11. A web

Havia um limite para a popularidade da internet, pelo menos entre os usuários de computadores comuns, mesmo depois que o advento dos modems e a ascensão de serviços on-line tornaram possível para quase todo mundo se conectar. Ela era uma selva obscura, sem mapas, cheia de feixes de folhagens estranhas, com nomes do tipo alt.config e Wide Area Information Servers que podiam intimidar todo mundo, exceto os desbravadores mais intrépidos.

Mas bem no momento em que os serviços on-line começaram a se abrir para a internet, no início da década de 1990, um novo método de postar e encontrar conteúdo apareceu por milagre, como se tivesse irrompido para a vida a partir de um acelerador de partículas subterrâneo, o que, na verdade, é parecido com o que aconteceu. Ele tornou obsoletos os serviços on-line cuidadosamente empacotados e concretizou — na realidade, superou em muito — os sonhos utópicos de Bush, Licklider e Engelbart. Mais do que a maioria das inovações da era digital, foi inventado sobretudo por um único indivíduo, que lhe deu um nome que conseguia ser, tal como ele próprio era, ao mesmo tempo expansivo e simples: World Wide Web.

 

 

TIM BERNERS-LEE

 

Garoto que cresceu na periferia de Londres na década de 1960, Tim Berners-Lee teve um insight fundamental a respeito dos computadores: eles eram muito bons em avançar passo a passo através de programas, mas não eram muito bons em fazer associações aleatórias e conexões inteligentes, à maneira de um ser humano imaginativo.

Isso não é uma coisa em que a maioria das crianças pensa, mas os pais de Berners-Lee eram cientistas da computação. Eram programadores do Ferranti Mark I, a versão comercial do computador de programa armazenado da Universidade de Manchester. Uma noite, em casa, seu pai, que havia sido convidado por seu chefe para rascunhar um discurso sobre como tornar os computadores mais intuitivos, falou a respeito de alguns livros a respeito do cérebro humano que estava lendo. Seu filho relembrou: “Ficou comigo a ideia de que os computadores podiam se tornar muito mais poderosos se pudessem ser programados para ligar informações de outro modo desconectadas”.1 Eles também falaram sobre o conceito de uma máquina universal de Alan Turing. “Isso me fez perceber que as limitações do que se podia fazer com um computador eram apenas as da imaginação.”2

Berners-Lee nasceu em 1955, mesmo ano de nascimento de Bill Gates e Steve Jobs, e considerava que viera ao mundo numa época propícia para se interessar por eletrônica. Era fácil para as crianças de então ter acesso a equipamentos e componentes básicos com que podiam brincar. “As coisas aconteceram no momento certo”, explicou. “Toda vez que entendíamos uma tecnologia, a indústria produzia alguma coisa mais poderosa que podíamos comprar com nosso próprio dinheiro.”3

Na escola primária, Berners-Lee e um amigo percorriam as lojas de hobby, onde gastavam a mesada para comprar eletroímãs e fazer seus próprios relés e comutadores. “A gente enfiava um eletroímã num pedaço [bit] de madeira”, lembrou. “Quando você ligava, ele atraía um pedaço [bit] de estanho e completava um circuito.” A partir disso, os garotos desenvolveram uma profunda compreensão do que era um bit, como ele poderia ser armazenado e as coisas que se poderia fazer com um circuito. No momento em que estavam superando os comutadores eletromagnéticos simples, os transístores se tornaram comuns o suficiente para que Berners-Lee e seus amigos pudessem comprar um saco de cem. “Aprendemos a testar transístores e usá-los para substituir os relés que havíamos construído.”4 Ao fazê-lo, ele podia visualizar com clareza o que cada componente estava fazendo, comparando-os com os antigos comutadores eletromagnéticos que tinham sido substituídos. Usou-os para produzir sons para seu trenzinho elétrico e para criar circuitos que controlavam quando o trem precisava desacelerar.

“Começamos a imaginar circuitos lógicos bastante complicados, mas eram impraticáveis porque seria preciso usar transístores demais”, disse. Mas no momento em que ele deparou com esse problema, os microchips apareceram na loja de produtos eletrônicos local. “Ao comprar esses pequenos sacos de microchips com sua mesada, você percebia que poderia fazer o núcleo de um computador.”5 Não só isso, mas poderia entender o núcleo do computador, porque havia progredido de comutadores simples para transístores e depois microchips, e sabia como cada um deles funcionava.

Em um verão, pouco antes de partir para Oxford, Berners-Lee arrumou um emprego numa madeireira. Quando estava despejando um monte de serragem numa caçamba de lixo, deu com uma calculadora velha, em parte mecânica e em parte eletrônica, com fileiras de botões. Ele a salvou, equipou-a com alguns de seus interruptores e transístores, e logo tinha nas mãos um computador rudimentar em funcionamento. Em uma loja de consertos, comprou um aparelho de televisão quebrado para servir de monitor, depois de descobrir como funcionava o circuito de válvulas.6

Durante seus anos em Oxford, os microprocessadores chegaram ao mercado. Então, assim como Wozniak e Jobs haviam feito, ele e seus amigos criaram placas, que tentaram vender. Não foram tão bem-sucedidos quanto os Steve, em parte porque, como Berners-Lee disse mais tarde, “nós não tínhamos a mesma comunidade propícia e o mesmo mix cultural como havia no Homebrew e no Vale do Silício”.7 A inovação surge em lugares com o caldo cultural certo, o que era verdade para a área da baía de San Francisco, mas não para Oxfordshire na década de 1970.

Sua educação prática passo a passo, que começou com comutadores eletromagnéticos e progrediu para microprocessadores, deu-lhe uma profunda compreensão da eletrônica.

 

Depois que você fez alguma coisa com fios e pregos, quando alguém diz que um chip ou circuito tem um relé, você se sente confiante para usá-lo, porque sabe que poderia fazer um deles. Agora, a garotada pega um MacBook e acha que é um eletrodoméstico. Tratam-no como uma geladeira e esperam que esteja repleto de coisas boas, mas não sabem como ele funciona. Não entendem completamente o que eu sabia, e meus pais sabiam, que aquilo que você poderia fazer com um computador era limitado apenas por sua imaginação.8

 

Uma segunda lembrança de infância permanecia em sua memória: um almanaque/livro de dicas e conselhos da era vitoriana que havia na casa de sua família, com o título antiquado e mágico de Enquire Within Upon Everything [Pergunte aqui sobre tudo].a A introdução do editor proclamava:

 

Se você deseja modelar uma flor em cera; estudar as regras de etiqueta; servir um molho no café da manhã ou ceia; planejar um jantar para um grupo grande ou pequeno; curar uma dor de cabeça; fazer um testamento; casar-se; enterrar um parente; o que quer que você deseje fazer, realizar ou desfrutar, desde que seu desejo tenha relação com as necessidades da vida doméstica, espero que não deixe de “perguntar aqui”.9

 

Tratava-se, de certa forma, do Whole Earth Catalog do século XIX, e era repleto de informações e conexões aleatórias, tudo bem indexado. “Os perguntadores devem consultar o índice no final”, instruía a página de rosto. Em 1894, o almanaque já tivera 89 edições e vendera 1188000 exemplares. “O livro servia como um portal para um mundo de informações sobre tudo, desde como remover manchas de roupas a dicas sobre como investir dinheiro”, observou Berners-Lee. “Não é uma analogia perfeita para a web, mas um ponto de partida primitivo.”10

Outro conceito que Berners-Lee vinha mastigando desde a infância era como o cérebro humano faz associações aleatórias — o cheiro de café evoca o vestido que uma amiga usava na última vez você tomou café com ela —, ao passo que uma máquina só pode fazer as associações que foi programada para fazer. Ele também estava interessado em como as pessoas trabalham juntas. “Você tem a metade da solução em seu cérebro e eu tenho a outra metade no meu cérebro”, explicou.

 

Se estamos sentados em torno de uma mesa, começo uma frase e você pode ajudar a terminá-la, e essa é a maneira como todos nós pensamos juntos. Rabisque coisas na lousa, e editamos o material um do outro. Como podemos fazer isso quando estamos separados?11

 

Todos esses elementos, do Enquire Within à capacidade do cérebro de fazer associações aleatórias e colaborar com outros, estavam ressoando na cabeça de Berners-Lee quando ele se formou em Oxford. Mais tarde, ele se daria conta de uma verdade a respeito da inovação: novas ideias ocorrem quando várias noções aleatórias se agitam juntas até que se aglutinam. Ele descreveu o processo da seguinte forma:

 

As ideias semiformadas flutuam. Elas vêm de lugares diferentes, e a mente tem essa maneira maravilhosa de jogá-las para lá e para cá, até que um dia elas se encaixam. Elas podem não se encaixar tão bem, então damos um passeio de bicicleta ou algo assim, e melhora.12

 

Para Berners-Lee, seus conceitos inovadores começaram a se aglutinar quando ele pegou um trabalho de consultoria no CERN [Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear)], o imenso acelerador linear e laboratório de física de partículas perto de Genebra. Ele precisava de uma forma de catalogar as conexões entre os cerca de 10 mil pesquisadores, seus projetos e seus sistemas de informática. Tanto os computadores como as pessoas falavam muitas línguas diferentes e tendiam a fazer conexões ad hoc uns para os outros. Berners-Lee precisava rastreá-las, de modo que escreveu um programa para ajudá-lo nisso. Ele percebeu que quando lhe explicavam as várias relações no CERN, as pessoas tendiam a rabiscar diagramas com um monte de flechas. Então inventou um método para replicar isso em seu programa. Ele digitava o nome de um indivíduo ou projeto e depois criava links que mostravam quais deles estavam relacionados. Foi assim que Berners-Lee criou um programa que chamou de Enquire, em homenagem ao almanaque vitoriano de sua infância.

“Eu gostava do Enquire”, escreveu ele, “porque ele armazenava informações sem usar estruturas como matrizes ou árvores.”13 Essas estruturas são hierárquicas e rígidas, ao passo que a mente humana dá saltos mais aleatórios. Enquanto trabalhava no Enquire, ele desenvolveu uma visão mais grandiosa do que o programa poderia vir a ser. “Suponha que todas as informações armazenadas em computadores em todos os lugares estivessem ligadas. Haveria um único espaço de informação global. Uma teia de informações se formaria.”14 O que ele imaginava, embora não soubesse disso na época, era a máquina memex de Vannevar Bush — que era capaz de armazenar documentos, cruzar suas referências, recuperá-los — em escala global.

Mas antes de avançar muito na criação do Enquire, sua consultoria no CERN chegou ao fim. Ele deixou para trás seu computador e seu disco flexível de oito polegadas que continha todo o código, que logo foi perdido e esquecido. Por alguns anos, trabalhou na Inglaterra para uma empresa que fazia software para publicação de documentos. Mas se entediou e pediu uma bolsa de estudo no CERN. Em setembro de 1984, voltou à Suíça para trabalhar com o grupo responsável por reunir os resultados de todas as experiências em andamento na instituição.

O CERN era um caldeirão de povos e sistemas de informática diferentes que usavam dezenas de línguas, tanto verbais como digitais. Todos tinham de compartilhar informações. “Nessa diversidade conectada”, lembrou Berners-Lee, “o CERN era um microcosmo do resto do mundo.”15 Nesse cenário, ele se viu de volta a suas ruminações de infância sobre como pessoas com perspectivas diferentes trabalham juntas para transformar as noções pela metade de cada um em novas ideias.

 

Sempre me interessei pelo modo como as pessoas trabalham juntas. Eu estava trabalhando com um monte de gente em outros institutos e universidades, e eles tinham de colaborar. Se estivessem na mesma sala, teriam escrito na lousa. Eu estava em busca de um sistema que permitisse que as pessoas pensassem juntas e mantivessem o controle da memória institucional de um projeto.16

 

Ele achava que um sistema desse tipo conectaria pessoas distantes de tal modo que elas poderiam completar as frases umas das outras e acrescentar ingredientes úteis a suas noções formadas pela metade. “Eu queria que fosse algo que nos permitisse trabalhar juntos, projetar coisas juntos”, explicou. “A parte realmente interessante do projeto é quando temos muitas pessoas em todo o planeta que têm parte dele na cabeça. Elas têm partes da cura para a aids, parte de uma compreensão do câncer.”17 O objetivo era facilitar a criatividade em equipe — o brainstorming que ocorre quando os membros se sentam juntos e estimulam as ideias dos demais — quando os jogadores não estão no mesmo lugar.

Então, Berners-Lee reconstruiu seu programa Enquire e começou a pensar em maneiras de expandi-lo. “Eu queria acessar diferentes tipos de informação, tais como os trabalhos técnicos de um pesquisador, o manual de diferentes módulos de software, atas de reuniões, notas rabiscadas às pressas e assim por diante.”18 Na verdade, queria fazer muito mais do que isso. Ele tinha o jeito plácido de um codificador inato, mas, sob essa aparência, abrigava a curiosidade extravagante de uma criança que ficava até tarde da noite lendo Enquire Within Upon Everything. Em vez de apenas elaborar um sistema de gestão de dados, ele desejava criar um playground colaborativo. “Eu queria construir um espaço criativo”, disse mais tarde, “algo parecido com um tanque de areia onde todos pudessem brincar juntos.”19

Ele descobriu uma manobra simples que lhe permitiria fazer as conexões que desejava: o hipertexto. Agora familiar a qualquer usuário, o hipertexto é uma palavra ou expressão que é codificada para que, quando clicada, envie o leitor a outro documento ou algum conteúdo. Imaginado por Bush, em sua descrição de uma máquina memex, foi batizado em 1963 pelo visionário tecnológico Ted Nelson, que sonhou com um projeto brilhantemente ambicioso chamado Xanadu, nunca materializado, em que todos os itens de informação seriam publicados com dois links de hipertexto de e para informações relacionadas.

O hipertexto era uma forma de possibilitar que as conexões que estavam no cerne do programa Enquire de Berners-Lee proliferassem como coelhos; qualquer um poderia estabelecer ligações com documentos em outros computadores, mesmo aqueles com diferentes sistemas operacionais, sem pedir permissão. “Um programa Enquire capaz de links de hipertexto externos era a diferença entre prisão e liberdade”, ele exultou. “Novas teias poderiam ser feitas para ligar computadores diferentes.” Não haveria um nó central, nenhum centro de comando. Se você soubesse o endereço na rede de um documento, poderia acessá-lo. Dessa forma, o sistema de links poderia se espalhar e expandir, “a cavalo da internet”, como disse Berners-Lee.20 Mais uma vez, uma inovação foi criada graças ao entrelaçamento de duas inovações anteriores: nesse caso, hipertexto e internet.

Usando um computador NeXT, o belo híbrido de estação de trabalho e computador pessoal que Jobs criou depois de ser expulso da Apple, Berners-Lee adaptou um protocolo em que vinha trabalhando, chamado de Remote Procedure Call, que permitia que um programa que estivesse rodando em um computador chamasse uma sub-rotina que estava em outro computador. Em seguida, elaborou um conjunto de princípios para a designação de cada documento. De início, chamou-os de Identificadores Universais de Documentos. O pessoal da Força-Tarefa de Engenharia da Internet encarregado de aprovar as normas se opôs ao que acusou de “arrogância” em chamar seu esquema de universal. Assim, ele concordou em alterar para uniforme. Na verdade, ele foi levado a mudar as três palavras, transformando-as em Uniform Resource Locators [Localizadores-Padrão de Recursos] — aqueles URLs, como http://www.cern.ch, que usamos agora todo dia.21 No final de 1990, ele já havia criado uma série de ferramentas que permitiram que sua rede ganhasse vida: um Hypertext Transfer Protocol [Protocolo de Transferência de Hipertexto] (HTTP) para permitir que o hipertexto fosse trocado on-line, uma Hypertext Markup Language [Linguagem de Marcação de Hipertexto] (HTML) para criar páginas, um navegador rudimentar para servir de software aplicativo que recuperava e exibia informações e um software servidor que pudesse responder às solicitações da rede.

Em março de 1989, Berners-Lee estava com seu projeto pronto e apresentou uma proposta formal de financiamento à direção do CERN. “A esperança era permitir que se desenvolvesse um pool de informações que pudesse crescer e evoluir”, escreveu ele. “Uma ‘teia’ de notas com ligações entre elas é muito mais útil do que um sistema hierárquico fixo.”22 Infelizmente, sua proposta suscitou tanto perplexidade quanto entusiasmo. “Vago, mas empolgante”, escreveu seu chefe, Mike Sendall, em cima do memorando. “Quando li a proposta do Tim”, ele admitiu mais tarde, “não consegui descobrir do que se tratava, mas achei que era ótimo.”23 Mais uma vez, um brilhante inventor se viu na necessidade de um colaborador para transformar um conceito em realidade.

 

 

Mais do que a maioria das inovações da era digital, a concepção da web foi impulsionada sobretudo por uma pessoa. Mas Berners-Lee precisou de um parceiro para concretizá-la. Por sorte, ele pôde encontrá-lo em Robert Cailliau, um engenheiro belga do CERN que vinha brincando com ideias semelhantes e estava disposto a unir forças. “No casamento do hipertexto com a internet, Robert foi o padrinho”, disse Berners-Lee.

Com seu comportamento afável e suas habilidades burocráticas, Cailliau era a pessoa perfeita para ser o pregador do projeto dentro do CERN e o gerente de projeto que fazia as coisas acontecer. Indivíduo meticuloso com seus trajes, que programava com exata regularidade seus cortes de cabelo, ele era “o tipo de engenheiro que pode ser levado à loucura pela incompatibilidade de plugues de eletricidade em diferentes países”, nas palavras de Berners-Lee.24 Eles formaram uma parceria vista com frequência em duplas inovadoras: o designer de produto visionário e o gerente de projeto diligente. Cailliau, que adorava planejamento e trabalho organizacional, abriu o caminho, segundo disse, para Berners-Lee “enterrar a cabeça nos bits e desenvolver seu software”. Um dia, Cailliau tentou repassar um plano de projeto com o colega e se deu conta de que “ele simplesmente não entendia o conceito!”.25 Graças a Cailliau, ele não precisava entender.

