9. Software

Quando Paul Allen foi até a atulhada banca de revistas no meio de Harvard Square e viu o Altair na capa do número de janeiro de 1975 da Popular Electronics, ficou ao mesmo tempo exultante e consternado. Embora emocionado com a chegada da era do computador pessoal, estava com medo de perder a festa. Tirou do bolso 75 centavos, pegou a revista e saiu às pressas pela neve lamacenta para o quarto de Bill Gates em Harvard. Gates, de Seattle como ele, fora seu colega no ensino médio e também era fanático por computação, e o convencera a abandonar a faculdade e mudar-se para Cambridge. “Ei, isto está acontecendo sem a gente”, declarou Allen. Gates começou a balançar para a frente e para trás, como costumava fazer em momentos de intensidade. Quando terminou de ler o artigo, concordou com Allen. Nas oito semanas seguintes, os dois se lançaram num frenesi de criação de códigos que mudaria a natureza do negócio de computadores.1

Ao contrário dos pioneiros da computação que vieram antes dele, Gates, que nasceu em 1955, não fora criado dando muita importância a hardware. Ele nunca tinha sentido a emoção de construir rádios Heathkit ou de soldar placas de circuito. Um professor de física do ensino médio, irritado com a arrogância que ele por vezes demonstrava ao disputar o terminal de tempo compartilhado da escola, certa vez lhe passara como tarefa o projeto de montar uma engenhoca com um kit eletrônico da Radio Shack. Quando Gates enfim apresentou o trabalho, recordou o professor, “havia solda pingando por toda a parte de trás” e ele não funcionou.2

Para Gates, a magia dos computadores nada tinha a ver com circuitos de hardware, mas com códigos de software. “Não somos gurus de hardware, Paul”, dizia sempre que Allen propunha construírem uma máquina. “A gente entende é de software.” Até Allen, o amigo um pouquinho mais velho, que tinha construído rádios de ondas curtas, sabia que o futuro pertencia aos codificadores. “Hardware”, admitia, “não era nossa área de expertise.”3

O que Gates e Allen resolveram fazer naquele dia de dezembro de 1974, quando viram pela primeira vez a capa da Popular Electronics, foi criar o software para computadores pessoais. Mais que isso, estavam dispostos a alterar o equilíbrio de forças na indústria emergente, para que o hardware se tornasse mercadoria intercambiável, enquanto aqueles que criavam os sistemas operacionais e os aplicativos ficassem com a maior parte dos lucros. “Quando Paul me mostrou a revista, não existia indústria de software”, lembra-se Gates. “Tivemos a intuição de que se podia criar uma. E criamos.” Anos depois, refletindo sobre suas inovações, ele disse: “Foi a ideia mais importante que já tive”.4

 

 

BILL GATES

 

O movimento oscilante de Gates enquanto lia o artigo da Popular Electronics era um sinal de intensidade desde a infância. “Quando bebê, ele costumava balançar para a frente e para trás sozinho no berço”, lembrou o pai, um advogado afável e bem-sucedido. Seu brinquedo favorito era um cavalinho de pau com molas.5

A mãe de Gates, líder civil muito respeitada, de uma importante família de banqueiros de Seattle, era conhecida pela obstinação, mas logo descobriu que não era páreo para o filho. Com frequência, quando ela o chamava para jantar, ele, em seu quarto no porão, que ela desistira de convencê-lo a limpar, simplesmente não respondia. “O que você está fazendo?”, perguntou ela, certa vez.

“Pensando”, berrou ele de volta.

“Pensando?”

“Sim, mãe, pensando”, respondeu ele. “Já tentou pensar?”

Ela o levou a um psicólogo, que o fez ler livros sobre Freud, livros que ele devorou, mas foi incapaz de domar seu comportamento. Depois de um ano de sessões, o psicólogo disse à mãe de Gates: “A senhora vai perder. Melhor se adaptar, porque não há sentido em tentar vencê-lo”. Contou o pai: “Ela acabou aceitando que era inútil tentar competir com ele”.6

Apesar dessa rebeldia ocasional, Gates gostava de fazer parte de uma família amorosa e unida. Os pais e as duas irmãs adoravam conversas animadas à mesa do jantar, jogos de salão, de cartas e quebra-cabeças. Como o nome dele era William Gates III, a avó, ávida jogadora de bridge (e estrela do basquete), deu-lhe a alcunha de Trey, termo de baralho para o 3, que se tornou seu apelido de menino. Junto com amigos da família, eles passavam a maior parte do verão, e alguns fins de semana, num conjunto de chalés no Hood Canal, perto de Seattle, onde os meninos travavam uma “Cheerio Olympics”, que tinha uma cerimônia de abertura formal, incluindo desfile com tochas, seguida de corridas de três pernas, lançamento de ovos e outros jogos parecidos. “Jogava-se muito a sério”, recordou o pai. “Ganhar era importante.”7 Foi ali que Gates, com onze anos, negociou seu primeiro contrato formal; ele redigiu e assinou um pacto com uma das irmãs que lhe dava o direito, não exclusivo, mas ilimitado, de usar a luva de beisebol dela por cinco dólares. “Quando Trey quiser, a luva é dele”, rezava uma das cláusulas.8

Gates tendia a evitar esportes de equipe, mas se tornou sério jogador de tênis e esquiador aquático. Também se dedicava com assiduidade a aperfeiçoar truques divertidos, como pular de dentro de uma lata de lixo sem tocar na borda. O pai tinha sido escoteiro (podia-se ver nele, pela vida afora, todas as doze virtudes da Lei Escoteira), e o jovem Bill, por sua vez, se tornou um escoteiro entusiasmado, alcançando o Life Rank, faltando-lhe apenas três insígnias para se tornar um Eagle. Numa reunião de escoteiros, ele ensinou a usar um computador, mas isso aconteceu antes de se poder ganhar uma insígnia por habilidades computacionais.9

Apesar dessas atividades saudáveis, o excepcional intelecto de Gates, seus óculos grandes, seu físico “pele e osso”, sua voz estridente e seu estilo CDF — camisa em geral abotoada até o pescoço — tornavam-no pouco atraente e pouco sociável. “Era um nerd antes que o termo fosse inventado”, declarou um professor. Sua intensidade intelectual era legendária. Na quarta série, quando a turma da aula de ciências recebeu como dever de casa uma dissertação de cinco páginas, ele apresentou uma de trinta. Naquele ano, ele respondeu “cientista” quando lhe perguntaram por escrito qual seria sua profissão. Também ganhou um jantar no topo do Obelisco Espacial de Seattle por decorar e recitar de modo exato o Sermão da Montanha numa competição conduzida pelo pastor de sua família.10

No outono de 1967, quando Gates acabara de fazer doze anos, mas ainda parecia ter uns nove, os pais perceberam que ele aproveitaria mais os estudos se fosse para uma escola privada. “Ficamos preocupados quando chegou a hora de ele ir para sétima série”, disse o pai. “Era pequeno e tímido, precisava de proteção, e seus interesses eram muito diferentes dos interesses comuns de alunos da sexta série.”11 Escolheram Lakeside, com seus velhos prédios de tijolos, que lembravam os cursos preparatórios da Nova Inglaterra e onde estudavam os filhos (e dentro de pouco tempo as filhas) do establishment comercial e profissional de Seattle.

Poucos meses depois de Gates ingressar em Lakeside, sua vida sofreu uma mudança com a chegada de um terminal de computador numa pequena sala do edifício de ciências e matemática. Na realidade, não se tratava bem de um computador, mas de um terminal de teletipo ligado por linha telefônica a um sistema de computador de tempo compartilhado Mark II da General Electric. O Clube das Mães de Lakeside, com 3 mil dólares obtidos numa garage sale, havia adquirido o direito de usar o sistema a 4,80 dólares o minuto. Ficaria claro que elas tinham subestimado lamentavelmente o interesse despertado por essa nova atividade — e os custos. Quando o professor da sétima série lhe mostrou a máquina, Gates foi fisgado no mesmo instante. “Eu sabia mais do que ele naquele primeiro dia”, lembrou o professor, “mas só naquele primeiro dia.”12

Gates começou a ir à sala do computador sempre que podia, todos os dias, com um dedicado grupo de amigos. “Aquele era o nosso mundo”, recordou. O terminal de computador tornou-se para ele o que uma bússola de brinquedo tinha sido para o jovem Einstein: um objeto hipnótico que despertava a mais profunda e apaixonada curiosidade. Num esforço para explicar o que amava no computador, Gates diria depois que era a simples beleza do rigor lógico, coisa que ele tinha cultivado em seu próprio pensamento. “Quando se usa um computador, não se pode fazer declarações vagas. Só declarações precisas.”13

A linguagem que o computador usava era o BASIC, Beginner’s All-Purpose Symbolic Instruction Code, desenvolvida poucos anos antes em Dartmouth para permitir que não engenheiros escrevessem programas. Embora nenhum professor de Lakeside conhecesse o BASIC, Gates e seus amigos assimilaram o manual de quarenta páginas e se tornaram magos em seu uso. Não demorou para que passassem a aprender sozinhos linguagens mais sofisticadas, como Fortran e COBOL, mas o BASIC continuou sendo o primeiro amor de Gates. Ainda no ensino médio, ele produziu programas que jogavam o jogo da velha e convertiam números de uma base matemática para outra.

Paul Allen estava dois anos à frente de Gates, e fisicamente era muito mais maduro (tinha até suíças) quando se conheceram na sala do computador de Lakeside. Alto e sociável, não era o CDF típico. Encantou-se de cara com Gates, que lhe pareceu curioso e divertido. “Vi um aluno da oitava série magro e desajeitado, rosto cheio de sardas, abrindo caminho na multidão em volta do teletipo, todo ele braços e pernas e nervosa energia”, lembra-se Allen. “Para onde você olhava, lá estava aquele cabelo louro.” Os dois meninos fizeram amizade e com frequência trabalhavam até tarde da noite na sala do computador. “Ele era de fato competitivo”, disse Allen. “Queria mostrar que era inteligente. E era muito, muito persistente.”14

Um dia, Allen, que vinha de uma família bem mais modesta (o pai era administrador de uma biblioteca na Universidade de Washington), visitou Gates em casa e ficou maravilhado. “Os pais assinavam a Fortune e Bill a lia religiosamente.” Quando Gates lhe perguntou como ele achava que era dirigir uma grande empresa, Allen respondeu que não tinha a menor ideia. “Talvez um dia a gente tenha a nossa própria empresa”, declarou Gates.15

Um traço que diferenciava os dois era a capacidade de concentração. A mente de Allen viajava entre muitas ideias e paixões, mas Gates era uma espécie de obsessivo em série. “Enquanto eu tinha curiosidade de estudar tudo que via, Bill se concentrava numa tarefa de cada vez, com absoluta disciplina”, disse Allen. “Isso ficava muito claro quando ele estava fazendo um programa — sentava-se com um marcador preso na boca, batendo os pés no chão e balançando, impermeável a qualquer distração.”16

Aparentemente, Gates podia dar a impressão de ser um nerd e um pirralho. Parecia gostar do confronto, mesmo com professores, e quando estava furioso fazia pirraça. Era um gênio, sabia que era e gabava-se disso. “Isso é idiotice”, diria ele, tanto a colegas de classe como a professores. Ou intensificaria o insulto, dizendo que era “a coisa mais cretina que já ouvi”, ou “isso é totalmente idiota”. Certa ocasião, riu de um menino na sala de aula que estava demorando a entender uma explicação, o que levou um aluno muito popular a sentar-se na frente de Gates, virar-se para trás e agarrá-lo pela gola abotoada para lhe dar um murro. O professor teve que intervir.

Mas, para quem o conhecia, Gates era mais do que apenas um nerd e um pirralho. Intenso e rápido de raciocínio, também tinha senso de humor, amava aventuras, arriscava-se fisicamente e gostava de organizar atividades. Com dezesseis anos, ganhou um Mustang vermelho zero (ainda o guardava mais de quarenta anos depois, preservado na garagem de sua mansão), com o qual participava de pegas com os amigos. Também levava os amigos para o conjunto de chalés da família no Hood Canal, onde fazia parasailing pendurado numa corda de trezentos metros atrás de uma lancha. Decorou o clássico conto “The Night the Bed Fell” [A noite em que a cama caiu], de James Thurber, para uma apresentação escolar, e estrelou uma produção de Black Comedy [Comédia negra], de Peter Shaffer. Mais ou menos nessa época, começou a informar às pessoas, em tom muito prático e prosaico, que ganharia 1 milhão de dólares antes dos trinta anos. A verdade é que ele se subestimou: aos trinta, teria uma fortuna de 350 milhões de dólares.

 

 

O LAKESIDE PROGRAMMING GROUP

 

No outono de 1968, quando Gates entrou na oitava série, ele e Allen formaram o Lakeside Programming Group. Em parte, era uma versão nerd de uma gangue. “No fundo, o Lakeside Programming Group era um clube de meninos, com muita disputa por uma posição de superioridade e muita testosterona no ar”, disse Allen. Mas o grupo logo se metamorfoseou em empresa voltada para o lucro e muito competitiva. “Eu era o motor”, declarou Gates. “Eu era o sujeito que dizia ‘Vamos visitar o mundo real, e tentar vender-lhe alguma coisa’.”17 Como observaria Allen depois, um pouco irritado, “enquanto estávamos todos empenhados em mostrar nossas coisas, Bill era o mais motivado e competitivo, sem a menor dúvida”.18

O Lakeside Programming Group incluía mais dois frequentadores da sala do computador da escola. Ric Weiland, colega de classe de Allen no primeiro ano do ensino médio, era coroinha de uma igreja luterana, cujo pai era engenheiro da Boeing. Dois anos antes, fizera seu primeiro computador no porão de casa. Tinha uma aparência bem diferente da dos outros obcecados que viviam enfurnados na sala do computador. Extraordinariamente bonito, alto, queixo quadrado, musculoso, lutava para aceitar que era gay, coisa muito difícil de tratar às claras num colégio conservador nos anos 1960.

O outro membro era Kent Evans, que estava na oitava série, junto com Gates. Filho de um ministro unitarista, era sociável e sempre afável, com um sorriso torto mas sedutor, que vinha do fato de ter nascido com fissura labiopalatal, que teve de ser corrigida com cirurgia. Era muitíssimo corajoso e desinibido, tanto ao ligar para tentar vender alguma coisa a executivos quanto para escalar íngremes penhascos. Tinha inventado o nome Lakeside Programming Group para conseguir material de graça das empresas que anunciavam em revistas eletrônicas. Também adorava fazer negócios, e ele e Gates, de quem se tornou o melhor amigo, liam juntos todos os números da revista Fortune. “Íamos conquistar o mundo”, contou Gates. “Tínhamos conversas intermináveis no telefone. Ainda lembro seu número.”19

O primeiro trabalho do Lakeside Programming Group surgiu no outono de 1968. Alguns engenheiros da Universidade de Washington tinham formado uma pequena empresa de tempo compartilhado, sediada numa concessionária Buick abandonada, à qual deram o nome de Computer Center Corporation, e o apelido de C-Cubed. Compraram um PDP-10 da Digital Equipment Corporation (DEC) — versátil mainframe que estava fadado a tornar-se burro de carga da crescente indústria de tempo compartilhado e a máquina favorita de Gates — com a intenção de vender tempo para clientes, como a Boeing, que se conectaria através do teletipo e de linhas telefônicas. Um dos parceiros da C-Cubed era uma mãe de Lakeside, que fez uma oferta à gangue de Gates, mais ou menos equivalente a propor a uma legião de alunos da terceira série serem provadores numa fábrica de chocolates. Sua missão: usar o novo PDP-10 o máximo que pudessem, pelo tempo que quisessem, programando e brincando à noite e nos fins de semana, para descobrir que tipo de atividade o faria travar. Estava no contrato da C-Cubed com a DEC que a empresa só pagaria lease pela máquina quando todos os erros tivessem sido eliminados e seu funcionamento se mostrasse estável. A DEC não imaginava que a máquina seria testada pelos fogosos púberes do Lakeside Programming Group.

Havia duas regras: sempre que fizessem a máquina travar, eles deviam descrever o que tinham feito, e não podiam voltar a fazer a mesma coisa enquanto não recebessem ordem. “Eles nos trouxeram como se fôssemos macacos, para descobrir falhas”, lembra-se Gates. “Com isso, exigíamos tudo da máquina, na base da força bruta.” O PDP-10 tinha três fitas magnéticas, e os meninos de Lakeside faziam as três girarem ao mesmo tempo, e tentavam travar o sistema lançando uma dezena de programas para usar toda a memória que pudessem. “Era um negócio de maluco”, disse Gates.20 Em troca dessa corrida de teste, eles podiam usar a máquina pelo tempo que quisessem para escrever seus próprios programas. Criaram um jogo de Banco Imobiliário, com geradores de números aleatórios para lançar os dados, e Gates cedeu ao seu fascínio por Napoleão (outro mago da matemática) preparando um complexo jogo de exercício militar. “A gente tinha aqueles exércitos e travava batalhas”, explicou Allen. “O programa foi crescendo, crescendo, e por fim, quando totalmente espichado, chegava a uns quinze metros de fita de teletipo.”21

Os meninos tomavam o ônibus para o C-Cubed e passavam as noites e os fins de semana concentrados na sala do terminal. “Virei fanático”, contou Gates. “Era dia e noite.” Eles programavam até não aguentar mais de fome, depois atravessavam a rua para um lugar frequentado por hippies, o Morningtown Pizza. Gates ficou obcecado. Seu quarto em casa vivia cheio de roupas e papel de teletipo espalhados. Os pais tentaram impor um toque de recolher, mas não funcionou. “Estavam tão envolvidos”, lembrou o pai, “que ele se esgueirava pela porta do porão quando íamos para a cama e passava a maior parte da noite no C-Cubed.”22

O executivo do C-Cubed que se tornou mentor da turma não foi outro senão Steve “Slug” Russell, o criativo e irônico programador que, quando aluno do MIT, criara o jogo Spacewar. A tocha estava sendo transmitida para uma nova geração de hackers. “Bill e Paul achavam travar a máquina tão divertido que eu precisava lembrar a eles o tempo todo que não deveriam voltar a fazê-lo sem que mandássemos”, contou Russell.23 “Quando eu me intrometia no que estavam fazendo, eles me lançavam uma ou cinco perguntas, e minha tendência natural era dar respostas longas.”24 O que impressionava Russell em especial era a capacidade de Gates de associar diferentes tipos de erro a programadores específicos na sede da DEC. Um típico relatório de falhas preparado por Gates dizia: “Bem, o código do sr. Faboli nesta linha, ele cometeu o mesmo erro de não checar o semáforo quando estava mudando de status. Basta inserirmos esta linha aqui para nos livrarmos deste problema”.25

Gates e Allen acabaram compreendendo a importância do sistema operacional do computador, que funcionava como se fosse o seu sistema nervoso. Como explicou Allen, “ele faz o trabalho logístico que permite à unidade central de processamento computar: mudando de um programa para outro; alocando armazenamento para arquivos; transferindo dados de e para modems, disk drives e impressoras”. O software do sistema operacional do PDP-10 era chamado de TOPS-10, e Russell permitiu que Gates e Allen lessem, mas não levassem para casa, os manuais. Eles às vezes ficavam até de madrugada assimilando-os.

Para compreender plenamente o sistema operacional, Gates percebeu que teriam de ter acesso ao código-fonte, que os programadores usavam para especificar cada ação a ser executada. Mas o código-fonte era rigorosamente guardado pelos engenheiros-chefes e estava fora do alcance dos meninos de Lakeside. Isso fazia com que ele fosse visto como o Santo Graal. Certo fim de semana, eles descobriram que cópias impressas do trabalho dos programadores eram descartadas numa grande caçamba de lixo nos fundos do edifício. Allen trançou as mãos para servir de apoio a Gates — “Ele com certeza não pesava mais de cinquenta quilos”, disse Allen —, e ele mergulhou no receptáculo para fuçar entre pó de café e lixo até encontrar as pilhas de formulários contínuos manchados e amassados. “Levamos aquele tesouro para a sala do terminal e nos debruçamos horas sobre ele”, contou Allen. “Não tive nenhuma Pedra de Roseta que pudesse me ajudar, e compreendia mais ou menos uma ou duas linhas em cada dez, mas fiquei totalmente embevecido com a rigorosa elegância escrita do código-fonte.”

