teria entendido nenhuma resposta que tivesse dado, nem poderia demonstrar nenhuma intencionalidade. Nas palavras de Ada Lovelace, ela não teria nenhuma intenção de criar alguma coisa; em vez disso, realizaria meramente ações que lhe fossem ordenadas. Da mesma forma, a máquina do jogo de imitação de Turing, não importava quão bem pudesse imitar um ser humano, não poderia ter nenhum entendimento nem consciência do que estava dizendo. Dizer que uma máquina “pensa” não faz mais sentido do que dizer que a pessoa que segue o volumoso manual de instruções entende chinês.95
Uma resposta à objeção de Searle é argumentar que, ainda que o homem na verdade não entenda chinês, o sistema incorporado na sala — o homem (unidade de processamento), o manual de instruções (programa) e os arquivos cheios de caracteres chineses (os dados) — como um todo na verdade poderia entender chinês. Não há uma resposta conclusiva. Na realidade, o teste de Turing e as objeções a ele continuam sendo até hoje o tema mais discutido da ciência cognitiva. E apesar de todos os avanços na capacidade dos computadores, ninguém ainda conseguiu desenvolver uma máquina capaz de aprender bem o bastante para passar no teste de Turing.
Durante alguns anos que se seguiram à sua redação de “Computering Machinery and Intelligence”, Turing pareceu comprazer-se em participar da polêmica por ele provocada. Com um humor algo perverso, ele zombava das pretensões daqueles que tagarelavam sobre sonetos e exaltavam a consciência. “Um dia, as senhoras levarão seus computadores em seus passeios ao parque dizendo umas às outras: ‘Meu computadorzinho disse uma coisa tão engraçada hoje de manhã!’”, brincou ele em 1951. Como mais tarde notou seu mentor, Max Newman, “as analogias cômicas mas brilhantemente oportunas com que ele expunha suas ideias faziam dele um companheiro encantador”.96
Um tópico recorrente nas discussões com Turing, e que logo teria uma triste repercussão, era o papel que os apetites sexuais e os desejos emocionais desempenham no pensamento humano, diferentemente do que acontece com as máquinas. Um exemplo bastante notório aconteceu num debate, televisionado pela BBC em janeiro de 1952, que Turing travou com o neurocirurgião Sir Geoffrey Jefferson, mediado por Max Newman e pelo filósofo da ciência Richard Braithwaite. “Os interesses humanos são determinados, em grande medida, por seus apetites, desejos, tendências e instintos!”, disse Braithwaite, afirmando que, para criar uma verdadeira máquina pensante, “parecia ser necessário equipar a máquina com algo correspondente a uma série de desejos”. Newman interveio dizendo que máquinas “têm desejos muito restritos e não são capazes de enrubescer quando se sentem embaraçadas”. Jefferson foi ainda mais longe, usando repetidas vezes a expressão “impulsos sexuais” como exemplo e referindo-se a “emoções e instintos humanos, como aqueles relacionados com o sexo”. O homem é presa de “impulsos sexuais”, disse ele, e “pode agir feito um idiota”. Ele falou tanto sobre a forma como os apetites sexuais interferiam no pensamento humano que os editores da BBC eliminaram algumas dessas referências do programa, entre elas sua afirmativa de que só acreditaria que uma máquina fosse capaz de pensar quando a visse roçar a perna de uma máquina fêmea.97
Turing, que ainda era bastante discreto em relação à própria homossexualidade, manteve-se calado durante essa parte da discussão. Durante as semanas que precederam a transmissão de 10 de janeiro de 1952, ele se envolveu numa série de atos tão humanos que uma máquina os acharia incompreensíveis. Ele acabara de produzir um artigo científico, e em seguida escreveu um conto sobre como planejara comemorar seu feito:
Fazia bastante tempo que ele “tivera” alguém, na verdade desde que havia travado contato com um soldado em Paris no verão anterior. Agora que terminara de elaborar seu artigo, ele poderia, de maneira legítima, considerar que merecia outro gay, e sabia onde encontrar um que lhe fosse adequado.98
Na Oxford Street, em Manchester, Turing conheceu um proletário desgarrado de dezenove anos chamado Arnold Murray, com o qual iniciou um relacionamento. Quando voltou do programa da BBC, convidou Murray para se instalar na casa dele. Certa noite Turing falou ao jovem sobre sua fantasia de jogar xadrez com um computador depravado, que ele seria capaz de vencer provocando-lhe raiva, depois prazer, em seguida presunção. O relacionamento tornou-se mais complicado nos dias que se seguiram, até que certa noite Turing voltou para casa e viu que ela tinha sido arrombada. O criminoso era um amigo de Murray. Quando Turing denunciou o caso à polícia, terminou por revelar seu relacionamento sexual com o rapaz, e por isso foi detido por “torpe indecência”.99
No julgamento, que aconteceu em março de 1952, Turing confessou-se culpado, embora deixasse claro que não sentia remorso. Em sua defesa, Max Newman compareceu como testemunha de perfil moral. Sentenciado e privado de seus direitos de ir e vir,h ofereceram a Turing uma escolha: encarceramento ou sursis — no caso deste último, com a condição de receber um tratamento com hormônios por meio de injeções de estrogênio sintético para moderar seus desejos sexuais, como se ele fosse uma máquina controlada quimicamente. Ele escolheu a segunda opção, à qual se submeteu por um ano.