A primeira contribuição de Cailliau foi aperfeiçoar a proposta de financiamento que Berners-Lee apresentara aos administradores do CERN, tornando-a menos vaga, ao mesmo tempo que a mantinha empolgante. Ele começou pelo título, que era “Gestão de Informação”. Cailliau insistiu para que encontrassem um nome mais atraente para o projeto, o que não deveria ser muito difícil. Berners-Lee teve algumas ideias. A primeira foi Mine of Information, mas o acrônimo em inglês MOI significava “eu” em francês, o que soava um pouco egocêntrico. A segunda sugestão foi The Information Mine, cujo acrônimo, TIM, o era ainda mais. Cailliau rejeitava a ideia, usada muitas vezes no CERN, de usar o nome de algum deus grego ou faraó egípcio. Então Berners-Lee veio com algo que era direto e descritivo: “Vamos chamá-la de World Wide Web” [teia ampla mundial]. Era a metáfora que ele havia usado em sua proposta original. Cailliau empacou. “Não podemos chamá-la assim, porque a abreviatura WWW é mais longa do que o nome completo!”26 As iniciais tinham três vezes mais sílabas do que o próprio nome. Mas Berners-Lee era capaz de ser tranquilamente teimoso. “Parece bom”, declarou. Assim, o título da proposta foi alterado para “WorldWideWeb: Proposta para um Projeto de HiperTexto”. E assim foi batizada a web.

Depois que o projeto foi oficialmente adotado, os administradores do CERN quiseram patenteá-lo. Quando Cailliau levantou a questão, Berners-Lee não concordou. Ele queria que a web se espalhasse e evoluísse o mais rápido possível, e isso significava que deveria ser livre e aberta. A certa altura, ele olhou para o parceiro e perguntou, em tom acusador: “Robert, você quer ficar rico?”. Na memória de Cailliau, sua reação inicial foi dizer: “Bem, isso ajuda, não?”.27 Era a resposta errada. “Estava claro que ele não se importava com isso”, Cailliau se deu conta. “Tim não está nessa pelo dinheiro. Ele aceita uma variedade muito maior de quartos de hotel do que um CEO aceitaria.”28

Em vez disso, Berners-Lee insistiu que os protocolos da web fossem disponibilizados livremente, compartilhados abertamente e postos para sempre no domínio público. Afinal, todo o objetivo dela, e a essência de sua concepção, era promover compartilhamento e colaboração. O CERN divulgou um documento em que declarava que “abandona todos os direitos de propriedade intelectual sobre esse código, tanto fonte como forma binária, e concede permissão para qualquer pessoa usá-lo, duplicá-lo, modificá-lo e redistribuí-lo”.29 A organização acabou por juntar forças com Richard Stallman e adotou sua Licença Pública Geral do GNU. O resultado foi um dos mais grandiosos projetos livres e de código aberto da história.

Essa postura refletia o estilo discreto de Berners-Lee. Ele era avesso a qualquer indício de engrandecimento pessoal. Suas fontes também vinham de algum lugar mais profundo dentro de si: uma perspectiva moral baseada no compartilhamento entre pares e respeito, algo que ele encontrou na Igreja Unitarista Universalista, que adotou. Como disse sobre seus companheiros unitaristas:

 

Eles se reúnem em igrejas, em vez de em hotéis, e discutem justiça, paz, conflito e moralidade, em vez de protocolos e formatos de dados, mas em outros aspectos a relação entre pares é muito semelhante à da Força-Tarefa de Engenharia da Internet […]. O projeto da internet e da web é uma busca por um conjunto de regras que possibilitará que os computadores trabalhem juntos em harmonia, e nossa busca espiritual e social é por um conjunto de regras que possibilitem que as pessoas trabalhem juntas em harmonia.30

 

 

Apesar do rebuliço que acompanha muitos anúncios de produto — pensemos nos Laboratórios Bell revelando o transístor ou Steve Jobs o Macintosh —, algumas das inovações mais significativas entraram pé ante pé no palco da história. Em 6 de agosto de 1991, Berners-Lee deu uma olhada no grupo de discussão alt.hypertext da internet e topou com esta questão: “Alguém está ciente de pesquisas ou esforços de desenvolvimento em […] links de hipertexto que permitam a recuperação de múltiplas fontes heterogêneas?”. Sua resposta, “de: timbl@info.cern.ch às 14h56”, tornou-se o primeiro anúncio público da web. “O projeto WorldWideWeb visa permitir links a serem feitos para qualquer informação em qualquer lugar […]. Se você está interessado em usar o código, mande-me um e-mail.”31

Com sua personalidade discreta e essa postagem ainda mais discreta, Berners-Lee não entendia como era profunda a ideia que havia lançado. Qualquer informação em qualquer lugar. “Passei muito tempo tentando garantir que as pessoas pudessem pôr qualquer coisa na web”, disse ele mais de duas décadas depois. “Eu não tinha ideia de que as pessoas iriam pôr literalmente tudo nela.”32 Sim, tudo. Enquire Within Upon Everything.

 

 

MARC ANDREESSEN E O MOSAIC

 

Para entrar em sites da web, as pessoas precisavam de um software em seus computadores que ficou conhecido como browser, ou navegador. Berners-Lee criou um que podia ler e editar documentos; sua esperança era que a web se tornasse um lugar onde os usuários poderiam colaborar. Mas seu navegador funcionava apenas em computadores NeXT, dos quais havia poucas unidades, e ele não tinha tempo nem recursos para criar outras versões de navegador. Então ele recrutou uma jovem estagiária no CERN chamada Nicola Pellow, que estava se formando em matemática na Leicester Polytechnic, para programar o primeiro navegador multiuso para os sistemas operacionais UNIX e Microsoft. Apesar de rudimentar, funcionava. “Era para ser o veículo que possibilitaria à web dar seu primeiro passo no palco mundial, mas Pellow não se intimidou”, lembrou Cailliau. “Deram-lhe a tarefa e ela simplesmente tratou de realizá-la, sem perceber a enormidade do que estava prestes a desencadear.”33 Depois, ela voltou para a Leicester Polytechnic.

Berners-Lee começou a incitar outros a aperfeiçoar o trabalho de Pellow: “Sugerimos a todos em todos os lugares que a criação de navegadores resultaria em projetos úteis”.34 No outono de 1991, já havia uma meia dúzia de versões experimentais, e a web se espalhou com rapidez para outros centros de pesquisa da Europa.

Em dezembro daquele ano, ela deu um salto sobre o Atlântico. Paul Kunz, físico de partículas do Acelerador Linear de Stanford, foi visitar o CERN e Berners-Lee recrutou-o para o mundo da web. “Ele torceu meu braço e insistiu para que eu fosse visitá-lo”, disse Kunz, que temia ter de assistir a uma demonstração entediante de gerenciamento de informação. “Mas, então, ele me mostrou uma coisa que abriu meus olhos.”35 Era um navegador da web no NeXT de Berners-Lee chamando informações de uma máquina IBM situada em outro lugar. Kunz levou o software com ele e o http://slacvm.slac.stanford.edu/ se tornou o primeiro servidor da web nos Estados Unidos.

 

 

A World Wide Web atingiu velocidade orbital em 1993. O ano começou com cinquenta servidores do sistema no mundo e, em outubro, havia quinhentos. Uma razão para isso foi que a principal alternativa para acessar informações na internet era um protocolo de envio e busca desenvolvido na Universidade de Minnesota chamado Gopher,b e vazou a informação de que seus criadores estavam planejando cobrar uma taxa para a utilização do programa. Um impulso mais importante foi a criação do primeiro navegador com capacidades gráficas e de fácil instalação, chamado Mosaic. Ele foi desenvolvido no Centro Nacional para Aplicativos de Supercomputação (National Center for Supercomputing Applications — NCSA) da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, que fora financiado pela Lei Gore.

O maior responsável pelo Mosaic foi um homem, ou criança grande, chamado Marc Andreessen, aluno de graduação afetuoso mas tenso, com mais de um metro e noventa, alimentado a milho, nascido em Iowa em 1971 e criado em Wisconsin. Andreessen era fã dos pioneiros da internet, cujos escritos o inspiraram:

 

Quando consegui uma cópia do ensaio “As We May Think”, de Vannevar Bush, eu disse a mim mesmo: “É isso aí! Ele entendeu tudo!”. Bush anteviu a internet tanto quanto era possível, tendo em vista que não havia computadores digitais. Ele e Charles Babbage estão no mesmo time.

 

Outro herói para ele era Doug Engelbart. “Seu laboratório foi o nodo 4 na internet, que era como ter o quarto telefone no mundo. Ele teve a clarividência incrível de entender o que a internet seria antes que ela fosse construída.”36

Quando viu uma demonstração da web em novembro de 1992, Andreessen ficou deslumbrado. Então chamou Eric Bina, um funcionário do NCSA e programador de primeira linha, para ser seu parceiro na criação de um navegador mais empolgante. Eles adoravam os conceitos de Berners-Lee, mas achavam o software de implementação do CERN sem vida e desprovido de recursos interessantes. “Se alguém fizesse o navegador e o servidor certos, isso seria de fato interessante”, disse Andreessen a Bina. “Nós podemos correr com isso e fazê-lo funcionar de verdade.”37

Ao longo de dois meses, eles se entregaram a uma maratona de programação comparável à de Bill Gates e Paul Allen. Durante três ou quatro dias eles codificavam por 24 horas seguidas — Andreessen movido a leite e biscoitos, Bina a balinhas Skittles e refrigerante Mountain Dew — e depois caíam na cama por um dia inteiro para se recuperar. Eles formavam uma ótima dupla: Bina era um programador metódico, Andreessen, um visionário motivado pelo produto.38

Em 23 de janeiro de 1993, com um pouquinho mais de alarde do que Berners-Lee se permitira ao lançar a web, marca@ncsa.uiuc.edu anunciou o Mosaic no grupo de discussão www-talk da internet. “Pelo poder investido em mim por ninguém em particular”, iniciava Andreessen, “a versão alpha/beta 0.5 dos sistemas de informação em rede baseados em Motif e navegador da World Wide Web do NCSA, X Mosaic, está por meio deste liberado.” Berners-Lee, que de início ficou contente, postou uma resposta dois dias depois: “Brilhante! Cada novo navegador está mais sexy do que o anterior”. Ele o acrescentou à crescente lista de navegadores disponíveis para download em info.cern.ch.39

O Mosaic era popular porque podia ser instalado de forma simples e possibilitava que imagens fossem incorporadas a páginas da web. Mas ficou ainda mais popular porque Andreessen conhecia um dos segredos dos empreendedores da era digital: ele deu atenção total ao feedback dos usuários e passava tempo nos grupos de discussão da internet absorvendo sugestões e reclamações. Depois lançava versões atualizadas. “Era incrível lançar um produto e obter feedback imediato”, acrescentou, entusiasmado. “O que obtive desse ciclo de feedback foi uma noção instantânea do que estava funcionando e do que não estava.”40

A atenção de Andreessen ao aperfeiçoamento contínuo impressionou Berners-Lee: “Você mandava um relatório de erros e horas mais tarde ele lhe mandava por e-mail uma correção”.41 Anos mais tarde, já capitalista de risco, Andreessen fazia questão de favorecer startups cujos fundadores se concentrassem no código e no atendimento ao cliente, em vez de gráficos e apresentações. “Os primeiros são aqueles que se tornam empresas de trilhões de dólares”, disse ele.42

Havia, no entanto, uma coisa no navegador que decepcionou e depois começou a irritar Berners-Lee. Era lindo, até deslumbrante, mas a ênfase de Andreessen estava em possibilitar que a mídia publicasse páginas atraentes, e Berners-Lee achava que, em vez disso, a prioridade deveria ser o fornecimento de ferramentas que facilitassem a colaboração séria. Assim, em março de 1993, depois de uma reunião em Chicago, ele atravessou de carro “os campos de milho que pareciam intermináveis” do centro de Illinois para visitar Andreessen e Bina no NCSA.

Não foi uma reunião agradável. “Todos os meus encontros anteriores com desenvolvedores de navegador haviam sido reuniões de mentes”, lembrou Berners-Lee. “Mas esse teve uma tensão estranha.” Sua impressão era que os criadores do Mosaic, que tinham sua própria equipe de relações públicas e estavam ganhando muita publicidade, queriam “se mostrar como o centro de desenvolvimento da web e, em última análise, mudar o nome da web para Mosaic”.43 Pareceu-lhe que eles estavam tentando ficar de donos da web e, talvez, lucrar com isso.c

Andreessen achou a lembrança de Berners-Lee engraçada. “Quando Tim veio se reunir conosco, o clima estava mais para uma visita de Estado do que uma sessão de trabalho. A web já se tornara um incêndio florestal, e ele estava incomodado porque não a controlava mais.” A oposição de Berners-Lee à incorporação de imagens lhe pareceu esquisita e purista. “Ele só queria texto”, lembrou Andreessen.

 

Especificamente, não queria revistas. Ele tinha uma visão muito pura. Queria, em essência, que a web fosse usada para trabalhos científicos. Sua visão era de que as imagens são o primeiro passo na estrada para o inferno. E a estrada para o inferno é o conteúdo multimídia e revistas, vulgaridades, jogos e coisas de consumo.

 

Uma vez que sua prioridade era o cliente, Andreessen achava que tudo isso era bobagem acadêmica. “Sou do tipo faz-tudo do Meio-Oeste. Se as pessoas querem imagens, que tenham imagens. Manda ver!”44

A crítica mais fundamental de Berners-Lee era que, ao se concentrar em características de exibição fantasiosas, como multimídia e fontes ornamentais, Andreessen estava ignorando uma capacidade que deveria estar no navegador: as ferramentas de edição que permitiriam aos usuários interagir e contribuir para o conteúdo de uma página da web. A ênfase na exibição, em vez de nas ferramentas de edição, empurrava a web no sentido de se tornar uma plataforma de publicação para as pessoas que tinham servidores, em vez de um lugar de colaboração e criatividade compartilhada. “Fiquei decepcionado porque Marc não pôs ferramentas de edição no Mosaic”, disse Berners-Lee. “Se houvesse uma atitude de utilizar a web mais como meio de colaboração, em vez de meio de publicação, acho que ela seria muito mais poderosa hoje.”45

As primeiras versões do Mosaic tinham um botão de “colaborar” que permitia aos usuários baixar um documento, trabalhar nele e postá-lo de volta. Mas o navegador não era um editor completo, e Andreessen achava que isso era impraticável. “Fiquei espantado”, reclamou Berners-Lee,

 

com esse desdém quase universal em relação à criação de um editor. Sem um editor de hipertexto, as pessoas não teriam as ferramentas para usar de fato a web como um meio de colaboração íntima. Os navegadores as deixariam encontrar e compartilhar informações, mas elas não poderiam trabalhar juntas de forma intuitiva.46

 

Até certo ponto, ele estava certo. Apesar do sucesso espantoso da web, o mundo teria sido um lugar mais interessante se ela tivesse sido criada como um meio mais colaborativo.

Berners-Lee também fez uma visita a Ted Nelson, que morava em um barco em Sausalito, à sombra da ponte Golden Gate. Vinte e cinco anos antes, Nelson fora o pioneiro do conceito de uma rede de hipertexto com sua proposta do projeto Xanadu. Foi um encontro agradável, mas Nelson ficou aborrecido porque a web não tinha elementos essenciais do Xanadu.47 Ele achava que uma rede de hipertexto deveria ter links bidirecionais, o que exigiria a aprovação tanto da pessoa que criava a ligação como da pessoa cuja página era objeto da ligação. Um sistema como esse teria a vantagem paralela de possibilitar micropagamentos a produtores de conteúdo. “O HTML é precisamente o que estávamos tentando evitar — o constante rompimento de links, links apenas para fora, citações que não se pode seguir até suas origens, nenhum gerenciamento de versão, nenhuma gestão de direitos”, lamentou Nelson mais tarde.48

Se o sistema de links bidirecionais de Nelson tivesse prevalecido, seria possível medir o uso de links e possibilitar pequenos pagamentos automáticos para quem produzisse o conteúdo que fosse usado. Todo o negócio de publicação, jornalismo e blogs teria sido diferente. Os produtores de conteúdo digital poderiam ser compensados de maneira fácil, sem atrito, permitindo uma variedade de modelos de receita, inclusive aqueles que não dependessem de ser devidos apenas para anunciantes. Em vez disso, a web se tornou um espaço onde agregadores podiam ganhar mais dinheiro do que os produtores de conteúdo. Os jornalistas, tanto de grandes empresas de mídia como de pequenos sites de blogs, tinham menos chances de serem pagos. Jaron Lanier, autor de Who Owns the Future? [Quem possui o futuro?], argumentou: “Todo o negócio de usar publicidade para financiar a comunicação na internet é inerentemente autodestrutivo. Se você tem backlinks universais, tem uma base para micropagamentos de informações de alguém que são úteis para outra pessoa”.49 Mas um sistema de links bidirecionais e micropagamentos exigiria algum tipo de coordenação central e dificultaria a expansão espontânea da web, de modo que Berners-Lee resistiu à ideia.

 

 

Em 1993-4, quando a web estava decolando, eu era o editor de novas mídias da Time Inc., responsável pela estratégia de internet da empresa proprietária da revista. De início, tínhamos feito acordos com serviços on-line de acesso discado, como AOL, CompuServe e Prodigy. Fornecemos nosso conteúdo, comercializamos seus serviços para nossos assinantes e moderamos salas de bate-papo e bulletin boards que acumulavam comunidades de membros. Graças a isso, conseguimos obter entre 1 milhão e 2 milhões de dólares em royalties anuais.

Quando a internet aberta se tornou uma alternativa a esses serviços on-line particulares, ela parecia oferecer uma oportunidade para assumirmos o controle de nosso próprio destino e de nossos assinantes. No almoço de abril 1994 dos Prêmios Nacionais para Revistas, tive uma conversa com Louis Rossetto, o editor e fundador da Wired, a respeito de qual dos novos protocolos e ferramentas de busca da internet — Gopher, Archie, FTP, web — seria o melhor para usar. Ele sugeriu que a melhor opção era a web, devido às capacidades gráficas bem-feitas que estavam sendo embutidas em navegadores como o Mosaic. Em outubro de 1994, a HotWired e a Time Inc. lançaram sites na web.