Isso levou Gates e Allen a querer esmiuçar mais fundo. A fim de compreender a arquitetura do sistema operacional, eles precisariam dominar o código assembly, os comandos subjacentes — “Carregue B. Acrescente C. Armazene em A.” — que falavam direto com o hardware da máquina. Lembra-se Allen: “Notando meu interesse, Steve Russell me chamou de lado, me deu um manual de assembler encadernado em plástico brilhante e disse: ‘Você precisa ler isto’”.26 Ele e Gates liam os manuais e ainda assim ficavam confusos. Àquela altura, Russell lhes entregava outro, dizendo: “Hora de ler este”. Depois de um tempo, eles dominavam todas as complexidades, e as simplicidades, que fazem um sistema operacional tão potente e tão gracioso.

Quando se determinou que o software da DEC enfim tinha se estabilizado, os meninos de Lakeside perderam o direito de usar o PDP-10 de graça. “O que eles falaram, basicamente, foi ‘Tudo bem, macacos, hora de ir para casa’”, disse Gates.27 O Clube das Mães de Lakeside veio em seu socorro, pelo menos até certo ponto. Abriu contas pessoais para os garotos, mas havia um limite de tempo e dinheiro. Gates e Allen sabiam que jamais conseguiriam viver dentro desse limite e tentaram burlar o sistema obtendo a senha de um administrador, hackeando o arquivo do sistema contábil interno e decifrando o código de criptografia. Isso lhes permitiu tirar proveito das contas gratuitas. Mas antes que conseguissem produzir muito estrago, foram apanhados: o professor de matemática descobriu o rolo de papel de teletipo deles com números de conta e senhas. A questão foi submetida aos escalões superiores do C-Cubed e da DEC, e uma sisuda delegação visitou a escola para uma reunião no gabinete do diretor. Gates e Allen baixaram a cabeça, fingindo contrição, mas não adiantou. Foram proibidos de usar o sistema pelo resto do semestre e por todo o verão.

“Decidi parar de usar computadores por um tempo e tentei ser normal”, contou Gates. “Resolvi provar que podia conseguir só notas altas sem jamais levar um livro didático para casa. Em vez disso, li biografias de Napoleão e romances como O apanhador no campo de centeio.”28

 

 

Durante quase um ano, o Lakeside Programming Group fez uma pausa. Então, no outono de 1970, a escola começou a pagar pelo uso em tempo compartilhado de um PDP-10 de uma firma de Portland, Oregon, chamada Information Sciences, Inc. (ISI). Era caro, quinze dólares a hora. Gates e os amigos logo aprenderam a usá-lo de graça, hackeando-o, mas de novo foram apanhados. Tentaram então uma nova abordagem: escreveram uma carta para a ISI oferecendo seus serviços em troca de tempo livre no computador.

Os executivos da ISI tiveram lá suas dúvidas, de modo que os quatro rapazes foram a Portland, levando as cópias impressas e os códigos de programa, para mostrar que eram bons. “Resumimos nossa experiência e submetemos nossos currículos”, lembra-se Allen. Gates, que acabara de completar dezesseis anos, escreveu o seu a lápis, numa folha de caderno pautada. Eles receberam a missão de escrever um programa de folha de pagamento que produzisse contracheques já com deduções e impostos.29

Foi quando surgiram os primeiros problemas no relacionamento entre Gates e Allen. O programa tinha que ser escrito não em BASIC (a linguagem que Gates preferia), mas em COBOL, a linguagem mais complexa desenvolvida por Grace Hopper e outros como padrão do mundo dos negócios. Ric Weiland conhecia o COBOL e escreveu um editor de programas para o sistema ISI, que Allen logo dominou. Nesse ponto, os dois rapazes mais velhos concluíram que não precisavam mais de Gates, nem de Kent Evans. “Paul e Rick resolveram que não havia trabalho suficiente e nos disseram: ‘Não precisamos de vocês’”, lembra Gates. “Achavam que iam fazer o trabalho e conseguir o tempo de computador.”30

Gates foi excluído por seis semanas, durante as quais leu livros de álgebra e evitou Allen e Weiland. “Então Paul e Rick perceberam: ‘Que merda, este programa é um saco’”, contou Gates. O programa exigia não apenas conhecimentos de códigos, mas alguém que conseguisse calcular deduções de previdência, impostos federais e seguro-desemprego estadual. “Aí eles disseram: ‘Estamos tendo dificuldade aqui, será que vocês poderiam voltar e nos ajudar?’.” Foi quando Gates deu uma cartada que definiria suas futuras relações com Allen. “Aí eu disse: ‘O.k., mas quem vai mandar sou eu. E vou me acostumar a mandar, e será difícil lidar comigo a partir de agora, a não ser que eu mande. E se vocês me puserem no comando, vou mandar nisto e em qualquer outra coisa que fizermos juntos’.”31

E assim foi, a partir de então. Quando voltou para o grupo, Gates insistiu em transformar o Lakeside Programming Group numa entidade jurídica, usando um contrato preparado com a ajuda do pai. E embora sociedades não costumem ter presidentes, Gates começou a se intitular como tal. Tinha dezesseis anos. A seguir distribuiu os 18 mil dólares de tempo compartilhado de computador que estavam ganhando e puniu Allen. “Separei 4/11 para mim, 4/11 para Kent, 2/11 para Rick e 1/11 para Paul”, lembra Gates.

 

Eles acharam realmente engraçado que eu tivesse dividido em onze partes. Mas Paul era muito preguiçoso, e nunca fez nada, e eu estava tentando decidir, tudo bem, há uma relação de dois para um entre o que Paul fez e o que Rick fez, e há mais do que uma relação de dois para um entre o que Rick fez o que Kent e eu fizemos.32

 

De início, Gates tentou dar a si mesmo um pouco mais do que a Evans. “Mas ele jamais admitiria.” Evans era tão experiente em negócios quanto Gates. Quando terminaram o programa da folha de pagamentos, Evans fez uma anotação no meticuloso diário que escrevia:

 

Na terça-feira vamos a Portland entregar o programa e, como dizem eles, “forjar um acordo para trabalhos futuros”. Tudo até agora foi feito por seus benefícios educacionais e por grandes quantidades do caríssimo tempo de computador. Agora vamos querer alguns benefícios monetários também.33

 

As negociações foram tensas, e, por um momento, a ISI tentou segurar o pagamento em tempo de computador, porque fazia objeções à falta de documentos. Mas com a ajuda de uma carta escrita pelo pai de Gates, a disputa foi resolvida e o novo acordo, negociado.

No outono de 1971, no início do segundo ano do ensino médio de Gates, Lakeside se juntou a uma escola de meninas. Isso criou um pesadelo na programação das aulas, e os administradores pediram a Gates e Evans que escrevessem um programa para resolver o problema. Gates sabia que um calendário escolar tinha dezenas de variáveis — cursos obrigatórios, horários de professores, espaço na sala de aula, cursos avançados, disciplinas eletivas, seções que se sobrepunham, duas aulas seguidas de laboratório — que tornariam a tarefa dificílima, e recusou. Um professor aceitou o desafio, enquanto Gates e Evans davam aulas de computação no lugar dele. Mas naquele mês de janeiro, enquanto se esforçava para produzir um programa factível, o professor morreu na queda do pequeno avião em que viajava. Gates e Evans concordaram em assumir o trabalho. Passavam horas na sala do computador, com frequência dormindo lá mesmo, tentando escrever um novo programa a partir do zero. Em maio, ainda lutavam para terminá-lo a tempo de ser usado no próximo ano escolar.

Foi quando Evans, apesar de exausto, decidiu participar de uma excursão de alpinismo na qual se inscrevera. Ele não era atleta. “Foi muito estranho que ele se inscrevesse naquele curso de montanhismo”, lembra-se Gates. “Acho que para ele era uma questão de disciplina.” O pai de Evans, sabendo como o filho estava cansado, suplicou-lhe que cancelasse a viagem: “A última conversa que tive com ele foi para tentar convencê-lo a não ir, mas ele era desses que sempre terminam o que começam”. A turma estava aprendendo a usar cordas numa das encostas mais suaves quando Evans tropeçou. Primeiro tentou levantar-se, então continuou a rolar por quase duzentos metros na neve, numa geleira, apertando os braços contra o corpo para se proteger, em vez de abri-los em ângulo, como deveria ter feito. A cabeça bateu contra várias pedras, e ele morreu a bordo do helicóptero que foi resgatá-lo.

O diretor de Lakeside fez uma visita à casa de Gates, e Bill foi chamado ao quarto dos pais para receber a notícia.a O serviço fúnebre foi conduzido pelo professor de arte de Lakeside, Robert Fulghum, ministro unitarista como o pai de Evans e que, mais tarde, se tornaria um escritor popular (Tudo que eu devia saber aprendi no jardim de infância). “Eu, na verdade, nunca tinha pensado na morte de pessoas”, contou Gates. “Na cerimônia, eu deveria dizer alguma coisa, mas não consegui me levantar. Por duas semanas, não fiz absolutamente nada.” Depois disso, passou horas com os pais de Kent. “Kent era a menina dos olhos deles.”34

Gates ligou para Paul Allen, que acabara de terminar o primeiro ano na Universidade Estadual de Washington, e lhe pediu que voltasse a Seattle para ajudá-lo no programa de calendário escolar. “Eu ia fazê-lo com o Kent”, disse Gates. “Preciso de ajuda.” Estava muito mal. “Bill ficou semanas deprimido”, lembra-se Allen.35 Levaram camas portáteis para o campus e, como nos velhos tempos, passaram as noites na sala do computador naquele verão de 1972, em estreito contato espiritual com um PDP-10. Com sua mente rigorosa, Gates conseguiu pegar o problema das variáveis do calendário escolar proposto pelo Cube de Rubik, e dividiu-o numa série de pequenos problemas componentes a serem solucionados em sequência. Também conseguiu entrar no curso de história com todas as moças certas e apenas outro rapaz (“um medroso”) e garantir as tardes de terça-feira livres para ele e seus amigos mais adiantados. Mandaram preparar camisetas estampadas com um barril de chope e as palavras “Tuesday Club” inscritas na frente.36

 

 

Naquele verão, Gates e Allen ficaram encantados com o novo microprocessador 8008 da Intel, uma versão mais poderosa do “computador num chip” 4004. Ficaram tão animados com uma reportagem da Electronics Magazine que anos depois Gates ainda se lembraria do número da página. Se o chip pudesse mesmo atuar como um computador, e ser programado, perguntou Allen a Gates, por que não escrever uma linguagem de programação para ele, especificamente uma versão do BASIC? Se conseguissem a proeza, argumentou Allen, “pessoas comuns poderiam comprar computadores para ter no escritório, ou mesmo para ter em casa”. Gates rejeitou o 8008, que não lhe parecia à altura da tarefa. “Será uma tartaruga de tão lento, e patético”, respondeu ele. “E só a linguagem BASIC já ocuparia quase toda a memória. Não há potência suficiente.” Allen reconheceu que Gates tinha razão, e os dois concordaram em esperar até que, em conformidade com a Lei de Moore, um microcomputador duas vezes mais potente aparecesse, dentro de um ou dois anos. Os parâmetros de sua parceria estavam ficando claros. “Eu era o homem de ideias, o que concebia coisas tiradas do nada”, explicou Allen. “Bill ouvia e me contestava, e se concentrava nas minhas melhores ideias para torná-las realidades. Nossa colaboração tinha uma tensão natural, mas em geral funcionava de maneira produtiva.”37

Gates conseguira um contrato para analisar padrões de tráfego para uma empresa que contava quantos carros passavam por cima de tubos de borracha atravessados em estradas. Ele e Allen resolveram criar um computador com a finalidade específica de processar os dados brutos. Numa demonstração do seu gosto desajeitado, Gates escolheu para sua nova iniciativa comercial o nome de Traf-O-Data. Foram a uma loja de produtos eletrônicos Hamilton Avnet, na vizinhança, e, com grande senso de oportunidade, investiram 360 dólares em espécie na compra de um único chip 8008. Allen se lembra com clareza daquele momento:

 

O vendedor nos entregou uma pequena caixa de papelão, que abriu, ali mesmo, para darmos nossa primeira olhada num microprocessador. Dentro de uma embalagem de papel-alumínio, enfiado numa pequena placa de borracha preta isolante, havia um fino retângulo de mais ou menos 2,5 centímetros de comprimento. Para dois sujeitos que tinham passado os anos de formação diante de enormes e pesados mainframes, foi um momento de alumbramento.

 

Gates disse ao vendedor: “É dinheiro demais para uma coisa tão pequena”, mas ele e Allen estavam devidamente impressionados, pois sabiam que o pequeno chip continha o cérebro de um computador inteiro. “Aquelas pessoas acharam a coisa mais estranha do mundo dois meninos entrarem e comprarem um 8008”, lembra-se Gates. “E, ao desembrulhar o papel laminado, ficamos morrendo de medo de quebrá-lo.”38

Para escrever um programa que funcionasse no 8008, Allen imaginou uma maneira de alcançar o mesmo objetivo do microprocessador num computador mainframe. Como explicaria depois, a concorrência do 8008 “refletia um truísmo em círculos tecnológicos que lembrava as teorias de Alan Turing nos anos 1930: qualquer computador poderia ser programado para se comportar como qualquer outro computador”. Havia outra lição nessa façanha de alquimia, uma façanha que estava no âmago da contribuição de Gates e Allen para a revolução da informática: “O software superou o hardware”, explicaria Allen mais tarde.39

Levando em conta sua reverência pelo software em detrimento do hardware, não é de admirar que Gates e Allen conseguissem escrever um bom programa para o proposto tabulador de tráfego, mas nunca fossem capazes de fazer os componentes de hardware funcionarem de modo adequado, em especial o mecanismo que deveria ler as fitas de tráfego. Um dia, quando achavam que ele estava funcionando bem, um funcionário do departamento de engenharia de Seattle foi à casa da família de Gates para assistir a uma demonstração. Enquanto ele estava sentado na sala de visitas, os deuses da demonstração se vingaram e o leitor de fitas falhou repetidas vezes. Gates correu para ir buscar a mãe. “Diga a ele, mãe!”, implorou, “diga a ele que funcionou ontem à noite!”40

 

 

No segundo semestre do último ano de Gates no ensino médio, na primavera de 1973, ele e Allen foram recrutados pela Bonneville Power Administration, que estava caçando em qualquer lugar do país especialistas em PDP-10 para programar seu sistema de gerenciamento da rede elétrica. Gates e os pais conversaram com o diretor de Lakeside, que achou que o emprego seria mais educativo do que o último semestre escolar. Allen pensava o mesmo a respeito de seu semestre na universidade: “Era uma oportunidade de trabalharmos juntos de novo num PDP-10 e sendo pagos para isso!”. Eles se amontoaram no Mustang conversível de Gates, percorreram, em direção sul, os 265 quilômetros de Seattle até o centro de comando de Bonneville em menos de duas horas e alugaram um apartamento barato para os dois.

O local de trabalho era um abrigo subterrâneo no rio Columbia, do outro lado de Portland. “Havia uma enorme sala de controle, com uma aparência melhor do que a de qualquer programa de TV que eu já tinha visto”, lembra-se Gates. Ele e Allen se debruçavam sobre códigos em sessões que duravam doze horas ou mais. “Quando estava muito fatigado, Bill pegava um pacote de Tang, derramava um pouco de pó numa das mãos e lambia só pelo efeito do açúcar”, lembra-se Allen. “Suas palmas ficaram com um crônico matiz alaranjado naquele verão.” Às vezes, depois de dois dias de trabalho seguidos, iam “dar uma descansada”, como dizia Gates, e apagavam por dezoito horas ou mais. “Disputávamos”, contou Gates, “para ver quem ficaria no prédio, digamos, três dias direto, quatro dias direto. O pessoal mais pudico dizia: ‘Vão para casa tomar um banho’. Éramos apenas dois fanáticos escrevendo códigos.”41

De vez em quando Gates fazia uma pausa para praticar um pouco de esqui aquático radical, que incluía arrancadas no alto de um trampolim em dique seco, depois voltava ao bunker para mais codificações. Ele e Allen se davam bem, exceto quando o metódico estilo de jogador de xadrez de Allen triunfava sobre a abordagem mais afobada e agressiva de Gates. “Quando ganhei dele um dia, ele ficou tão zangado que jogou todas as peças no chão”, disse Allen. “Depois de algumas partidas assim, paramos de jogar.”42

 

 

Gates se candidatou a apenas três faculdades — Harvard, Yale e Princeton —, e em cada caso usou abordagem diferente. “Nasci para me candidatar a faculdades”, gabou-se, ciente de sua capacidade de passar com facilidade em processos de avaliação de mérito. Em Yale, apresentou-se como aspirante à vida política, ressaltando um estágio de verão de um mês que fizera no Congresso. Em Princeton, mencionou apenas o desejo de ser engenheiro de computação. E em Harvard disse que sua paixão era a matemática. Também pensou em tentar o MIT, mas na última hora faltou à entrevista para jogar pinball. Foi aceito nas três e escolheu Harvard.43

“Sabe de uma coisa, Bill?”, advertiu Allen. “Quando estiver em Harvard, vai ver que algumas pessoas são muito melhores em matemática do que você.”

“De jeito nenhum”, respondeu Gates. “Não mesmo!”

“Você vai ver só”, disse Allen.44

 

 

GATES EM HARVARD

 

Quando pediram a Gates que escolhesse o tipo de colega de quarto que gostaria de ter, ele solicitou um afro-americano e um estrangeiro. Foi designado para Wigglesworth Hall, dormitório de calouros em Harvard Yard, com Sam Znaimer, amante das ciências proveniente de uma família de refugiados judeus pobres de Montreal, e Jim Jenkins, estudante negro de Chattanooga. Znaimer, que nunca tinha conhecido um anglo-saxão branco privilegiado, achou Gates muito amável, e seus hábitos de estudo estranhamente fascinantes. “Ele tinha o hábito de estudar direto 36 horas ou mais, apagar completamente por dez horas, levantar, comer uma pizza e voltar ao estudo”, disse. “E se isso significava retomar às três da manhã, tudo bem.”45 Znaimer se maravilhava de ver Gates passar noites seguidas preenchendo formulários de declaração de imposto de renda federal e estadual da Traf-O-Data. Quando trabalhava com afinco, ele se balançava para a frente e para trás. Depois levava Znaimer para uma frenética sessão de jogo de Pong, o videogame da Atari, no saguão do dormitório, ou Spacewar no laboratório de computação de Harvard.

O laboratório de computação fora batizado com o nome de Howard Aiken, que inventara o Mark I e o operara durante a Segunda Guerra Mundial com a ajuda de Grace Hopper. Abrigava a máquina favorita de Gates: um PDP-10, da DEC, destinado a uso militar no Vietnã, mas realocado para ajudar nas pesquisas de Harvard financiadas pelas Forças Armadas. Para evitar um protesto pacifista, ele fora levado às escondidas para o Laboratório Aiken certa manhã de domingo de 1969. Era financiado pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada do Departamento de Defesa, mas sobre isso não se falava, e, como resultado, não havia regras escritas sobre quem tinha permissão de usá-lo. Havia também uma enorme quantidade de computadores PDP-1 onde se podia jogar Spacewar. Em seu primeiro projeto de computação do primeiro ano, Gates conectou o PDP-10 a um PDP-1 a fim de criar um videogame de beisebol. “A lógica estava no PDP-10, mas a enviei para o PDP-1 porque eu usava o mesmo visor de Spacewar, um visor line-drawing como não se vê mais hoje”, explicou.46

Gates ficava até tarde da noite escrevendo os algoritmos para dirigir o salto da bola e o ângulo de aproximação dos fielders. “Os projetos em que ele trabalhou no primeiro ano não eram comerciais”, disse Znaimer. “Eram feitos, praticamente, por amor à computação.”47 O professor que supervisionava o laboratório, Thomas Cheatham, tinha sentimentos ambíguos a respeito de Gates: “Ele era um ótimo um programador”. Mas era também “um pé no saco” e “um ser humano detestável […] humilhava as pessoas sem necessidade, e de modo geral não era uma companhia muito agradável”.48

A advertência de Allen de que Bill Gates não seria o rapaz mais inteligente da classe se confirmou. Havia um calouro que morava no andar acima do dele que era melhor em matemática, Andy Braiterman, de Baltimore. Eles passavam noites inteiras no quarto de Braiterman lutando para resolver problemas e comendo pizza. “Bill era muito sério”, lembrou Braiterman, e também “bom argumentador”.49 Gates era particularmente convincente quando tentava provar que logo todo mundo teria um computador em casa, que poderia ser usado para acessar livros e obter outras informações. No ano seguinte, ele e Braiterman dividiram um quarto.