A princípio, Turing pareceu aceitar tudo sem maiores problemas, mas, em 7 de junho de 1954, suicidou-se mordendo uma maçã com cianureto. Seus amigos observaram que ele sempre fora fascinado pela cena do filme Branca de Neve e os sete anões em que a rainha má mergulha uma maçã numa poção venenosa. Encontraram-no na cama com espuma em volta da boca, cianureto no corpo e uma maçã parcialmente comida ao seu lado.
Seria uma máquina capaz de tal ação?
John Bardeen (1908-91), William Shockley (1910-89) e Walter Brattain (1902-87) em foto dos Laboratórios Bell, 1948.
O primeiro transístor nos Laboratórios Bell.
William Shockley (na cabeceira da mesa), no dia em que ganhou o prêmio Nobel, sendo brindado por colegas, entre eles Gordon Moore (sentado à esquerda) e Robert Noyce (de pé no centro, com taça de vinho), 1956.
a A fórmula de Stirling, que aproxima o valor do fatorial de um número.
b O display e as explicações do Mark I no centro de ciência de Harvard não faziam qualquer menção a Grace Hopper nem mostravam nenhuma mulher até 2014, quando o display foi revisado para destacar o papel dela e o dos programadores.
c “Bug” é a palavra em inglês para inseto. “Debbug” significa literalmente “retirar insetos”. (N. T.)
d Von Neumann teve sucesso quanto a isso. O projeto de implosão de plutônio levaria à primeira detonação de um dispositivo atômico, o teste de Trinity, em julho de 1945 perto de Alamogordo, no Novo México, e seria usado na bomba que foi jogada sobre Nagasaki em 9 de agosto de 1945, três dias após a bomba de urânio ter sido usada em Hiroshima. Em função de seu ódio tanto pelos nazistas quanto pelos comunistas apoiados pelos russos, Von Neumann se tornou um defensor aberto das armas atômicas. Ele participou do teste de Trinity, assim como dos testes posteriores no atol de Bikini, no Pacífico, e argumentava que mil mortes por radiação eram um preço aceitável a ser pago para que os Estados Unidos obtivessem uma vantagem na corrida nuclear. Ele morreria doze anos depois, aos 53 anos, de câncer nos ossos e no pâncreas, que podem ter sido causados pela radiação emitida durante esses testes.
e Em 1967, aos sessenta anos, Hopper foi chamada para voltar à ativa na Marinha, com a missão de padronizar o uso do COBOL e de validar compiladores de COBOL. Uma votação no Congresso lhe permitiu estender sua permanência além da idade de aposentadoria. Ela chegou à patente de contra-almirante, e por fim se aposentou em agosto de 1986, aos 79 anos, como o oficial mais velho em serviço na Marinha.
f A Constituição dos Estados Unidos dá poder para que o Congresso “promova o progresso da ciência e de artes úteis assegurando por tempo limitado aos autores e aos inventores o direito exclusivo a seus respectivos escritos e descobertas”. O Escritório de Patentes e de Marcas Registradas dos Estados Unidos, ao longo dos anos 1970, em geral não concedia patentes a inovações cuja única diferença em relação à tecnologia existente fosse o uso de um novo algoritmo de software. Isso causou uma situação sombria nos anos 1980, com recursos conflitantes de decisões judiciais e de sentenças da Suprema Corte. As políticas mudaram em meados dos anos 1990, quando o tribunal da capital federal proferiu uma série de decisões permitindo patentes para softwares que produzissem um “resultado útil, concreto e tangível” e o presidente Bill Clinton nomeou como chefe do Escritório de Patentes uma pessoa que havia sido o principal lobista da Indústria de Publicação de Softwares.
g René Descartes, Discurso do método. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 63-4. (N. T.)
h No Natal de 2013, Turing foi agraciado postumamente com um perdão formal da rainha Elizabeth II.