Na Time Inc. experimentamos usar nossas marcas tradicionais — Time, People, Life, Fortune, Sports Illustrated —, mas também criamos um novo portal, chamado Pathfinder. Convocamos novas marcas, que iam de Virtual Garden a Netly News. De início, planejamos cobrar uma pequena taxa ou assinatura, mas os publicitários da Madison Avenue ficaram tão encantados com a nova mídia que acorreram ao nosso prédio, oferecendo-se para comprar os banners que havíamos desenvolvido para nossos sites. Desse modo, nós e outras empresas de jornalismo concluímos que era melhor tornar nosso conteúdo gratuito e reunir o maior número possível de olhos para anunciantes ávidos.

O resultado não foi um modelo de negócios sustentável.50 O número de websites e, portanto, a oferta de espaço para anúncios aumentavam de forma exponencial a cada poucos meses, mas a quantidade total de investimento em publicidade mantinha-se mais ou menos estável. Isso fez com que os preços cobrados da publicidade acabassem caindo. O modelo também não era saudável do ponto de vista ético; ele incentivava os jornalistas a atender sobretudo aos desejos de seus anunciantes, não os de seus leitores. Porém os consumidores já estavam condicionados a achar que o conteúdo deveria ser gratuito. Foram necessárias duas décadas para começar a tentar colocar o gênio de volta na garrafa.

No final da década de 1990, Berners-Lee tentou desenvolver um sistema de micropagamentos para a web através do World Wide Web Consortium (W3C), que ele dirigia. A ideia era encontrar uma maneira de incorporar a uma página da web a informação necessária para cuidar de um pequeno pagamento, o que permitiria a criação de diferentes serviços de “carteira eletrônica” por bancos ou empresários. Isso nunca foi implementado, em parte devido à mudança na complexidade dos regulamentos bancários. “Quando começamos, a primeira coisa que tentamos fazer foi possibilitar pequenos pagamentos a pessoas que postassem conteúdos”, explicou Andreessen. “Mas na Universidade de Illinois não tínhamos recursos para implementar isso. Os sistemas de cartões de crédito e bancário o tornavam impossível. Tentamos com afinco, mas era muito doloroso lidar com esses caras. Era cosmicamente doloroso.”51

Em 2013, Berners-Lee começou a reviver algumas das atividades do Grupo de Trabalho de Markup de Micropagamentos do W3C. “Estamos examinando de novo protocolos de micropagamento”, disse ele. “Isso faria da web um lugar muito diferente. Pode ser de fato uma possibilidade. Com certeza, a capacidade de pagar por um bom artigo ou canção poderia sustentar mais pessoas que escrevem coisas ou fazem música.”52 Andreessen disse que esperava que o Bitcoin,d uma moeda digital e sistema de pagamento entre pares criado em 2009, viesse a ser um modelo para sistemas de pagamento melhores. “Se eu tivesse uma máquina do tempo e pudesse voltar a 1993, uma coisa que sem dúvida eu faria seria incorporar o Bitcoin ou alguma forma similar de criptomoeda.”53

 

 

Penso que nós, da Time Inc., e outras empresas de mídia cometemos outro erro: abandonamos nosso foco na criação de comunidades depois que nos estabelecemos na web, em meados da década de 1990. Em nossos sites na AOL e na CompuServe, grande parte do nosso esforço fora dedicado à criação de comunidades com nossos usuários. Um dos primeiros residentes de The WELL, Tom Mandel, foi contratado para moderar bulletin boards da Time e ser o mestre de cerimônias de nossas salas de bate-papo. A postagem de artigos da revista vinha em segundo lugar, depois da criação de um sentimento de conexão social e comunidade entre nossos usuários. Quando migramos para a web em 1994, tentamos de início repetir essa abordagem. Criamos bulletin boards e grupos de bate-papo no Pathfinder e fizemos nossos engenheiros replicarem os tópicos de discussão simples da AOL.

Mas com o passar do tempo começamos a dar mais atenção à publicação de nossas matérias on-line, em vez de criar comunidades de usuários ou permitir conteúdos gerados por eles. Nós e outras empresas de mídia adequamos nossas publicações impressas para páginas da web a fim de que elas fossem consumidas de maneira passiva por nossos leitores, e relegamos as discussões a um espaço de comentários dos leitores, na parte inferior da página. Muitas vezes eram diatribes violentas e tolices que poucas pessoas, inclusive nós, liam. Ao contrário dos grupos de discussão da Usenet, de The WELL ou da AOL, o foco não estava em discussões, comunidades e conteúdos criados por usuários. Em vez disso, a web tornou-se uma plataforma de publicação na qual vinho velho — o tipo de conteúdo que você poderia encontrar em publicações impressas — era posto em garrafas novas. Era como nos primeiros dias da televisão, quando o que se apresentava não passava de programas de rádio com imagens. Desse modo, não conseguimos prosperar.

Por sorte, a rua encontra seus próprios usos para as coisas, e logo surgiram novas formas de mídia para tirar proveito da nova tecnologia. Liderada pelo crescimento dos blogs e wikis que surgiram em meados da década de 1990, uma revitalizada web 2.0 passou a permitir que os usuários colaborassem, interagissem, formassem comunidades e gerassem seu próprio conteúdo.

 

 

JUSTIN HALL E COMO OS WEB LOGS SE TRANSFORMARAM EM BLOGS

 

Em dezembro de 1993, quando era calouro no Swarthmore College, Justin Hall pegou um exemplar abandonado do New York Times na sala dos estudantes e leu uma matéria de John Markoff sobre o navegador Mosaic que começava assim:

 

Pense nele como um mapa para os tesouros enterrados da Era da Informação. Um novo programa de software gratuito para empresas e indivíduos está ajudando até os usuários novatos de computador a encontrar seu caminho na internet global, a rede das redes, que é rica em informações, mas na qual pode ser desconcertante navegar.54

 

Nerd esbelto, de cabelos loiros que caíam sobre os ombros e sorriso travesso, Hall parecia ser um cruzamento entre Huckleberry Finn e um elfo de Tolkien. Ele passara a infância em Chicago entrando em bulletin boards eletrônicos e de imediato baixou o browser e começou a navegar. “Todo o conceito me deslumbrou”, ele relembrou.55

Hall logo percebeu uma coisa: “Quase todos os projetos de publicação on-line eram amadores, de gente que não tinha nada a dizer”. Então, decidiu criar um site, utilizando um software do Apple PowerBook e MacHTTP baixado de graça, que fosse divertido para ele e outros que compartilhavam sua atitude atrevida e suas obsessões adolescentes. “Eu poderia pôr meus escritos e palavras em forma eletrônica, deixá-los bonitinhos, e entrar na web com links.”56 Hall pôs seu site no ar em meados de janeiro de 1994 e, alguns dias mais tarde, para seu deleite, estranhos de toda a web começaram a tropeçar nele.

Sua primeira home page tinha um tom de intimidade travessa. Trazia uma foto de Hall fazendo careta atrás do coronel Oliver North, outra de Cary Grant tomando ácido e uma sincera mensagem de agradecimento para “Al Gore, primeiro pedestre oficial da estrada da informação com pedágio”. O tom era de conversação: “Oi. Esta é a computação do século XXI. Será que vale a nossa paciência? Estou publicando isto, e acho que você está lendo isto, em parte, para descobrir do que se trata, né?”.

Na época, não havia diretórios da web ou ferramentas de busca, exceto as muito sóbrias, como o Catálogo W3, da Universidade de Genebra, e a página “O Que Há de Novo” do NCSA, da Universidade de Illinois. Então Hall inventou um para o seu site, que elegantemente intitulou “Eis uma Seleção das Merdas que Eu Gosto”. Pouco tempo depois, em homenagem a Dostoiévski, rebatizou-o de “Links do Subsolo de Justin”. Entre eles, havia links para a Electronic Frontier Foundation e o Banco Mundial, e sites criados por conhecedores de cerveja, fãs da cena musical rave e um sujeito da Universidade da Pensilvânia chamado Ranjit Bhatnagar, que havia criado uma página da web similar. “Acredite em mim, o autor é um cara muito legal”, observou Hall. Ele também incluiu uma lista de gravações piratas de shows, com Jane’s Addiction e Porno for Pyros. “Deixe-me um bilhete se você está interessado nelas ou se tem uma delas”, escreveu. Tendo em vista as fixações de Justin e seus usuários, não surpreende que também houvesse muitas seções dedicadas a temas eróticos, entre elas páginas chamadas “Pesquisa sobre Sexualidade no Sprawl”e e “Dicas de Páginas de Fornecimento de Lubricidade”. Prestativo, ele lembrou aos seus usuários: “Não se esqueça de limpar o sêmen de seu teclado!”.

O Links do Subsolo de Justin se tornou o pioneiro pontiagudo de uma proliferação de diretórios como Yahoo e, depois, Lycos e Excite, que começaram a florescer no final daquele ano. Mas, além de fornecer um portal para o país das maravilhas da web, Hall criou algo estranhamente sedutor que acabou por se mostrar ainda mais significativo: um web log, ou diário da rede, de suas atividades pessoais, pensamentos aleatórios, reflexões profundas e encontros íntimos. Foi o primeiro de uma forma completamente nova de conteúdo a ser criado para redes de computadores pessoais e a tirar partido delas. O web log de Hall trazia poemas pungentes sobre o suicídio de seu pai, pensamentos sobre seus diversos desejos sexuais, fotos de seu pênis, histórias provocadoras e ao mesmo tempo ternas sobre seu padrasto e outras efusões que atravessavam para lá e para cá a fronteira da Informação Demasiada. Em suma, ele se tornou o pestinha fundador dos blogs.

“Eu estava na revista literária da escola”, disse Hall, “e tinha publicado algumas coisas muito pessoais.” Isso se tornou a receita para o seu e muitos outros blogs futuros: seja informal, torne-se pessoal, seja provocativo. Ele postou uma foto de si mesmo nu, de pé num palco, a qual fora impedido de usar em seu anuário escolar, junto com o relato das garotas editoras “rindo enquanto checavam a foto em preto e branco do meu pinto”. Mais tarde, contou a história de uma noite de relações sexuais dolorosas com uma garota, depois da qual seu prepúcio inchara, ilustrada com muitos closes de sua situação genital. Ao fazê-lo, ajudou a inovar a sensibilidade para uma nova era. “Sempre tentei provocar, e a nudez fazia parte da provocação”, explicou, “então tenho uma longa tradição de fazer as coisas que fariam minha mãe corar.”57

A disposição de Hall de ampliar os limites da Informação Demasiada tornou-se uma característica marcante dos blogs. Era o descaramento elevado a atitude moral. “A Informação Demasiada é como os dados de laboratório profundos de todos os nossos experimentos humanos”, explicou ele mais tarde. “Se você revelar demais, isso pode fazer as pessoas se sentirem um pouco menos sozinhas.” Não se tratava de tarefa trivial. Com efeito, fazer as pessoas se sentirem um pouco menos sozinhas fazia parte da essência da internet.

O caso do prepúcio inchado é um exemplo; dentro de poucas horas, pessoas de todo o mundo postaram comentários que relatavam suas próprias histórias, curas e a garantia de que o problema era temporário. Um caso mais comovente veio das postagens sobre seu pai, um alcoólatra que se suicidara quando Justin tinha oito anos. “Meu pai era um homem amargo, humanista, sensível”, escreveu. “E também um filho da puta rancoroso e intolerante.” Hall contou que o pai cantava canções folk de Joan Baez para ele, mas também derrubava garrafas de vodca, acenava com armas e ralhava com garçonetes. Depois que soube que havia sido a última pessoa a falar com seu pai antes de ele se matar, Hall postou um poema: “O que dissemos/ eu me pergunto/ e/ o que isso importava?/ Eu poderia tê-lo feito mudar de ideia?”. Essas anotações deram origem a um grupo de apoio virtual. Leitores enviaram suas próprias histórias e Hall as postou. O compartilhamento levou a conexões. Emily Ann Merkler estava lutando com a perda de seu pai para a epilepsia. Russell Edward Nelson incluiu cópias da carteira de motorista de seu falecido pai e outros documentos. Werner Brandt enviou uma página de lembranças de seu pai que apresentava músicas de piano de que ele gostava. Justin postou tudo isso junto com suas reflexões. O blog tornou-se uma rede social. “A internet estimula a participação”, observou. “Ao me expor na web, espero que as pessoas se inspirem para pôr um pouco de alma em seus corpos.”

Poucos meses depois de ter começado seu web log, Hall conseguiu, por meio de uma saraivada tenaz de telefonemas e e-mails, um estágio no HotWired.com, em San Francisco, para o verão de 1994. A revista Wired, sob a direção de seu carismático editor Louis Rossetto, estava no processo de criar um dos primeiros sites de revistas. Seu editor executivo era Howard Rheingold, um sábio on-line perspicaz que acabara de publicar The Virtual Community, em que descrevia os costumes sociais e a satisfação que vinham da “apropriação na fronteira eletrônica”. Hall tornou-se amigo e protegido de Rheingold, e juntos eles se envolveram numa batalha com Rossetto pela alma do novo site.58

Rheingold achava que o HotWired.com, em contraste com a revista impressa, deveria ser uma comunidade vagamente controlada, uma “jam session global” preenchida com material gerado pelos usuários. “Eu fazia parte da facção de Howard, que achava que a comunidade era importante, e queria montar fóruns de usuários e ferramentas que tornassem mais fácil para as pessoas fazer comentários sobre o que os outros escreviam”, lembrou Hall. Uma ideia que propuseram foi conceber maneiras para que os membros da comunidade pudessem desenvolver suas próprias identidades e reputações on-line. “O valor é usuários conversando com usuários”, Hall argumentou com Rossetto. “As pessoas são o conteúdo.”

Rossetto, por sua vez, achava que o HotWired deveria ser uma plataforma de publicação bem-feita e de excelente design, com imagens ricas, que estenderia a marca da revista e criaria uma forte identidade Wired on-line. “Temos grandes artistas e devemos usá-los”, argumentou. “Vamos fazer uma coisa linda, profissional e refinada, que é o que a web não tem.” Incluir um monte de ferramentas para conteúdos e comentários gerados pelos usuários seria “um excesso de espetáculo secundário”.59

O debate foi travado em longas reuniões e num fluxo de e-mails apaixonados. Mas Rossetto prevaleceu, e seu ponto de vista, compartilhado por muitos outros editores do mundo impresso, acabou por moldar a evolução da web. Ela se tornou basicamente uma plataforma para publicação de conteúdo, em vez de para a criação de comunidades virtuais. “A era do acesso público à internet chegou ao fim”, declarou Rossetto.60

Quando retornou de seu prolongado bico de verão no HotWired, Hall decidiu se tornar um pregador do outro lado da disputa, acreditando que os aspectos de acesso público da internet deveriam ser celebrados e apoiados. Com menos sofisticação sociológica do que Rheingold, mas com mais exuberância juvenil, ele começou a pregar a natureza redentora das comunidades virtuais e dos web logs. “Venho pondo minha vida on-line, contando histórias sobre as pessoas que conheço e as coisas que acontecem comigo quando não estou enfiado no computador”, explicou ele on-line depois de um ano. “Falar sobre mim mesmo me faz ir em frente.”

Seus manifestos descreviam a atração exercida por um novo meio de acesso público. “Quando contamos histórias na internet, reivindicamos os computadores para a comunicação e a comunidade, contra o comercialismo crasso”, declarou ele numa de suas primeiras postagens. Na qualidade de alguém que passava horas nos bulletin boards iniciais da internet na adolescência, ele queria recuperar o espírito dos grupos de discussão da Usenet e do The WELL.

E assim Hall tornou-se o Johnny Appleseedf do diário eletrônico. Em seu site, ele se ofereceu para ensinar as pessoas a publicar em HTML se elas o hospedassem por uma ou duas noites, e no verão de 1996 ele viajou de ônibus pelos Estados Unidos, parando na casa dos que aceitaram sua oferta. “Ele pegou um meio que fora concebido como repositório de erudição e o reduziu ao tamanho pessoal”, escreveu Scott Rosenberg em sua história dos blogs, Say Everything [Diga tudo].61 Sim, mas ele também ajudou a fazer algo mais: devolver a internet e a web ao seu objetivo inicial: serem ferramentas para compartilhar em vez de plataformas para a publicação comercial. Os diários na web tornaram a internet mais humanizadora, o que não foi pouca coisa. “O melhor uso da nossa tecnologia aperfeiçoa nossa humanidade”, dizia Hall. “Ela nos permite moldar nossa narrativa, compartilhar nossa história e nos conectar.”62

O fenômeno se espalhou rápido. Em 1997, John Barger, que produzia um site divertido chamado Robot Wisdom, cunhou o termo “weblog”, e dois anos mais tarde um web designer chamado Peter Merholz, de brincadeira, separou a palavra de novo, dizendo que ia usar a expressão “we blog”. A palavra blog entrou na linguagem comum.g Em 2014, haveria 847 milhões de blogs no mundo.

Tratava-se de um fenômeno social não totalmente apreciado pela elite tradicional da escrita. Era fácil, e não de todo incorreto, denegrir grande parte da tagarelice egocêntrica que aparecia nos blogs e rir daqueles que passavam a noite postando em páginas pouco lidas. Mas, como disse Arianna Huffington quando criou seu canal de blogs, o Huffington Post, as pessoas decidiram participar desses atos de discurso social porque os acharam gratificantes.63 Elas tiveram uma chance de expressar suas ideias, adaptá-las para o consumo público e obter feedback. Tratava-se de uma nova oportunidade para indivíduos que antes passavam suas noites consumindo passivamente o que lhes era servido pela tela da televisão. “Antes do surgimento da internet, era raro que a maioria das pessoas escrevesse alguma coisa por prazer ou satisfação intelectual depois de se formar no ensino médio ou na faculdade”, observou Clive Thompson em seu livro Smarter Than You Think [Mais inteligente do que você pensa]. “Isso é uma coisa particularmente difícil de entender para os profissionais cujos empregos exigem escrita incessante, como professores universitários, jornalistas, advogados ou profissionais de marketing.”64

À sua maneira cativante, Justin Hall compreendeu a glória disso. Era o que faria a era digital diferente da era da televisão. “Ao nos divulgar na web, rejeitamos o papel de destinatários passivos do marketing de mídia”, escreveu ele.