Gates decidiu se especializar em matemática aplicada, em vez de em matemática pura, e conseguiu deixar uma pequena marca nesse campo. Numa aula do professor de ciência da computação Harry Lewis, ele foi apresentado a um problema clássico:

 

O chef do nosso restaurante é desleixado, e quando prepara uma pilha de panquecas cada uma sai de um tamanho diferente. Assim, quando as entrego a um freguês, antes de chegar à mesa eu as rearrumo (para que a menor fique em cima e assim por diante, até a maior, que fica por baixo), pegando várias panquecas de cima e virando-as, e repito a operação (variando o número de viradas) quantas vezes for necessário. Se houver n panquecas, qual é o número máximo de viradas (como função f(n) de n) que terei de executar para rearranjá-las?

 

A resposta exigia que se apresentasse um bom algoritmo, como qualquer programa de computador. “Propus o problema na sala e segui em frente”, lembrou Lewis. “Um ou dois dias depois, esse segundanista esperto foi ao meu escritório e me explicou que tinha conseguido um algoritmo de cinco terços de N.” Em outras palavras, Gates tinha descoberto um jeito de fazer o rearranjo com cinco terços de virada por panqueca da pilha. “Envolvia uma complicada análise de situação de como deveria ser a configuração exata das panquecas de cima. Era muito inteligente.” Um professor assistente, Christos Papadimitriou, publicou depois a solução numa monografia acadêmica escrita a quatro mãos com Gates.50

 

 

Enquanto se preparava para iniciar o segundo ano de faculdade no verão de 1974, Gates convenceu Allen a se mudar para a área de Boston e aceitar um emprego na Honeywell que originariamente lhe fora oferecido. Allen abandonou a Universidade Estadual de Washington, viajou em seu Chrysler para o leste e insistiu para que Gates também largasse a faculdade. Vamos perder a revolução da informática, dizia. Enquanto comiam uma pizza, eles sonhavam com a criação de sua própria empresa. “Se tudo desse certo, de que tamanho seria essa empresa?”, perguntou Allen, em certa ocasião. Gates respondeu: “Acho que poderíamos ter até 35 programadores”.51 Mas Gates cedeu à pressão dos pais e continuou em Harvard, pelo menos por algum tempo.

Como muitos inovadores, Gates era rebelde só por amor à rebeldia. Decidiu que não assistiria a nenhuma aula dos cursos em que se matriculara e que só iria às aulas dos cursos que não estava fazendo. Observou essa regra à risca. “No segundo ano, eu assistia às aulas cujo horário coincidiam com as minhas, só para ter certeza de jamais cometer um erro”, lembra-se ele. “Pois eu era um rejeitador absoluto.”52

Ele também se dedicou com intensidade ao pôquer. Seu jogo preferido era Seven Card Stud High/Lo. Podia-se perder ou ganhar mil dólares ou mais por noite. Gates, cujo QI superava o Quociente Emocional, era melhor para calcular probabilidades do que para ler os pensamentos dos jogadores adversários. “Bill tinha uma qualidade monomaníaca”, disse Braiterman. “Concentrava-se numa coisa e não arredava pé.” A certa altura, entregou o talão de cheques a Allen, para não jogar mais dinheiro fora, mas logo o pediu de volta. “Ele estava tendo algumas dispendiosas lições de blefe”, disse Allen. “Ganhava trezentos dólares uma noite e perdia seiscentos na noite seguinte. Enquanto perdia milhares naquele outono, Bill insistia em me dizer: ‘Estou ficando cada vez melhor’.”53

Num curso de economia em nível de pós-graduação, ele conheceu um estudante que morava no corredor do mesmo andar de seu quarto. Steve Ballmer era muito diferente de Gates na aparência. Grandão, barulhento e sociável, era do tipo fanático por atividade que gosta de participar de múltiplas organizações ou de comandá-las. Fazia parte do Hasty Pudding Club, que escrevia e produzia musicais de teatro, e servia, com um entusiasmo de chefe de torcida, como treinador de um time de futebol americano. Era ao mesmo tempo editor do Advocate, a revista literária do campus, e gerente de publicidade do Crimson, o jornal. Ingressou até num dos clubes para homens e convenceu seu mais novo melhor amigo Gates a fazer o mesmo. “Uma experiência muito estranha”, disse Gates. O que os unia era uma superintensidade compartilhada. Conversavam, discutiam e estudavam juntos quase aos berros, ambos balançando para trás e para a frente. Então, iam juntos ver um filme. “Fomos ver Cantando na chuva e Laranja mecânica, que só estão ligados um ao outro pelo uso da mesma música”, contou Gates. “E nos tornamos superbons amigos.”54

A vida desorganizada de Gates em Harvard foi de repente virada de pernas para o ar em dezembro de 1974, na metade do segundo ano, quando Allen entrou em seu quarto na Currier House trazendo o novo número da Popular Electronics com o Altair na capa. O grito de guerra de Allen, “Ei, isto está acontecendo sem a gente”, sacudiu Gates e o fez partir para a ação.

 

 

BASIC PARA O ALTAIR

 

Gates e Allen decidiram escrever o software que tornaria possível para hobbistas criar seus próprios programas no Altair. Especificamente, resolveram escrever um interpretador para a linguagem de programação BASIC, que rodaria no microprocessador Intel 8080 do Altair. Seria a primeira linguagem de programação comercial nativa de alto nível para microprocessador. E lançaria a indústria do software para computadores pessoais.

Usando uma velha folha de sulfite com o cabeçalho da Traf-O-Data, eles escreveram uma carta para a MITS, a incipiente empresa de Albuquerque responsável pelo Altair, dizendo que tinham criado um interpretador BASIC capaz de rodar no 8080. “Estamos interessados em vender cópias desse software para hobbistas por intermédio de vocês.”55 Não era bem verdade. Eles ainda não tinham escrito software algum. Mas estavam prontos para entrar logo em ação se a MITS demonstrasse interesse.

Não tendo obtido resposta, decidiram telefonar. Gates sugeriu que Allen fizesse a chamada, porque era mais velho. “Não, você é quem deve fazê-lo; é muito melhor nisto”, argumentou Allen. Chegaram a um acordo: Gates ligaria, disfarçando a voz estridente, mas falando em nome de Paul Allen, porque sabiam que, se a sorte lhes favorecesse, Allen é que voaria para Albuquerque. “Eu estava deixando a barba crescer e pelo menos tinha cara de adulto, enquanto Bill ainda passaria facilmente por um aluno de segundo ano do ensino médio”, lembra-se Allen.56

Quando o áspero Ed Roberts atendeu do outro lado, Gates fez uma voz grossa e disse: “Aqui é Paul Allen, de Boston. Temos um BASIC para o Altair que está praticamente pronto e gostaríamos de ir aí mostrá-lo para vocês”. Roberts respondeu que recebia muitas ligações como aquela. A primeira pessoa que entrasse pela porta do escritório em Albuquerque com um BASIC funcionando ficaria com o contrato. Gates se virou para Allen e disse, eufórico: “Caramba, temos que ir nessa!”.

Como não tinha um Altair para trabalhar, Allen precisou emular um no PDP-10 de Harvard, uma repetição da tática que usara para construir a máquina do Traf-O-Data. Diante disso, eles compraram um manual do microprocessador 8080, e dentro de poucas semanas Allen tinha o emulador e outras ferramentas de desenvolvimento prontas.

Enquanto isso, Gates escrevia furiosamente o código de interpretação em blocos amarelos. Quando Allen terminou o emulador, Gates tinha delineado a estrutura e boa parte do código. “Ainda o vejo, ora indo e vindo, ora se balançando por longos períodos, antes de escrever alguma coisa no bloco amarelo, os dedos manchados por um arco-íris de tintas de canetas hidrográficas”, lembra-se Allen.

 

Quando meu emulador ficou pronto e ele pôde usar o PDP-10, Bill mudou-se para um terminal e dava uma espiada no bloco enquanto balançava. Então, escrevia uma saraivada de códigos com aquela estranha posição de mãos que ele tem e repetia. Podia continuar nisso horas a fio.57

 

Certa noite estavam jantando na Currier House, onde ficava o quarto de Gates, sentados a uma mesa com outros fanáticos por matemática, quando começaram a reclamar da tediosa tarefa de escrever representações matemáticas de ponto flutuante, que dariam ao programa a capacidade de lidar com números muito pequenos e muito grandes, e casas decimais em notação científica.b Um menino de cabelos cacheados de Milwaukee, chamado Monte Davidoff, disse aumentando a voz: “Escrevi esse tipo de fórmula”.58 Esse era um dos benefícios de ser um nerd em Harvard. Gates e Allen começaram a importuná-lo com perguntas sobre sua capacidade de lidar com códigos de ponto flutuante. Felizes de saber do que ele estava falando, eles o levaram para o quarto de Gates e negociaram um pagamento de quatrocentos dólares por seu trabalho. Ele se tornou o terceiro membro da equipe e acabaria ganhando muito dinheiro.

Gates ignorou os estudos para os exames que deveria fazer e até parou de jogar pôquer. Durante oito semanas, ele, Allen e Davidoff se enfurnaram dia e noite no Laboratório Aiken em Harvard, fazendo história no PDP-10 que o Departamento de Defesa estava financiando. De vez em quando, interrompiam o trabalho para jantar na Harvard House of Pizza ou no Aku Aku, uma imitação de restaurante polinésio. Nas primeiras horas da manhã, Gates às vezes pegava no sono diante do terminal. “Ele estava no meio de uma linha de códigos quando se inclinava aos poucos para a frente, até encostar o nariz no teclado”, disse Allen. “Depois de cabecear por uma ou duas horas, abria os olhos, olhava para a tela com os olhos meio fechados, piscava e retomava o que estava fazendo a partir do exato ponto onde tinha parado — uma prodigiosa façanha de concentração.”

Eles rabiscavam nos blocos de anotações, competindo, às vezes, para ver quem conseguiria executar uma sub-rotina no menor número de linhas. “Consigo fazer em nove”, gritava um deles. Outro gritava de volta: “Pois eu consigo em cinco!”. Observou Allen: “Sabíamos que cada byte economizado deixaria mais espaço para os usuários acrescentarem seus próprios aplicativos”. O objetivo era pôr o programa em menos espaço do que os 4K de memória que um Altair melhorado teria, de modo que ainda houvesse espaço para o cliente usar. (Um smartphone 16GB tem 4 milhões de vezes esse volume de memória.) À noite, eles abriam as cópias impressas no chão e procuravam formas de torná-lo mais elegante, compacto e eficiente.59

No fim de fevereiro de 1975, depois de oito semanas de intensa codificação, eles o reduziram, de maneira brilhante, para 3,2K. “Não era uma questão de conseguir escrever o programa, mas de espremê-lo em menos de 4K e torná-lo super-rápido”, disse Gates. “Foi o programa mais legal que escrevi.”60 Ele o conferiu uma última vez, para ver se encontrava erros, então mandou o PDP-10 do Laboratório Aiken produzir uma fita perfurada para que Allen levasse a Albuquerque.

Durante o voo, Allen lembrou que não tinha escrito um programa carregador, a sequência de comandos que instruiria o Altair a colocar o interpretador BASIC em sua memória. Quando o avião se preparava para aterrissar, ele pegou um bloco e escreveu 21 linhas na linguagem de máquina usada pelo microprocessador Intel, cada linha um número de três dígitos em base 8. Estava suado quando deixou o terminal, usando um terno de poliéster Ultrasuede marrom-claro e procurando Ed Roberts. Por fim localizou um homem enorme, de uns 130 quilos, queixo duplo e gravatinha estreita numa picape. “Eu esperava um executivo dinâmico, de alguma empresa de ponta, como as que se amontoavam ao longo da Rota 128, o cinturão high-tech de Boston”, lembra-se Allen.

A sede mundial da MITS também não era o que Allen esperava. Ficava num centrinho comercial acanhado, e o único Altair com memória suficiente para rodar BASIC ainda estava sendo testado. Assim, eles deixaram para testar o programa de manhã e foram “até um restaurante self-service mexicano, a três dólares a refeição, chamado Pancho’s, no qual a comida valia exatamente o preço que se pagava”, contou Allen. Roberts o levou de carro para o Sheraton local, onde o recepcionista lhe disse que o quarto lhe custaria cinquenta dólares. Era dez dólares a mais do que Allen levara, e com isso, depois de uma desajeitada troca de olhares, Roberts teve que pagar pelo quarto. “Acho que eu também não era o que ele esperava”, disse Allen.61

Na manhã seguinte, Allen voltou à MITS para o grande teste. A máquina levou quase dez minutos para carregar o código do interpretador BASIC que ele e Gates tinham escrito. Roberts e seus colegas trocavam olhares gozadores, já suspeitando que o show seria um fiasco. Mas de repente o teletipo emitiu uns estalos. “TAMANHO DA MEMÓRIA?”, perguntou. “Ei, ele escreveu alguma coisa!”, gritou alguém da equipe da MITS. Allen ficou agradavelmente estupefato. Escreveu na resposta: 7168. O Altair respondeu: “OK”. Allen escreveu: “PRINT 2+2”. Era o mais simples dos comandos, que testaria não apenas a codificação de Gates, mas também as representações matemáticas de ponto flutuante de Davidoff. O Altair respondeu: “4”.

Até aquele momento, Roberts olhava sem dizer nada. Afundara sua combalida empresa em mais e mais dívidas na louca suposição de que criaria um computador que um hobbista doméstico pudesse usar e comprar. Agora testemunhava um momento histórico. Pela primeira vez, um programa de software rodara num computador doméstico. “Meu Deus”, gritou. “Ele imprimiu ‘4’!”62

Roberts chamou Allen para ir a seu escritório e concordou em licenciar o interpretador BASIC para inclusão em todas as máquinas Altair. “Eu não conseguia parar de sorrir”, confessou Allen. Quando voltou a Cambridge, levando consigo um Altair que funcionava para instalar no quarto de Gates, eles saíram para comemorar. Gates pediu o de sempre: um Shirley Temple, ginger ale com suco de cereja marrasquino.63

Um mês depois, Roberts ofereceu a Allen um emprego na MITS, como diretor de software. Os colegas da Honeywell acharam maluquice levar a proposta a sério. “Seu emprego está seguro na Honeywell”, disseram-lhe. “Você pode trabalhar anos aqui.” Mas segurança no emprego não era um ideal adotado pelos ansiosos para comandar a revolução da informática. Assim, na primavera de 1975, Allen se mudou para Albuquerque, cidade que só pouco tempo antes ele descobriu que não ficava no Arizona.

Gates resolveu ficar em Harvard, pelo menos por mais algum tempo. Ali, foi submetido ao que se tornou um rito de passagem, engraçado só quando se olha para trás, para muitos de seus estudantes bem-sucedidos: ser levado à presença do sigiloso Conselho de Administração [Administrative Board] da universidade para um processo disciplinar, conhecido como “Ad Boarded”. O caso contra Gates surgiu quando auditores do Departamento de Defesa resolveram verificar o uso do PDP-10 por ele financiado no Laboratório Aiken de Harvard. Descobriram que um aluno do segundo ano, W. H. Gates, usava-o a maior parte do tempo. Depois de muita lamúria, Gates preparou um texto defendendo-se e descrevendo como tinha criado uma versão de BASIC usando o PDP-10 como emulador. Foi absolvido pelo uso da máquina, mas “advertido” por permitir que um não aluno, Paul Allen, tivesse acesso a ela usando sua senha. Ele aceitou essa repreensão menor e concordou em pôr sua primeira versão do interpretador BASIC (porém não a mais refinada, em que ele e Allen estavam trabalhando) em domínio público.64

Àquela época, Gates concentrava-se mais em sua parceria com Allen do que nos trabalhos do curso em Harvard. Concluiu o segundo ano na primavera de 1975, tomou o avião para Albuquerque, para passar o verão, e decidiu ali permanecer, em vez de voltar para o primeiro semestre do terceiro ano no outono. Retornou a Harvard por mais dois semestres, na primavera e no outono de 1976, depois deixou a universidade para sempre, dois semestres antes de se formar. Em junho de 2007, quando esteve em Harvard para receber um título honorífico, começou seu discurso endereçando um comentário ao pai, que estava na plateia: “Estou esperando há mais de trinta anos para dizer isto: pai, eu sempre disse que ia voltar e conseguir meu diploma”.65

 

 

MICRO-SOFT

 

Quando Gates chegou a Albuquerque no verão de 1975, ele e Allen ainda forneciam BASIC para o Altair com base num entendimento fechado com aperto de mãos com Ed Roberts. Gates insistiu num contrato formal e, depois de muito regateio, concordou em licenciar o software para a MITS por dez anos, a ser empacotado com cada Altair, por trinta dólares a título de royalty por cópia. Gates conseguiu impor duas cláusulas de significado histórico. Fez questão de que ele e Allen mantivessem a propriedade do software; a MITS teria meramente o direito de licenciá-lo. Também exigiu que a MITS usasse “seus melhores esforços” para sublicenciar o software para outros fabricantes de computadores, rachando os lucros com Gates e Allen. Isso abriu um precedente para o acordo que Gates faria seis anos depois com a IBM. “Com isso pudemos garantir que nosso software funcionasse em muitos tipos de máquina”, disse ele. “Isso permitiu que nós, e não os fabricantes de hardware, definíssemos o mercado.”66

Agora eles precisavam de um nome. Discutiram algumas ideias, entre elas Allen & Gates, que, concluíram, parecia nome de banca de advogados. Afinal decidiram-se por um nome não particularmente excitante ou inspirador, mas que indicava que escreviam software para microcomputadores. Nos documentos finais do acordo com a MITS, eles se referiram a si próprios como “Paul Allen e Bill Gates, comercialmente Micro-Soft”. Um crédito aparecia no código-fonte do seu único produto na época: “Micro-Soft BASIC: Paul Allen escreveu o material não relativo a tempo de execução. Bill Gates escreveu o material relativo a tempo de execução. Monte Davidoff escreveu o pacote matemático”. Em dois anos, o nome foi simplificado para Microsoft.

Depois de dormir por um tempo no Sundowner Motel num trecho da Rota 66, mais conhecido como lugar de prostitutas do que de programadores, Gates e Allen se mudaram para um apartamento mobiliado barato. Monte Davidoff, famoso pela matemática de ponto flutuante, e Chris Larson, estudante mais novo de Lakeside High, também foram morar lá, transformando o apartamento numa república que fazia as vezes de bunker de nerds. À noite, Allen aumentava o volume de sua guitarra Stratocaster e tocava junto com Aerosmith ou Jimi Hendrix, e Gates retaliava cantando alto “My Way”, de Frank Sinatra.67

De todos, Gates era o maior exemplo da personalidade inovadora. “Um inovador é, muito provavelmente, um fanático, alguém que ama o que faz, trabalha dia e noite, pode ignorar um pouco as coisas normais da vida e, por isso, é visto como meio desequilibrado”, disse ele. “Sem dúvida, na minha adolescência e na faixa dos vinte anos, eu correspondi a esse modelo.”68 Ele trabalhava, como o fizera em Harvard, em acessos que podiam durar até 36 horas, depois se enrolava no chão do escritório e caía no sono. Disse Allen: “Ele vivia em estados binários: ou explodindo de energia nervosa, com suas dez Coca-Colas por dia, ou morto para o mundo”.

Gates também era um rebelde com pouco respeito por autoridade, outro traço comum dos inovadores. Para pessoas como Roberts, que havia servido na Aeronáutica e tinha cinco filhos que o chamavam de “senhor”, Gates passava como um pirralho folgado. “Ele era um garotinho mimado, esse era o problema”, Roberts disse mais tarde. Mas era uma situação mais complexa do que parecia. Gates trabalhava duro e vivia de forma frugal, com rendimentos baixíssimos, mas não acreditava em deferência. O franzino Gates discutia de igual para igual com Roberts, que tinha quase dois metros de altura, em brigas tão acaloradas que, segundo Allen, “era possível ouvir a gritaria em toda a fábrica, um verdadeiro espetáculo”.