 

Se todos nós tivermos um lugar para postar nossas páginas — o canal de Howard Rheingold, o canal da Raising City High School —, não há como a web acabar tão banal e medíocre como a televisão. Haverá tantos lugares para encontrar conteúdos novos e envolventes quanto existem pessoas que anseiam por serem ouvidas. A boa narração de histórias humanas é a melhor maneira de evitar que a internet e a World Wide Web se transformem num lixão.65

 

 

EV WILLIAMS E O BLOGGER

 

Em 1999, os blogs proliferavam. Já não eram mais o cercadinho de exibicionistas excêntricos como Justin Hall que postavam diários pessoais sobre suas vidas e fantasias. Tinham se tornado uma plataforma para especialistas independentes, jornalistas cidadãos, advogados, ativistas e analistas. Mas havia um problema: para publicar e manter um blog independente era preciso ter algumas habilidades de codificação e acesso a um servidor. Criar simplicidade para o usuário é uma das chaves para o sucesso de uma inovação. Para que o blog se tornasse uma mídia totalmente nova que transformaria a publicação e democratizaria o discurso público, alguém tinha de torná-lo fácil, tão fácil como “Escreva no box e depois pressione este botão”. Entra em cena Ev Williams.

Nascido em 1972 em uma fazenda de milho e soja nos arredores do vilarejo de Clarks, Nebraska (população: 374 habitantes), Ev Williams era um garoto magro, tímido e com frequência solitário, que nunca caçou ou jogou futebol, o que fazia dele um cara meio esquisito. Preferia brincar com Legos, fazer skates de madeira, desmontar bicicletas e passar muito tempo no trator verde da família, depois de ter terminado suas tarefas de irrigação, olhando à distância e sonhando acordado. “Livros e revistas eram meu canal para o resto do mundo”, lembrou. “Minha família nunca viajava, então nunca fui a qualquer lugar.”66

Na adolescência, não teve computador, mas quando foi para a Universidade de Nebraska, em 1991, descobriu o mundo dos serviços on-line e bulletin boards. Começou a ler tudo o que podia sobre a internet e até assinou uma revista a respeito de bulletin boards eletrônicos. Depois de abandonar a faculdade, decidiu abrir uma empresa para fazer CD-ROMs que explicassem o mundo on-line para empresários locais. Filmados em seu porão com uma câmera emprestada, os vídeos eram amadores demais e não venderam nada. Então, ele foi para a Califórnia e conseguiu um emprego de redator júnior na editora de tecnologia O’Reilly Media, onde revelou sua independência irritadiça ao enviar um e-mail para toda a equipe dizendo que se recusava a escrever material para um dos produtos da empresa porque ele “era uma merda”.

Com o instinto de um empreendedor obsessivo, estava sempre ansioso por abrir empresas e, no início de 1999, lançou a Pyra Labs, com uma mulher esperta chamada Meg Hourihan, com quem havia tido um breve namoro. Ao contrário de outros que saltaram no frenesi ponto-com daquele período, eles se concentraram no uso da internet para sua finalidade original: colaboração on-line. A Pyra Labs oferecia um conjunto de aplicativos baseados na web que possibilitava que equipes compartilhassem planos de projetos, listas de coisas a fazer, e criavam documentos em conjunto. Williams e Hourihan descobriram que precisavam de uma forma simples de compartilhar suas próprias noções aleatórias e itens interessantes, então começaram a postar em um pequeno site interno, que apelidaram de “Coisas”.

Àquela altura, Williams, que sempre adorou revistas e publicações, começara a ler blogs. Em vez de diários pessoais como o de Hall, ele se tornou fã dos comentaristas de tecnologia que estavam iniciando o jornalismo sério na web, gente como Dave Winer, que havia criado um dos primeiros weblogs, Scripting News, e projetou um formato de distribuição XML para ele.67

Williams tinha sua própria home page, chamada EvHead, em que postava uma seção de notas e comentários atualizados. Como outros que acrescentaram esses logs às suas home pages, ele precisava digitar cada item e atualizar usando o código HTML. Para agilizar o processo, escreveu uma sequência de comandos simples que convertia automaticamente suas mensagens para o formato adequado. Foi uma pequena hackeada que teve um efeito transformador.

 

A ideia de que eu poderia ter um pensamento e poderia escrever em uma forma, e ele estaria no meu site em questão de segundos, mudou por completo a experiência. Foi uma daquelas coisas que, ao automatizar o processo, transformaram de maneira radical o que eu estava fazendo.68

 

Ele logo começou a se perguntar se esse pequeno acompanhamento poderia se tornar um produto seu.

Uma das lições básicas para a inovação é manter o foco. Williams sabia que sua primeira empresa fracassara porque tinha tentado fazer trinta coisas e não conseguira fazer nenhuma. Hourihan, que havia sido consultora de gestão, foi inflexível: a ferramenta de scripting do blogger de Williams era legal, mas era uma distração. Jamais seria um produto comercial. Williams concordou, mas em março registrou o domínio blogger.com. Não conseguiu resistir. “Sempre fui um cara de produto, estou sempre pensando em produtos, e achei que aquela era uma ideiazinha legal.” Em julho, quando Hourihan estava de férias, ele lançou o Blogger como um produto separado, sem contar a ela. Ele estava seguindo outra lição essencial para a inovação: Não fique focado demais.

Quando retornou e descobriu o que tinha acontecido, Hourihan começou a gritar e ameaçou ir embora. A Pyra tinha apenas outro funcionário além deles, e não havia espaço para distrações. “Ela estava furiosa”, lembrou Williams. “Mas a convencemos de que aquilo fazia sentido.” E fez. O Blogger atraiu tantos fãs nos meses seguintes que Williams, com seu charme lacônico e desajeitado, se tornou uma das estrelas da conferência South by Southwest, em março de 2000. No final do ano, o Blogger já tinha 100 mil contas.

O que o Blogger não tinha, no entanto, era receita. Williams o oferecera de graça na vaga esperança de que isso atrairia pessoas para comprar o aplicativo Pyra. Mas, no verão de 2000, já havia praticamente abandonado a Pyra. Com o estouro da bolha da internet, não era um momento fácil para ganhar dinheiro. A relação entre Williams e Hourihan, sempre um pouco carregada, degenerou de tal modo que as discussões aos berros no escritório eram habituais.

Em janeiro de 2001, a crise por falta de dinheiro chegou ao ápice. Precisando desesperadamente de novos servidores, Williams fez um apelo aos usuários do Blogger para que fizessem doações. Entraram perto de 17 mil dólares, o que era suficiente para comprar um novo hardware, mas não para pagar salários.69 Hourihan exigiu que Williams se afastasse da direção, e quando ele se recusou ela decidiu cair fora. “Na segunda-feira, pedi demissão da empresa que ajudei a fundar”, escreveu ela em seu blog. “Ainda estou chorando, chorando e chorando.”70 Os outros empregados, então seis no total, também foram embora.

Williams postou um longo texto intitulado “E então restou um” em seu blog. “Estamos sem dinheiro, e perdi minha equipe […]. Os últimos dois anos foram uma jornada longa, difícil, emocionante, educativa, única na vida, dolorosa e que, em última análise, foi muito gratificante e valeu a pena para mim.” Prometendo manter o serviço em funcionamento, mesmo que tivesse de fazê-lo sozinho, ele terminava com um pós-escrito: “Se alguém quiser dividir um espaço de escritório por um tempo, entre em contato comigo. A redução de custos pode ser boa para mim (e para a empresa)”.71

A maioria das pessoas teria desistido nesse ponto. Não havia dinheiro para o aluguel, ninguém para manter os servidores funcionando, nenhum sinal de qualquer receita. Williams também estava enfrentando dolorosos ataques pessoais e legais de seus ex-empregados, obrigando-o a acumular contas de advogado. “A história que rolou foi que demiti todos os meus amigos, não os paguei e assumi a empresa”, disse ele. “A coisa foi muito feia.”72

Mas Williams trazia no sangue a paciência de um agricultor e a teimosia de um empresário. Ele tinha um nível anormalmente elevado de imunidade à frustração. Assim, perseverou, testando aquele limite nebuloso entre persistência e ignorância, permanecendo calmo enquanto os problemas o bombardeavam. Ele dirigiria a empresa sozinho, de seu apartamento. Cuidaria ele mesmo dos servidores e da codificação. “Basicamente passei à clandestinidade e não fiz nada, exceto tentar manter o Blogger funcionando.”73 As receitas estavam perto de zero, mas ele poderia manter seus custos de acordo com isso. Como escreveu em sua postagem na web: “Na verdade, estou surpreendentemente em boa forma. Estou otimista. (Sempre sou otimista.) E tenho muitas, muitas ideias. (Sempre tenho muitas ideias.)”.74

Algumas pessoas expressaram simpatia e ofereceram ajuda, em especial Dan Bricklin, um líder da tecnologia amado e colaborativo que havia sido um dos criadores do VisiCalc, a primeira planilha eletrônica. “Não gosto da ideia do Blogger perdido no crash ponto-com”, disse Bricklin.75 Depois de ler o post desesperado de Williams, ele enviou um e-mail perguntando se havia alguma coisa que poderia fazer para ajudar. Os dois concordaram em se encontrar quando Bricklin, que morava em Boston, fosse a uma conferência da O’Reilly em San Francisco. Enquanto comiam sushi em um restaurante das proximidades, Bricklin contou a história de como, anos antes, quando sua própria empresa estava afundando, ele tinha topado com Mitch Kapor, da Lotus. Embora concorrentes, eles compartilhavam uma ética hacker colaborativa, de modo que Kapor ofereceu um acordo que ajudou Bricklin a permanecer pessoalmente solvente. Bricklin foi em frente e fundou a Trellix, uma empresa que fazia seu próprio sistema de publicação de site. Seguindo o exemplo de Kapor de ajudar um hacker meio concorrente, ele fez um acordo para a Trellix licenciar o software do Blogger por 40 mil dólares, mantendo-o vivo. Bricklin era, acima de tudo, um sujeito legal.

Ao longo de 2001, Williams trabalhou dia e noite em seu apartamento ou num espaço emprestado para manter o Blogger em funcionamento. “Todo mundo que eu conhecia achava que eu estava louco”, lembrou. O ponto mais baixo aconteceu no final do ano, quando ele foi visitar a mãe, que havia se mudado para Iowa. Seu site foi hackeado no dia de Natal.

 

Eu estava em Iowa tentando avaliar os danos através de uma conexão discada e um pequeno laptop. E eu não tinha um administrador de sistema nem nenhuma outra pessoa trabalhando para mim na época. Acabei passando a maior parte do dia num Kinko’s fazendo controle de danos.76

 

As coisas começaram a mudar em 2002. Ele lançou o Blogger Pro, pelo qual os usuários pagavam, e com a ajuda de um novo parceiro conseguiu um acordo de licenciamento no Brasil. O mundo dos blogs estava crescendo de modo exponencial, o que fez do Blogger um produto quente. Em outubro, com alguma insistência do antigo chefe de Williams, Tim O’Reilly, o Google o procurou. Ele ainda era acima de tudo uma ferramenta de busca e não tinha um histórico de compra de outras empresas, mas fez uma oferta para comprar o Blogger. Williams aceitou.

 

 

O produtinho simples de Williams ajudou a democratizar a publicação. “Publicação aperte-o-botão para o povo” era seu mantra. “Adoro o mundo da publicação e tenho uma cabeça muito independente, características que vieram do fato de ter crescido em uma fazenda remota”, disse ele. “Quando encontrei uma forma de deixar as pessoas publicarem na internet, eu sabia que poderia ajudar a dar poder e voz a milhões.”

Pelo menos no início, o Blogger foi sobretudo uma ferramenta para publicação, não para a discussão interativa. “Em vez de promover o diálogo, ele possibilitava que as pessoas subissem num caixote”, Williams admitiu.

 

A internet tem um lado de comunidade e um lado de publicação. Há gente mais obcecada do que eu com a parte da comunidade. Sou mais impulsionado pelo lado da publicação de conhecimento, porque cresci aprendendo sobre o mundo no que as outras pessoas publicavam, e não sou um grande participante no lado da comunidade.77

 

No entanto, a maioria das ferramentas digitais acaba sendo usada para fins sociais, sendo essa a natureza dos seres humanos. A blogosfera evoluiu para ser uma comunidade, em vez de mera coleção de caixotes. “Ela acabou se transformando numa comunidade, embora todos nós tivéssemos nossos próprios blogs, porque a gente comentava e linkava uns para os outros”, disse Williams anos depois. “Havia sem a menor dúvida uma comunidade lá, tão real como qualquer mailing list ou bulletin board, e acabei por gostar disso.”78

Williams veio a ser um dos fundadores do Twitter, um serviço de rede social e micropublicação, e depois do Medium, um site de publicação destinado a promover a colaboração e a partilha. No processo, ele percebeu que de fato valorizava o aspecto comunitário da internet tanto quanto seu lado de publicação.

 

Para um garoto de fazenda de Nebraska, antes da internet era muito difícil se conectar e encontrar uma comunidade de pessoas que pensassem da mesma forma, e o desejo essencial de se conectar com uma comunidade é sempre uma parte de você. Vim a perceber, bem depois de fundar o Blogger, que ele era uma ferramenta que servia a essa necessidade. Conectar-se com uma comunidade é um dos desejos básicos que impulsionam o mundo digital.79

 

 

WARD CUNNINGHAM, JIMMY WALES E A MARAVILHA DAS WIKIS

 

Quando lançou a web em 1991, Tim Berners-Lee pretendia que ela fosse usada como uma ferramenta de colaboração, motivo pelo qual ficou consternado com o fato de o navegador Mosaic não dar aos usuários a capacidade de editar as páginas da rede que estavam vendo. Isso transformava os usuários em consumidores passivos do conteúdo publicado. Esse lapso foi mitigado em parte pela ascensão dos blogs, que incentivou o conteúdo gerado pelos usuários. Em 1995, inventou-se outro meio que foi mais longe no sentido de facilitar a colaboração na web. Chamava-se wiki e permitia que os usuários modificassem páginas da web — não por terem uma ferramenta de edição em seu navegador, mas clicando e digitando direto em páginas que tinham um software wiki.

O aplicativo foi desenvolvido por Ward Cunningham, outro daqueles nativos simpáticos do Meio-Oeste (no caso, Indiana) que cresceram fazendo aparelhos de radioamadorismo e ficando ligados pelas comunidades globais que criavam. Depois de se formar na Universidade Purdue, ele conseguiu um emprego na Tektronix, uma empresa de equipamentos eletrônicos, onde acompanhava projetos, função similar à de Berners-Lee quando foi para o CERN.

Para executar seu trabalho, ele modificou um programa extraordinário desenvolvido por Bill Atkinson, um dos inovadores mais encantadores da Apple. Chamava-se HyperCard e possibilitava que os usuários criassem seus próprios cartões e documentos hiperlinkados em seus computadores. A Apple não tinha a menor ideia do que fazer com o software e assim, por insistência de Atkinson, ela o distribuía de graça com seus computadores. Era fácil de usar, e até crianças — em especial as crianças — encontravam maneiras de criar as chamadas pilhas de HyperCard, contendo imagens e jogos navegáveis por links.

Cunningham ficou encantado com o HyperCard quando o viu pela primeira vez, mas o achou complicado. Então bolou um jeito supersimples de criar novos cartões e links: um box em branco em cada cartão no qual se podia digitar um título, uma palavra ou expressão. Se você quisesse fazer um link para Fulana de Tal ou para o Projeto Vídeo do Harry ou qualquer outra coisa, bastava digitar essas palavras no box. “Era divertido de fazer”, contou.80

A seguir ele criou uma versão para a internet do seu programa de hipertexto, escrevendo-o em apenas algumas centenas de linhas de código Perl. O resultado foi um novo aplicativo de gerenciamento de conteúdo que permitia aos usuários editar e contribuir para uma página da web. Cunningham usou o aplicativo para criar um serviço chamado de Portland Pattern Repository, que possibilitava aos criadores de software trocar ideias de programação e melhorar os padrões que outros tinham postado. “O plano é que as partes interessadas escrevam páginas da web sobre Pessoas, Projetos e Padrões que mudaram o modo de programar”, escreveu ele em um comunicado postado em maio de 1995. “O estilo da escrita é informal, como o e-mail […]. Pense nele como uma lista moderada, na qual qualquer um pode ser moderador e tudo é arquivado. Não é bem um bate-papo, mas a conversa é possível.”81

Agora, Cunningham precisava de um nome. O que ele havia criado era uma ferramenta rápida para a web, mas QuickWeb era um nome ruim, parecia inventado por um comitê da Microsoft. Por sorte, havia outra palavra que significava rápido, surgida dos recessos de sua memória. Ele lembrou que quando estivera em lua de mel no Havaí, treze anos antes, “o funcionário do balcão do aeroporto me orientou a tomar o ônibus wiki wiki entre os terminais”. Quando perguntou o que significava, informaram-lhe que wiki era a palavra havaiana para rápido, e wiki wiki significava super-rápido. Assim, ele chamou suas páginas da web e o software que as rodava de WikiWikiWeb, abreviado para wiki.82

Em sua versão original, a sintaxe que Cunningham usou para criar links em um texto foi juntar palavras de modo que houvesse duas ou mais letras maiúsculas — como em LetrasMaiúsculas — em um termo. Isso ficou conhecido como CamelCase, e sua ressonância seria vista mais tarde em dezenas de marcas da internet, como AltaVista, MySpace e YouTube.

A WardsWiki (como ficou conhecida) possibilitava que qualquer um editasse e contribuísse, sem precisar de senha. As versões anteriores de cada página eram armazenadas, no caso de alguém estragar uma delas, e haveria uma página de “Mudanças Recentes” para que Cunningham e outros pudessem acompanhar as edições. Mas não haveria nenhum supervisor ou guardião para dar uma aprovação prévia das alterações. Isso funcionaria, disse ele com seu típico otimismo do Meio-Oeste, porque “as pessoas costumam ser boas”. Era exatamente o que Berners-Lee havia imaginado, uma web para ser lida e escrita, em vez de apenas lida. “As wikis foram uma das coisas que permitiram a colaboração”, disse Berners-Lee. “Os blogs foram outra.”83

Tal como Berners-Lee, Cunningham pôs seu software básico à disposição para quem quisesse modificar e usar. Em consequência, logo apareceram dezenas de sites wiki, bem como melhorias de código aberto para seu software. Mas o conceito de wiki só se tornou amplamente conhecido fora do círculo de engenheiros de software em janeiro de 2001, quando foi adotado por um empreendedor da internet que estava tentando, sem muito sucesso, montar uma enciclopédia on-line gratuita.

 

Image

Dan Bricklin (1951- ) e Ev Williams (1972- ), 2001.

Image

Jimmy Wales (1966- ).

Image

Sergey Brin (1973- ) e Larry Page (1973- )

 

Jimmy Wales nasceu em 1966, em Huntsville, Alabama, uma cidade de caipiras e cientistas de foguetes. Seis anos antes, na esteira do Sputnik, o presidente Eisenhower fora pessoalmente até lá para inaugurar o Centro de Voos Espaciais Marshall. “O fato de crescer em Huntsville durante o auge do programa espacial meio que nos dava uma visão otimista do futuro”, observou Wales.84 “Uma lembrança antiga que tenho é de uma das janelas da nossa casa chocalhando quando testavam os foguetes. O programa espacial era como o time esportivo local, por isso era empolgante e a gente sentia que era uma cidade de tecnologia e ciência.”85

Wales, cujo pai era gerente de uma mercearia, frequentou uma escola particular de sala de aula única, aberta por sua mãe e por sua avó, que ensinava música. Quando ele estava com três anos, a mãe comprou uma World Book Encyclopedia de um vendedor porta a porta; quando ele aprendeu a ler, ela se tornou um objeto de veneração. A enciclopédia punha em suas mãos uma cornucópia de conhecimentos junto com mapas e ilustrações e até algumas camadas de transparências de celofane que se podia levantar para explorar coisas como músculos, artérias e o sistema digestivo de um sapo dissecado. Mas Wales logo descobriu que a enciclopédia tinha falhas: por mais coisas que contivesse, muitas outras não estavam lá. E isso piorou ainda mais com o tempo. Depois de alguns anos, havia muitos tópicos — desembarques na Lua, festivais de rock, marchas de protesto, Kennedys e reis — que não estavam incluídos. A World Book Encyclopedia enviava aos proprietários adesivos para serem colados nas páginas com o objetivo de atualizá-la, e Wales era meticuloso ao fazer isso. “Eu brinco que comecei a revisar enciclopédias quando criança, colando adesivos na que minha mãe comprou.”86

Depois de se formar na Universidade de Auburn e de uma tentativa pouco entusiasmada de fazer pós-graduação, Wales conseguiu um emprego de diretor de pesquisa numa firma financeira de Chicago. Mas isso não o envolveu de todo. Sua atitude estudiosa se combinava com um amor pela internet que fora aprimorado jogando os chamados Multi-User Dungeons, jogos de fantasia produzidos essencialmente em grupo na rede. Ele criou e moderou uma mailing list de discussão na internet sobre Ayn Rand, escritora americana nascida na Rússia que defendia uma filosofia libertária e objetivista. Muito aberto em relação a quem poderia participar do fórum de discussão, desaprovava diatribes e o ataque pessoal conhecido como flaming e administrava comportamentos com mão suave. “Escolhi um método ‘meio-termo’ de moderação, uma espécie de cutucada por trás dos bastidores”, escreveu ele numa postagem.87

Antes do surgimento das ferramentas de busca, entre os serviços mais quentes da internet estavam os guias da web, que traziam listas e classificações de sites legais feitas por usuários, e webrings, que criavam, através de uma barra de navegação comum, um círculo de sites relacionados que eram ligados entre si. Seguindo a onda, Wales e dois amigos criaram em 1996 uma empresa que batizaram de BOMIS, acrônimo de Bitter Old Men in Suits [Velhos Amargos de Terno] e começaram a procurar ideias. Eles lançaram várias startups que eram típicas do boom das ponto-com do final dos anos 1990: um ring e guia de carros usados com imagens, um serviço de encomendas de comida, um guia de negócios para Chicago e um ring de esportes. Depois que se mudou para San Diego, Wales lançou um guia e ring que servia como “uma espécie de ferramenta de busca para homens”, com fotos de mulheres seminuas.88

Os rings mostraram a Wales o valor de ter usuários que ajudassem a gerar o conteúdo, ideia reforçada quando observou que a multidão de apostadores de seu site de esportes proporcionava uma previsão mais precisa do que qualquer especialista sozinho poderia fazer. Ele também ficou impressionado com A catedral e o bazar, de Eric Raymond, que explicava por que um bazar aberto e gerado por uma multidão era um modelo melhor para um website do que a construção cuidadosamente controlada de cima para baixo de uma catedral.89

A seguir, Wales testou uma ideia que refletia seu amor infantil pela World Book: uma enciclopédia on-line. Chamada de Nupedia, tinha dois atributos: seria escrita por voluntários e seria gratuita. Era uma ideia que havia sido proposta em 1999 por Richard Stallman, o defensor pioneiro do software livre.90 Wales esperava ganhar dinheiro mais tarde com a venda de anúncios. Para ajudar a desenvolver a enciclopédia, contratou Larry Sanger, um estudante de pós-graduação em filosofia que conhecera em grupos de discussão on-line. “Ele estava interessado sobretudo em encontrar um filósofo para comandar o projeto”, relembrou Sanger.91

Sanger e Wales desenvolveram um rigoroso processo de sete etapas para a criação e aprovação de artigos, que incluía atribuir temas a especialistas comprovados, cujas credenciais tivessem sido examinadas, e depois submeter os textos à análise de especialistas externos, comentários públicos, edição de texto profissional e edição de texto pública. “Queremos que os editores sejam verdadeiros especialistas em seus campos e (com poucas exceções) possuam doutorado”, estipulavam as diretrizes da Nupedia.92 “Larry achava que se não a fizéssemos mais acadêmica do que uma enciclopédia tradicional, as pessoas não acreditariam nela nem a respeitariam”, explicou Wales. “Ele estava errado, mas sua opinião fazia sentido tendo em vista o que se sabia na época.”93 O primeiro artigo, publicado em março de 2000, foi sobre atonalidade, escrito por um estudioso da Universidade Johannes Gutenberg, de Mogúncia, Alemanha.

Era um processo dolorosamente lento e, pior ainda, nada divertido. O bom de escrever de graça on-line, como Justin Hall havia mostrado, era que isso produzia um choque de alegria. Depois de um ano, a Nupedia tinha apenas uma dúzia de artigos publicados, tornando-a inútil como enciclopédia, e 150 que ainda estavam em fase de redação, o que indicava como o processo era desagradável. Ela fora rigorosamente construída fora de escala. Wales se deu conta disso quando decidiu que iria escrever ele mesmo um artigo sobre Robert Merton, economista que ganhou o prêmio Nobel pela criação de um modelo matemático para mercados que contenham derivados. Wales havia publicado um trabalho sobre a teoria de precificação de opções, de modo que estava muito familiarizado com o trabalho de Merton.

 

Comecei a tentar escrever o artigo e foi muito intimidador, porque sabia que enviariam meu texto para os professores de finanças mais prestigiados que conseguissem encontrar. De repente, me senti como se estivesse de volta à pós-graduação, e foi muito estressante. Percebi que daquele jeito as coisas não iam funcionar.94

 

Foi quando Wales e Sanger descobriram o software wiki, de Ward Cunningham. Como muitas inovações da era digital, a aplicação desse programa à Nupedia, a fim de criar a Wikipedia — a combinação de duas ideias para criar uma inovação — foi um processo colaborativo que envolveu pensamentos que já estavam no ar. Mas, nesse caso, surgiu uma disputa muito pouco wiki sobre quem merecia mais crédito.

Da maneira como Sanger se lembrou da história, no início de janeiro de 2001 ele estava almoçando tacos numa barraca de estrada perto de San Diego com um amigo chamado Ben Kovitz, que era engenheiro de computação. Kovitz estava usando a wiki de Cunningham e a descreveu em detalhes. Então, segundo Sanger, ocorreu-lhe que uma wiki poderia ser usada para ajudar a resolver os problemas que estava tendo com a Nupedia. “Comecei de imediato a pensar que talvez uma wiki funcionasse como um sistema editorial mais aberto e simples para uma enciclopédia colaborativa e gratuita”, relatou mais tarde. “Quanto mais eu pensava sobre isso, mesmo sem ter visto uma wiki, mais parecia obviamente certo.” Em sua versão da história, ele então convenceu Wales a experimentar a wiki.95

Kovitz, por sua vez, afirmou que foi sua a ideia de usar o software wiki para uma enciclopédia escrita por usuários e que ele teve dificuldades para convencer Sanger.

 

Sugeri que, em vez de usar a wiki só com o pessoal aprovado da Nupedia, ele a abrisse ao público em geral e deixasse que os textos aparecessem no site na mesma hora, sem nenhum processo de revisão. Minhas palavras exatas foram que “qualquer pateta no mundo com acesso à internet” pudesse modificar livremente qualquer página do site.

 

Sanger levantou algumas objeções: “Idiotas totais não iriam publicar descrições de coisas flagrantemente falsas ou tendenciosas?”. Kovitz respondeu: “Sim, e outros idiotas poderiam apagar essas mudanças ou editá-las para que ficassem melhores”.96

Quanto à versão de Wales da história, mais tarde ele alegou que ouvira falar de wikis um mês antes do almoço de Sanger com Kovitz. Afinal, as wikis existiam havia mais de quatro anos e eram um tópico de discussão entre os programadores, entre os quais um que trabalhava na BOMIS, Jeremy Rosenfeld, um sujeito grande com um sorriso ainda maior. “Jeremy me mostrou a wiki de Ward em dezembro de 2000 e disse que ela poderia resolver o nosso problema”, lembrou Wales, acrescentando que quando Sanger lhe mostrou a mesma coisa, ele respondeu: “Ah, sim, wiki, Jeremy me mostrou isso no mês passado”.97 Sanger contestou essa lembrança, e um desagradável fogo cruzado se seguiu em fóruns de discussão da Wikipedia. Wales por fim tentou baixar a intensidade do tiroteio com um post em que dizia ao colega: “Puxa, fique calmo”, mas Sanger continuou a sua batalha contra ele em vários fóruns.98

Essa disputa apresenta um caso clássico de desafio para o historiador que escreve sobre criatividade colaborativa: cada protagonista tem uma lembrança diferente de quem fez qual contribuição, com uma tendência natural a inflar a sua própria. Todos já vimos essa propensão muitas vezes em nossos amigos, e talvez até uma ou duas vezes em nós mesmos. Mas é irônico que uma disputa desse tipo marque o nascimento de uma das criações mais colaborativas da história, um site que foi fundado na crença de que as pessoas estão dispostas a contribuir sem exigir crédito.h

Mais importante do que determinar quem merece o crédito é valorizar a dinâmica que ocorre quando as pessoas compartilham ideias. Ben Kovitz, por exemplo, entendeu isso. Ele foi o protagonista que teve a visão mais perspicaz — chame-se de teoria da “abelha na hora certa” — sobre a forma colaborativa como a Wikipedia foi criada. “Algumas pessoas, com o objetivo de criticar ou menosprezar Jimmy Wales, passaram a me chamar de um dos fundadores da Wikipedia, ou mesmo de ‘o verdadeiro fundador’”, disse ele.

 

Eu dei a ideia, mas não fui um dos fundadores. Fui apenas a abelha. Eu havia circulado em torno da flor wiki por um tempo, e depois polinizei a flor da enciclopédia grátis. Conversei com muitas outras pessoas que tiveram a mesma ideia, só que não em momentos ou lugares onde ela poderia criar raízes.99

 

Essa é a maneira como as boas ideias muitas vezes florescem: uma abelha traz metade de uma ideia de um campo e poliniza outro campo fértil cheio de inovações pela metade. É por isso que as ferramentas da web, assim como comer tacos na estrada, são valiosas.

 

 

Cunningham foi solidário e na verdade ficou encantado quando Wales lhe telefonou em janeiro de 2001 e lhe disse que planejava usar o software wiki para injetar vida em seu projeto de enciclopédia. Cunningham não procurara patentear ou registrar o software ou o nome wiki, e era um daqueles inovadores que ficava feliz ao ver seus produtos se tornarem ferramentas que qualquer um pudesse usar ou adaptar.

De início, Wales e Sanger conceberam a Wikipedia apenas como um complemento para a Nupedia, uma espécie de produto alimentador ou categoria de baixo de um time. Os artigos wiki, assegurou Sanger aos editores especialistas da Nupedia, seriam relegados a uma seção separada do site e não seriam listados com as páginas normais da Nupedia. “Se um artigo wiki chegasse a um nível elevado, poderia ser incluído no processo editorial normal da Nupedia”, ele escreveu num post.100 Não obstante, os puristas da Nupedia contra-atacaram, insistindo que a Wikipedia fosse mantida segregada, de modo a não contaminar a sabedoria dos experts. O Conselho Consultivo da Nupedia declarou secamente em seu site: “Nota: os processos e políticas editoriais da Wikipedia e da Nupedia são separados; os editores e revisores da Nupedia não endossam necessariamente o projeto da Wikipedia, e os colaboradores da Wikipedia não endossam necessariamente o projeto da Nupedia”.101 Embora não soubessem, os pedantes do sacerdócio da Nupedia estavam fazendo um favor enorme à Wikipedia ao cortar o cordão umbilical.

Sem amarras, a Wikipedia decolou. Ela se tornou para o conteúdo da web o que o GNU/Linux foi para o software: um bem comum criado de forma colaborativa entre pares e mantido por voluntários que trabalhavam pela satisfação cívica que sentiam. Era um delicioso conceito contrário ao senso comum, perfeitamente adequado à filosofia, à atitude e à tecnologia da internet. Qualquer um poderia editar uma página, e os resultados apareceriam no mesmo instante. Não era preciso ser especialista. Não era preciso mandar por fax uma cópia do diploma. Não era preciso ser autorizado pelos poderes constituídos. Nem sequer era preciso se registrar ou usar o nome verdadeiro. Claro, isso significava que vândalos poderiam arruinar páginas. Assim como os idiotas ou ideólogos. Mas o software mantinha o controle de cada versão. Se um mau texto aparecesse, a comunidade poderia simplesmente se livrar dele, clicando em um link de “reverter”. “Imagine um muro onde é mais fácil remover pichações do que acrescentá-las”, são as palavras com as quais o estudioso de mídia Clay Shirky explicou o processo. “A quantidade de pichações nesse muro dependeria do empenho dos seus defensores.”102 No caso da Wikipedia, seus defensores estavam ferozmente empenhados. Há poucas guerras mais intensas do que as batalhas de reversão na Wikipedia. E de uma forma um tanto surpreendente, as forças da razão triunfaram sempre.

Um mês após seu lançamento, a Wikipedia tinha mil artigos, cerca de setenta vezes mais do que a Nupedia depois de um ano inteiro. Em setembro de 2001, com oito meses de existência, já contava com 10 mil artigos. Naquele mês, quando ocorreram os ataques do Onze de Setembro, a Wikipedia mostrou sua agilidade e utilidade; os colaboradores se esforçaram para criar novos textos sobre temas como o World Trade Center e seu arquiteto. Um ano mais tarde, o total de artigos chegava a 40 mil, mais do que havia na World Book Encyclopedia que a mãe de Wales havia comprado. Em março de 2003, o número de artigos na edição em língua inglesa já atingira 100 mil, com cerca de quinhentos editores ativos que trabalhavam quase todos os dias. Foi quando Wales decidiu fechar a Nupedia.

Fazia um ano que Sanger fora embora. Wales o deixara partir. Eles haviam se estranhado cada vez mais sobre questões fundamentais, como o desejo de Sanger de tratar com mais deferência os especialistas e estudiosos. Na visão de Wales, “as pessoas que esperam deferência porque têm um ph.D. e não querem lidar com gente comum tendem a ser irritantes”.103 Sanger achava, ao contrário, que as massas não acadêmicas é que tendiam a ser irritantes. “Como comunidade, a Wikipedia carece do hábito ou tradição de respeito pela expertise”, ele escreveu num manifesto divulgado na véspera do Ano-Novo de 2004, num dos seus muitos ataques à enciclopédia depois de sua saída. “Uma diretriz que tentei instituir no primeiro ano da Wikipedia, mas para a qual não consegui apoio suficiente, foi respeitar e se submeter com educação aos especialistas.” Seu elitismo foi rejeitado não apenas por Wales, mas pela comunidade da Wikipedia. “Em consequência, os que têm muito conhecimento mas pouca paciência vão evitar editá-la”, lamentou Sanger.104

Ele estava errado. A multidão sem credenciais não espantou os especialistas. Em vez disso, ela própria se especializou, e os especialistas passaram a fazer parte da multidão. Logo no início do desenvolvimento da Wikipedia, eu estava fazendo pesquisas para um livro a respeito de Albert Einstein e notei que o verbete sobre ele afirmava que ele havia viajado à Albânia em 1935, a fim de que o rei Zog pudesse ajudá-lo a escapar dos nazistas, obtendo-lhe um visto para os Estados Unidos. A informação era falsa, embora o trecho incluísse citações de sites albaneses obscuros nos quais isso era proclamado com orgulho, com base numa série de recordações de terceira mão do que o tio de alguém disse uma vez que um amigo lhe contara. Usando tanto o meu nome verdadeiro como um pseudônimo da Wikipedia, apaguei a afirmação do artigo, mas ela reapareceu. Na página de discussão, apresentei as fontes sobre onde Einstein estava de fato no período em questão (Princeton) e qual era o passaporte que estava usando (suíço). Mas tenazes partidários albaneses continuaram a reinserir a reivindicação. O cabo de guerra envolvendo Einstein na Albânia durou semanas. Preocupei-me que a obstinação de alguns defensores apaixonados pudesse minar a confiança da Wikipedia na sabedoria das multidões. Mas depois de um tempo, as guerras de edição acabaram e o artigo já não tinha mais Einstein na Albânia. De início, não atribuí esse sucesso à sabedoria das multidões, já que a pressão pela correção viera de mim, e não da multidão. Então me dei conta de que eu, como milhares de outros, fazia parte da multidão e vez ou outra aumentava um pouquinho a sabedoria dela.