Allen presumiu que sua parceria com Gates seria de 50%-50%. Eles sempre foram uma equipe, e parecia desnecessário discutir por quem tinha feito mais. Mas, desde a briga durante o programa de pagamentos na escola, Gates insistia em estar no controle. “Não é certo que você fique com a metade”, ele disse a Allen. “Você tinha seu salário no MITS enquanto eu fiz praticamente tudo no BASIC sem a mínima ajuda em Boston. Eu deveria ganhar mais. Acho que a divisão deve ser de 60%-40%.” Independentemente de estar certo ou não, era da natureza dele insistir nessas coisas, e da natureza de Allen não discutir. Allen ficou surpreso, mas concordou. Para piorar, Gates insistiu que reavaliassem a divisão dois anos depois. “Eu fiz praticamente tudo no BASIC e abri mão de muita coisa quando saí de Harvard”, ele disse a Allen durante um passeio. “Mereço mais que 60%.” Sua nova exigência era uma divisão de 64%-36%. Allen ficou furioso. “Mostrava bem a diferença entre o filho de um bibliotecário e o filho de um advogado”, ele disse. “Eu aprendi que um acordo é um acordo e que sua palavra era a garantia. Bill era mais flexível.” Mas Allen concordou novamente.69

Para sermos justos com Gates, era ele quem, àquela altura, dirigia de fato a empresa incipiente. Não só escrevia boa parte dos códigos como também era o encarregado de vendas, fazendo em pessoa a maioria dos contatos. Discutia ideias sobre estratégia de produtos com Allen durante horas, mas era ele quem tomava as decisões finais sobre que versões de Fortran, BASIC ou COBOL seriam construídas. Cuidava também dos acordos comerciais com os fabricantes de hardware, e era um negociador ainda mais duro com eles do que tinha sido com Allen. Além disso, era o encarregado do pessoal, o que significava contratar, demitir e dizer às pessoas, em palavras de uma sílaba, quando seu trabalho era horrível, coisa que Allen jamais faria. Tinha credibilidade para isso; quando havia competições no escritório para ver quem escreveria um programa usando o menor número possível de linhas de codificação, Gates quase sempre ganhava.

Allen às vezes chegava tarde e talvez até pensasse que seria permitido sair do trabalho a tempo de jantar. Mas não Gates e seu círculo mais íntimo. “Era puro fanatismo”, lembra. “Um pequeno grupo e eu trabalhávamos até tarde da noite. Eu às vezes passava a noite acordado, depois dormia no escritório, e minha secretária vinha me acordar se tivéssemos reunião.”70

Geneticamente predisposto a assumir riscos, Gates relaxava tarde da noite, dirigindo a velocidades assustadoras, por uma estrada de montanha, até chegar a uma fábrica de cimento abandonada. Disse Allen:

 

Às vezes eu me perguntava por que Bill dirigia tão rápido. Concluí que era sua válvula de escape. Ele ficava tão tenso no nosso trabalho que precisava de um jeito de parar de pensar no negócio e em códigos por um tempo. Sua temeridade ao volante não era muito diferente de apostar no pôquer tudo que está na mesa, ou fazer esqui aquático radical.

 

Quando ganharam algum dinheiro, Gates comprou uma Porsche 911 verde, que dirigia em alta velocidade pelas vias expressas depois da meia-noite. Certa ocasião ele foi reclamar ao revendedor que o carro deveria atingir 202 quilômetros por hora, mas ele não conseguia passar de 194. Certa noite foi parado por ultrapassar o limite de velocidade e teve dificuldade para explicar ao policial por que não estava com a carteira de motorista. Acabou na cadeia. “Fui preso”, disse, quando Allen atendeu à sua ligação. Soltaram-no poucas horas depois, mas a foto de identificação tirada pela polícia naquela noite tornou-se memorável ícone da história dos nerds.71

A intensidade de Gates dava resultados. Permitia à Microsoft cumprir prazos de software que pareciam insanos, vencer outros concorrentes na disputa pelo mercado de cada novo produto e cobrar preços tão baixos que os fabricantes de computadores raramente pensavam em escrever ou controlar seus próprios softwares.

 

 

SOFTWARE QUER SER LIVRE

 

Em junho de 1975, o mês em que Gates se mudou para Albuquerque, Roberts decidiu pôr o Altair na estrada, como se fosse um espetáculo itinerante. O objetivo era espalhar a notícia das maravilhas da máquina e criar fã-clubes nas cidades do país. Ele adaptou uma van Dodge, apelidou-a de MITS Mobile e despachou-a para uma turnê por sessenta cidades pela costa da Califórnia, depois para o sudeste, passando por lugares como Little Rock, Baton Rouge, Macon, Huntsville e Knoxville.

Gates, que acompanhou parte da viagem, achou que era um belo estratagema de mercado. “Compraram uma grande van azul e saíram pelo país, criando clubes de computação por onde passavam”, disse, admirado.72 Ele esteve nas apresentações no Texas, e Allen se juntou ao grupo no Alabama. No Huntsville Holiday Inn, sessenta pessoas, uma mescla de hobbistas meio hippies e engenheiros de cabelo cortado rente, pagaram dez dólares para assistir ao evento, na época mais ou menos quatro vezes o preço de uma entrada de cinema. A apresentação durou três horas. No fim da exibição de um jogo de pouso lunar, os céticos olharam debaixo da mesa, achando que talvez houvesse cabos ocultos ligados a um minicomputador maior. “Mas quando viram que era para valer”, lembra-se Allen, “os engenheiros ficaram quase tontos de entusiasmo.”73

 

 

Uma das paradas aconteceu no hotel Rickeys Hyatt House, em Palo Alto, em 5 de junho. Ali ocorreu um encontro decisivo, depois que o Microsoft BASIC foi apresentado para um grupo de hobbistas, muitos deles pertencentes ao recém-formado Homebrew Computer Club. “A sala estava lotada de amadores e experimentadores, todos ansiosos para saber o que era esse novo brinquedo eletrônico”, informou o boletim do clube.74 Alguns também estavam ansiosos para fazer valer o credo dos hackers, de que softwares tinham que ser gratuitos. Não era de admirar, levando em conta as atitudes sociais e culturais, tão diferentes do zelo empresarial de Albuquerque, que corriam juntas no começo dos anos 1970 e levaram à criação do Homebrew Club.

Muitos membros do Homebrew que entraram em contato com o MITS Mobile tinham construído um Altair e aguardavam com impaciência a hora de conseguir o programa BASIC que Gates e Allen produziram. Alguns tinham até mandado cheques. Assim, ficaram animadíssimos ao ver que os Altairs em exposição rodavam uma versão dele. Cedendo ao imperativo dos hackers, um dos membros, Dan Sokol, “tomou emprestada” uma fita perfurada contendo o programa e usou um PDP-11 da DEC para tirar cópias.75 Na reunião seguinte do Homebrew, havia uma caixa de papelão com dezenas de fitas BASIC para os membros pegarem.c Havia uma condição: quem levasse tinha que tirar algumas cópias para reabastecer a caixa comunitária. “Lembre-se de devolver mais cópias do que levou”, brincava Lee Felsenstein. Era seu lema para qualquer compartilhamento de software.76 E assim o Microsoft BASIC se espalhou de graça.

Gates, é claro, ficou furioso. Escreveu uma apaixonada carta aberta, mostrando todo o tato de um jovem de dezenove anos, que serviu como disparo inicial numa guerra pela proteção da propriedade intelectual na era dos computadores pessoais:

 

Carta aberta aos hobbistas…

Quase um ano atrás, Paul Allen e eu, contando com o crescimento do mercado de hobby, contratamos Monte Davidoff e desenvolvemos o Altair BASIC. Apesar de o trabalho inicial ter tomado apenas dois meses, nós três passamos a maior parte do último ano documentando, aperfeiçoando e acrescentando funções ao BASIC. Agora temos 4K, 8K, EXTENDED, ROM e DISK BASIC. Em termos monetários, o tempo de computação que consumimos ultrapassa os 40 mil dólares.

O feedback que recebemos de centenas de pessoas que dizem estar usando BASIC tem sido positivo. Mas tivemos duas surpresas: 1) a maioria desses “usuários” não pagou pelo BASIC (menos de 10% dos que têm Altair o compraram); e 2) a quantidade de royalties que recebemos das vendas para hobbistas reduz o valor do tempo gasto no Altair BASIC a menos de dois dólares a hora.

Por quê? Como quase todos os hobbistas devem saber, a maioria rouba nosso software. Hardware paga-se, mas software se compartilha. Quem quer saber se as pessoas que trabalharam para criá-los recebem por isso?

Será justo? Uma coisa que vocês não garantem ao roubar software é o direito de ir à MITS para resolver problemas que apareçam […]. O que conseguem é só impedir que bons softwares sejam escritos. Quem pode ser dar ao luxo de ser profissional trabalhando de graça? Que hobbista investiria três homens/ano programando, corrigindo falhas, documentando o produto para distribuí-lo de graça? A verdade é que ninguém, a não ser nós, investiu tanto dinheiro em softwares para hobbistas. Escrevemos o 6800 BASIC, estamos escrevendo o 8080 APL e o 6800 APL, mas nada nos incentiva a disponibilizar esses softwares para hobbistas. Falando com franqueza, o que vocês fazem é roubo…

Eu agradeceria receber cartas de quaisquer pessoas que queiram pagar o que devem, ou fazer sugestões e comentários. Basta me escrever para o seguinte endereço: 1180 Alvarado SE, no 114, Albuquerque, Novo México, 87108. Nada me deixaria mais feliz do que poder contratar dez programadores e inundar o mercado de hobby com bons softwares.

Bill Gates

Sócio, Micro-Soft

 

A carta foi reproduzida no boletim do Homebrew Computer Club e também na Computer Notes, do grupo de usuários do Altair, e na People’s Computer Company.77 Provocou furor. “Recebi um monte de merda”, admitiu Gates. Das trezentas cartas que lhe foram enviadas, só cinco anexavam pagamento. A maioria cumulava-o de insultos.78

Basicamente, Gates tinha razão. A criação de softwares valia tanto quanto a criação de hardwares. Quem criava softwares deveria ser recompensado. Se não o fosse, ninguém mais escreveria softwares. Ao resistir às atitudes e aspirações da cultura hacker, de que qualquer coisa que pudesse ser copiada deveria ser gratuita, Gates ajudou a assegurar o crescimento de uma nova indústria.

Apesar disso, havia certa audácia na carta. Gates era, no fim das contas, um gatuno em série de tempo de computação e tinha manipulado senhas para hackear contas desde a oitava série até o segundo ano de Harvard. Na realidade, ao afirmar na carta que ele e Allen tinham gastado mais de 40 mil dólares em tempo de computação para fazer o BASIC, ele deixou de mencionar que jamais pagara por esse tempo de uso e que usara grande parte desse tempo no computador de Harvard fornecido pelos militares, e financiado, em última análise, pelos contribuintes americanos. O editor de um boletim de hobbistas escreveu:

 

Correm boatos na comunidade de hobbistas que sugerem que o desenvolvimento do BASIC citado na carta de Bill Gates se deu no computador da Universidade Harvard, fornecido, pelo menos em parte, por verbas do governo, e que houve alguma dúvida sobre a correção, e mesmo sobre a legalidade, da venda dos produtos resultantes.79

 

Além disso, embora Gates não percebesse na época, a pirataria do Microsoft BASIC ajudou sua incipiente companhia a longo prazo. Ao espalhar-se com tamanha rapidez, o Microsoft BASIC tornou-se um padrão, e outros fabricantes de computadores precisavam obter licença para usá-lo. Quando a National Semiconductor surgiu com um novo microprocessador, por exemplo, precisou de um BASIC e decidiu licenciar o da Microsoft porque era o que todo mundo usava. “Transformamos a Microsoft no padrão”, disse Felsenstein, “e ele nos chamou de ladrões por fazermos isso.”80

No fim de 1978, Gates e Allen transferiram sua empresa de Albuquerque para a área de Seattle. Pouco antes de saírem, um dos doze funcionários ganhou uma sessão de fotos de graça de um estúdio local, e eles posaram juntos para uma foto que entraria para a história, com Allen e quase todos os demais parecendo refugiados de uma comunidade hippie e Gates sentado na frente com ar de escoteiro lobinho. Quando dirigia pela costa da Califórnia, Gates recebeu três multas por excesso de velocidade, duas aplicadas pelo mesmo policial.81

 

 

APPLE

 

Entre os presentes na garagem de Gordon French para a primeira reunião do Homebrew Computer Club havia um jovem engenheiro de hardware, socialmente canhestro, chamado Steve Wozniak, que abandonara a faculdade e trabalhava na divisão de calculadoras da Hewlett-Packard na cidade de Cupertino, no Vale do Silício. Um amigo lhe mostrara o folheto — “Está construindo seu próprio computador?” — e ele reuniu coragem para comparecer. “Aquela noite acabou sendo uma das mais importantes da minha vida”, declarou ele.82

O pai de Wozniak era engenheiro da Lockheed e adorava explicar eletrônica. “Uma de minhas lembranças mais antigas é dele me levando ao seu trabalho num fim de semana me mostrando algumas peças eletrônicas e colocando-as em cima da mesa comigo para que eu pudesse brincar”, disse Wozniak. Havia sempre transístores e resistências espalhados pela casa, e quando Steve perguntava “O que é isto?”, o pai começava a explicar, desde o começo, como os elétrons e os prótons funcionavam. “De vez em quando ele pegava um quadro-negro para explicar qualquer coisa, desenhando diagramas”, contou Wozniak.

 

Ele me ensinou a fazer uma porta e e uma porta ou com peças que conseguia — peças chamadas diodos e resistências. E me mostrou que precisavam de um transístor no meio para amplificar o sinal e conectar a saída de uma porta à entrada de outra. Até hoje, é assim que todo dispositivo digital do planeta funciona em seu nível mais básico.

 

Foi um exemplo notável da marca que um pai pode deixar, sobretudo no tempo em que os pais sabiam como os rádios funcionavam e podiam ensinar os filhos a testar tubos a vácuo e substituir um que tivesse queimado.

Wozniak fez um rádio de galena usando moedinhas refugadas quando estava na segunda série, um sistema de interfone para múltiplas casas para os meninos do bairro quando estava na quinta, um rádio de ondas curtas Hallicrafters quando estava na sexta (ele e o pai obtiveram licença de radioamador juntos), e mais tarde, naquele ano, aprendeu sozinho a aplicar álgebra booliana a projetos de circuito eletrônico e o demonstrou com uma máquina que nunca perdia uma partida de jogo da velha.

No ensino médio, Wozniak gostava de aplicar suas bruxarias eletrônicas em travessuras. Certa ocasião, construiu um metrônomo preso a baterias que pareciam uma bomba. Quando o diretor encontrou a geringonça fazendo tique-taque dentro de um armário, levou-a às pressas para a área de recreação, longe dos meninos, e chamou o esquadrão antibombas. Wozniak teve que passar uma noite na casa de detenção local, onde ensinou os outros detentos a remover os fios do ventilador de teto e encostá-los nas barras de ferro, para que quando viesse abrir a porta o carcereiro levasse um choque. Embora tivesse aprendido bem a codificar, no fundo era um engenheiro de hardware, ao contrário dos mais refinados maníacos por software como Gates. A certa altura, ele construiu um jogo tipo roleta no qual os jogadores enfiavam os dedos em fendas, e quando a bola parava, um deles levava um choque. “A turma do hardware participava desse jogo, mas os meninos do software eram sempre muito medrosos”, disse ele.

Como outros, ele combinava amor à tecnologia com uma atitude hippie, embora fosse incapaz de adotar de modo pleno o estilo de vida da contracultura. “Eu usava aquelas faixas de índio na cabeça, o cabelo bem comprido e deixei crescer a barba”, lembra. “Do pescoço para cima, eu parecia Jesus Cristo. Mas do pescoço para baixo ainda usava roupas de rapazinho normal, um rapazinho engenheiro. Calças. Camisas de colarinho. Nunca tive aquelas roupas estranhas de hippie.”

Para se divertir, estudava os manuais dos computadores do escritório feitos pela Hewlett-Packard e pela DEC e tentava redesenhá-los usando um número menor de chips. “Não saberia dizer por que isso se tornou o passatempo da minha vida”, admitiu. “Eu fazia tudo sozinho, no meu quarto, a portas fechadas. Era como uma mania pessoal e privada.” Não era uma atividade que fizesse dele a alma da festa, de modo que Wozniak acabou se tornando um solitário, mas o talento para economizar chips lhe foi de grande utilidade quando decidiu construir um computador próprio. Usou apenas vinte chips, em comparação com as centenas da maioria dos computadores de verdade. Um amigo que morava na mesma quadra ajudou-o a soldar, e como bebessem uma grande quantidade de refrigerante Cragmont, o computador foi apelidado de Cream Soda Computer. Não tinha tela nem teclado; as instruções eram dadas por cartão perfurado, e as respostas, por luzes que acendiam e apagavam na frente.

O amigo apresentou Wozniak a um menino que vivia a poucos quarteirões de distância e também se interessava por eletrônica. Steve Jobs era quase cinco anos mais novo e ainda frequentava Homestead High, a escola onde Wozniak estudara. Sentavam-se na calçada contando histórias de travessuras que tinham aprontado, falando das músicas de Bob Dylan de que gostavam e de projetos eletrônicos que tinham feito. “Em geral era muito difícil para mim explicar às pessoas o tipo de projeto em que eu tinha trabalhado, mas Steve entendia de imediato”, disse Wozniak. “Eu gostava dele. Era meio magricela, rijo e cheio de energia.” Jobs também ficara impressionado. “Woz foi a primeira pessoa que conheci que entendia mais de eletrônica do que eu”, diria mais tarde, supervalorizando os próprios conhecimentos.

A grande traquinada de ambos, que lançou os alicerces da parceria de computação que formariam mais adiante, tinha a ver com um negócio chamado Blue Box. No outono de 1971, Wozniak leu um artigo na revista Esquire mostrando como “hackers da telefonia” tinham criado um aparelho que emitia trinados no tom exato para enganar a Bell System e fazer ligações interurbanas de graça. Antes de terminar a leitura do artigo, ele telefonou para Jobs, que estava no início do último ano em Homestead High, e leu trechos para o amigo. Era um domingo, mas eles sabiam entrar às escondidas numa biblioteca de Stanford que talvez tivesse o Bell System Technical Journal, que, segundo a Esquire, incluía todas as frequências dos sinais sonoros. Depois de remexer as pilhas, Wozniak enfim encontrou o periódico. “Eu estava praticamente tremendo, com a pele arrepiada e tudo o mais”, lembra. “Foi um momento Eureca.” Entraram no carro e foram a lojas de artigos eletrônicos em Sunnyvale comprar as peças de que precisavam, soldaram-nas e fizeram um teste com um medidor de frequência que Jobs tinha confeccionado como trabalho escolar. Mas como era um dispositivo analógico, não conseguiram fazê-lo produzir tons suficientemente precisos e consistentes.

Wozniak percebeu que precisaria construir uma versão digital, usando um circuito com transístores. Aquele outono foi um dos raros semestres em que aparecia de vez em quando na faculdade, e ele o passou em Berkeley. Com a ajuda de um aluno de música de seu dormitório, ele terminou de construir um circuito no Dia de Ação de Graças. “Eu nunca tinha projetado um circuito de que me orgulhasse tanto”, disse. “Até hoje acho que era incrível.” Como teste, ligaram para o Vaticano, com Wozniak fingindo ser Henry Kissinger e dizendo que precisava falar com o papa; demorou um pouco, mas os funcionários do Vaticano perceberam que era brincadeira, antes de acordar o pontífice.

Wozniak tinha inventado um dispositivo engenhoso, mas, associando-se a Jobs, conseguiu muito mais: criar uma empresa comercial. “Ei, vamos vender isto”, sugeriu Jobs certo dia. Foi um padrão que levaria a uma das mais celebradas parcerias da era digital, equivalente à de Allen com Gates e à de Noyce com Moore. Wozniak aparecia com alguma brilhante proeza de engenharia e Jobs descobria um jeito de lustrá-la, empacotá-la e vendê-la a preço inusitadamente alto. “Reuni os componentes restantes, como invólucro, fonte de energia e teclado, e calculei o preço”, disse Jobs referindo-se à Blue Box. Usando quarenta dólares em peças para cada Blue Box, eles produziram cem e venderam-nas a 150 dólares a unidade. A travessura terminou quando foram roubados à mão armada ao tentar vender uma delas numa pizzaria, mas das sementes dessa aventura nasceria uma empresa. “Se não fosse a Blue Box, não haveria Apple”, refletiria Jobs mais tarde. “Woz e eu aprendemos a trabalhar juntos.” Wozniak concorda: “Aquilo nos deu uma ideia do que poderíamos fazer com minhas habilidades de engenharia e sua visão”.