Um princípio fundamental da Wikipedia era que os artigos deveriam ter um ponto de vista neutro. Com isso, conseguiu-se produzir textos que em geral eram sérios e honestos, mesmo sobre temas polêmicos, como o aquecimento global e o aborto. Essa regra também tornou mais fácil a colaboração de pessoas com diferentes pontos de vista. “Em virtude da política de neutralidade, temos adeptos de ideias divergentes que trabalham juntos nos mesmos artigos”, explicou Sanger. “Isso é notável.”105 Em geral, a comunidade era capaz de usar a diretriz do ponto de vista neutro para criar um artigo de consenso que apresentava concepções concorrentes de forma neutra. Tornou-se um modelo, raramente imitado, de como as ferramentas digitais podem ser usadas para encontrar um terreno comum numa sociedade em que há controvérsias.

Não apenas os artigos da Wikipedia eram criados de forma colaborativa pela comunidade; o mesmo acontecia com suas práticas operacionais. Wales promoveu um sistema flexível de gestão coletiva, em que ele desempenhava o papel de guia e estimulador gentil, mas não de chefe. Havia páginas wiki em que os usuários podiam formular e debater as regras em conjunto. Por intermédio desse mecanismo, criavam-se diretrizes para lidar com questões como as práticas de reversão, mediação de conflitos, o bloqueio de usuários individuais e a elevação de um grupo seleto ao status de administradores. Todas essas regras surgiram organicamente da comunidade, em vez de serem ditadas para baixo por uma autoridade central. Tal como a própria internet, o poder era distribuído. “Não posso imaginar quem poderia ter escrito diretrizes tão detalhadas, se não um monte de pessoas trabalhando juntas”, refletiu Wales. “É comum na Wikipedia que cheguemos a uma solução que é de fato bem pensada porque muitas cabeças tentaram aperfeiçoá-la.”106

À medida que crescia organicamente, com seu conteúdo e sua governança brotando das bases, a Wikipedia foi capaz de se espalhar como uma praga. No início de 2014, havia edições em 287 idiomas que iam do africâner ao žemait ška. O número total de artigos era de 30 milhões, com 4,4 milhões na edição em língua inglesa. Em contraste, a Encyclopædia Britannica, que deixou de publicar uma edição impressa em 2010, tinha 80 mil artigos em sua edição eletrônica, menos de 2% do número de artigos da Wikipedia. “O esforço acumulado de milhões de colaboradores da Wikipedia significa que você está a um clique de distância de descobrir o que é um infarto do miocárdio, ou qual é a causa da Guerra da Faixa de Agacher, ou quem foi Spangles Muldoon”, escreveu Clay Shirky. “Trata-se de um milagre não planejado, como ‘o mercado’ decidir quanto pão terá a padaria. A Wikipedia, no entanto, é ainda mais estranha do que o mercado: não só todo o seu material vem de colaboração gratuita como está disponível de graça.”107 O resultado foi o maior projeto colaborativo de conhecimento da história.

 

 

Então, por que as pessoas colaboram? O professor Yochai Benkler, de Harvard, chamou a Wikipedia, junto com o software de código aberto e outros projetos de colaboração gratuita, de exemplos de “produção entre pares baseada no bem comum”. Ele explicou: “Sua característica central é que grupos de indivíduos colaboram em projetos de grande escala seguindo um conjunto diversificado de impulsos motivacionais e sinais sociais, em vez de preços de mercado ou ordens gerenciais”.108 Entre essas motivações estão a recompensa psicológica de interagir com outros e a gratificação pessoal de fazer uma tarefa útil. Todos temos nossos pequenos prazeres, como colecionar selos ou defender de maneira obstinada a boa gramática, saber a média de rebatidas de Jeff Torborg no campeonato universitário ou a ordem de batalha em Trafalgar. Todos esses indivíduos encontram um lar na Wikipedia.

Há em ação algo fundamental, quase primordial. Alguns wikipedistas chamam de “wiki-crack”. É a descarga de dopamina que parece atingir o centro de prazer do cérebro quando você faz uma edição inteligente e ela aparece no mesmo instante em um artigo da Wikipedia. Até pouco tempo atrás, ser publicado era um prazer ao alcance apenas de um grupo seleto. A maioria dos que estão nessa categoria lembra a emoção de ver suas palavras aparecem em público pela primeira vez. A Wikipedia, como os blogs, tornou esse prazer disponível a qualquer pessoa. Não é preciso ser credenciado ou ungido pela elite da mídia.

Por exemplo, muitos dos seus artigos sobre a aristocracia britânica foram escritos em grande parte por um usuário conhecido como Lord Emsworth. Eram tão perspicazes sobre os meandros do sistema de nobreza que alguns foram apresentados como o “Artigo em Destaque”, e Lord Emsworth ganhou prestígio e se tornou um administrador da Wikipedia. Descobriu-se depois que Lord Emsworth, nome tirado de romances de P. G. Wodehouse, era, na verdade, um garoto de dezesseis anos, de South Brunswick, Nova Jersey. Na Wikipedia, ninguém sabe que você é plebeu.109

Ligada a isso está a satisfação ainda mais profunda que vem de ajudar a criar as informações que usamos, em vez de simplesmente recebê-las de forma passiva. “O envolvimento das pessoas na informação que leem é um importante fim em si mesmo”, escreveu o professor Jonathan Zittrain, de Harvard.110 A Wikipedia que criamos em comum é mais significativa do que seria a mesma Wikipedia entregue a nós numa bandeja. A produção entre pares abre espaço para que as pessoas se engajem.

Jimmy Wales repetia com frequência uma missão simples e inspiradora para a Wikipedia: “Imagine um mundo em que cada pessoa no planeta ganha livre acesso à soma de todo o conhecimento humano. É isso que estamos fazendo”. Era um objetivo enorme, audacioso e meritório. Mas subestimava muito o que a Wikipedia fazia. Significava mais do que “dar” às pessoas acesso livre ao conhecimento; dizia respeito a capacitá-las de uma forma nunca antes vista na história para tomar parte do processo de criação e distribuição de conhecimento. Wales se deu conta disso depois. “A Wikipedia não permite apenas o acesso ao conhecimento de outras pessoas, mas também o compartilhamento do conhecimento de cada um”, disse ele. “Quando você ajuda a construir uma coisa, você é dono dela, está comprometido com ela. Isso é muito mais gratificante do que recebê-la de cima para baixo.”111

A Wikipedia fez o mundo dar um passo adiante no sentido da visão proposta por Vannevar Bush em seu ensaio “As We May Think”, de 1945, que previa que “formas novas de enciclopédias aparecerão, já trazendo uma malha de trilhas associativas dentro delas, prontas para serem jogadas no memex e ali amplificadas”. Ela também remete a Ada Lovelace, que afirmou que as máquinas seriam capazes de fazer quase tudo, exceto pensar por conta própria. A Wikipedia não diz respeito à construção de uma máquina que poderia pensar por conta própria. É antes um exemplo deslumbrante de simbiose homem-máquina, a sabedoria dos seres humanos e o poder de processamento dos computadores entretecidos como numa tapeçaria. Em 2011, quando Wales e sua nova esposa tiveram uma filha, batizaram-na de Ada, em homenagem a Lady Lovelace.112

 

 

LARRY PAGE, SERGEY BRIN E SEARCH

 

Quando Justin Hall criou sua excêntrica home page em janeiro de 1994, existiam apenas setecentos websites no mundo. No fim daquele ano, havia 10 mil e, no final do ano seguinte, 100 mil. A combinação de computadores pessoais e redes levou a algo espantoso: qualquer um poderia obter conteúdos de qualquer lugar e distribuir seu próprio conteúdo para todos os lugares. Mas para que esse universo em expansão fosse útil, era preciso encontrar uma forma fácil, uma interface homem-computador-rede simples, que permitisse às pessoas encontrar o que precisavam.

As primeiras tentativas de fazer isso foram os guias compilados à mão. Alguns eram bizarros e frívolos, como o Links do Subsolo de Justin e as Páginas Inúteis, lista criada por Paul Phillips. Outros eram sóbrios e sérios, como a Biblioteca Virtual da World Wide Web, de Tim Berners-Lee, e a página “O Que Há de Novo”, do NCSA, bem como o Navegador da Rede Global, de Tim O’Reilly. Entre esses dois extremos, e levando o conceito a um novo nível, estava um site criado no início de 1994 por dois estudantes de pós-graduação de Stanford, que se chamou, em uma de suas muitas encarnações iniciais, Guia da Web de Jerry e David.

Quando estavam terminando suas teses de doutorado, Jerry Yang e David Filo procrastinavam jogando Fantasy League Basketball. “Fazíamos tudo o que podíamos para não escrever nossas teses”, relembrou Yang.113 Ele passava o tempo desenvolvendo maneiras de esquadrinhar estatísticas de jogadores de servidores que usavam FTP e Gopher, dois protocolos de distribuição de documentos na internet que eram populares antes da ascensão da web.

Quando o navegador Mosaic foi lançado, Yang voltou sua atenção para a web e, junto com Filo, começou a compilar manualmente um guia cada vez maior de sites. Era organizado por categorias, tais como negócios, educação, entretenimento, governo, cada um com dezenas de subcategorias. No final de 1994, eles já haviam mudado o nome de seu guia da web para “Yahoo!”.

Havia um problema óbvio: com o número de sites aumentando dez vezes a cada ano, não havia como manter um guia atualizado à mão. Por sorte, existia uma ferramenta que já estava sendo usada para esquadrinhar informações existentes nos sites FTP e Gopher. Era chamada de crawler [rastejador], porque se arrastava de servidor em servidor da internet para compilar um índice. Os nomes dos dois mais famosos eram, como o casal dos quadrinhos, Archie (para arquivos FTP) e Veronica (para o Gopher). Em 1994, vários engenheiros empreendedores já estavam criando crawlers que serviriam de ferramentas de pesquisa para a web. Entre eles estavam o WWW Wanderer, criado por Matthew Gray no MIT, o WebCrawler, de Brian Pinkerton, da Universidade de Washington, o AltaVista, de Louis Monier, da Digital Equipment Corporation, o Lycos, de Michael Mauldin, da Universidade Carnegie Mellon, o OpenText, de uma equipe da Universidade de Waterloo, no Canadá, e o Excite, de seis amigos de Stanford. Todos usavam robôs saltadores de links, ou bots, capazes de percorrer a web como um bebedor indo de bar em bar, captando URLs e informações sobre cada site. Isso era então marcado, indexado e guardado em um banco de dados que podia ser acessado por um servidor de consulta.

Filo e Yang não fizeram seu próprio rastreador da web; em vez disso, decidiram obter a licença de um deles para adicionar à sua home page. O Yahoo! continuou a enfatizar a importância de seu guia, que era compilado por seres humanos. Quando um usuário digitava uma expressão, os computadores do Yahoo! verificavam se ela tinha relação com um item do guia e, se tivesse, a lista artesanal de sites aparecia. Se não, a consulta era transferida para a ferramenta de rastreamento da web.

A equipe do Yahoo! acreditava, erroneamente, que a maioria dos usuários navegaria pela web para explorar, em vez de procurar algo específico. “A mudança de exploração e descoberta para a pesquisa intencional de hoje era inconcebível”, lembrou Srinija Srinivasan, a primeira editora-chefe do Yahoo!, que supervisionava uma redação de mais de sessenta jovens editores e compiladores de guias.114 Essa confiança no fator humano significou que o Yahoo! viria a ser muito melhor do que seus concorrentes ao longo dos anos (e ainda hoje) na escolha de notícias, embora não no fornecimento de ferramentas de busca. Mas não havia como Srinivasan e sua equipe acompanhar o número de páginas da web que estavam sendo criadas. Apesar do que ela e seus colegas do Yahoo! achavam, as ferramentas de busca automatizadas viriam a ser o principal método para encontrar coisas na rede, e outra dupla de estudantes de pós-graduação de Stanford abriria o caminho.

 

 

Larry Page nasceu e cresceu no mundo da computação.115 Seu pai era professor de ciência da computação e inteligência artificial na Universidade de Michigan e sua mãe lecionava programação na mesma instituição. Em 1979, quando Larry tinha seis anos, seu pai trouxe para casa um Exidy Sorcerer, um computador pessoal para hobbistas.i “Eu me lembro de ter ficado muito empolgado com um computador em casa, porque era um acontecimento, e provavelmente era caro, meio como comprar um carro”, contou.116 Larry logo aprendeu a manejá-lo e usá-lo para seus trabalhos escolares. “Acho que fui o primeiro garoto da minha escola primária a entregar um documento feito num processador de texto.”117

Um de seus heróis de infância foi Nikola Tesla, o imaginativo pioneiro da eletricidade e outras invenções que foi atropelado nos negócios por Thomas Edison e morreu na obscuridade. Quando tinha doze anos, Page leu uma biografia de Tesla e achou sua história perturbadora. “Ele foi um dos maiores inventores, mas é uma história triste, triste”, disse.

 

Ele não conseguia comercializar nada, mal conseguia financiar sua própria pesquisa. A gente quer ser mais como Edison. Se você inventa uma coisa, isso não significa necessariamente ajudar alguém. Você tem de pô-la no mundo; você tem de produzir, ganhar dinheiro fazendo isso para que possa financiá-la.118

 

Os pais de Larry costumavam levá-lo, junto com seu irmão Carl, em viagens longas, às vezes para conferências de informática. “Acho que acabei visitando quase todos os estados antes de ir para a faculdade”, observou. Em uma dessas viagens, foram para a Conferência Internacional Conjunta sobre Inteligência Artificial, em Vancouver, que estava repleta de robôs maravilhosos. Como ele tinha menos de dezesseis anos, disseram-lhe que não poderia entrar, mas seu pai insistiu. “Ele simplesmente gritou com os caras. Foi uma das poucas vezes que vi meu pai discutir.”119

Como acontecia com Steve Jobs e Alan Kay, o outro amor de Larry, além dos computadores, era a música. Ele tocava saxofone e estudou composição. Nos verões, ia para o famoso acampamento de música em Interlochen, no norte de Michigan. Lá havia um método de avaliação coletiva de cada criança: no início do acampamento, atribuíam-se a todas elas cadeiras na orquestra, e qualquer uma poderia desafiar quem ocupava um lugar acima do seu; dava-se aos dois concorrentes uma seleção de músicas, e todas as outras crianças ficavam de costas e depois votavam em quem achavam melhor. “Após um tempo, as coisas meio que se acalmavam, e cada saberia onde estava”, contou ele.120

Os pais de Page não só lecionavam em Michigan como se conheceram quando eram estudantes lá, então era meio de brincadeira quando lhe diziam que ele iria para lá também. Assim foi. Ele fez questão de se especializar em administração e também em ciência da computação, em parte devido ao exemplo negativo de Tesla, que era capaz de inventar, mas não de comercializar. Além disso, ele tinha um modelo no irmão Carl, nove anos mais velho, que depois da faculdade se tornou um dos fundadores de uma empresa de rede social que mais tarde foi vendida ao Yahoo! por 413 milhões de dólares.

O curso que causou a maior impressão em Page tratava da interação ser humano-computador, dado por Judith Olson. O objetivo era entender como criar interfaces que fossem fáceis e intuitivas. Page fez seu trabalho de pesquisa sobre a tela do programa para contas de e-mail Eudora, estimando e depois testando quanto tempo seria necessário para executar várias tarefas. Ele descobriu, por exemplo, que as teclas de comando diminuíam o ritmo das pessoas em 0,9 segundo em relação ao uso de um mouse. “Acho que desenvolvi uma intuição para como as pessoas vão interagir com uma tela, e me dei conta de que essas coisas eram bem importantes”, disse ele. “Mas elas não são bem compreendidas até hoje.”121

Um verão, durante seus anos de faculdade, Page foi a um acampamento de um instituto de formação de lideranças chamado LeaderShape. Ele incentivava os estudantes a ter um “desrespeito saudável pelo impossível”. O instituto inculcou-lhe um desejo, ao qual usaria no Google, de lançar projetos que outros considerassem estar na fronteira entre o audacioso e o insano. Em particular, tanto em Michigan como mais tarde, ele propôs ideias futuristas para sistemas de transporte pessoais e carros sem motorista.122

Quando chegou a hora de ir para a pós-graduação, Page foi rejeitado pelo MIT, mas aceito por Stanford. Foi uma sorte; para alguém interessado na interseção entre tecnologia e negócios, Stanford era o lugar certo. Nessa universidade, desde que seu aluno Cyril Elwell fundara a Federal Telegraph, em 1909, o empreendedorismo tecnológico não só era tolerado como esperado, atitude que foi reforçada quando o diretor da escola de engenharia Fred Terman construiu um parque industrial em um terreno da instituição, no início da década de 1950. Mesmo entre o corpo docente, o foco estava em planos de novos negócios tanto quanto em publicações acadêmicas. “Esse era o tipo de professor que eu queria, aquele que tem um pé na indústria e quer fazer coisas malucas inovadoras”, disse Page. “Muitos professores de ciência da computação de Stanford são assim.”123

Na época, a maioria das outras universidades de elite enfatizava a pesquisa acadêmica e evitava empreendimentos comerciais. Stanford abriu o caminho para considerar a universidade não apenas uma academia, mas uma incubadora. Entre as empresas geradas por Stanford estão Hewlett-Packard, Cisco, Yahoo! e Sun Microsystems. Page, que acabaria por adicionar o maior nome de todos a essa lista, achava que, na realidade, essa perspectiva melhorava a pesquisa. “Penso que a produtividade da pesquisa pura era muito maior porque tinha uma base no mundo real”, afirmou. “Não é apenas teoria. Você quer que aquilo em que está trabalhando se aplique a um problema real.”124

 

 

No outono de 1995, quando se preparava para se matricular em Stanford, Page participou de um programa de orientação, que incluía um dia em San Francisco. Seu guia era um sociável estudante de segundo ano de pós-graduação chamado Sergey Brin. Page era quieto por natureza, enquanto Brin não parava de dar opiniões, e logo eles estavam discutindo sobre temas que iam de computadores a zoneamento urbano. Deram-se perfeitamente bem. “Eu me lembro de ter pensado que ele era muito irritante”, admitiu Page. “Esse ainda é o caso. E talvez vice-versa.”125 Sim, o sentimento era mútuo. “Nós dois nos achamos irritantes”, Brin admitiu. “Mas a gente diz isso um pouco de brincadeira. Claro, passamos muito tempo conversando um com o outro, então havia alguma coisa ali. Tínhamos entre nós uma coisa de tirar sarro.”126

Os pais de Sergey Brin também eram acadêmicos, ambos matemáticos, mas sua infância fora muito diferente da de Page. Brin nasceu em Moscou, onde o pai lecionava matemática na Universidade Estadual de Moscou e a mãe era engenheira de pesquisa no Instituto Soviético de Petróleo e Gás. Por serem judeus, suas carreiras foram cortadas. “Éramos muito pobres”, contou Sergey ao jornalista Ken Auletta. “Meus pais, os dois, passaram por períodos de dificuldades.” Quando seu pai se candidatou a emigrar, ele e a esposa perderam o emprego. Seus vistos de saída foram concedidos em maio de 1979, quando Sergey tinha cinco anos. Com o auxílio da Sociedade de Ajuda ao Imigrante Hebreu, eles se instalaram num bairro de classe operária perto da Universidade de Maryland, onde seu pai conseguiu emprego de professor de matemática, enquanto sua mãe se tornou pesquisadora no Centro de Voo Espacial Goddard da Nasa.