 

 

Jobs passou o ano seguinte entrando e saindo do Reed College e buscando iluminação espiritual numa peregrinação à Índia. Quando voltou, no outono de 1974, foi trabalhar na Atari, sob o comando de Nolan Bushnell e Al Alcorn. A Atari, vibrando com o sucesso do Pong, estava numa fase de frenéticas contratações. “Divirta-se; ganhe dinheiro”, declarava um dos anúncios que publicou no San Jose Mercury. Jobs apareceu vestindo sua indumentária hippie e disse que não sairia do saguão enquanto não fosse contratado. Por recomendação de Alcorn, Bushnell decidiu arriscar. Dessa maneira, a tocha foi passada do mais criativo empresário de videogames para o homem que seria o mais criativo empresário de computadores pessoais.

Apesar da sensibilidade zen que acabara de adquirir, Jobs tinha tendência a informar os colegas de trabalho que eles não passavam de uns “retardados de merda”, cujas ideias não valiam nada. Mas, de alguma forma, conseguia ser também convincente e inspirador. Às vezes usava um manto cor de açafrão, andava descalço e achava que graças à sua rigorosa dieta de frutas e hortaliças não precisava de desodorante nem de um banho de vez em quando. Como recorda Bushnell, “era uma teoria totalmente equivocada”. Assim, transferiu Jobs para o turno da noite, quando não havia mais quase ninguém trabalhando. “Steve era irritadiço, mas eu meio que gostava dele. Foi por isso que lhe pedi para trabalhar à noite. Era um jeito de salvá-lo.”

Jobs diria mais tarde que aprendeu importantes lições na Atari, das quais a mais profunda era fazer interfaces acessíveis e intuitivas. As instruções deveriam ser loucamente simples: “Insira moedas de um quarto de dólar, evite klingons”. Dispositivos não deveriam precisar de manuais. “Essa simplicidade criou raízes e fez dele um criador de produtos muito focado”, disse Ron Wayne, que trabalhou com Jobs na Atari. Além disso, Bushnell conseguiu fazer de Jobs um empresário. “Há qualquer coisa de indefinível num empreendedor, e vi que Steve tinha isso”, lembrou Bushnell. “Ele estava interessado não apenas na engenharia, mas também no lado comercial. Ensinei-lhe que, quando a gente age como se fosse capaz de fazer uma coisa, dá certo. Disse-lhe: finja que tem controle total sobre tudo, e as pessoas vão achar que tem mesmo.”

Wozniak gostava de passar na Atari à noite, quando saía da Hewlett-Packard, para estar com Jobs e jogar o videogame de corrida de automóveis Gran Trak 10, que a Atari tinha enfim desenvolvido. “Meu jogo favorito até hoje”, lembra. Nas horas de folga, montou uma versão doméstica do Pong para jogar no seu aparelho de TV. Conseguiu programá-lo para que as palavras Hell ou Damn explodissem sempre que um jogador errasse a bola. Certa noite ele o mostrou a Alcorn, que logo bolou um plano. Designou Jobs para criar uma versão de Pong para um único jogador, que receberia o nome de Breakout, na qual o usuário poderia rebater a bola contra uma parede, deslocando tijolos para ganhar pontos. Alcorn supunha, corretamente, que Jobs convenceria Wozniak a projetar o circuito. Jobs não era um grande engenheiro, mas era ótimo para convencer as pessoas a fazerem coisas. “Imaginei-a como uma coisa do tipo compre um e leve dois”, explicou Bushnell. “Woz era melhor engenheiro.” Era também um sujeito adorável e ingênuo, tão ansioso para ajudar Jobs a fazer um videogame quanto os amigos de Tom Sawyer para pintar de branco a cerca de Tom. “Foi a oferta mais maravilhosa que recebi na vida, projetar um jogo que as pessoas usassem”, lembrou.

Enquanto Woz passava a noite produzindo abundantemente elementos do projeto, Jobs, sentado num banco à sua esquerda, fazia o wire-wrapping dos chips. Woz achava que a tarefa levaria semanas, mas, numa primeira demonstração do que no futuro os colegas de Jobs chamariam de campo de distorção da realidade, ele olhou sem piscar para Wozniak e o convenceu a fazer o serviço em apenas quatro dias.

 

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Steve Jobs (1955-2011) e Steve Wozniak (1950- ), 1976.

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Imagem de Jobs no Macintosh original, 1984.

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Richard Stallman (1953- ).

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Linus Torvalds (1969- ).

 

A primeira reunião do Homebrew Computer Club de março de 1975 ocorreu logo depois que Wozniak acabou de projetar o Breakout. Na abertura do encontro, ele se sentiu deslocado. Tinha feito calculadoras e displays de jogos em televisores domésticos, mas a grande comoção foi provocada pelo novo computador Altair, que de início não lhe despertou nenhum interesse. Tímido nos melhores momentos, ele se recolheu num canto. Mais tarde, descreveria assim o cenário: “Alguém exibia a revista Popular Electronics, com a foto de um computador na capa chamado Altair. Acabei descobrindo que toda aquele gente era entusiasta do Altair, e não de terminais de TV como eu pensava”. As pessoas circulavam pela sala, apresentando-se umas às outras, e na vez de Wozniak ele dizia: “Sou Steve Wozniak, trabalho na Hewlett-Packard com calculadoras e projetei um terminal de vídeo”. Dizia ainda que gostava também de videogames e de sistemas de filmes pagos para hotéis, de acordo com as atas redigidas por Moore.

Mas uma coisa despertou o interesse de Wozniak. Alguém na reunião distribuiu as fichas de especificações do novo microprocessador Intel. “Naquela noite, chequei a ficha de dados do microprocessador e vi que havia uma instrução para acrescentar um local na memória para o registrador A”, contou.

 

Pensei comigo: Epa! Então havia outra instrução que se podia usar para subtrair memória do registrador A. Como é mesmo? Talvez isso para eles não quisesse dizer nada, mas eu sabia exatamente o que significavam aquelas instruções, e foi a descoberta mais emocionante de todos os tempos.

 

Wozniak vinha trabalhando no projeto de um terminal com monitor de vídeo e teclado. Planejava-o como um terminal “burro”; não teria poder próprio de computação e seria conectado por linha telefônica a um computador de tempo compartilhado em algum lugar. Mas quando viu as especificações do microprocessador — um chip com uma unidade central de processamento —, teve uma ideia: usar um microprocessador para colocar algum poder de computação no terminal que estava construindo. Seria um grande salto à frente do Altair: computador, teclado e tela, tudo integrado! “Toda essa visão de um computador pessoal simplesmente pipocou na minha cabeça”, disse. “Naquela noite, comecei a rascunhar no papel o que mais tarde seria conhecido como Apple I.”

Depois de um dia de trabalho em projetos de calculadora na HP, Wozniak ia para casa jantar e voltava para seu cubículo a fim de trabalhar no computador. Às dez da noite de domingo, 29 de junho de 1975, ocorreu um momento histórico: Wozniak bateu em algumas teclas do teclado, o sinal foi processado por um microprocessador e apareceram letras na tela. “Fiquei chocado”, confessou ele. “Pela primeira vez na história alguém teclara um caractere num teclado e o vira aparecer na tela que tinha diante de si.” Não era exatamente verdade, mas foi de fato a primeira vez na história que um teclado e um monitor foram integrados a um computador pessoal projetado para hobbistas.

A missão do Homebrew Computer Club era compartilhar ideias de graça. Isso o pôs na mira de Bill Gates, mas Wozniak adotou o éthos comunitário: “Eu acreditava tanto na missão do clube, de promover a computação, que xeroquei talvez umas cem cópias do meu projeto completo para distribuir aos interessados”. Ele era tímido demais para se levantar diante de um grupo e fazer uma apresentação formal, mas estava tão orgulhoso do projeto que adorava ficar em pé no fundo da sala, mostrando-o a qualquer um que se aproximasse, e distribuindo os esquemas. “Eu queria distribuí-lo de graça para outras pessoas.”

Jobs pensava de outra forma, como no caso da Blue Box. E, como se veria, seu desejo de empacotar e vender um computador fácil de usar — e seu instinto para fazê-lo — mudou o campo dos computadores pessoais, tanto quanto o esperto projeto de circuito de Wozniak. Na realidade, Wozniak teria sido relegado a breves menções no boletim do Homebrew se Jobs não insistisse em criar uma empresa para comercializá-lo.

Jobs começou a ligar para fabricantes de chips, como a Intel, para pedir amostras grátis. “Quero dizer, ele sabia conversar com um representante de vendas”, disse Wozniak, maravilhado. “Eu jamais faria isso. Sou tímido demais.” Jobs também passou a acompanhar Wozniak nas reuniões do Homebrew, levando o aparelho de TV e cuidando das demonstrações, e teve a ideia de vender placas de circuito pré-impressas com projetos de Wozniak. Era típico de sua parceria. “Toda vez que eu projetava alguma coisa legal, Steve descobria um jeito de ganhar dinheiro para nós”, lembrou Wozniak. “Nunca me passou pela cabeça a ideia de vender computadores. Foi Steve que disse: ‘Vamos segurá-los no ar e vender alguns’.” Jobs vendeu sua Kombi e Wozniak sua calculadora HP para financiar o empreendimento.

Eles formavam uma parceria estranha, mas poderosa: Woz era um ingênuo angelical, com jeito de panda, Jobs era um hipnotizador impulsionado pelo demônio que parecia um cão da raça whippet. Gates intimidara Allen fazendo-o conceder mais de metade da sociedade. No caso da Apple, foi o pai de Wozniak, engenheiro que respeitava engenheiros e desprezava marqueteiros e gerentes, que insistiu para que o filho, autor dos projetos, ficasse com mais de 50% da sociedade. Um dia ele confrontou Jobs quando este apareceu na casa de Wozniak: “Você não merece porra nenhuma. Não produziu nada”. Jobs começou a chorar e disse ao amigo que estava pronto para desfazer a sociedade. “Se não for 50-50”, disse Jobs, “pode ficar com tudo.” Mas Wozniak compreendia muito bem a contribuição de Jobs, que valia pelo menos 50%. Por si mesmo, Wozniak talvez nunca fosse além da fase de distribuir esquemas de graça.

Depois que fizeram uma demonstração do computador numa reunião do Homebrew, Jobs foi abordado por Paul Terrell, dono de uma pequena cadeia de lojas de computação chamada The Byte Shop. No fim da conversa, Terrell disse “Mantenha contato” e entregou seu cartão de visitas a Jobs. No dia seguinte, Jobs entrou em sua loja descalço e anunciou: “Estou mantendo contato”. Quando Jobs terminou de vender seu peixe, Terrell já tinha concordado em encomendar cinquenta unidades do que ficaria conhecido como computador Apple I. Mas ele quis todos eles montados, não apenas placas de circuito impresso com um monte de componentes. Esse foi outro passo na evolução dos computadores pessoais. Eles não seriam mais destinados apenas a hobbistas armados com pistolas de solda.

Jobs compreendeu essa tendência. Quando chegou a hora de construir o Apple II, não perdeu muito tempo estudando especificações de microprocessador. Foi à Macy’s no shopping center de Stanford e analisou a Cuisinart. Decidiu que o próximo computador pessoal seria como um eletrodoméstico: tudo encaixado com um invólucro elegante, e nada para montar. Da fonte de energia ao software, do teclado ao monitor, tudo deveria ser rigorosamente integrado. “Minha ideia era criar o primeiro computador completamente empacotado”, explicou. “Não visávamos mais um punhado de hobbistas, que gostavam de montar seus próprios componentes, que sabiam comprar transformadores e teclados. Para cada um deles havia mil pessoas que gostariam de ter uma máquina pronta para funcionar.”

No começo de 1977, umas poucas empresas de computação para hobbistas tinham surgido do Homebrew e de outros caldeirões. Lee Felsenstein, o mestre de cerimônias do clube, tinha fundado a Processor Technology e aparecera com um computador chamado Sol. Outras empresas incluíam Cromemco, Vector Graphic, Southwest Technical Products, Commodore e IMSAI. Mas o Apple II foi o primeiro computador pessoal simples e totalmente integrado, do hardware ao software. Foi posto à venda em junho de 1977 por 1298 dólares, e dentro de três anos 100 mil unidades foram vendidas.

A ascensão da Apple assinalou o declínio da cultura hobbista. Durante décadas, jovens inovadores, como Kilby e Noyce, tinham sido apresentados à eletrônica aprendendo a distinguir entre diferentes transístores, resistências, capacitores e diodos, depois a fazer o wire-wrapping ou soldá-los em placas de ensaio para criar circuitos que se tornavam rádios amadores, controladores de foguetes, amplificadores e osciloscópios. Mas em 1971 os microprocessadores começaram a fazer as complexas placas de circuito parecerem obsoletas, e empresas eletrônicas japonesas passaram a fabricar em massa produtos mais baratos do que os aparelhos feitos em casa. As vendas de kits do tipo “faça você mesmo” definharam. Hackers de hardware, como Wozniak, cederam a primazia para codificadores de software, como Gates. Com o Apple II e depois, mais notavelmente, com o Macintosh em 1984, a Apple se tornou pioneira na criação de máquinas que os usuários não deveriam abrir para mexer em suas entranhas.

O Apple II também estabeleceu uma doutrina que se tornaria credo religioso para Steve Jobs: os hardwares de sua empresa seriam rigorosamente integrados aos softwares do sistema operacional. Jobs era um perfeccionista que gostava de controlar a experiência do usuário do começo ao fim. Não queria deixar que alguém comprasse uma máquina da Apple e rodasse nela o desajeitado sistema operacional de outra firma, ou comprasse o sistema operacional da Apple para colocá-lo no imprestável hardware de outro fabricante.

Esse modelo integrado não se tornou prática geral. O lançamento do Apple II despertou as grandes empresas de computação, em particular a IBM, e fez surgir uma alternativa. A IBM — mais especificamente a IBM sobre a qual Bill Gates levou a melhor — adotaria uma abordagem na qual o hardware e o sistema operacional de um computador pessoal seriam fabricados por diferentes empresas. Como resultado, o software reinaria e, exceto na Apple, a maioria dos hardwares de computador se tornaria matéria-prima.

 

 

DAN BRICKLIN E O VISICALC

 

Para que os computadores pessoais fossem úteis e pessoas normais tivessem motivos para comprá-los, era preciso que eles se tornassem ferramentas, em vez de meros brinquedos. Até o Apple II poderia ser uma moda passageira, depois que o entusiasmo dos aficionados diminuísse, se os usuários não pudessem aplicá-lo a uma tarefa prática. Assim, surgiu uma demanda pelo que ficou conhecido como software aplicativo, programas que poderiam aplicar o poder de processamento de um computador pessoal a uma tarefa específica.

O pioneiro mais influente nesse campo foi Dan Bricklin, que concebeu o primeiro programa de planilha financeira, o VisiCalc.83 Bricklin era formado em ciência da computação pelo MIT, passou alguns anos programando softwares de processamento de texto na Digital Equipment Corporation e, depois, matriculou-se na escola de administração de Harvard. Num dia da primavera de 1978, ao assistir a uma palestra, ele viu quando o professor desenhou na lousa colunas e linhas para um modelo financeiro. Quando achava um erro ou queria modificar o valor numa célula, o professor tinha de usar o apagador e alterar os valores em muitas das outras células.84

Bricklin vira Doug Engelbart demonstrar seu oNLine System, tornado famoso na Mãe de Todas as Demonstrações, que continha uma apresentação gráfica e um mouse para apontar e clicar. Bricklin começou a imaginar uma planilha eletrônica que usasse um mouse e uma interface simples de apontar-arrastar-e-clicar. Naquele verão, enquanto andava de bicicleta em Martha’s Vineyard, ele decidiu transformar a ideia em produto. Bricklin era a pessoa certa para isso. Engenheiro de software com instintos de uma pessoa da área de produtos, tinha sensibilidade para o que os usuários desejavam. Seus pais eram empresários, e ele estava entusiasmado com a perspectiva de abrir um negócio. E trabalhava bem em equipe, com habilidade para encontrar os parceiros certos. “Eu tinha a combinação certa de experiência e conhecimento para desenvolver o software que atendesse às necessidades das pessoas”, observou.85

Assim, juntou-se a Bob Frankston, um amigo que conhecera no MIT, que também era engenheiro de software com pai empresário. “Nossa capacidade de trabalhar em equipe foi fundamental”, disse Frankston. Embora Bricklin pudesse ter escrito o programa sozinho, ele apenas o esboçou e pediu que Frankston o desenvolvesse. “Isso lhe deu liberdade para se concentrar no que o programa deveria fazer, e não em como fazê-lo”, comentou Frankston sobre a colaboração deles.86

A primeira decisão que tomaram foi desenvolver o programa para uso num computador pessoal, em vez de num computador empresarial DEC. Escolheram o Apple II porque Wozniak fizera sua arquitetura aberta e transparente o bastante para que as funções necessárias aos criadores de software fossem de acesso fácil.

Eles criaram o protótipo durante um fim de semana num Apple II que tomaram emprestado de alguém que viria a ser um terceiro colaborador, Dan Fylstra. Recém- formado pela escola de administração de Harvard, Fylstra havia fundado uma produtora de softwares, especializada em jogos como o xadrez, que ele dirigia de seu apartamento em Cambridge. Para que uma indústria de software se desenvolvesse fora da indústria de hardware era necessário ter empresas que soubessem promover e distribuir produtos.

Uma vez que Bricklin e Frankston tinham um faro bom para negócios e sensibilidade para os desejos dos consumidores, eles se concentraram em fazer do VisiCalc não apenas um programa, mas um produto. Usaram amigos e professores como grupos de discussão para garantir que a interface fosse intuitiva e fácil de usar. “O objetivo era dar ao usuário um modelo conceitual sem imprevistos”, explicou Frankston. “Chamava-se o princípio da menor surpresa. Éramos ilusionistas sintetizando uma experiência.”87

Entre aqueles que ajudaram a transformar o VisiCalc em fenômeno comercial estava Ben Rosen, então analista do Morgan Stanley que mais tarde transformou sua influente newsletter e suas conferências num negócio e, depois, abriu uma firma de capital de risco em Manhattan. Em maio de 1979, Fylstra demonstrou uma versão inicial do VisiCalc no Fórum do Computador Pessoal de Rosen em sua cidade natal, New Orleans. Em sua newsletter, Rosen entusiasmou-se: “O VisiCalc ganha vida visualmente […]. Em minutos, gente que nunca usou um computador está escrevendo e usando programas”. E terminava com uma previsão que se tornou realidade: “O VisiCalc pode um dia se tornar a cauda software que abana (e vende) o cão computador pessoal”.

O VisiCalc catapultou o Apple II para o triunfo, porque por um ano não houve versões para outros computadores pessoais. “Foi o que de fato levou o Apple II ao sucesso que alcançou”, disse Jobs mais tarde.88 Ele foi logo seguido por softwares de processamento de texto, como o Apple Writer e o EasyWriter. Desse modo, o VisiCalc não só estimulou o mercado de computadores pessoais como ajudou a criar toda uma nova indústria com fins lucrativos, a de publicar aplicativos patenteados.

 

 

O SISTEMA OPERACIONAL IBM

 

Durante a década de 1970, a IBM dominou o mercado de mainframe, com sua série 360. Mas foi batida pela DEC e pela Wang no mercado de minicomputadores do tamanho de geladeiras, e tudo indicava que também poderia ficar para trás na área de computadores pessoais. “Para a IBM, produzir um computador pessoal seria como ensinar um elefante a sapatear”, declarou um especialista.89

A alta administração da empresa parecia concordar. A ideia era apenas obter o licenciamento do computador doméstico Atari 800 e colar nele o nome da IBM. Mas em julho de 1980, quando essa opção foi debatida em reunião, o CEO Frank Carey a desconsiderou. Com certeza, a maior empresa de computadores do mundo poderia criar um computador pessoal próprio, disse ele. Fazer alguma coisa de novo na companhia, reclamou, parecia exigir três centenas de pessoas trabalhando durante três anos.