Sergey foi para uma escola que seguia o método Montessori, onde o pensamento independente era estimulado. “Não havia alguém que lhe dissesse o que fazer”, contou ele. “Você tinha de traçar seu próprio caminho.”127 Eis uma coisa que compartilhava com Page. Quando perguntados mais tarde se o fato de terem pais professores fora uma chave para o sucesso deles, ambos citaram as escolas montessorianas como fator mais importante. “Acho que foi parte daquele treinamento de não seguir regras e ordens e ter motivação própria, questionar o que está acontecendo no mundo e fazer as coisas de um modo um pouco diferente”, sustentou Page.128

Outra coisa que Brin tinha em comum com Page era que seus pais lhe deram um computador quando ele era muito jovem, um Commodore 64, presente de seu aniversário de nove anos. “A capacidade de programar seu próprio computador era muito mais acessível do que é hoje”, lembrou. “O computador vinha com um interpretador BASIC embutido,j e você podia começar imediatamente a escrever seus próprios programas.” No ensino médio, Brin e um amigo escreveram programas que tentavam simular a inteligência artificial, através da realização de uma conversa de texto com o usuário. “Não creio que as crianças que começam com computadores hoje tenham uma recepção de boas-vindas à programação como a que tive.”129

Sua atitude rebelde em relação à autoridade quase o pôs em apuros quando estava completando dezessete anos e seu pai o levou consigo numa visita a Moscou. Ao ver um carro da polícia, o rapaz começou a jogar pedras nele. Os dois policiais saíram do carro para enfrentar Sergey, mas seus pais conseguiram acalmar a situação. “Acho que minha rebeldia vem de eu ter nascido em Moscou. Eu diria que isso é algo que me seguiu até a idade adulta.”130

Entre os livros que inspiraram Brin estavam as memórias do físico Richard Feynman, que alardeava o poder que vem de unir a arte à ciência à maneira de Leonardo da Vinci. “Lembro-me de que havia um trecho em que ele explicava que queria realmente ser um Leonardo, artista e cientista”, contou Brin. “Achei isso muito inspirador. Acredito que isso leva a uma vida plena.”131

Ele foi capaz de concluir o ensino médio em três anos e fazer o mesmo na Universidade de Maryland, onde se graduou em matemática e ciência da computação. Durante um tempo, com seus colegas viciados em computador, curtiu frequentar bulletin boards e salas de bate-papo da internet, até que se aborreceu com “meninos de dez anos de idade tentando falar sobre sexo”. Envolveu-se então em jogos on-line de texto conhecidos como Multi-User Dungeons (MUD) e escreveu um desses, que tinha como personagem um carteiro que entregava pacotes de explosivos. “Passei tempo suficiente jogando MUD para pensar que era legal”, Brin relembrou.132 Na primavera de 1993, seu último ano em Maryland, ele baixou o navegador Mosaic, que Andreessen tinha acabado de lançar, e ficou hipnotizado pela web.

Com uma bolsa da Fundação Nacional das Ciências, Brin foi para Stanford, onde decidiu se concentrar no estudo de data mining [mineração de dados]. (Em um golpe duplo, dado mais em si mesmo do que neles, o MIT o rejeitou, assim como fizera com Page.) Havia oito exames abrangentes em que Brin precisava passar para fazer o doutorado, e ele tirou A em sete deles logo depois que chegou. “Naquele em que achei que tinha ido melhor, não passei”, lembrou. “Procurei o professor e discuti as respostas. Acabei por convencê-lo. Então, passei em todos os oito.”133 Isso o deixou livre para experimentar os cursos que quisesse e para saciar seus peculiares interesses esportivos em acrobacia, trapézio, vela, ginástica e natação. Era capaz de andar sobre as mãos e, por isso, segundo ele, chegou a pensar em fugir e entrar para um circo. Também ávido patinador, era visto com frequência voando pelos corredores.

 

 

Poucas semanas depois que Page chegou a Stanford, ele e Brin se mudaram com o resto do Departamento de Ciência da Computação para o novo Gates Computer Science Building.k Contrariado com o sistema de numeração para escritórios nada inspirado que o arquiteto desenhara, Brin concebeu um novo sistema, que foi adotado e que transmitia melhor a localização de cada sala e a distância entre elas. “Era muito intuitivo, me atrevo a dizer”, disse.134 Para Page foi designada uma sala com outros três estudantes de pós-graduação, e Brin fez dela sua base. Havia plantas penduradas com um sistema de regas com controle informatizado, um piano conectado a um computador, vários brinquedos eletrônicos e almofadas para cochilos e para atravessar noites.

A dupla inseparável ficou ligada, ao estilo CamelCase, como LarryAndSergey, e quando se entregavam a discussões ou brincadeiras, eram como duas espadas se afiando uma à outra. Tamara Munzner, a única mulher do grupo, tinha uma definição para ele: “patetas inteligentes”, assim ela os chamava, sobretudo quando passavam a debater conceitos absurdos, como, por exemplo, se seria possível construir alguma coisa do tamanho de um prédio usando apenas feijões-de-lima. “Era divertido compartilhar o escritório com eles”, contou. “Nosso horário de trabalho era maluco. Lembro-me de uma vez, eram três da manhã de uma noite de sábado e a sala estava cheia.”135 A dupla era notável não só por seu brilhantismo como por sua ousadia. “Eles não tinham esse falso respeito pela autoridade”, disse o professor Rajeev Motwani, um de seus orientadores. “Eles me contestavam o tempo todo. Não tinham nenhum escrúpulo em me dizer ‘Você está por fora!’.”136

Como muitos grandes parceiros de inovação, LarryAndSergey tinham personalidades complementares. Page não era um animal social; tinha mais facilidade para fazer contato visual com uma tela do que com um estranho. Um problema crônico nas cordas vocais, decorrente de uma infecção viral, fazia com que falasse com uma voz sussurrante e rouca, e tinha o hábito desconcertante (embora, sob muitos aspectos, admirável) de, às vezes, simplesmente não falar, o que tornava suas declarações, quando ocorriam, ainda mais memoráveis. Sua capacidade de se desligar era impressionante, mas às vezes seu envolvimento era intenso. O sorriso era rápido e genuíno, o rosto, expressivo, e ele escutava com uma atenção que podia ser lisonjeira e enervante. Intelectualmente rigoroso, conseguia encontrar falhas lógicas nos comentários mais mundanos e conduzir sem esforço uma conversa superficial para uma discussão profunda.

Brin, por sua vez, era capaz de ser encantadoramente impetuoso. Invadia escritórios sem bater, expunha ideias e pedidos sem pensar e se envolvia em qualquer assunto. Page era mais reflexivo e reservado. Enquanto Brin se satisfazia ao saber que alguma coisa funcionava, Page ruminava sobre por que ela funcionava. O animado e falante Brin dominava um ambiente, mas os comentários tranquilos de Page no final de uma discussão faziam as pessoas se inclinar para a frente e ouvir. “Eu era provavelmente um pouco mais tímido do que Sergey, embora ele seja tímido em alguns aspectos”, observou Page. “Tínhamos uma grande parceria, talvez porque eu pensasse de forma mais ampla e tivesse habilidades diferentes. Sou engenheiro de computação. Estou mais bem informado sobre o hardware. Ele tem uma formação mais matemática.”137

O que espantava Page em especial era a inteligência do colega. “Quer dizer, ele era inteligente demais, mesmo para alguém no Departamento de Ciência da Computação.” Além disso, a personalidade extrovertida de Brin o ajudava a unir pessoas. Quando chegou a Stanford, Page ganhou uma mesa em uma sala aberta conhecida como o curral, junto com os outros novos alunos de pós-graduação. “Sergey era muito sociável”, contou. “Ele se encontrava com todos os estudantes e passava um tempo no curral com a gente.” Brin tinha até um talento especial para fazer amizade com professores.

 

Sergey tinha um jeito de entrar nos escritórios dos professores e andar com eles, o que era meio incomum para um estudante de pós-graduação. Acho que o toleravam porque ele era muito inteligente e bem informado. Era capaz de contribuir em todos os tipos de coisas aleatórias.138

 

Page entrou no Grupo de Interação Humano-Computador, que explorava maneiras de aumentar a simbiose entre seres humanos e máquinas. Tratava-se do campo aberto por Licklider e Engelbart, e que fora o tema de seu curso preferido em Michigan. Ele se tornou adepto do conceito de design centrado no usuário, que insistia que as interfaces de softwares e computadores deviam ser intuitivas e que o usuário sempre tinha razão. Havia ido para Stanford sabendo que queria ter como orientador Terry Winograd, um alegre professor com cabeleira à la Einstein. Winograd havia estudado inteligência artificial, mas depois de refletir sobre a essência da cognição humana, mudara seu foco, tal como Engelbart o fizera, para o modo como as máquinas poderiam aumentar e amplificar (em vez de replicar e substituir) o pensamento humano. “Mudei meu interesse daquilo que seria considerado inteligência artificial para uma questão mais ampla: ‘Como você quer interagir com um computador?’”, explicou Winograd.139

O campo das interações entre seres humanos e computador e do design de interface, apesar de sua nobre herança de Licklider, ainda era considerado uma disciplina de ciências humanas, desprezada por cientistas inflexíveis da computação como coisa em geral ensinada por meros professores de psicologia, o que Licklider e Judith Olson haviam sido outrora. “Para as pessoas que estudavam máquinas de Turing ou qualquer outra coisa, lidar com respostas humanas era considerado muito água com açúcar, quase como estar enfiado na área de humanidades”, explicou Page. Winograd ajudou a tornar o campo mais respeitável.

 

Terry tinha uma formação em ciência exata da computação do tempo em que trabalhara com inteligência artificial, mas também estava interessado na interação entre ser humano e computador, um campo em que ninguém mais estava trabalhando e, acho, não era muito respeitado.

 

Um dos cursos preferidos de Page foi “Técnica de Cinema no Design de Interface de Usuário”: “Mostrava como a linguagem e as técnicas do cinema podiam ser aplicadas aos projetos de interface de computador”.140

O objetivo acadêmico de Brin era o data mining. Com o professor Motwani, criou um grupo chamado Mining Data at Stanford, ou MIDAS. Entre os trabalhos que eles produziram (junto com outro estudante de pós-graduação, Craig Silverstein, que se tornaria o primeiro contratado quando fundaram o Google) estavam dois sobre análise de cesta de compras, uma técnica que avalia em que medida é mais ou menos provável que um consumidor que compra os itens A e B também compre os C e D.141 A partir disso, Brin se interessou pelos modos de analisar padrões na cacofonia de dados encontrados na web.

 

 

Com a ajuda de Winograd, Page começou a procurar um tema de dissertação. Considerou uns dez, entre eles a ideia sobre como projetar carros sem motorista, como o Google faria mais tarde. Por fim, resolveu estudar um modo de avaliar a importância relativa de diferentes sites na web. Seu método decorreu do fato de ter crescido em um ambiente acadêmico. Um critério que determina o valor de um trabalho acadêmico é saber quantos outros pesquisadores o citam em suas notas e bibliografias. Pela mesma teoria, uma forma de determinar o valor de uma página da web seria verificar quantas outras páginas estabeleciam links para ela.

Havia um problema. Do modo como Tim Berners-Lee havia projetado a web, para grande consternação dos puristas do hipertexto, como Ted Nelson, qualquer um podia criar um link para outra página sem obter permissão, registrar o link em um banco de dados ou fazer o link funcionar em ambas as direções. Isso permitia que a web se expandisse sem peias. Mas também significava que não havia nenhuma maneira simples de saber o número de links que apontavam para uma página ou de onde esses links poderiam vir. Era possível olhar para uma página e ver todos os links para fora dela, mas não se via o número ou a qualidade dos links que apontavam para ela. “A web era uma versão mais pobre de outros sistemas de colaboração que eu havia visto, porque seu hipertexto tinha um defeito: não tinha links bidirecionais”, disse Page.142

Então ele começou a buscar um modo de reunir uma enorme base de dados dos links para que pudesse segui-los no sentido inverso e ver quais sites estavam linkando para cada página. Uma motivação era promover a colaboração. Seu plano possibilitaria que as pessoas fizessem anotações em outra página. Se Harry tinha escrito um comentário e o linkado para o site de Sally, então as pessoas que olhassem o site dela poderiam ir ver o comentário dele. “Ao inverter os links, tornando possível rastreá-los para trás, isso permitiria que as pessoas comentassem ou anotassem em um site simplesmente linkando para ele”, explicou Page.143

O método de Page para reverter links se baseou numa ideia audaciosa que ele teve no meio da noite, ao acordar de um sonho. “Eu estava pensando: e se pudéssemos baixar toda a web e manter apenas os links?”, lembrou. “Peguei uma caneta e comecei a escrever. Passei metade daquela noite escrevendo os detalhes e me convencendo de que iria funcionar.”144 Seu surto noturno de atividade serviu como lição. “Você tem de ser um pouco insensato a respeito dos objetivos que vai estabelecer”, ele disse mais tarde a um grupo de estudantes israelenses. “Há uma frase que aprendi na faculdade que diz: ‘Tenha um desrespeito saudável pelo impossível’. É de fato uma boa frase. Você deve tentar fazer coisas que a maioria das pessoas não tentaria.”145

Mapear a web não era tarefa simples. Mesmo naquela época, em janeiro de 1996, havia 100 mil sites com um total de 10 milhões de documentos e perto de 1 bilhão de links entre eles, e isso crescia a cada ano de maneira exponencial. No início daquele verão, Page criou um rastreador da web projetado para começar em sua página inicial e seguir todos os links que encontrasse. Ao percorrer a rede como uma aranha, ele armazenaria o texto de cada hiperlink, os títulos das páginas e um registro de onde vinha cada link. Ele chamou o projeto de BackRub.

Page disse a Winograd, seu orientador, que de acordo com sua estimativa o rastreador da web seria capaz de realizar a tarefa em poucas semanas. “Terry concordou, sabedor de que levaria muito mais tempo, mas sábio o suficiente para não me dizer isso”, Page lembrou. “O otimismo dos jovens é muitas vezes subestimado!”146 Em breve, o projeto estava ocupando quase metade de toda a largura de banda de internet de Stanford, o que causou pelo menos um apagão nos computadores de todo o campus. Mas as autoridades da universidade foram indulgentes. “Estou quase sem espaço em disco”, Page escreveu por e-mail a Winograd em 15 de julho de 1996, depois de ter coletado 24 milhões de URLs e mais de 100 milhões de links. “Tenho apenas cerca de 15% das páginas, mas parece muito promissor.”147

Tanto a audácia como a complexidade do projeto de Page atraíram a mente matemática de Sergey Brin, que estava à procura de um tema de dissertação. Ele ficou empolgado ao unir forças com o amigo: “Era o projeto mais excitante, tanto porque abordava a web, que representa o conhecimento humano, como porque eu gostava de Larry”.148

 

 

Naquele momento, o objetivo do BackRub ainda era compilar os backlinks na web que serviriam de base para um possível sistema de anotação e análise de citação. “Por incrível que pareça, eu não pensava em criar uma ferramenta de busca”, admitiu Page. “A ideia não estava nem mesmo no radar.” À medida que o projeto evoluiu, ele e Brin inventaram formas mais sofisticadas para avaliar o valor de cada página, com base no número e na qualidade dos links que apontavam para ela. Foi quando ficou claro para os BackRub Boys que seu índice de páginas classificadas por importância poderia ser a base para um mecanismo de pesquisa de alta qualidade. Assim nasceu o Google. “Quando um sonho realmente grande aparece, agarre-o!”, disse Page mais tarde.149

De início, o projeto revisado foi chamado de PageRank, porque classificava cada página capturada no índice BackRub e, não por acaso, aproveitava o humor irônico e um toque de vaidade de Page. “Sim, eu estava me referindo a mim mesmo, infelizmente”, ele admitiu depois, envergonhado. “Eu me sinto meio mal por causa disso.”150

Essa meta de classificar páginas levou a mais uma camada de complexidade. Em vez de apenas tabular o número de links que apontavam para uma página, Page e Brin perceberam que seria ainda melhor se eles também pudessem atribuir um valor a cada um desses links. Por exemplo, um link que viesse do New York Times deveria contar mais do que um link do quarto de Justin Hall em Swarthmore. Isso criava um processo recursivo com múltiplas formas de feedback: cada página era classificada pela quantidade e pela qualidade dos links para ela, e a qualidade desses links era determinada pela quantidade e pela qualidade dos links para as páginas que lhes tinham dado origem, e assim por diante. “É tudo recursivo”, explicou Page. “É tudo um grande círculo. Mas a matemática é ótima. Pode-se resolver isso.”151

Esse era o tipo de complexidade matemática de que Brin gostava. “Na verdade, usamos muita matemática para resolver aquele problema”, ele relembrou. “Convertemos toda a web em uma grande equação com várias centenas de milhões de variáveis, que são as classificações de páginas de todas as páginas da web.”152 Em um artigo escrito com os orientadores de ambos, eles explicaram as complexas fórmulas matemáticas baseadas na quantidade de links de entrada que tinha uma página e a classificação relativa de cada um desses links. Depois, puseram essas fórmulas em palavras simples para o leigo: “Uma página tem uma classificação alta se a soma das classificações de seus backlinks é alta. Isso abrange tanto o caso em que uma página tem muitos backlinks como aquele em que uma página tem alguns backlinks altamente classificados”.153

A pergunta de bilhões de dólares era se o PageRank produziria de fato melhores resultados de pesquisa. Então eles fizeram um teste comparativo. Um exemplo que usaram foi uma pesquisa sobre universidade. No AltaVista e outras ferramentas, aparecia uma lista de páginas aleatórias que talvez usassem essa palavra no título. “Lembro-me de ter perguntado a eles: ‘Por que vocês estão dando lixo às pessoas?’”, disse Page. A resposta que recebeu foi que os maus resultados eram culpa dele, que ele deveria refinar sua pesquisa.