Foi quando Bill Lowe, que era o diretor do laboratório de desenvolvimento da IBM em Boca Raton, Flórida, se manifestou com estridência. “Não, o senhor está errado”, declarou. “Podemos ter um projeto pronto em um ano.”90 Sua petulância valeu-lhe a tarefa de supervisionar o projeto, de codinome Acorn, de criação de um computador pessoal IBM.

A nova equipe de Lowe era comandada por Don Estridge, que escolheu Jack Sams, um sulista gentil, veterano de vinte anos da IBM, para ser o encarregado de montar o software. Tendo em vista o prazo de um ano, Sams sabia que teria de obter licenças de software de fornecedores externos, em vez de criá-los na empresa. Assim, em 21 de julho de 1980, telefonou para Bill Gates e pediu para vê-lo de imediato. Quando Gates o convidou a ir a Seattle na semana seguinte, Sams respondeu que já estava a caminho do aeroporto e que queria encontrá-lo no dia seguinte. Ao perceber que havia um grande peixe com vontade de ser fisgado, Gates vibrou.

Algumas semanas antes, Gates havia recrutado Steve Ballmer, seu companheiro de dormitório em Harvard, para ser o gerente de negócios da Microsoft, e lhe pediu que participasse da reunião com a IBM. “Você é o único outro cara daqui capaz de usar um terno”, disse.91 Quando Sams chegou, Gates também estava de terno, mas não passou a imagem esperada. “Um rapaz apareceu para nos acompanhar e achei que fosse o office boy”, lembrou Sams, que estava vestido no padrão IBM, de terno azul e camisa branca. Mas ele e o resto de sua equipe logo se deslumbraram com o brilhantismo de Gates.

De início, o pessoal da IBM quis falar sobre licenciamento do Microsoft BASIC, porém Gates transformou a conversa numa intensa discussão sobre para onde a tecnologia estava indo. No final de algumas horas, estavam falando sobre o licenciamento de todas as linguagens de programação que a Microsoft tinha ou poderia produzir, entre elas Fortran e COBOL, além do BASIC. “Dissemos à IBM: ‘O.k., vocês podem comprar tudo o que fazemos’, embora ainda não tivéssemos feito”, lembrou Gates.92

A equipe da IBM voltou à Microsoft algumas semanas mais tarde. Havia uma parte essencial de software, além dessas linguagens de programação, de que a IBM carecia: ela precisava de um sistema operacional, o programa que serviria de base para todos os demais programas. O sistema operacional controla as instruções básicas que outros softwares utilizam, entre elas tarefas como decidir onde os dados devem ser armazenados, como memória e recursos de processamento devem ser alocados e como os aplicativos interagem com o hardware do computador.

A Microsoft ainda não produzia um sistema operacional. Em vez disso, estava trabalhando com um chamado CP/M (Control Program for Microcomputers [Programa de Controle para Microcomputadores]), de propriedade de Gary Kildall, um amigo de infância de Gates que tinha se mudado havia pouco para Monterey, Califórnia. Então, com Sams sentado em seu escritório, Bill Gates pegou o telefone e ligou para Kildall. “Estou encaminhando alguns caras para você”, disse, e descreveu o que os executivos da IBM estavam buscando. “Trate-os bem, são caras importantes.”93

Kildall não fez isso. Mais tarde, Gates se referiu ao episódio como “o dia em que Gary decidiu voar”. Em vez de receber os visitantes da IBM, Kildall resolveu pilotar seu avião particular, como adorava fazer, e manter um compromisso agendado antes em San Francisco. Ele deixou a cargo da esposa o encontro com os quatro homens de terno escuro da IBM na excêntrica casa vitoriana que servia de sede para sua empresa. Quando eles lhe apresentaram um acordo de confidencialidade, ela se recusou a assiná-lo. Depois de muito regatear, o pessoal da IBM se retirou, contrariado. “Abrimos nossa carta, que dizia: por favor, não diga a ninguém que estamos aqui e não queremos ouvir nada confidencial, e ela leu e disse que não podia assinar aquilo”, lembrou Sams. “Passamos o dia inteiro em Pacific Grove, discutindo com eles, com nossos advogados, os advogados dela e Deus e o mundo sobre se ela podia ou não até mesmo falar conosco sobre falar conosco, e depois fomos embora.” A pequena empresa de Kildall tinha simplesmente liquidado com sua chance de se tornar a grande protagonista do mundo dos softwares.94

Sams voltou a Seattle para se encontrar com Gates e pediu-lhe que descobrisse outra maneira de fazer um sistema operacional. Por sorte, Paul Allen conhecia alguém na cidade que poderia ajudar: Tim Paterson, que trabalhava para uma pequena empresa chamada Seattle Computer Products. Poucos meses antes, ele ficara frustrado porque o CP/M de Kildall não estava disponível para os microprocessadores mais recentes da Intel, então o adaptou para um sistema operacional que chamou de QDOS, sigla de Quick and Dirty Operating System [Sistema Operacional Rápido e Sujo].95

Àquela altura, Gates havia chegado à conclusão de que um único sistema operacional, muito provavelmente o escolhido pela IBM, acabaria por ser o sistema operacional-padrão que a maioria dos computadores pessoais usaria. Ele também calculou que quem possuísse esse sistema operacional estaria em posição privilegiada. Então, em vez de orientar o pessoal da IBM a visitar Paterson, Gates e sua equipe disseram que cuidariam das coisas eles mesmos. Ballmer recordou mais tarde: “Dissemos à IBM: ‘Olha, vamos buscar esse sistema operacional nessa pequena empresa local, vamos cuidar dele, vamos dar um jeito nisso’”.

A empresa de Paterson estava passando por dificuldades, de modo que Allen conseguiu negociar um bom acordo com o amigo. Após adquirir de início apenas uma licença não exclusiva, Allen voltou a falar com Paterson quando o negócio com a IBM parecia próximo de ser fechado e comprou o software dele, sem lhe dizer por quê. “Acabamos fazendo um acordo para comprar seu sistema operacional, para qualquer uso que quiséssemos, por 50 mil dólares”, relembrou Allen.96 Por essa ninharia, a Microsoft adquiriu o software que, depois de passar por uma enfeitada, lhe permitiria dominar a indústria de software por mais de três décadas.

Mas Gates quase empacou. Por mais estranho que parecesse, ele estava preocupado com a possibilidade de a Microsoft, muito sobrecarregada com outros projetos, não ter a capacidade de promover o QDOS a um sistema operacional digno da IBM. Sua empresa tinha apenas quarenta funcionários maltrapilhos, alguns dos quais dormiam no chão e tomavam banho de esponja de manhã, e era comandada por um carinha de 24 anos que ainda podia ser confundido com um office boy. Num domingo do final de setembro de 1980, dois meses após a primeira visita da IBM, Gates reuniu sua equipe de ponta para tomar a decisão crucial. Kay Nishi, um jovem empreendedor japonês da área de computação, com entusiasmo gatesiano, foi o mais inflexível. “Tem de fazer! Tem de fazer!”, ele gritou vezes seguidas enquanto saltava pela sala. Gates concluiu que ele tinha razão.97

Gates e Ballmer pegaram um voo noturno para Boca Raton a fim de negociar o acordo. Sua receita de 1980 era de 7,5 milhões de dólares, enquanto a da IBM era de 30 bilhões, mas Gates estava de olho em um acordo que permitisse à Microsoft manter a posse de um sistema operacional que a IBM transformaria em padrão global. Em seu negócio com a empresa de Paterson, a Microsoft havia comprado o DOS em sua totalidade, “para qualquer uso”, em vez de meramente obter uma licença. Fora um lance inteligente, mas seria mais inteligente ainda não deixar que a IBM forçasse a Microsoft a fazer o mesmo arranjo.

Quando desembarcaram no aeroporto de Miami, eles foram ao banheiro para vestir terno, e Gates se deu conta de que esquecera a gravata. Numa demonstração incomum de meticulosidade, insistiu que parassem no magazine Burdine’s, no caminho para Boca, a fim de comprar uma. Ela não causou todo o efeito desejado nos executivos da IBM vestidos com seus ternos impecáveis. Um dos engenheiros de software lembrou que Gates parecia um “garoto que havia perseguido alguém ao redor do quarteirão e roubado um terno que era grande demais para ele. Seu colarinho sobrava e ele parecia um fedelho, e eu disse: ‘Quem é esse?’”.98

Mas assim que Gates iniciou sua apresentação, eles deixaram de prestar atenção à sua aparência desgrenhada. Ele impressionou a equipe da IBM com seu domínio de detalhes, tanto técnicos quanto legais, e projetou uma confiança tranquila ao insistir nos termos. Em grande parte, foi uma encenação. Quando chegou de volta a Seattle, ele entrou em seu escritório, deitou no chão e expressou a Ballmer todas as suas angústias e dúvidas.

Após um mês de idas e vindas, chegaram a um acordo de 32 páginas, no início de novembro de 1980. “Steve e eu sabíamos de cor aquele contrato”, declarou Gates.99 “Não nos pagaram muito. O total foi alguma coisa como 186 mil dólares.” De início, pelo menos. Mas o contrato tinha duas disposições que, Gates sabia, iriam alterar o equilíbrio de poder na indústria de computadores. A primeira era que a licença da IBM para usar o sistema operacional, que se chamaria PC-DOS, não seria exclusiva. Gates poderia licenciar o mesmo sistema operacional para outros fabricantes de computadores pessoais com o nome de MS-DOS. Em segundo lugar, a Microsoft manteria o controle do código-fonte. Isso significava que a IBM não poderia modificar ou aprimorar o software para alguma coisa que se tornasse propriedade particular de suas máquinas. Apenas a Microsoft poderia fazer mudanças, e então poderia licenciar cada nova versão para qualquer empresa que quisesse. “Sabíamos que haveria clones do IBM PC”, disse Gates. “Estruturamos o contrato original para permiti-los. Foi um ponto fundamental de nossas negociações.”100

O negócio foi semelhante ao que Gates havia feito com a MITS, quando reteve o direito de licenciar o BASIC para outros fabricantes de computadores. Essa postura possibilitou que o BASIC da Microsoft e, mais importante, seu sistema operacional se tornassem um padrão da indústria, controlado pela Microsoft. “Com efeito, o slogan em nosso anúncio havia sido: ‘Nós estabelecemos o padrão’”, relembrou Gates, com uma risada. “Mas quando nós, de fato, estabelecemos o padrão, nosso advogado antitruste nos disse para nos livrarmos dele. É um daqueles slogans que só podem ser usados quando não são verdadeiros.”101d

Gates vangloriou-se para a mãe a respeito da importância de seu contrato com a IBM, na esperança de que isso provasse que ele estava certo ao abandonar Harvard. Acontece que Mary Gates fazia parte do conselho da United Way ao lado do presidente da IBM, John Opel, que estava prestes a assumir o lugar de Frank Cary como CEO. Um dia, ela estava indo para uma reunião no avião de Opel e mencionou a ligação. “Ah, o meu menino está fazendo um projeto, na verdade, ele está trabalhando com a sua empresa.” Opel parecia desconhecer a Microsoft. Então, quando voltou, ela advertiu Bill: “Olhe, mencionei a Opel seu projeto e como você abandonou a escola e tudo o mais, e ele não sabe quem você é, então talvez seu projeto não seja tão importante como você pensa”. Algumas semanas depois, os executivos de Boca Raton foram à sede da IBM para informar Opel sobre seus progressos. “Temos uma dependência da Intel para o chip, e a Sears e a ComputerLand vão fazer a distribuição”, explicou o líder da equipe. “Mas talvez nossa maior dependência seja, na verdade, de uma empresa de software bem pequena de Seattle, dirigida por um sujeito chamado Bill Gates.” Ao que Opel respondeu: “Você está se referindo ao filho de Mary Gates? Ah, sim, ela é ótima”.102

 

 

A produção de todo o software para a IBM foi uma luta, como Gates previa, mas a turma maltrapilha da Microsoft trabalhou sem interrupções durante nove meses para levá-la a cabo. Por uma última vez, Gates e Allen trabalharam em dupla de novo, sentados lado a lado durante a noite, codificando com a intensidade compartilhada que haviam exibido em Lakeside e Harvard. “O único bate-boca que Paul e eu tivemos aconteceu quando ele quis ir ao lançamento de um ônibus espacial e eu não, porque estávamos atrasados”, contou Gates. Allen acabou indo. “Era o primeiro”, explicou ele. “E voltamos logo após o lançamento. Não ficamos fora nem mesmo 36 horas.”

Ao programar o sistema operacional, os dois ajudaram a determinar a aparência do computador pessoal. “Paul e eu decidimos cada detalhezinho chato do PC”, contou Gates. “O layout do teclado, como a porta de cassete funcionava, como a porta de som funcionava, como a porta gráfica funcionava.”103 O resultado, infelizmente, refletiu o gosto nerd de design de Gates. Além de obrigar uma legião de usuários a aprender onde estava a tecla da barra invertida, havia pouca coisa boa que se pudesse dizer sobre interfaces homem-máquina que se baseavam em prompts como “c:\>” e arquivos com nomes desajeitados como AUTOEXEC.BAT e CONFIG.SYS.

Anos mais tarde, em um evento em Harvard, o investidor em ativos privados David Rubenstein perguntou a Gates por que ele havia imposto ao mundo a sequência de inicialização Control+Alt+Delete: “Por que, quando quero ligar meu computador e software, preciso ter três dedos? De quem foi a ideia?”. Gates começou a explicar que os designers do teclado da IBM não conseguiram criar uma maneira fácil de sinalizar ao hardware para abrir o sistema operacional, então ele parou e sorriu envergonhado. “Foi um erro”, admitiu.104 Os codificadores às vezes esquecem que a simplicidade é a alma da beleza.

O IBM PC foi lançado, a um preço de 1565 dólares, no Waldorf Astoria, em Nova York, em agosto de 1981. Gates e sua equipe não foram convidados para o evento. “A coisa mais estranha”, disse Gates, “foi que quando pedimos para ir ao grande lançamento oficial, a IBM não nos atendeu.”105 Na cabeça da IBM, a Microsoft era apenas um fornecedor.

Gates riu por último. Graças ao acordo que fez, a Microsoft pôde transformar o IBM PC e seus clones em mercadorias intercambiáveis que ficariam reduzidas a competir no preço e condenadas a ter margens de lucro pequenas. Alguns meses depois, numa entrevista publicada no primeiro número da revista PC, ele salientou que, em breve, todos os computadores pessoais estariam usando os mesmos microprocessadores padronizados. “O hardware se tornará muito menos interessante”, disse. “O trabalho total estará no software.”106

 

 

A INTERFACE GRÁFICA DO USUÁRIO

 

Steve Jobs e sua equipe da Apple compraram um IBM PC assim que ele foi lançado. Queriam verificar como era a concorrência. Segundo a opinião geral, para usar a expressão de Jobs, era “uma droga”. Não se tratava apenas de um reflexo da arrogância instintiva dele, embora em parte o fosse. Era uma reação ao fato de que a máquina, com seus prompts c:\> grosseiros e design quadradão, era chata. Não ocorreu a Jobs que os gerentes de tecnologia empresarial talvez não ansiassem por empolgação no escritório e soubessem que não arranjariam encrenca ao escolher uma marca chata como a IBM em vez de uma destemida como a Apple. Por acaso, Bill Gates estava na sede da Apple para uma reunião no dia em que o IBM PC foi anunciado. “Eles não pareceram se importar”, disse ele. “Demorou um ano para perceberem o que tinha acontecido.”107

Jobs era estimulado pela concorrência, sobretudo quando achava que ela era uma droga. Ele se considerava um guerreiro zen iluminado, lutando contra as forças da feiura e do mal. Mandou a Apple publicar um anúncio no Wall Street Journal, que ele mesmo ajudara a escrever. O título: “Bem-vinda, IBM. A sério”.

Um motivo do desdém de Jobs era que ele já havia visto o futuro e começara a inventá-lo. Em visitas ao Xerox PARC, mostraram-lhe muitas das ideias que Alan Kay, Doug Engelbart e seus colegas haviam desenvolvido, com destaque para a interface gráfica de usuário (graphical user interfaceGUI), que contava com uma metáfora da área de trabalho, com janelas, ícones e um mouse que servia de seta. A criatividade da equipe do Xerox PARC combinada com a genialidade de design e marketing de Jobs faria da GUI o próximo grande salto no sentido de facilitar a interação homem-máquina que Bush, Licklider e Engelbart haviam imaginado.

As duas visitas principais de Jobs com sua equipe ao Xerox PARC aconteceram em dezembro de 1979. Jef Raskin, um engenheiro da Apple que estava projetando um computador amigável que acabaria por se tornar o Macintosh, já havia visto o que a Xerox estava fazendo e queria convencer Jobs a dar uma olhada. O problema era que Jobs achava Raskin insuportável — a expressão exata que ele usava para Raskin era “um pé no saco” —, mas, por fim, fez a peregrinação. Ele fizera um acordo com a Xerox que permitia ao pessoal da Apple estudar a tecnologia, em troca de permitir que a Xerox fizesse um investimento de 1 milhão de dólares na Apple.

Jobs sem dúvida não foi a primeira pessoa de fora a ver o que o Xerox PARC havia criado. Seus pesquisadores fizeram centenas de demonstrações para visitantes e já haviam distribuído mais de mil unidades do Xerox Alto, o caro computador desenvolvido por Lampson, Thacker e Kay que usava uma interface gráfica de usuário e outras inovações do PARC. Mas Jobs foi o primeiro a ficar obcecado por incorporar as ideias de interface do PARC a um computador pessoal simples e barato. Mais uma vez, a maior inovação não viria das pessoas que criavam os avanços, mas das pessoas que lhes davam aplicações úteis.

Na primeira visita de Jobs, os engenheiros do Xerox PARC, liderados por Adele Goldberg, que trabalhava com Alan Kay, foram reservados. Eles não mostraram muita coisa a Jobs. Mas ele teve um chilique — “Vamos acabar com essa conversa fiada”, gritou — e por fim lhe fizeram, a mando da direção da Xerox, uma exibição completa. Jobs saltitava pela sala enquanto seus engenheiros estudavam cada pixel na tela. “Vocês estão sentados em cima de uma mina de ouro”, gritou. “Não posso acreditar que a Xerox não esteja tirando proveito disso.”

Havia três grandes inovações em exposição. A primeira era a Ethernet, a tecnologia desenvolvida por Bob Metcalfe para criar redes locais. Tal como Gates e outros pioneiros dos computadores pessoais, Jobs não estava muito interessado — decerto não tanto quanto deveria — em tecnologia de rede. Ele estava focado na capacidade dos computadores de dar poder aos indivíduos, não de facilitar a colaboração. A segunda inovação era a programação orientada para o objeto. Isso tampouco arrebatou Jobs, que não era um programador.

O que chamou sua atenção foi a interface gráfica do usuário, que apresentava uma metáfora da área de trabalho tão intuitiva e amigável quanto um playground de bairro. Tinha ícones bonitos para documentos e pastas e outras coisas que se poderia desejar, entre elas uma lata de lixo e um cursor controlado por mouse que tornava fácil clicar. Jobs não só adorou aquilo como imaginou maneiras de aperfeiçoá-lo, torná-lo mais simples e mais elegante.

A interface gráfica era possível graças ao bitmapping, outra inovação pioneira do Xerox PARC. Até então, a maioria dos computadores, entre os quais o Apple II, apenas gerava números ou letras na tela, em geral num verde medonho contra um fundo preto. O bitmapping possibilitava que cada pixel na tela fosse controlado pelo computador — ligado ou desligado, e em qualquer cor. Isso permitia todos os tipos de telas, fontes, desenhos e gráficos maravilhosos. Com sua sensibilidade para o design, sua familiaridade com as fontes e o amor pela caligrafia, Jobs ficou encantado com o bitmapping. “Foi como se um véu tivesse sido tirado de meus olhos”, lembrou. “Eu pude ver qual seria o futuro da computação.”