 

Eu tinha aprendido no meu curso de interação ser humano-computador que culpar o usuário não é uma boa estratégia, portanto sabia que eles não estavam fazendo a coisa certa. Essa percepção de que o usuário nunca está errado levou à ideia de que poderíamos produzir uma ferramenta de busca que fosse melhor.154

 

Com o PageRank, os principais resultados de uma pesquisa sobre universidade foram Stanford, Harvard, MIT e Universidade de Michigan, o que lhes agradou muitíssimo. “Uau”, Page lembra de ter dito para si mesmo. “Ficou muito claro para mim e para o resto do grupo que se você tivesse uma forma de classificar as coisas baseada não só na própria página, mas no que o mundo pensava dessa página, isso seria uma coisa realmente valiosa para a pesquisa.”155

 

 

Page e Brin começaram a refinar o PageRank, adicionando mais fatores, tais como frequência, tamanho do tipo e localização de palavras-chave numa página da web. Acrescentavam pontos extras se a palavra-chave estava no URL, tinha inicial maiúscula ou estava no título. Eles olhavam para cada conjunto de resultados, depois faziam ajustes e aperfeiçoavam a fórmula. Descobriram que era importante dar muito peso ao texto âncora, as palavras que eram sublinhadas como hiperlink. Por exemplo, as palavras Bill Clinton eram o texto âncora para muitos links que levavam a whitehouse.gov, então essa página ia para o topo quando um usuário pesquisava Bill Clinton, embora o site whitehouse.gov não tivesse o nome de Bill Clinton com destaque em sua home page. Um concorrente, pelo contrário, tinha “Bill Clinton Piada do Dia”, como primeiro resultado quando um usuário pesquisava Bill Clinton.156

Em parte devido ao enorme número de páginas e links envolvidos, Page e Brin chamaram sua ferramenta de busca de Google, embora quisessem, na verdade, chamá-la de googol, o termo para o número 1 seguido de cem zeros, que foi uma sugestão de Sean Anderson, um de seus colegas de escritório em Stanford. Mas eles digitaram Google para ver se esse nome de domínio estava disponível, e estava. Então Page o agarrou. “Não tenho certeza se percebemos que havíamos cometido um erro de ortografia”, Brin disse mais tarde. “Mas, de qualquer maneira, googol estava tomado. Um sujeito já havia registrado Googol.com e tentei comprá-lo dele, mas o cara era apaixonado pela palavra. Então ficamos com Google.”157 Era uma palavra lúdica, fácil de lembrar, digitar e transformar em verbo.l

Page e Brin se esforçaram para fazer o Google melhor de duas maneiras. Em primeiro lugar, mobilizaram muito mais largura de banda, capacidade de processamento e capacidade de armazenamento para a tarefa do que qualquer concorrente, acelerando seu rastreador da web de tal modo que ele indexava cem páginas por segundo. Além disso, estudavam sem parar o comportamento do usuário, para que pudessem ajustar constantemente seus algoritmos. Se os usuários clicassem no primeiro resultado e depois não voltassem à lista de resultados, significava que tinham conseguido o que queriam. Mas se fizessem uma pesquisa e voltassem de imediato para refazer a consulta, significava que estavam insatisfeitos, e os engenheiros deveriam descobrir, examinando a consulta refinada, o que eles estavam procurando em primeiro lugar. Sempre que os usuários rolavam para a segunda ou terceira página dos resultados da pesquisa, era sinal de que estavam descontentes com a ordem dos resultados que tinham recebido. Como disse o jornalista Steven Levy, esse ciclo de feedback ajudou o Google a aprender que quando os usuários digitavam cães, eles também estavam procurando por filhotes, e quando digitavam fervente, talvez estivessem também se referindo a água quente, e, por fim, o Google também aprendeu que quando digitavam cachorro quente, não estavam procurando por filhotes ferventes.158

Outra pessoa criou um esquema baseado em links muito semelhante ao PageRank: um engenheiro chinês chamado Yanhong (Robin) Li, que estudou na Universidade Estadual de Nova York em Buffalo e depois foi trabalhar numa divisão da Dow Jones com sede em Nova Jersey. Na primavera de 1996, no mesmo momento em que Page e Brin estavam criando o PageRank, Li elaborou um algoritmo que chamou de RankDex, que determinava o valor de resultados de pesquisa pelo número de links para uma página e pelo conteúdo do texto que ancorava os links. Ele comprou um livro de autoajuda sobre como patentear a ideia e depois fez isso com o auxílio da Dow Jones. Mas a empresa não deu seguimento à ideia, de modo que Li se mudou para a Califórnia, onde foi trabalhar na Infoseek, e depois voltou para a China. Lá, foi um dos fundadores do Baidu, que se tornou a maior ferramenta de busca do país e um dos concorrentes globais mais poderosos do Google.

 

* * *

 

No início de 1998, o banco de dados de Page e Brin continha mapas de quase 518 milhões de hyperlinks, dos cerca de 3 bilhões então existentes na web. Page não queria que o Google fosse apenas um projeto acadêmico, mas que também se tornasse um produto popular. “Era como o problema de Nikola Tesla”, disse. “Você faz uma invenção que acha ótima, então quer que ela seja usada por muitas pessoas o mais rápido possível.”159

O desejo de transformar seu tema de dissertação em negócio fez com que Page e Brin relutassem em publicar ou fazer apresentações formais sobre o que haviam criado. Mas seus orientadores acadêmicos continuavam a pressioná-los para publicar alguma coisa; então, na primavera de 1998, eles escreveram um trabalho de vinte páginas que conseguia explicar as teorias acadêmicas por trás do PageRank e do Google sem abrir o quimono a ponto de revelar segredos demais a concorrentes. Intitulado “The Anatomy of a Large-Scale Hypertextual Web Search Engine” [A anatomia de uma ferramenta de busca intertextual da web de grande escala], foi apresentado numa conferência realizada na Austrália, em abril de 1998.

“Neste trabalho, apresentamos o Google, protótipo de uma ferramenta de busca de grande escala, que faz uso intenso da estrutura presente em hipertextos”, começava o texto.160 Ao mapear mais de meio bilhão dos 3 bilhões de links da web, eles conseguiram calcular um PageRank para, pelo menos, 25 milhões de páginas, que “corresponde bem à ideia de importância subjetiva das pessoas”. Eles detalharam o “algoritmo iterativo simples” que produzia PageRanks para cada página.

 

A literatura de citação acadêmica foi aplicada à web, em grande medida, pela contagem de citações ou backlinks para determinada página. Isso dá uma ideia aproximada da importância ou qualidade de uma página. O PageRank amplia essa ideia ao não contar os links de todas as páginas da mesma forma.

 

O trabalho incluía muitos detalhes técnicos sobre classificação, rastreamento, indexação e iteração dos algoritmos. Havia também alguns parágrafos sobre indicações úteis para pesquisas futuras. Mas, no final, ficava evidente que não se tratava de um exercício acadêmico ou de uma busca puramente erudita. Eles estavam envolvidos no que viria a ser claramente um empreendimento comercial. “O Google está projetado para ser uma ferramenta de busca expansível”, declaravam na conclusão. “O objetivo principal é fornecer resultados de pesquisa de alta qualidade.”

Isso poderia ser um problema em universidades onde a pesquisa estava voltada sobretudo para fins acadêmicos, não para aplicações comerciais. Mas Stanford não só permitia que os estudantes trabalhassem em empreendimentos comerciais como incentivava e facilitava tais iniciativas. Havia até um escritório para ajudar no processo de patenteamento e em acordos de licenciamento. “Temos um ambiente em Stanford que promove o empreendedorismo e a pesquisa com assunção de riscos”, declarou o reitor John Hennessy. “Aqui, as pessoas realmente entendem que, às vezes, a melhor maneira de causar um efeito no mundo não é escrever um trabalho acadêmico, mas pegar a tecnologia em que você acredita e fazer algo com ela.”161

Page e Brin começaram por tentar licenciar seu software para outras empresas e se reuniram com os CEOs de Yahoo!, Excite e AltaVista. Eles pediram 1 milhão de dólares, o que não era exorbitante, uma vez que incluiria os direitos sobre as suas patentes, bem como os serviços pessoais dos dois. “Essas empresas valiam centenas de milhões ou mais na época”, disse Page mais tarde. “Não era uma despesa tão significativa para elas. Mas foi falta de visão da sua direção. Muitas nos disseram: ‘Pesquisa não é tão importante’.”162

Em consequência, Page e Brin decidiram abrir uma empresa própria. Ajudou nisso o fato de que a poucos quilômetros do campus havia empresários bem-sucedidos para atuar como investidores-anjo, bem como capitalistas de risco logo acima da Sand Hill Road ansiosos para fornecer capital de giro. David Cheriton, um dos professores de ambos em Stanford, havia fundado com Andy Bechtolsheim, um investidor desse tipo, uma empresa de produtos para redes Ethernet que haviam vendido para a Cisco Systems. Em agosto de 1998, Cheriton sugeriu a Page e Brin que eles se encontrassem com Bechtolsheim, que também havia sido um dos fundadores da Sun Microsystems. Num final de noite, Brin enviou-lhe um e-mail. Recebeu uma resposta imediata, e na manhã seguinte bem cedo todos se reuniram no alpendre da casa de Cheriton em Palo Alto.

Mesmo nessa hora horrível para estudantes, Page e Brin conseguiram fazer uma demonstração convincente de sua ferramenta de busca, mostrando que podiam baixar, indexar e classificar páginas de grande parte da web em racks de minicomputadores. Foi um encontro tranquilo no auge do boom da internet, e Bechtolsheim fez perguntas encorajadoras. Ao contrário das dezenas de propostas que lhe faziam todas as semanas, aquela não era uma apresentação em PowerPoint de algum software ou hardware que ainda não existia. Ele pôde digitar consultas e de imediato apareceram respostas que eram muito melhores do que as produzidas pelo AltaVista. Além disso, os dois fundadores tinham inteligência rápida e eram entusiasmados, o tipo de empresário em que ele gostava de apostar. Bechtolsheim apreciou o fato de eles não estarem jogando grandes somas de dinheiro — aliás, nenhum — em marketing. Os rapazes sabiam que o Google era bom o suficiente para se disseminar boca a boca, de modo que cada centavo que tinham ia para componentes para os computadores que estavam montando eles mesmos. “Outros sites pegavam uma boa parte do financiamento de risco e gastavam em publicidade”, disse Bechtolsheim. “Ali, a abordagem era oposta. Construir algo de valor e oferecer um serviço atraente o bastante para que as pessoas simplesmente o usassem.”163

Ainda que Brin e Page fossem avessos a aceitar publicidade, Bechtolsheim sabia que seria simples — e não corrompedor — pôr anúncios claramente identificados na página de resultados de busca. Isso significava que havia um fluxo de receita óbvio à espera de ser aproveitado. “Esta é a melhor ideia que já ouvi em anos”, disse-lhes. Eles falaram sobre valores por um minuto e Bechtolsheim replicou que o preço deles era baixo demais. “Bem, não quero perder tempo”, concluiu, já que precisava ir para o trabalho. “Tenho certeza de que vai ajudar vocês se eu preencher um cheque.” Ele foi até o carro, pegou o talão de cheques e fez um para a Google Inc. de 100 mil dólares. “Nós ainda não temos uma conta bancária”, disse Brin. “Depositem quando tiverem uma”, respondeu Bechtolsheim. E foi embora em seu Porsche.

Brin e Page foram ao Burger King para comemorar. “Achamos que deveríamos comer uma coisa que fosse mesmo boa, embora pouco saudável”, contou Page. “E era barato. Parecia a combinação certa para celebrar o financiamento.”164

O cheque de Bechtolsheim para a Google Inc. os estimulou a abrir a empresa. “Tivemos de arranjar rápido um advogado”, disse Brin.165 Page lembrou: “Foi tipo ‘Uau, talvez a gente deva abrir uma empresa já’”.166 Graças à reputação de Bechtolsheim — e à natureza impressionante do produto Google — vieram outros financiadores, entre eles Jeff Bezos, da Amazon. “Eu simplesmente me apaixonei por Larry e Sergey”, ele declarou. “Eles tinham visão. Era um ponto de vista voltado para o cliente.”167 O burburinho favorável em torno do Google ficou tão alto que, alguns meses mais tarde, a empresa conseguiu a rara proeza de atrair investimentos das duas principais firmas de capital de risco do Vale do Silício, as concorrentes Sequoia Capital e Kleiner Perkins.

O vale tinha outro ingrediente, além de uma universidade prestativa e mentores e capitalistas de risco ansiosos: muitas garagens, como aquelas em que Hewlett e Packard projetaram seus primeiros produtos e Jobs e Wozniak montaram as primeiras placas do Apple I. Quando se deram conta de que era hora de largar os planos de dissertações e deixar o ninho de Stanford, Page e Brin encontraram uma garagem — para dois carros, com banheira de hidromassagem e um par de quartos vagos dentro da casa, em Menlo Park —, que poderiam alugar por 1700 dólares por mês de uma amiga de Stanford, Susan Wojcicki, que logo entrou para o Google. Em setembro de 1998, um mês depois da reunião com Bechtolsheim, Page e Brin constituíram sua empresa, abriram uma conta bancária e descontaram o cheque. Na parede da garagem, puseram uma lousa branca em que se lia “Sede Mundial do Google”.

 

 

Além de tornar toda a informação da World Wide Web acessível, o Google representou um salto culminante na relação entre seres humanos e máquinas — a “simbiose homem-computador” que Licklider havia imaginado quatro décadas antes. O Yahoo! tentara uma versão mais primitiva dessa simbiose, usando as buscas eletrônicas e guias compilados por seres humanos. A abordagem que Page e Brin adotaram pode parecer, à primeira vista, uma forma de remover as mãos humanas dessa fórmula, com as buscas sendo realizadas apenas por rastreadores e algoritmos. Mas um olhar mais profundo revela que a abordagem deles era, na verdade, uma fusão de máquina e inteligência humana. Seu algoritmo se baseava em bilhões de julgamentos humanos feitos por pessoas, quando criavam os links de seus próprios sites. Era uma forma automatizada de aproveitar a sabedoria dos seres humanos — em outras palavras, uma forma superior de simbiose ser humano-computador. Brin explicou:

 

O processo pode parecer totalmente automatizado, mas, em termos da quantidade de input humano que entra no produto final, existem milhões de pessoas que passaram muito tempo projetando suas páginas na web, determinando para quem e como iriam os links, e esse elemento humano entra nele.168

 

Em seu ensaio fundamental “As We May Think”, de 1945, Vannevar Bush apresentara o desafio: “A soma da experiência humana está se expandindo a uma taxa prodigiosa, e os meios que usamos para abrir caminho através do consequente labirinto para o item importante no momento é o mesmo que era utilizado no tempo dos navios a vela”. No trabalho acadêmico que apresentaram a Stanford, pouco antes de largarem a universidade para abrir sua empresa, Brin e Page disseram a mesma coisa: “A quantidade de documentos nos índices aumentou em várias ordens de magnitude, mas a capacidade do usuário para ver os documentos, não”. Suas palavras eram menos eloquentes que as de Bush, mas eles haviam conseguido realizar o sonho dele de uma colaboração homem-máquina para lidar com a sobrecarga de informações. Ao fazê-lo, o Google tornou-se o ponto culminante de um processo de sessenta anos para criar um mundo em que seres humanos, computadores e redes estavam intimamente ligados. Qualquer pessoa em qualquer lugar podia compartilhar coisas com pessoas em todos os lugares e fazer consultas a respeito de tudo.

Image


aEnquire within”: expressão que era usada em tabuletas colocadas em vitrines convidando o cliente a entrar para descobrir mais a respeito dos produtos. (N. T.)

b Como o HTTP da web, o Gopher era um protocolo de camada de aplicativos da internet (TCP/IP). Ele facilitava um desenho de navegação baseado em menus para encontrar e distribuir documentos (geralmente baseados em texto) on-line. Os links eram feitos pelos servidores, em vez de embutidos nos documentos. Seu nome (de um tipo de esquilo) derivava do mascote da universidade e era também um trocadilho com “go for” [ir para].

c Um ano depois, Andreessen se juntaria ao bem-sucedido empreendedor serial Jim Clark para lançar uma empresa chamada Netscape, que produziu uma versão comercial do navegador Mosaic.

d O Bitcoin e outras criptomoedas incorporam técnicas de criptografia matematicamente codificadas e outros princípios de criptografia para criar uma moeda segura que não tem um controle central.

e Sprawl: referência à fictícia região conurbada de Boston-Atlanta, cenário dos romances da trilogia Sprawl, de William Gibson. (N. T.)

f “Johnny Appleseed” [Joãozinho Semente de Maçã]: nome pelo qual ficou conhecido John Chapman (1774-1845), pioneiro e figura lendária dos Estados Unidos que percorreu o país semeando macieiras. (N. T.)

g Em março de 2003, a palavra “blog” como substantivo e verbo foi admitida no Oxford English Dictionary.

h De forma reveladora, e louvável, os verbetes da Wikipédia sobre sua própria história e os papéis de Wales e Sanger, depois de muita batalha nos fóruns de discussão, acabaram por ser equilibrados e objetivos.

i Criado por Paul Terrell, o dono da cadeia de lojas de computação The Byte Shop, que havia lançado o Apple I ao encomendar as primeiras cinquenta unidades.

j Aquele escrito por Bill Gates.

k Bill Gates fez doações para prédios de informática nas universidades Harvard, Stanford, MIT e Carnegie Mellon. O de Harvard, financiado também por Steve Ballmer, ganhou o nome de Maxwell Dworkin, em homenagem às mães dos doadores.

l O Oxford English Dictionary acrescentou google como verbo em 2006.