Enquanto voltava de carro para o escritório da Apple em Cupertino, numa velocidade que teria impressionado até Gates, Jobs disse a seu colega Bill Atkinson que eles precisavam incorporar e aperfeiçoar a interface gráfica da Xerox nos computadores futuros da Apple, como os vindouros Lisa e Macintosh. “É isso!”, gritou. “Temos de fazer isso!” Era uma maneira de levar os computadores para o povo.108

Mais tarde, quando o acusaram de furtar ideias da Xerox, Jobs citou Picasso: “Artistas bons copiam, grandes artistas roubam”. E acrescentou: “E nós nunca sentimos vergonha de roubar grandes ideias”. Ele também tripudiou, dizendo que a Xerox não sabia o que estava fazendo. “Eles estavam com a cabeça em copiadoras e não tinham a mínima ideia sobre o que um computador podia fazer”, disse, a respeito da direção da Xerox. “Eles simplesmente transformaram em derrota a maior vitória da indústria de computadores. A Xerox poderia ter sido dona de toda a indústria de computadores.”109

Na verdade, nenhuma das explicações faz justiça a Jobs e à Apple. Como mostra o caso de John Atanasoff, o esquecido inventor de Iowa, a concepção é apenas o primeiro passo. O que na realidade importa é a execução. Jobs e sua equipe tomaram as ideias da Xerox e as aperfeiçoaram, implementaram e comercializaram. A Xerox teve a chance de fazê-lo e de fato tentou, com uma máquina chamada Xerox Star. Era desajeitada, desleixada e cara, e revelou-se um fracasso. A equipe da Apple simplificou o mouse para que tivesse apenas um botão, deu-lhe o poder de mover documentos e outros itens pela tela, permitiu que extensões de arquivo pudessem ser mudadas apenas arrastando um documento e “largando-o” numa pasta, inventou os menus suspensos e criou a ilusão de que os documentos podiam ser empilhados e sobrepostos.

A Apple lançou o Lisa em janeiro de 1983 e, a seguir, com mais sucesso, o Macintosh, um ano depois. Jobs sabia, quando revelou o Mac, que ele impulsionaria a revolução dos computadores pessoais por ser uma máquina que era amigável o suficiente para ser levada para casa. No lançamento teatral do produto, ele atravessou um palco escuro para tirar o novo computador de um saco de pano. O tema de Carruagens de fogo começou a tocar, a palavra MACINTOSH percorreu a tela na horizontal, depois foi para baixo, e as palavras “Insanamente grandioso!” apareceram numa grafia elegante, como se estivessem sendo escritas à mão, devagar. Houve um momento de silêncio reverente no auditório, em seguida alguns suspiros. A maioria nunca tinha visto, ou sequer imaginado, algo tão espetacular. A tela então expôs com rapidez diferentes fontes, documentos, gráficos, desenhos, um jogo de xadrez, uma planilha eletrônica e uma representação do rosto de Jobs com o pensamento num Macintosh dentro de um balãozinho ao lado da cabeça. A ovação durou cinco minutos.110

O lançamento do Macintosh foi acompanhado por um anúncio memorável, “1984”, que mostrava uma jovem heroína que corria mais rápido que a polícia autoritária e jogava um martelo numa tela, destruindo o Big Brother. Era Jobs, o rebelde, enfrentando a IBM. E a Apple tinha agora uma vantagem: havia aperfeiçoado e implementado uma interface gráfica de usuário, o grande e novo salto na interação homem-máquina, enquanto a IBM e seu fornecedor de sistema operacional Microsoft ainda estavam usando linhas de comando grosseiras com prompts c:\>.

 

 

WINDOWS

 

No início de 1980, antes da chegada do Macintosh, a Microsoft tinha uma boa relação com a Apple. Com efeito, no dia em que a IBM lançou seu PC, em agosto de 1981, Bill Gates estava na Apple em visita a Jobs, um fato normal, uma vez que a maior parte da receita da Microsoft vinha da produção de softwares para o Apple II. Gates ainda era o suplicante na relação. Em 1981, a Apple teve uma receita de 334 milhões de dólares, enquanto a da Microsoft foi de 15 milhões. Jobs queria que Gates fizesse versões novas de seus programas para o Macintosh, que ainda era um projeto secreto. Assim, na reunião que fizeram em agosto de 1981, ele confidenciou seus planos a Bill.

Gates achou que a ideia do Macintosh — um computador barato para as massas com uma interface gráfica de usuário simples — parecia, como ele disse, “superlegal”. Estava esperançoso, até ansioso, de que a Microsoft fizesse programas para o novo computador. Então convidou Jobs para ir a Seattle. Na apresentação que fez lá aos engenheiros da Microsoft, Jobs estava no seu melhor estilo carismático. Com um pouco de licença metafórica, expôs sua visão de uma fábrica na Califórnia que pegaria areia, a matéria-prima do silício, e produziria em massa um “aparelho de informação” tão simples que não precisaria de manual. O pessoal da Microsoft deu ao projeto o codinome “Sand” [areia]. Eles até fizeram engenharia reversa com o nome, transformando-o num acrônimo: Steve’s Amazing New Device [Nova Máquina Maravilhosa de Steve].111

Jobs tinha uma grande preocupação com a Microsoft: não queria que ela copiasse a interface gráfica do usuário. Com sua sensibilidade para o que iria conquistar os consumidores médios, ele sabia que a metáfora da área de trabalho com navegação aponta-e-clica seria, se bem-feita, a inovação que de fato tornaria os computadores pessoais. Em 1981, numa conferência de design em Aspen, falou com eloquência sobre como as telas de computador se tornariam amigáveis usando “metáforas que as pessoas já entendem, como a de documentos sobre uma mesa”. Seu temor de que Gates roubasse a ideia era um tanto irônico, já que ele próprio havia furtado o conceito da Xerox. Mas no modo de pensar de Jobs, ele fizera um acordo para ter o direito de se apropriar da ideia da Xerox. Ademais, ele a aperfeiçoara.

Então, Jobs incluiu em seu contrato com a Microsoft uma cláusula que, ele acreditava, daria à Apple pelo menos um ano de vantagem em relação à interface gráfica do usuário. O contrato estipulava que por determinado período a Microsoft não produziria para nenhuma outra empresa que não fosse a Apple qualquer software que utilizasse “um mouse ou bola de rastreamento” ou tivesse uma interface gráfica apontar-e-clicar. Mas o campo de distorção da realidade de Jobs o venceu. Uma vez que estava decidido a pôr o Macintosh no mercado até o final de 1982, ele se convenceu de que isso iria acontecer. Assim, concordou que a proibição duraria até o final de 1983. Na realidade, o Macintosh só foi lançado em janeiro de 1984.

Em setembro de 1981, a Microsoft começou a projetar em segredo um novo sistema operacional, destinado a substituir o DOS, baseado na metáfora da área de trabalho, com janelas, ícones, mouse e seta. Ela trouxe do Xerox PARC Charles Simonyi, engenheiro de software que trabalhara ao lado de Alan Kay na criação de programas gráficos para o Xerox Alto. Em fevereiro de 1982, o Seattle Times publicou uma foto de Gates e Allen, que, como um leitor de visão aguçada poderia notar, tinha uma lousa branca no fundo com alguns esboços e as palavras “Window manager” no alto. Naquele verão, assim que começou a perceber que a data de lançamento do Macintosh ficaria para pelo menos o final de 1983, Jobs ficou paranoico. Seus temores aumentaram quando seu amigo próximo Andy Hertzfeld, um engenheiro da equipe do Macintosh, informou que seu contato na Microsoft começara a fazer perguntas detalhadas sobre o bitmapping. “Eu disse a Steve que suspeitava que a Microsoft iria clonar o Mac”, relembrou Hertzfeld.112

Os temores de Jobs se concretizaram em novembro de 1983, dois meses antes do lançamento do Macintosh, quando Gates deu uma entrevista coletiva no Palace Hotel, em Manhattan. Ele anunciou que a Microsoft estava desenvolvendo um novo sistema operacional que estaria disponível para os PCs da IBM e seus clones, com uma interface gráfica do usuário. Ele se chamaria Windows.

Gates estava dentro de seu direito. Seu acordo restritivo com a Apple expirava no final de 1983, e a Microsoft pretendia pôr o Windows no mercado bem depois disso. (Na realidade, a Microsoft demorou tanto tempo para concluir até mesmo uma versão 1.0 de má qualidade que o Windows só seria posto à venda em novembro de 1985.) Não obstante, Jobs estava furioso, o que não era algo bonito de se ver. “Traga-me Gates aqui já”, ordenou a um de seus gerentes. Gates topou ir até lá, mas não se intimidou. “Ele me chamou para me dar um esporro”, lembrou. “Fui a Cupertino para satisfazê-lo. ‘Estamos fazendo o Windows’, eu lhe disse. ‘Estamos apostando nossa empresa na interface gráfica.’” Numa sala de conferências cheia de funcionários atônitos da Apple, Jobs respondeu aos gritos: “Você está trapaceando! Eu confiei em você, e agora você está nos roubando!”.113 Gates tinha o hábito de ficar mais calmo e mais frio sempre que Jobs ficava histérico. No final da diatribe de Jobs, Gates olhou para ele e, com sua voz esganiçada, respondeu com o que se tornou um comentário cáustico clássico:

 

Bem, Steve, acho que há mais de uma maneira de encarar isso. Acho que a situação está mais para o seguinte: nós dois tivemos um vizinho rico chamado Xerox, eu invadi a casa dele para roubar o aparelho de TV e descobri que você já o havia roubado.114

 

Jobs guardou raiva e ressentimento pelo resto da vida. “O que eles fizeram foi roubo, pura e simplesmente, porque Gates não tem vergonha”, disse quase trinta anos depois, pouco antes de morrer. Ao ouvir tal acusação, Bill Gates reagiu: “Se acredita nisso, ele entrou mesmo num de seus próprios campos de distorção da realidade”.115

Os tribunais acabaram decidindo que, do ponto de vista legal, Gates estava correto. A decisão de um tribunal federal de apelações observou que as

 

GUIs foram desenvolvidas como uma forma amigável para os mortais comuns se comunicarem com o computador Apple […] baseada numa metáfora da área de trabalho com janelas, ícones e menus suspensos que podem ser manipulados na tela com um dispositivo de mão chamado mouse.

 

Mas decidiu que “a Apple não pode obter proteção de patente para a ideia de uma interface gráfica do usuário, ou para a ideia de uma metáfora da área de trabalho”. Proteger uma inovação look-and-feel era quase impossível.

Quaisquer que fossem os aspectos legais, Jobs tinha o direito de estar furioso. A Apple havia sido mais inovadora, criativa e elegante na execução e brilhante no design. A GUI da Microsoft era de má qualidade, com janelas em mosaico que não podiam se sobrepor e gráficos que pareciam ter sido projetados por bêbados em um porão da Sibéria.

Não obstante, o Windows acabou por passar por cima de todos e dominar o mercado, não porque seu design fosse melhor, mas porque seu modelo de negócios era melhor. A fatia de mercado dominada pelo Microsoft Windows chegou a 80% em 1990 e continuou a subir, atingindo 95% em 2000. Para Jobs, o sucesso da Microsoft representava um defeito estético no funcionamento do universo. “O único problema com a Microsoft é que eles simplesmente não têm gosto, eles não têm gosto nenhum”, disse mais tarde. “Não digo isso numa dimensão pequena. Digo numa dimensão ampla, no sentido de que eles não têm ideias originais e não põem muita cultura em seus produtos.”116

A principal razão para o sucesso da Microsoft foi que ela estava disposta e ansiosa para licenciar seu sistema operacional para qualquer fabricante de hardware. A Apple, por outro lado, optou por uma abordagem integrada. Seu hardware vinha apenas com seu software e vice-versa. Jobs era um artista, um perfeccionista e, portanto, um maluco pelo controle que queria estar no comando da experiência do usuário do início ao fim. A abordagem da Apple levou a produtos mais bonitos, a uma maior margem de lucro e a uma experiência mais sublime do usuário. A abordagem da Microsoft levou a uma escolha mais ampla de hardware. E também se mostrou um caminho melhor para ganhar fatias de mercado.

 

 

RICHARD STALLMAN, LINUS TORVALDS E OS MOVIMENTOS DE SOFTWARE LIVRE E CÓDIGO ABERTO

 

No final de 1983, bem no momento em que Jobs se preparava para revelar o Macintosh e Gates anunciava o Windows, surgiu outra abordagem da criação de softwares. Ela foi proposta por Richard Stallman, um dos frequentadores mais intransigentes do Laboratório de Inteligência Artificial e do Tech Model Railroad Club, ambos do MIT, um hacker possuído pela verdade, com a aparência de um profeta do Velho Testamento. Com fervor moral ainda maior do que o dos membros do Homebrew Computer Club, que copiavam fitas do Microsoft BASIC, Stallman acreditava que os softwares deviam ser criados de forma colaborativa e compartilhados livremente.117

À primeira vista, isso não parecia ser uma postura que daria incentivos para que se produzissem softwares excelentes. A alegria da partilha livre não era o que motivava Gates, Jobs e Bricklin. Mas, uma vez que havia uma ética colaborativa e comunitária que permeava a cultura hacker, os movimentos de software livre e de código aberto acabaram sendo forças poderosas.

Nascido em 1953, Richard Stallman mostrou desde a infância em Manhattan um forte interesse por matemática e desvendou o cálculo por conta própria ainda menino. “A matemática tem algo em comum com a poesia”, diria mais tarde. “Ela é feita de relações verdadeiras, passos verdadeiros, deduções verdadeiras, por isso tem essa beleza.” Ao contrário de seus colegas, era profundamente avesso à competição. Quando seu professor do ensino médio dividiu os alunos em duas equipes para um concurso de perguntas, Stallman recusou-se a respondê-las. “Eu resistia à ideia de competir”, explicou.

 

Eu via que estava sendo manipulado e meus colegas estavam sendo vítimas dessa manipulação. Todos queriam vencer as pessoas da outra equipe, que eram suas amigas tanto quanto as de sua própria equipe. Começaram a exigir que eu respondesse às perguntas para que pudéssemos vencer. Mas eu resisti à pressão porque não tinha preferência por uma equipe ou outra.118

 

Stallman foi para Harvard, onde se tornou uma lenda, mesmo entre os magos da matemática; durante os verões e depois de formado, trabalhou no Laboratório de Inteligência Artificial do MIT, duas paradas de metrô adiante, em Cambridge. Lá, ajudou na confecção do layout do trilho de trem no Tech Model Railroad Club, escreveu um simulador do PDP-11 para ser executado no PDP-10 e se apaixonou pela cultura colaborativa. “Tornei-me parte de uma comunidade de compartilhamento de software que já existia havia muitos anos”, relembrou. “Sempre que gente de outra universidade ou de uma empresa queria usar um programa, nós deixávamos com prazer. Sempre se podia pedir para ver o código-fonte.”119

Como um bom hacker, Stallman desafiava restrições e portas trancadas. Com seus colegas, inventou várias maneiras de invadir escritórios onde havia terminais proibidos; sua especialidade era subir nos tetos falsos, afastar uma telha e baixar uma longa tira de fita magnética com chumaços de fita adesiva pegajosa na ponta para abrir maçanetas. Quando o MIT instituiu um banco de dados de usuários e um sistema de senhas fortes, Stallman resistiu e instou os colegas a fazer o mesmo: “Achei aquilo revoltante, então não preenchi o formulário e criei uma senha de conjunto vazio”. À certa altura, um professor advertiu que a universidade poderia apagar seu diretório de arquivos. Isso seria ruim para todos, retrucou Stallman, já que alguns dos recursos do sistema estavam em seu diretório.120

Para azar de Stallman, a camaradagem entre os hackers do MIT começou a se dissipar no início da década de 1980. O laboratório comprou um novo computador com um sistema de software que era patenteado. “Você tinha de assinar um acordo de confidencialidade até para obter uma cópia executável”, lamentou Stallman. “Isso significava que o primeiro passo para usar um computador era prometer não ajudar o seu próximo. Uma comunidade cooperativa era proibida.”121

Em vez de se rebelar, muitos de seus colegas foram trabalhar em firmas de software com fins lucrativos, entre elas um subproduto do laboratório do MIT chamado Symbolics, onde ganharam um monte de dinheiro por não compartilhar livremente. Stallman, que às vezes dormia em seu escritório e tinha a aparência de quem comprava roupas num brechó, não compartilhava das suas motivações monetárias e os considerava traidores. A gota d’água veio quando a Xerox doou uma nova impressora a laser e ele quis incluir uma modificação no software para avisar aos usuários da rede quando ela travasse. Ele pediu a uma pessoa que lhe fornecesse o código-fonte da impressora, mas ela se recusou, dizendo que havia assinado um acordo de confidencialidade. Stallman ficou moralmente indignado.

Todos esses eventos transformaram Stallman ainda mais num Jeremias que protestava contra a idolatria e pregava um livro de lamentações. “Algumas pessoas me comparam a um profeta do Antigo Testamento, e o motivo é que os profetas do Antigo Testamento diziam que certas práticas sociais estavam erradas”, afirmou. “Eles não faziam concessões em questões morais.”122 Tampouco Stallman. O software de propriedade privada era o “mal”, disse ele, porque “exigia que as pessoas concordassem em não compartilhar e isso deixava a sociedade feia”. O caminho para resistir e derrotar as forças do mal, decidiu, era criar softwares livres.

Então, em 1982, repelido pelo egoísmo que parecia permear a sociedade da era Reagan, bem como os empresários de software, Stallman iniciou uma missão para criar um sistema operacional que fosse livre e completamente público. Para evitar que o MIT reivindicasse os direitos disso, largou o emprego no Laboratório de Inteligência Artificial, embora seu indulgente supervisor lhe permitisse conservar sua chave e continuar a usar os recursos do laboratório. O sistema operacional que Stallman decidiu desenvolver seria semelhante e compatível com o UNIX, que fora criado nos Laboratórios Bell em 1971 e era o padrão para a maioria das universidades e hackers. Com o humor sutil de codificador, Stallman criou um acrônimo recursivo para seu novo sistema operacional, GNU, que significava GNU’s Not UNIX [GNU não é UNIX].

Na edição de março de 1985 do Dr. Dobb’s Journal, uma publicação que surgiu do Homebrew Computer Club, e da Popular Computer Company, Stallman publicou um manifesto:

 

Considero que, seguindo a Regra de Ouro, se eu gosto de um programa, devo compartilhá-lo com outras pessoas que gostam dele. Os vendedores de software querem dividir os usuários e conquistá-los, fazendo com que cada usuário concorde em não compartilhar com os outros. Eu me recuso a romper a solidariedade com os demais usuários dessa maneira […]. Depois que o GNU estiver escrito, todo mundo poderá obter um bom sistema de software livre, tal como o ar.123

 

O movimento do software livre de Stallman foi mal batizado. Seu objetivo não era insistir que todos os softwares fossem gratuitos, mas que fossem livres de quaisquer restrições. “Quando falamos de software ‘livre’ queremos dizer que ele respeita as liberdades essenciais dos usuários: a liberdade de executá-lo, estudá-lo e mudá-lo, e redistribuir cópias, com ou sem alterações”, ele teve de explicar várias vezes. “Isso é uma questão de liberdade, não de preço, então pensem em ‘expressão livre’, não em ‘cerveja grátis’.”

Para Stallman, o movimento do software livre não era apenas uma forma de desenvolver programas produzidos por iguais: era um imperativo moral para fazer uma boa sociedade. Os princípios que promovia, explicou, eram “essenciais não apenas para os usuários individuais, mas para a sociedade como um todo, porque geram a solidariedade social, isto é, partilha e cooperação”.124

Para consagrar e certificar seu credo, Stallman criou uma Licença Pública Geral do GNU e também o conceito, sugerido por um amigo, de “copyleft”, que é o reverso da moeda da afirmação de um copyright. A essência da Licença Pública Geral, definiu Stallman, é que ela dá “a todos permissão para executar o programa, copiar o programa, modificar o programa e distribuir versões modificadas, mas não para acrescentar restrições”.125

O próprio Stallman escreveu os primeiros componentes para o sistema operacional GNU, entre eles um editor de texto, um compilador e muitas outras ferramentas. Mas tornou-se cada vez mais claro que faltava um elemento-chave. “E o kernel?”, perguntou a revista Byte em uma entrevista de 1986. Módulo central de um sistema operacional, o kernel [núcleo] gerencia as solicitações de programas e os transforma em instruções para a unidade central de processamento do computador. “Estou terminando o compilador antes de começar o trabalho no kernel”, respondeu Stallman. “Também terei de reescrever o sistema de arquivos.”126

Por vários motivos, ele achou difícil completar um kernel para o GNU. Então, em 1991, um kernel tornou-se disponível, vindo não de Stallman ou de sua Fundação do Software Livre, mas de uma fonte inesperada: um rapaz dentuço de 21 anos, com cara de menino, finlandês que falava sueco, da Universidade de Helsinque, chamado Linus Torvalds.

 

 

O pai de Linus Torvalds era membro do Partido Comunista e jornalista de televisão; sua mãe havia sido uma estudante radical e, depois, jornalista da imprensa escrita, mas quando criança em Helsinque ele se interessou mais por tecnologia do que por política.127 Ele se descreveu como “bom em matemática, bom em física e sem nenhum traquejo social, e isso foi antes que considerassem ser nerd uma coisa boa”.128 Sobretudo na Finlândia.

Quando Torvalds tinha onze anos, seu avô, que era professor de estatística, deu-lhe um Commodore Vic 20 usado, um dos primeiros computadores pessoais. Usando BASIC, Torvalds começou a criar seus próprios programas, entre os quais um que divertia sua irmã mais nova ao escrever “Sara é o máximo” sem parar. “Uma das maiores alegrias”, disse ele, “foi saber que os computadores são como a matemática: você pode a fazer seu próprio mundo, com suas próprias regras.”

Dando as costas à insistência do pai para que aprendesse a jogar basquete, Torvalds concentrou-se em aprender a criar programas em linguagem de máquina, com as instruções numéricas executadas direto pela unidade central de processamento de um computador, expondo-o à alegria de ser “íntimo da máquina”. Mais tarde, sentiu-se felizardo por ter aprendido a linguagem assembly e a codificar máquinas em um dispositivo muito básico: “Os computadores eram, na verdade, melhores para crianças quando menos sofisticados, quando jovens CDFs como eu podiam mexer sob o capô”.129 Tal como motores de automóveis, os computadores acabariam ficando mais difíceis de desmontar e remontar.

Depois de se matricular na Universidade de Helsinque em 1988 e servir um ano no Exército finlandês, Torvalds comprou um clone da IBM com um processador Intel 386. Decepcionado com o MS-DOS, que Gates e companhia haviam produzido, ele decidiu que queria instalar o UNIX, do qual aprendera a gostar em mainframes da universidade. Mas o UNIX custava 5 mil dólares e não estava configurado para ser executado em um computador doméstico. Torvalds resolveu remediar isso.

Ele leu um livro sobre sistemas operacionais de Andrew Tanenbaum, um professor de ciência da computação de Amsterdam que havia criado o MINIX, um pequeno clone do UNIX para fins de ensino. Decidido a substituir o MS-DOS pelo MINIX em seu novo PC, Torvalds pagou a taxa de licença de 169 dólares (“Achei que era um abuso”), instalou os dezesseis disquetes e começou então a complementar e modificar o MINIX para atender a seus gostos.

O primeiro acréscimo de Torvalds foi um programa de emulação de terminal para que ele pudesse ter acesso ao mainframe da universidade. Ele escreveu o programa a partir do zero em linguagem assembly, “no nível puro do hardware”, de modo que não precisou depender do MINIX. No final da primavera de 1991, dedicou-se a codificar bem no momento em que o sol reapareceu de sua hibernação. Todo mundo estava saindo para a rua, exceto ele. “Eu passava a maior parte do meu tempo vestido com um roupão de banho, debruçado sobre meu feio computador, com grossas persianas pretas me protegendo da luz do sol.”

Depois que pôs a funcionar um emulador de terminal rudimentar, Torvalds quis poder fazer download e upload de arquivos, então construiu um driver de disco e um driver de sistema de arquivos. “Quando fiz isso, ficou claro que o projeto estava a caminho de se tornar um sistema operacional”, lembrou. Em outras palavras, ele estava começando a construir um pacote de softwares que poderia servir de kernel de um sistema operacional como o UNIX. “Em um momento, estou no meu roupão puído mexendo num emulador de terminal com funções extras. No momento seguinte, percebo que ele está acumulando tantas funções que se transformou em um novo sistema operacional em construção.” Torvalds descobriu as centenas de “chamadas de sistema” que o UNIX podia fazer para que o computador executasse operações básicas, como abrir e fechar, ler e escrever, e depois escreveu programas para implementá-los à sua própria maneira. Ainda morava no apartamento da mãe e brigava com frequência com a irmã Sara, que tinha uma vida social normal, porque seu modem monopolizava a linha de telefone. “Ninguém podia nos telefonar”, ela reclamou.130

De início, Torvalds planejou batizar seu novo software de “Freax”, para evocar “free”, “freaks” e “UNIX”. Mas a pessoa que dirigia o site FTP que ele estava usando não gostou do nome, então Torvalds resolveu chamá-lo de “Linux”, que pronunciava da mesma maneira que seu primeiro nome, “Li-nucs”.131 “Eu nunca quis usar esse nome porque, bem, achava que era meio pretensioso”, disse ele. Mas mais tarde Torvalds admitiu que havia uma parte de seu ego que gostava de ser aclamada depois de tantos anos vivendo no corpo de um nerd recluso, e ele estava feliz por ter aprovado o nome.132

No início do outono de 1991, quando o sol de Helsinque começou a desaparecer de novo, Torvalds apareceu com o shell de seu sistema, que continha 10 mil linhas de código.e Em vez de tentar comercializar o que havia produzido, ele decidiu simplesmente oferecê-lo ao público. Pouco tempo antes, fora com um amigo assistir a uma palestra de Stallman, que se tornara um pregador itinerante mundial da doutrina do software livre. Na realidade, Torvalds não adotou a religião nem abraçou o dogma: “É provável que aquilo não tenha causado um impacto enorme na minha vida naquele momento. Eu estava interessado em tecnologia, não em política — eu tinha política suficiente em casa”.133 Mas ele viu as vantagens práticas da abordagem aberta. Quase por instinto, e não como escolha filosófica, achou que o Linux deveria ser compartilhado livremente, com a esperança de que quem o usasse pudesse ajudar a aperfeiçoá-lo.

Em 5 de outubro de 1991, Torvalds postou uma mensagem atrevida no grupo de discussão do MINIX. “Vocês anseiam pelos belos dias do minix-1.1, quando os homens eram homens e escreviam seus próprios drivers de dispositivos?”, perguntou. “Estou trabalhando numa versão livre de um sósia do minix para computadores AT-386. Ele enfim atingiu o estágio em que é utilizável (embora talvez não seja, dependendo do que você quer), e estou disposto a divulgar os códigos-fonte para distribuição mais ampla.”134

“Não foi uma grande decisão postar isso”, lembrou. “Era como eu estava acostumado a intercambiar programas.” No mundo da informática, havia (e ainda há) uma forte cultura de compartilhamento, em que as pessoas mandam voluntariamente alguns dólares a alguém cujo programa baixaram. “Eu recebia e-mails de gente me perguntando se eu gostaria que me enviassem trinta dólares ou algo assim”, disse Torvalds. Ele havia acumulado 5 mil dólares em empréstimos estudantis e ainda estava pagando cinquenta por mês da prestação de seu computador. Mas em vez de buscar doações, ele pediu cartões-postais, e eles começaram a chegar de pessoas de todo o mundo que estavam usando Linux. “Sara costumava pegar a correspondência, e de repente ficou impressionada com o fato de seu agressivo irmão mais velho receber notícias de novos amigos tão longínquos”, relembrou Torvalds. “Foi o primeiro indício que ela teve de que eu estava fazendo alguma coisa potencialmente útil durante aquelas horas todas em que monopolizava a linha telefônica.”

A decisão de Torvalds de rejeitar pagamentos vinha de um conjunto de razões, como ele explicou mais tarde, entre elas o desejo de viver de acordo com o legado de sua família:

 

Achei que estava seguindo os passos de séculos de cientistas e outros acadêmicos que construíram suas obras sobre as fundações de outros […]. Eu também queria feedback (tudo bem, e elogios). Não fazia sentido cobrar daqueles que poderiam potencialmente ajudar a aperfeiçoar meu trabalho. Imagino que teria uma postura diferente se não tivesse sido criado na Finlândia, onde qualquer pessoa que exiba o menor sinal de ganância é vista com desconfiança, se não inveja. E sim, eu, sem dúvida, teria tratado a coisa toda do dinheiro de forma muito diferente se não tivesse sido criado sob a influência de um avô acadêmico obstinado e um pai comunista obstinado.

 

“A ganância nunca é boa”, declarou Torvalds. Sua postura ajudou a transformá-lo num herói popular, adequado para veneração em conferências e em capas de revistas como o anti-Gates. Ele tinha suficiente conhecimento de si mesmo para saber que apreciava essa aclamação e que isso o deixava um pouco mais ególatra do que seus admiradores se davam conta. “Nunca fui o filho natural da tecnologia altruísta e sem ego que a imprensa insiste que sou”, admitiu.135

Torvalds decidiu usar a Licença Pública Geral do GNU não porque concordasse totalmente com a ideologia de compartilhamento livre de Stallman (e também de seus pais), mas porque achava que deixar os hackers do mundo todo pôr as mãos no código-fonte levaria a um esforço colaborativo aberto que resultaria num software mais impressionante. “Meus motivos para abrir o Linux eram bem egoístas”, disse ele. “Eu não queria a dor de cabeça de tentar lidar com partes do sistema operacional que considerava trabalho besta. Eu queria ajuda.”136

Seu instinto estava certo. A liberação do kernel de seu Linux levou a um tsunami de colaboração voluntária que se tornou o modelo de produção compartilhada que impulsionou a inovação da era digital.137 No outono de 1992, um ano após seu lançamento, o grupo de discussão do Linux na internet já tinha dezenas de milhares de usuários. Colaboradores desprendidos adicionaram melhorias, como uma interface gráfica semelhante à do Windows e ferramentas para facilitar a criação de redes de computadores. Sempre que havia um bug, alguém em algum lugar entrava em cena para corrigi-lo. Em seu livro A catedral e o bazar, Eric Raymond, um dos teóricos importantes do movimento do software livre, propôs o que chamou de “Lei de Linus”: “Havendo olhos suficientes, todos os bugs são rasos”.138

 

 

O compartilhamento entre pares e a colaboração baseada na comunidade não eram nada de novo. Um campo inteiro da biologia evolutiva surgiu em torno da questão de por que os seres humanos e os membros de algumas outras espécies cooperam de uma forma que parece ser altruísta. A tradição de criar associações voluntárias, encontrada em todas as sociedades, foi especialmente forte nos primórdios dos Estados Unidos, evidenciada em empreendimentos cooperativos que variavam de mulheres que se reuniam para fazer colchas à construção de celeiros. “Em nenhum país do mundo o princípio de associação foi utilizado com mais sucesso ou aplicado com mais generosidade a uma grande variedade de objetos diferentes do que nos Estados Unidos”, escreveu Alexis de Tocqueville.139 Benjamin Franklin, em sua Autobiografia, propôs todo um credo cívico, com o lema “Verter benefícios para o bem comum é divino”, a fim de explicar sua formação de associações de voluntários para criar hospital, milícia, corpo de varredores de rua, brigada de incêndio, biblioteca itinerante, guarda noturna e muitos outros empreendimentos comunitários.

O corpo de hackers que cresceu em torno do GNU e do Linux mostrou que os incentivos emocionais, além das recompensas financeiras, podem estimular a colaboração voluntária. “O dinheiro não é o maior dos motivadores”, disse Torvalds. “As pessoas fazem seu melhor trabalho quando são movidas pela paixão. Quando estão se divertindo. Isso é tão verdadeiro para dramaturgos, escultores e empresários quanto para engenheiros de software.” Há também, intencional ou não, algum interesse próprio envolvido.

 

Os hackers também são motivados, em grande parte, pelo respeito que podem ganhar aos olhos de seus pares ao dar contribuições sólidas […]. Todo mundo quer impressionar seus pares, melhorar sua reputação, elevar seu status social. O desenvolvimento de códigos abertos dá aos programadores essa chance.

 

A “Carta aberta aos hobbistas” de Gates, reclamando da partilha não autorizada do Microsoft BASIC, perguntava em tom de repreensão: “Quem pode se dar ao luxo de ser profissional trabalhando de graça?”. Torvalds achava que isso era um ponto de vista bizarro. Ele e Gates vinham de duas culturas muito diferentes, o mundo acadêmico radical tingido de comunista de Helsinque em contraste com a elite empresarial de Seattle. Gates pode ter acabado com a casa maior, mas Torvalds colheu a adulação do antiestablishment. “Os jornalistas pareciam adorar o fato de que, enquanto Gates vivia em uma mansão high-tech à beira do lago, eu tropeçava nos brinquedos da minha filha em uma casa de fazenda de três quartos com encanamento ruim na entediante Santa Clara”, disse ele, com autoconsciência irônica. “E que eu dirigia um Pontiac chato. E atendia eu mesmo meu telefone. Quem não me adoraria?”

Torvalds foi capaz de dominar a arte da era digital de ser um líder aceito dentro de uma colaboração não hierárquica, imensa, descentralizada, algo que Jimmy Wales estava fazendo mais ou menos na mesma época na Wikipedia. A primeira regra para esse tipo de situação é tomar decisões como um engenheiro, com base no mérito técnico, em vez de em considerações pessoais. “Era um modo de fazer as pessoas confiarem em mim”, ele explicou. “Quando confiam em você, aceitam seu conselho.” Ele também percebeu que os líderes de uma colaboração voluntária precisam estimular outros a seguir suas paixões, sem lhes dar ordens. “A melhor e mais eficaz maneira de liderar é deixar que as pessoas façam coisas porque querem fazê-las, e não porque você quer que elas façam.” Tal líder sabe capacitar grupos para que se organizem por si mesmos. Quando isso é bem-feito, é natural que surja uma estrutura de governança por consenso, como aconteceu tanto com o Linux quanto com a Wikipedia. “O que surpreende muita gente é que o modelo de código aberto funciona de fato”, disse Torvalds. “As pessoas sabem quem foi ativo e em quem podem confiar, e a coisa simplesmente acontece. Sem votação. Sem ordens. Sem recontagens.”140

 

 

A combinação do GNU com o Linux representava, pelo menos no conceito, o triunfo da cruzada de Richard Stallman. Mas é raro que os profetas morais se entreguem a celebrações de vitória. Stallman era um purista. Torvalds, não. O kernel do Linux que ele enfim distribuiu continha alguns pingos binários com recursos registrados. Isso podia ser remediado; com efeito, a Fundação do Software Livre de Stallman criou uma versão que era completamente livre e sem dono. Mas havia uma questão mais profunda e emocional para Stallman. Ele reclamava que chamar o sistema operacional de “Linux”, o que quase todo mundo fazia, era enganoso. Linux era o nome do kernel. O sistema como um todo deveria ser chamado de GNU/Linux, ele insistia, às vezes com raiva. Uma pessoa que estava em uma feira de software contou como Stallman reagiu quando um nervoso garoto de catorze anos lhe perguntou sobre o Linux. “Você arrasou com o menino, chamou-o de babaca, e eu vi o rosto dele se fechar e a devoção dele por você e nossa causa ir para o lixo”, o espectador o censurou depois.141

Stallman também insistia que o objetivo deveria ser criar o que chamava de software livre, uma expressão que refletia um imperativo moral de compartilhar. Ele se opôs à expressão que Torvalds e Eric Raymond começaram a usar, software de código aberto, que enfatizava o objetivo pragmático de levar as pessoas a colaborar para a criação de softwares de forma mais eficaz. Na prática, a maior parte dos softwares livres é também de código aberto e vice-versa; em geral, são reunidos sob a rubrica de software livre e de código aberto. Porém para Stallman não importava apenas como você fazia seu software, mas também suas motivações. Caso contrário, o movimento poderia ser suscetível a concessões e corrupção.

As disputas foram além da mera substância e tornaram-se, sob alguns aspectos, ideológicas. Stallman estava possuído por uma clareza moral e uma aura inflexível, e lamentou que “quem encoraja o idealismo hoje enfrenta um grande obstáculo: a ideologia dominante incentiva as pessoas a depreciar o idealismo por ser ‘impraticável’”.142 Torvalds, ao contrário, era descaradamente prático, como um engenheiro. “Eu liderei os pragmáticos”, disse. “Sempre achei que os idealistas são interessantes, mas meio chatos e assustadores.”143

Torvalds admitiu “não ser exatamente um grande fã” de Stallman, explicando:

 

Não gosto de gente obcecada por uma única questão, nem acho que as pessoas que veem o mundo em preto e branco sejam muito simpáticas ou, em última análise, muito úteis. O fato é que não existem apenas dois lados em qualquer questão, há quase sempre um intervalo ou várias respostas, e “depende” é quase sempre a resposta certa em qualquer grande pergunta.144

 

Ele também acreditava que deveria ser permitido ganhar dinheiro com softwares de código aberto. “Código aberto significa deixar todo mundo jogar. Por que excluir as empresas, que promovem tanto o avanço tecnológico da sociedade?”145 Os softwares podem querer ser livres, mas as pessoas que os escrevem podem querer alimentar seus filhos e pagar suas hipotecas.

 

 

Essas disputas não devem ofuscar a espantosa realização de Stallman, Torvalds e de seus milhares de colaboradores. A combinação de GNU e Linux criou um sistema operacional que é usado em todo o mundo e foi portado para mais plataformas de hardware, que vão desde os dez maiores supercomputadores do mundo aos sistemas embutidos em telefones celulares, do que qualquer outro sistema operacional. “O Linux é subversivo”, escreveu Eric Raymond. “Quem pensaria que um sistema operacional de alta classe poderia surgir como que por magia do trabalho em tempo parcial de milhares de colaboradores espalhados por todo o planeta, conectados apenas pelos tênues fios da internet?”146 Ele não se tornou apenas um ótimo sistema operacional, mas um modelo para a produção de bens comuns por pares em outras áreas, do navegador Firefox, da Mozilla, ao conteúdo da Wikipedia.

Na década de 1990, já havia muitos modelos de desenvolvimento de software. Havia a abordagem da Apple, em que o hardware e o software do sistema operacional estavam bem amarrados, como no Macintosh, no iPhone e em todos os outros produtos da empresa. O resultado era uma experiência de usuário contínua. Havia a abordagem da Microsoft, em que o sistema operacional estava separado do hardware. Isso possibilitava mais opções ao usuário. Além disso, havia as abordagens livre e de código aberto, que permitiam que o software fosse completamente irrestrito e modificável por qualquer usuário. Cada modelo tinha suas vantagens, cada um tinha seus incentivos para a criatividade, e cada um tinha seus profetas e discípulos. Mas a abordagem que funcionava melhor era ter todos os três modelos em coexistência, junto com várias combinações de aberto e fechado, empacotado e desagregado, registrado e livre. Windows e Mac, UNIX e GNU, Linux e OS X, iOS e Android: várias abordagens competiram por décadas, estimulando-se umas às outras — e proporcionando um controle que impediu que qualquer modelo se tornasse dominante a ponto de sufocar a inovação.

 

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Larry Brilliant (1944- ) e Stewart Brand na casa flutuante de Brand, 2010.

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William von Meister (1942-95).

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Steve Case (1958- ).


a Depois que fizeram sucesso, Gates e Allen doaram um novo prédio de ciências para a escola Lakeside e deram ao auditório o nome de Kent Evans.

b A relutância de Steve Wozniak em executar essa tediosa tarefa quando escreveu o BASIC para o Apple II mais tarde forçaria a Apple a ter de licenciar o BASIC de Allen e Gates.

c Ao ler um rascunho deste livro on-line, Steve Wozniak disse que Dan Sokol tirou apenas oito cópias, porque era difícil, e levava tempo, consegui-las. Mas John Markoff, que noticiou o incidente em What the Dormouse Said, dividiu comigo (e com Woz e Felsenstein) a transcrição de sua entrevista com Dan Sokol, que afirmou ter usado um PDP-11 com uma leitora e perfuradora de fita de alta velocidade. Todas as noites tirava cópias, e calculou que no total deve ter tirado 75.

d Os advogados tinham motivos para preocupação. Mais tarde, a Microsoft se envolveu em um prolongado processo antitruste aberto pelo Departamento de Justiça, que a acusou de haver aproveitado indevidamente seu domínio do mercado de sistemas operacionais para buscar vantagem em navegadores e outros produtos. O caso foi enfim resolvido depois que a Microsoft concordou em modificar algumas de suas práticas.

e Em 2009, a versão Debian 5.0 do GNU/Linux já tinha 324 milhões de linhas de código-fonte e um estudo estimou que teria custado cerca de 8 bilhões de dólares para desenvolvê-lo por meios convencionais (http://gsyc.es/~frivas/paper.pdf).